TERCEIRO FRAGMENTO DA DÉCIMA TERCEIRA VOZ
Naquele tempo a escada ainda não era amarela. Ela me ajudava. Quando as contrações se tornavam insuportáveis, eu descia pela escada que ainda não era amarela para repetir o disco. Isso me acalmava, molhar plantas, abrir livros ao acaso. Foi numa dessas vezes que encontrei os versos falando da maldição. Só então entendi que aquele era o momento exato do abandono dos Deuses. Quando Medéia perde os poderes por amor a Jasão, Exu se ausenta. Mas tudo isso é necessário? Tudo isso o quê? As explicações, as memórias, os mitos. Não sei, não sei, não consigo de outro jeito. Continuo esperando certa nitidez vinda de fora. Por enquanto, nesta outra cidade, ouço e vejo apenas o vento misturando terras, pólens, papéis, sementes, miasmas, folhas e histórias. Sopra mais forte na minha esquina sobre o abismo. Curva das Tormentas, eu a chamei. A enfermeira disse que por isso estão todos hoje mais agitados. Recuso a injeção para esquecer. Quero voar com o vento para o centro da Curva das Tormentas. Me ajuda, pai, meu pai
— meu pai Ogum, senhor das estradas.
III. MARILIA
Eu a vi atravessar rápido o corredor. Parecia chorar. Nunca sabemos ao certo quando Anaís chora realmente ou se está apenas um pouco embriagada por seus licores açucarados, pelas drogas que costuma comprar nos dias em que vai à cidade, quase sempre às sextas. Logo depois ouvi os passos pesados de Marcelo saindo da cozinha para bater com força a porta do quarto. Não tive tempo de compreender. De repente havia um excesso de ruídos no ar, aquele disco de piano de que Linda tanto gosta, muito alto, um grito estridente de Ísis, os uivos dos cães, Ricardo parado no meio da sala dizendo que precisávamos fazer alguma coisa, Arthur trancando todas as portas enquanto Júlio caminhava de um lado para outro, fumando sem parar. Na mesa, Pedro, Virgínia, Martha e eu. Martha parecia concentrada fazendo contas na calculadora, anotando números no pequeno bloco, detendo-se às vezes para levantar os óculos redondos que freqüentemente escorregam por seu nariz comprido. Virgínia terminava um mapa, traçando riscos retos, azuis ou vermelhos, com quadrados ou triângulos, entre os planetas. Pedro lia. Espiei por cima de seu ombro no momento em que sublinhava uns versos assim: Aí, da terra trevosa e do Tártaro nevoento e do mar infecundo e do céu constelado, de todos, estão contíguos às fontes e confins, torturantes e bolorentos, odeiam-nos os deuses. Eu olhava minhas unhas sujas de terra, sem conseguir estender as mãos para apanhar aquele bordado com ramos de trigo nos quatro cantos, que prometi a Raul terminar hoje.
Hesíodo: Teogonia.
Estendia as mãos mas, antes de apanhar o pano, via a terra das unhas, então lembrava de Raul, da promessa feita. Acho que de repente fiquei espantada por estar exatamente aqui, entre todas essas pessoas, e devo ter me perguntado vagamente por que tudo em minha vida teria me conduzido para este momento, esta mesa, esses cães uivando lá fora. Não estava preocupada. Tudo que precisávamos era economizar o que restava de comida, cigarros, papel, todas essas coisas. Mas Isis, comendo bombons sem parar enquanto Júlio fumava e Martha escrevia, parecia não compreender que ignorávamos até quando os cães permaneceriam soltos. Da sensação de estranheza e também de irritação que me veio de todos eles, emergiu lenta a figura de Raul. Sabia que preparava o chá das ervas que eu colhera pela manhã, quando Marcelo foi até a cozinha contar a ele. Mas agora, depois de todos os ruídos silenciados, somente o som do piano vibrando no ar, entrecortado pelos uivos dos cães, era como se não nos importássemos com ele. Vou ver Raul, eu disse, e me afastei da mesa com o bordado inacabado nas mãos. No corredor ouvi gemidos vindos do quarto de Anaís, e qualquer coisa como um resfolegar de bicho no quarto de Marcelo. Mas não sabia se não seriam talvez os uivos dos cães, os acordes do piano ou os passos de Júlio.
Raul estava deitado no chão da cozinha. Ele sempre me lembrava um lago. Quieto feito um lago, o branco da roupa destacado contra os ladrilhos escuros. Olhava para o teto, como se não houvesse teto. Apontou o bule branco com as doze xícaras coloridas em volta, pedindo que não deixasse ninguém quebrá-las. Todos correm perigo, disse. Para tranqüilizá-lo, sentei a seu lado. Tremíamos. Pensei em colocar a cabeça dele no meu colo, tomar suas mãos, cantar, fazer carinhos. Mas só consegui ficar muito próxima. De alguma forma, eu queria dizer que tudo aquilo importava pouco. Se soubéssemos controlar a nós mesmos, ao nosso terror, e poupar o gasto exagerado de tudo que tínhamos armazenado, nada aconteceria. Amanhã, depois, dentro de uma semana, um mês, os cães morreriam e poderíamos novamente abrir a casa, sair para o sol. Lera um dia em algum lugar que a raiva corrói aos poucos o cérebro deles. Não resistem muito. Queria dizer a Raul que pensasse no tempo que fatalmente passaria, como sempre passa.
O que hoje é drama, sempre, amanhã estará quieto na memória. A casa, ele disse, a casa. Em seguida: o que vai ser de nós? Está tudo bem, tentei dizer, tudo bem. Mas com um martelo na mão Arthur segurou meu braço, forçando-me a levantar. Com tanta violência que o pano bordado caiu sobre o rosto de Raul.

Marcadores:

| Por ludelfuego | 5.4.08 | 13:31.