Estou certo de que se não tivesse ido à cozinha aquela noite não os teria encontrado. Apenas não era possível ficar sem fazer nada enquanto meus pais jogavam cartas na sala. Tinham-me perguntado duas ou três vezes se eu não queria jogar — e duas ou três vezes respondi que não. Talvez houvesse falado secamente, porque eles baixaram a cabeça como se estivessem sendo agredidos e, espantosamente, continuaram a jogar. Digo espantosamente porque era quase inacreditável a lentidão com que movimentavam os braços para depositar cartas sobre a toalha de plástico. As vezes os movimentos se espaçavam a tal ponto que, suspenso, eu esperava o momento em que um deles dissesse não suportar mais. Mas embora os espaços aumentassem, ninguém dizia nada A impressão que eu tinha era de que o jogo ganhava a forma de enormes intervalos de silêncio, cada vez mais vazios, interligados por uma ou outra carta. Desde sempre jogavam assim, ninguém ganhava, ninguém ganharia nunca — dizia-me lentamente enquanto olhava para suas cabeças falsamente absortas. Olhei em volta, mas também ali não acontecia nada. Algumas folhas batiam na vidraça, e nada mais que isso.
Foi então que surpreendi os dois olhando para mim como se esperassem. Mas não havia nada para dar a eles. Rapidamente, então, imaginei uma cimitarra e, sem parar de pensar, dotei-a de uma infinidade de movimentos circulares — como se dançasse. Só que não havia nenhuma mão a sustentá-la. Eles continuavam me olhando enquanto o som do relógio crescia, espalhado quase insuportável por entre as cartas e os espaços vazios. E foi ainda então que houve a necessidade de um gesto meu. Levantei-me e enveredei em direção à cozinha. Debrucei a cabeça sobre a mesa limpa como se chorasse. Apenas como. Não havia porquê, e eu sempre pensava que devia haver uma motivação a orientar qualquer gesto meu. Rocei a face contra a superfície da madeira. Ela me feriu de leve com suas aparas quase imperceptíveis.
Fechei os olhos e julguei descobrir alguma coisa no fundo das pupilas: criavam-se certos movimentos verticais, tão imprecisos quanto bruscos, e apertando mais os olhos eles se alargavam, ganhando alguns toques dourados. Esse era um dos meus divertimentos favoritos nos últimos tempos: acreditava sentir em mim remotas forças reveladas e expressas naquelas sombras que moravam no fundo de meus olhos. Não sabia que espécie de forças, afinal de contas sempre fui um desconhecido para mim mesmo — sabia porém que eram violentas essas forças, diria mesmo fortes forças, não fosse sem sentido. Mas essas forças, ou o que quer que fossem aqueles movimentos escuros e verticais, nunca chegavam além das pálpebras. Foi pensando nisso que abri os olhos e encontrei a cimitarra. Ela avançava para mim com seus movimentos circulares, como se desejasse cortar-me. Como não me surpreendi, ela parou no meio do caminho.
Saí da cozinha e desci velozmente as escadas sem parar na sala. À porta do edifício detive brusco os passos e olhei para trás, a ver se ela me seguia. Não consegui enxergar nada na escuridão: abri a porta e saí para a noite. Sentei num dos bancos do jardim do edifício e fiquei ali, perdido entre as hortênsias meio murchas, até que um contato frio no ombro esquerdo obrigou minha cabeça a voltar-se. Independente de meu comando, ela voltou-se e viu a cimitarra. Não posso negar que seus movimentos eram doces, e não foi por outro motivo que obriguei meus olhos a encararem-na sérios, talvez excessivamente sérios, porque seus movimentos começaram a intensificar-se de tal maneira que fui obrigado a suspirar, exausto.
A verdade é que ela me cansava um pouco com seus movimentos sempre iguais, e principalmente com aqueles vulgares reflexos da lua em sua lâmina polida. Mas não podia negar também que era bela, tão bela quanto pode ser uma cimitarra, apesar de um tanto acadêmica. Bocejei, tentando fechar novamente os olhos para voltar à minha brincadeira. Mas não foi possível descobrir no fundo das pupilas os mesmos objetos imprecisos, contraindo-se vertical e horizontalmente, como numa dança hindu. Agora eram duas cimitarras de lâminas cintilantes que, nítidas, oscilavam por entre as pálpebras. Dentro e fora de meus olhos, a paisagem era a mesma. Resolvi, portanto, abri-los, o que fiz com certo cuidado, temeroso de que um gesto brusco pudesse provocar o desabamento de qualquer coisa que eu não conseguia precisar o que fosse.
Olhei primeiro as hortênsias, depois a luz, depois espalmei a mão sobre o cimento do banco, certifiquei-me de que não havia estrelas, constatei a frieza do cimento, tentei sentir um pouco de frio — mas finalmente fui obrigado a admitir o impossível: a cimitarra havia-se multiplicado em cinco. Essas cinco cimitarras agora estavam paradas à minha volta, poderia mesmo dizer que: expectantes. Não fiz nenhuma pergunta: limitei-me apenas a observá-las com mais cuidado que antes. Mas não havia nada de extraordinário nelas.
Pensei ficar mais tranqüilo com essa descoberta, mas aos poucos fui distinguindo alguns contornos bastante esmaecidos por trás delas. Forcei a vista e, à medida que me empenhava em ver cada vez melhor, mais esmaecidas se faziam as formas. Depois de alguns minutos, desisti. No momento em que julguei ter desistido, as sombras se tornaram mais acentuadas e, sem nenhum esforço de minha parte, transformaram-se em cinco seres desconhecidos. Tinham a mesma aparência — todos baixos, musculosos, de cabeças raspadas, narinas largas e olhos inteiramente verdes, sem pupila, íris ou esclerótica, seu lábios eram grossos e traziam argolas nas orelhas.
“Mas eu nunca os imaginei” — tentei dizer-lhes, ao mesmo tempo em que, sem saber exatamente a razão, achava-os parecidos com uma tapeçaria que vira em algum antiquário no mercado persa da cidade. Ao mesmo tempo em que abri a boca, senti contra os lábios o contato da madeira. Isso era impossível, porque eu estava sentado num banco de cimento. Sem me mover, percebi que meus olhos estavam fechados, e erguendo uma das mãos apalpei a superfície onde estava debruçado. Parecia uma mesa, a mesma da cozinha de nossa casa. Deve ser um sonho — pensei sem originalidade. Vim até a cozinha e dormi. Mas ao abrir olhos verifiquei que, embora realmente estivesse na mesa da cozinha, os seres continuavam presentes.
Não movi um músculo, com a intenção de não fazer absolutamente nada enquanto não fosse usada a violência. Mas lentamente alguma coisa em meu cérebro começou a pulsar. Julguei que fosse uma célula, embora não soubesse ao certo o que seria uma célula. Pulsava do lado esquerdo de minha fronte, exatamente como pulsaria uma veia. Levando as mãos à testa, porém, percebi que a veia continuava imóvel, no mesmo lugar de sempre, e por entre as gotas de suor continuei sentindo o pulsar invisível da coisa, cada vez mais intenso. Já quase dilacerava meu cérebro, me impedindo de pensar, ensurdecedora, absurda — quando tive a sensação que gritava.
Os cinco seres tiveram um quase imperceptível movimento de alegria quando fiz menção de levantar. Havia-se formado entre nós uma espécie de corrente telepática: olhando a extensão inteiramente verde de seus olhos percebi que sorriam e me incitavam a ir adiante no que começara. Tentei dizer que não começara coisa alguma, mas imediatamente senti quase como um soco a extraordinária beleza daqueles cinco seres e suas cimitarras. Enquanto avançava na compreensão do que eles me ditavam, ia descobrindo com mais precisão o sentido de tudo aquilo.
Não hesitei quando um deles me empurrou em direção à porta. Entrando na sala, percebi com surpresa que o ponteiro dos minutos do relógio quase não se movera desde a última vez que eu o olhara. E, no entanto, a minha sensação era de que tinham se passado horas. Curvados sobre a mesa, os meus pais continuavam seu espaçado jogo. Cruzei os braços e me recostei à janela, abrindo-a para que entrasse um pouco de ar
Quando senti que tudo estava preparado, fiz um sinal em direção aos dois velhos e esperei. Os cinco seres deixaram-se cair sobre eles. Dois seguraram meu pai enquanto outros dois seguravam minha mãe e o quinto cortava-os rapidamente com golpes de cimitarra. Cortaram-nos em inúmeros pedaços que caíram espalhados pelo chão, sem sangue nem gritos. Em seguida reuniram-se em torno da carne e banquetearam-se fartamente, sem deixar vestígios. Antes de terminarem, um deles me ofereceu um pedaço das costas de meu pai, mas preferi ir até a geladeira e beber um copo de leite.
Foi então que surpreendi os dois olhando para mim como se esperassem. Mas não havia nada para dar a eles. Rapidamente, então, imaginei uma cimitarra e, sem parar de pensar, dotei-a de uma infinidade de movimentos circulares — como se dançasse. Só que não havia nenhuma mão a sustentá-la. Eles continuavam me olhando enquanto o som do relógio crescia, espalhado quase insuportável por entre as cartas e os espaços vazios. E foi ainda então que houve a necessidade de um gesto meu. Levantei-me e enveredei em direção à cozinha. Debrucei a cabeça sobre a mesa limpa como se chorasse. Apenas como. Não havia porquê, e eu sempre pensava que devia haver uma motivação a orientar qualquer gesto meu. Rocei a face contra a superfície da madeira. Ela me feriu de leve com suas aparas quase imperceptíveis.
Fechei os olhos e julguei descobrir alguma coisa no fundo das pupilas: criavam-se certos movimentos verticais, tão imprecisos quanto bruscos, e apertando mais os olhos eles se alargavam, ganhando alguns toques dourados. Esse era um dos meus divertimentos favoritos nos últimos tempos: acreditava sentir em mim remotas forças reveladas e expressas naquelas sombras que moravam no fundo de meus olhos. Não sabia que espécie de forças, afinal de contas sempre fui um desconhecido para mim mesmo — sabia porém que eram violentas essas forças, diria mesmo fortes forças, não fosse sem sentido. Mas essas forças, ou o que quer que fossem aqueles movimentos escuros e verticais, nunca chegavam além das pálpebras. Foi pensando nisso que abri os olhos e encontrei a cimitarra. Ela avançava para mim com seus movimentos circulares, como se desejasse cortar-me. Como não me surpreendi, ela parou no meio do caminho.
Saí da cozinha e desci velozmente as escadas sem parar na sala. À porta do edifício detive brusco os passos e olhei para trás, a ver se ela me seguia. Não consegui enxergar nada na escuridão: abri a porta e saí para a noite. Sentei num dos bancos do jardim do edifício e fiquei ali, perdido entre as hortênsias meio murchas, até que um contato frio no ombro esquerdo obrigou minha cabeça a voltar-se. Independente de meu comando, ela voltou-se e viu a cimitarra. Não posso negar que seus movimentos eram doces, e não foi por outro motivo que obriguei meus olhos a encararem-na sérios, talvez excessivamente sérios, porque seus movimentos começaram a intensificar-se de tal maneira que fui obrigado a suspirar, exausto.
A verdade é que ela me cansava um pouco com seus movimentos sempre iguais, e principalmente com aqueles vulgares reflexos da lua em sua lâmina polida. Mas não podia negar também que era bela, tão bela quanto pode ser uma cimitarra, apesar de um tanto acadêmica. Bocejei, tentando fechar novamente os olhos para voltar à minha brincadeira. Mas não foi possível descobrir no fundo das pupilas os mesmos objetos imprecisos, contraindo-se vertical e horizontalmente, como numa dança hindu. Agora eram duas cimitarras de lâminas cintilantes que, nítidas, oscilavam por entre as pálpebras. Dentro e fora de meus olhos, a paisagem era a mesma. Resolvi, portanto, abri-los, o que fiz com certo cuidado, temeroso de que um gesto brusco pudesse provocar o desabamento de qualquer coisa que eu não conseguia precisar o que fosse.
Olhei primeiro as hortênsias, depois a luz, depois espalmei a mão sobre o cimento do banco, certifiquei-me de que não havia estrelas, constatei a frieza do cimento, tentei sentir um pouco de frio — mas finalmente fui obrigado a admitir o impossível: a cimitarra havia-se multiplicado em cinco. Essas cinco cimitarras agora estavam paradas à minha volta, poderia mesmo dizer que: expectantes. Não fiz nenhuma pergunta: limitei-me apenas a observá-las com mais cuidado que antes. Mas não havia nada de extraordinário nelas.
Pensei ficar mais tranqüilo com essa descoberta, mas aos poucos fui distinguindo alguns contornos bastante esmaecidos por trás delas. Forcei a vista e, à medida que me empenhava em ver cada vez melhor, mais esmaecidas se faziam as formas. Depois de alguns minutos, desisti. No momento em que julguei ter desistido, as sombras se tornaram mais acentuadas e, sem nenhum esforço de minha parte, transformaram-se em cinco seres desconhecidos. Tinham a mesma aparência — todos baixos, musculosos, de cabeças raspadas, narinas largas e olhos inteiramente verdes, sem pupila, íris ou esclerótica, seu lábios eram grossos e traziam argolas nas orelhas.
“Mas eu nunca os imaginei” — tentei dizer-lhes, ao mesmo tempo em que, sem saber exatamente a razão, achava-os parecidos com uma tapeçaria que vira em algum antiquário no mercado persa da cidade. Ao mesmo tempo em que abri a boca, senti contra os lábios o contato da madeira. Isso era impossível, porque eu estava sentado num banco de cimento. Sem me mover, percebi que meus olhos estavam fechados, e erguendo uma das mãos apalpei a superfície onde estava debruçado. Parecia uma mesa, a mesma da cozinha de nossa casa. Deve ser um sonho — pensei sem originalidade. Vim até a cozinha e dormi. Mas ao abrir olhos verifiquei que, embora realmente estivesse na mesa da cozinha, os seres continuavam presentes.
Não movi um músculo, com a intenção de não fazer absolutamente nada enquanto não fosse usada a violência. Mas lentamente alguma coisa em meu cérebro começou a pulsar. Julguei que fosse uma célula, embora não soubesse ao certo o que seria uma célula. Pulsava do lado esquerdo de minha fronte, exatamente como pulsaria uma veia. Levando as mãos à testa, porém, percebi que a veia continuava imóvel, no mesmo lugar de sempre, e por entre as gotas de suor continuei sentindo o pulsar invisível da coisa, cada vez mais intenso. Já quase dilacerava meu cérebro, me impedindo de pensar, ensurdecedora, absurda — quando tive a sensação que gritava.
Os cinco seres tiveram um quase imperceptível movimento de alegria quando fiz menção de levantar. Havia-se formado entre nós uma espécie de corrente telepática: olhando a extensão inteiramente verde de seus olhos percebi que sorriam e me incitavam a ir adiante no que começara. Tentei dizer que não começara coisa alguma, mas imediatamente senti quase como um soco a extraordinária beleza daqueles cinco seres e suas cimitarras. Enquanto avançava na compreensão do que eles me ditavam, ia descobrindo com mais precisão o sentido de tudo aquilo.
Não hesitei quando um deles me empurrou em direção à porta. Entrando na sala, percebi com surpresa que o ponteiro dos minutos do relógio quase não se movera desde a última vez que eu o olhara. E, no entanto, a minha sensação era de que tinham se passado horas. Curvados sobre a mesa, os meus pais continuavam seu espaçado jogo. Cruzei os braços e me recostei à janela, abrindo-a para que entrasse um pouco de ar
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Marcadores: O Ovo Apunhalado
Lembro a primeira vez que li Sarau.
Fiquei encantada com essa mistura da superficialidade do universo real com a fantasia do mundo onírico.Muito bom!
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