Sobe, desce escadas; fecha, abre janelas; as escadas acabam na porta do quarto, as janelas se abrem sobre a parede cinza do edifício em frente. Qualquer dia entra janela adentro, ninguém pode fazer coisa alguma. Jogada na cama, dedilha o tédio abaixo do umbigo: inspirar contando até oito, segurar a respiração contando até oito, expirar contando até oito, segurar a respiração contando até oito. Mais uma vez, outra mais. Sete vezes. Con-cen-tra-ção. Hare Krishna. Krishna Hare. (Lulu casou com Jaime, lua-de-mel em Foz do Iguaçu. Betinha ganha três milhões por mês, secretária executiva. Norminha se forma psicóloga este ano.) Seis-sete-oito. Honeymoon. Até a moça gorda da farmácia, empregadosa, você pode discar pra mim? Tenho horror de telefone. Alô? É da Rádio ltaí? Aqui é a Dorvalina do Menino Deus, queria oferecer pro Jorge do 9º. batalhão "Daria tudo pra você estar aqui", com Wanderley Cardoso. Tudo. Tudinho. Ah. Até o espelho, meu Deus, o cabelo já não tem o mesmo brilho, e essas marquinhas nos cantos dos olhos quando sorri? fora o que não aparece, os seios, meu Deus, os seios despencando, gordurinhas nas dobras da cintura, tenho vinte e nove anos, e mais, e mais: as outras marcas, as de dentro. Devia começar a usar óculos, prender o cabelo, cores mais discretas, marrom, cinza, gelo. Brigitte Bardot tem quarenta anos, eu adoro vermelho. Mas. Abre portas, a sacada sobre o gramado, pelo menos essa grama verde batida de sol, na casa ao lado alguém ouve música italiana: sapore di sale sapore di mare roberta ascoltami mio cuore, tanto tempo, meu Deus como a gente se trai nessas memórias. Mas a margarida. Desce para o jardim, o vento Norte, a casa quieta, sábado de tarde, abriu! é a primeira desta primavera, pólen solto no ar. Observa bem de perto. A margarida não é igual às outras margaridas. A margarida tem uma pétala encravada no centro, por que você não abriu para fora como as outras? ficar aí nesse centro amarelo: a margarida atrofiada, a margarida aleijada. O vento Norte joga os cabelos na cara, os homens da construção ao lado, assim pode observá-los melhor entre os fios, melhor, ninguém suspeita. Novembro novembro. O calção branco, as coxas fortes, os pêlos da barriga afundando no volume dentro do calção branco: Densidades Inimagináveis. O pensamento espástico. Sabe o que é espástico? É o que tem uma deficiência nervosa qualquer, eu também não sei direito: o espástico joga pernas & braços em todas as direções, sem o menor controle. Ah. Menina, o que foi que aconteceu com você? O que foi que fizeram com você? Eu não sei, eu não entendo. Roubaram a minha alegria, Tiamelinha quando foi pra clínica só dizia isso: roubaram a minha alegria, é tudo uma farsa, aquele olho desmaiado, é tudo uma farsa, roubaram a minha alegria. A primavera, o vento, esperei tanto por essa margarida, e veja só. Atrofiada. Aleijada. As pedras frias do chão da cozinha, rolar nua neste chão, qualquer dia faço uma loucura, faz nada, você está nessa marcação faz mais de dez anos. Mais de dez anos. A gente se entrega nas menores coisas. O cabelo enorme de Luzinha, você tá marcando, garota. (Jaime Jaime Jaime, como é que você foi casar com a Lulu, com aqueles dentões? Vai ser horrível, não vai dar certo.) Um chá, um chá às vezes resolve, funcho, capim-cidró, macela. Deve ter lua cheia hoje, fico meio enlouquecida. Inspirar, expirar, contando até oito. Papai, eu estou louca pirada que nem Tiamelinha, acho tudo uma farsa, roubaram a minha alegria, papai. Durmo durmo durmo, batem na porta mas nunca é ninguém, aconteceu alguma coisa comigo, eu não era assim, esses calores, quem sabe alguns trabalhos caseiros? cozinhar costurar bordar tricotar, essas coisas. Você não quer voltar a estudar? era tão inteligente, parecia até que tinha uma certa queda para história. Joana Angélica, Maria Quitéria, Anita Garibaldi, essas machonas todas. Papai, meu pai, quero lamber o suor do meio das coxas daquele moço de calção branco da construção aí da frente. Desculpe, é o meu pensamento espástico, a lua cheia, não sou dessas, papai. Agora já não dá mais, Luzinha, troppo tarde, se continuo assim vou parar numa clínica ou tento o suicídio. Tenta nada, você não tem coragem, e tentar pra quê? pra chamar a atenção dos outros? pra dizer como-sou-infeliz-ninguém-me-entende? Bobeira, garota, você quer, arrumo umas pancas aí numas bocas e você sai dando. Tem tudo que quer e fica aí se queixando, parece uma tia velha solteirona, queria ver você dar duro, trabalhar oito horas por dia, sustentar mãe-entrevada-&-pai-alcoólatra, trabalhar, quem sabe? Você não sabe datilografia estenografia inglês correspondência? Secretária executiva, nas férias você vai pro Rio, Montevideu, Buenos Aires, com o tempo pode ir até a Paris fazer compras. Socorro. Um tiro no ouvido. Pior, pior ainda: envelhecer devagarinho, secar feito passa sem que ninguém tenha cravado os dentes na minha polpa macia. Poesia, quem sabe escrever sonetos soluciona? À tardinha a sombra dos mamoneiros se reflete na parede cinza do edifício em frente. Mas isso não dá um poema. À tardinha. Inspirar, expirar. Hare Rama. Rama Krishna. Rubras cascatas no céu, Luzinha é quem tem razão, sair dando por aí, mas Tiamelinha foi pra clínica de puro desgosto, Luzinha toma droga, pega qualquer macho. Bem que ela faz. Cala a boca, menina, quer matar seu pai do coração? A escada serve para subir e descer, a janela para abrir e fechar: o corpo serve só para doer, dolorir, vinte e nove anos, quase trinta, que horror, eu não resistirei, depois trinta e um, aí as cores discretas, aí os trabalhos caseiros, e eu que adoro vermelho. (Jaime Jaime Jaime, você não devia ter feito isso comigo), tomar banho e ficar na sacada sem olhar os pêlos molhados de suor do peito do moço da construção em frente, esperando o quê? esperando quem? Aqui-e-agora, Luzinha me empresta cada livro, aqui-e-agora, esses pássaros idiotas sobrevoando essa ilha de loucos, aqui-e-agora, não consigo mais ler essa porcaria, espástica, es-pás-ti-ca, proparoxítona é que tem acento na antepenúltima? o póster de Burt Reynolds, que vontade, Densidades Inimagináveis, nem lembro mais, venha comigo, aqui-e-agora, cinco-seis-sete-oito: por favor, por favor POR FAVOR : crave seus dentes na minha polpa maciaaaaaaaaaaaah.
Aquela noite, à hora de costume, ao voltar para casa Ele virou várias vezes a chave na fechadura e não conseguiu abrir a porta. Fazia frio, Ele estava com dor de barriga: não tinha agasalho e, por razões que o psiquiatra ainda não descobrira, só conseguia freqüentar seu próprio banheiro. Ele morava sozinho e só tinha aquela chave. Ele deu algumas voltas na calçada, olhou para cima como se acreditasse em Deus, e tentou novamente. Ele tentou mais de dez vezes, mas não conseguiu abrir a porta. Afastou-se um pouco para pensar e, olhando bem para a casa, concluiu que talvez não fosse aquela. Mas. Ele não se enganava: nunca. E tentou reorganizar os detalhes na memória: o gramado seco que fora jardim um dia entre o muro baixo e descascado e a porta de madeira escura. E o muro não era tão baixo nem tão descascado nem a grama tão seca nem tão escura a madeira da porta.
Ele ficou um pouco confuso e voltou até a parada de ônibus para refazer o itinerário, embora morasse naquela zona havia mais de quinze anos e nunca tivesse errado o caminho, mesmo aos sábados, quando bebia duas — no máximo três — doses de uísque nacional. Na parada de ônibus estava o mesmo negro alto que ali ficava todas as noites (Ele ouvira os vizinhos comentarem que o negro era passador de fumo). Mas ficou aliviado ao ver que a parada continuava a mesma, com o poste de luz amarela e a placa meio torta para o lado esquerdo, sem falar no negro alto encostado no poste, os olhos empapuçados. Mas, olhando bem, a luz era um pouco mais forte, embora o poste fosse mais alto, e a placa continuava despencada, mas para o lado direito — e o negro. O negro não era tão alto, nem estava encostado no poste, nem tinha os olhos empapuçados. Ele pensou que talvez não tivesse prestado bem atenção no negro e que o poste, a luz e a placa podiam ter sido modificados por um-daqueles-serviços-públicos-sempre-tão-deficientes, e o negro, o negro podia ser outro, ou ter sido sempre aquele, afinal, prestava bem atenção nas coisas apenas uma vez, a primeira, depois passava adiante, a memória confirmando (quinze anos). E nunca tinha se enganado, nunca. Então chegou perto do negro e olhou-o de cima a baixo sem dizer nada, até o negro perguntar devagar-e-muito-gentil se queria alguma coisa. Ele disse que não, que muito obrigado, que não fumava, mas não conseguiu parar de olhar para o negro que continuava olhando gentilmente para ele e agora começava a sorrir com uns-dentes-claros-muito-bons. Um pouco desorientado, Ele bateu com dois dedos no chapéu de feltro e foi andando pelo itinerário que devia ser o mesmo.
Quase na esquina da rua que devia ser a sua começou a ouvir uns passos atrás dos seus, e olhou, e era o negro que vinha vindo lentamente, as mãos nos bolsos e aquele sorriso gentil nos lábios grossos. Ele pensou rapidamente em coisas como assaltos, assassinatos, banditismos os mais variados, mas bastava chegar à esquina, dobrar à esquerda e mais dois passos: estaria chegando em sua casa de muro-baixo-meio-descascado-separado-da-madeira-escura-da-porta-pela-grama-áspera-quase-morta. Para certificar-se, olhou para cima, para a placa da rua, uma placa velha, de letras brancas sobre um fundo azul-marinho: e estava lá: Rua das Hortênsias. Suspirou aliviado, um segundo, depois ficou pensando quase com certeza que a rua era das Rosas, não das Hortênsias. Foi aí que o negro chegou bem perto dele e parou. Ele perguntou por favor, onde ficava a Rua das Rosas? e o negro sorriu sacana dizendo que não tinha fósforos. Sem outra saída, Ele virou à esquerda, embora a rua não fosse a das Rosas, e apressou o passo, e o negro também apressou o passo, e só se ouvia o som de quatro pés batendo rápidos na rua de casas antigas, sem rosas nem hortênsias.
Na frente da casa que devia ser a sua, Ele parou para enxugar o suor que escorria da testa, embora fizesse frio, ainda há pouco, e lembrou com pavor que na esquina o negro apertara qualquer coisa no bolso, uma coisa longa, provavelmente uma faca, e tremeu, e pensou em correr, mas o negro tinha chegado perto e não havia jeito de fugir sem mostrar que estava com medo. Ele sorriu nervoso apontando a casa e disse que não era a sua, que a chave não servia. O negro não disse nada. Ele ficou olhando a ponta dos sapatos e lembrou de perguntar que bairro era aquele, e perguntou. Mas o negro sorriu daquele jeito sacana outra vez e apertou no bolso a coisa longa — certamente uma faca — e disse que também não sabia, nem que cidade, quanto mais o bairro, nem que país, e riu, e foi chegando muito perto. Ele olhou em volta, tentando reconhecer a rua de casas velhas, como quinze anos antes, quando olhara pela primeira vez, a memória confirmando todos os dias: as casas velhas, os paralelepípedos meio desfalcados, uma árvore na esquina, não lembrava bem se um salgueiro, um plátano ou uma casuarina, algumas hortênsias, ou rosas, ou petúnias. Mas isso não importava mais: não havia salgueiros nem plátanos nem casuarinas em nenhuma das quatro esquinas, e as casas eram novas, e os paralelepípedos corretos, sem falhas nem buracos, e nem hortênsias nem rosas nem petúnias. Mesmo assim resolveu abrir o portão e entrar, quase obrigado, porque o negro estava muito perto, com a coisa longa prestes a sair do bolso para entrar no seu peito, como nos jornais. E entrando rapidamente pelo jardim bem cuidado, Ele foi dizendo sem olhar para trás que desculpasse, que não tinha dinheiro, que era fim de mês, que dentro de uma semana quem sabe, no máximo duas. O negro sorria muito próximo repetindo que não tinha importância não, não tinha, prazer era prazer, e Ele já estava quase encurralado contra a porta, uma chave inútil nas mãos. Colocou-a novamente na fechadura e foi virando várias vezes, sem resultado, o rosto contra a madeira clara da porta e a pressão aguda da certamente uma faca do negro contra as suas nádegas.
Foi então que Ele decidiu perder mesmo a calma, a barriga doía muito e o frio estava apertando, e bateu disposto a gritar se fosse preciso. O negro recuou um pouco, mas Ele sorriu tranquilizador, não podia mostrar medo, e o negro voltou a aproximar-se enquanto Ele batia batia batia. Até que uma luz acendeu dentro de casa e Ele ouviu o barulho de uma chave útil dando voltas na fechadura para abrir a porta que mostrou uma cabeça despenteada de mulher loura. Ele pensou em explicar que não sabia como: a casa não era sua, nem a parada do ônibus, nem a rua, hortênsias, rosas, petúnias, salgueiros, plátanos, casuarinas, talvez nem o bairro ou a cidade — ou o mundo, até, não era aquele. Embora Ele não se enganasse, nunca. Mas a mulher não pedia nenhuma explicação: sorria da mesma forma do negro e escancarava a porta sem dizer nada. Ele enxergou a escada no fundo do corredor e começou a correr para lá. Ao fim do primeiro lance, ouviu os passos do negro e da mulher correndo atrás dele. A escada escura não terminava nunca, a mão ia tocando a poeira pelo corrimão, a barriga doía e seus ouvidos ouviam seis pés, inclusive os dele, batendo contra os degraus, cada vez mais rapidamente. A escada escura: a escada escura não terminava nunca. Ele sentia mãos estendidas atrás dele, quase a tocá-lo, como num complô, pensou em voltar-se e sorrir para tranquilizá-los, mas estava escuro, de nada adiantaria, o chapéu caiu numa curva, a escada era cheia de curvas, e Ele ouviu o som fofo do feltro pisado por quatro pés, um após o outro, e alguns palavrões, mas depois viu uma pequena luz no fim de um longo corredor. E foi correndo cada vez mais velozmente em direção à luz, até chegar bem perto e ver que era uma vidraça e, feito um automóvel desgovernado, não pôde deter os passos e então sentiu a carne varando os vidros, a barriga solta, o frio um pouco mais intenso, depois, um segundo antes de cair sobre a grama ressecada e áspera do jardim, olhou bem para uma porta de madeira escura, e um muro baixo, meio descascado, e as casas velhas em torno, e os paralelepípedos no meio da rua, com algumas hortênsias, e uma árvore qualquer na esquina, não sabia bem se salgueiro, plátano ou casuarina, mas não tinha importância, a chave servia, Eu, pensou antes da dor da faca entrando em sua nuca despenteada: Eu sempre disse que nunca me enganei.
Ele ficou um pouco confuso e voltou até a parada de ônibus para refazer o itinerário, embora morasse naquela zona havia mais de quinze anos e nunca tivesse errado o caminho, mesmo aos sábados, quando bebia duas — no máximo três — doses de uísque nacional. Na parada de ônibus estava o mesmo negro alto que ali ficava todas as noites (Ele ouvira os vizinhos comentarem que o negro era passador de fumo). Mas ficou aliviado ao ver que a parada continuava a mesma, com o poste de luz amarela e a placa meio torta para o lado esquerdo, sem falar no negro alto encostado no poste, os olhos empapuçados. Mas, olhando bem, a luz era um pouco mais forte, embora o poste fosse mais alto, e a placa continuava despencada, mas para o lado direito — e o negro. O negro não era tão alto, nem estava encostado no poste, nem tinha os olhos empapuçados. Ele pensou que talvez não tivesse prestado bem atenção no negro e que o poste, a luz e a placa podiam ter sido modificados por um-daqueles-serviços-públicos-sempre-tão-deficientes, e o negro, o negro podia ser outro, ou ter sido sempre aquele, afinal, prestava bem atenção nas coisas apenas uma vez, a primeira, depois passava adiante, a memória confirmando (quinze anos). E nunca tinha se enganado, nunca. Então chegou perto do negro e olhou-o de cima a baixo sem dizer nada, até o negro perguntar devagar-e-muito-gentil se queria alguma coisa. Ele disse que não, que muito obrigado, que não fumava, mas não conseguiu parar de olhar para o negro que continuava olhando gentilmente para ele e agora começava a sorrir com uns-dentes-claros-muito-bons. Um pouco desorientado, Ele bateu com dois dedos no chapéu de feltro e foi andando pelo itinerário que devia ser o mesmo.
Quase na esquina da rua que devia ser a sua começou a ouvir uns passos atrás dos seus, e olhou, e era o negro que vinha vindo lentamente, as mãos nos bolsos e aquele sorriso gentil nos lábios grossos. Ele pensou rapidamente em coisas como assaltos, assassinatos, banditismos os mais variados, mas bastava chegar à esquina, dobrar à esquerda e mais dois passos: estaria chegando em sua casa de muro-baixo-meio-descascado-separado-da-madeira-escura-da-porta-pela-grama-áspera-quase-morta. Para certificar-se, olhou para cima, para a placa da rua, uma placa velha, de letras brancas sobre um fundo azul-marinho: e estava lá: Rua das Hortênsias. Suspirou aliviado, um segundo, depois ficou pensando quase com certeza que a rua era das Rosas, não das Hortênsias. Foi aí que o negro chegou bem perto dele e parou. Ele perguntou por favor, onde ficava a Rua das Rosas? e o negro sorriu sacana dizendo que não tinha fósforos. Sem outra saída, Ele virou à esquerda, embora a rua não fosse a das Rosas, e apressou o passo, e o negro também apressou o passo, e só se ouvia o som de quatro pés batendo rápidos na rua de casas antigas, sem rosas nem hortênsias.
Na frente da casa que devia ser a sua, Ele parou para enxugar o suor que escorria da testa, embora fizesse frio, ainda há pouco, e lembrou com pavor que na esquina o negro apertara qualquer coisa no bolso, uma coisa longa, provavelmente uma faca, e tremeu, e pensou em correr, mas o negro tinha chegado perto e não havia jeito de fugir sem mostrar que estava com medo. Ele sorriu nervoso apontando a casa e disse que não era a sua, que a chave não servia. O negro não disse nada. Ele ficou olhando a ponta dos sapatos e lembrou de perguntar que bairro era aquele, e perguntou. Mas o negro sorriu daquele jeito sacana outra vez e apertou no bolso a coisa longa — certamente uma faca — e disse que também não sabia, nem que cidade, quanto mais o bairro, nem que país, e riu, e foi chegando muito perto. Ele olhou em volta, tentando reconhecer a rua de casas velhas, como quinze anos antes, quando olhara pela primeira vez, a memória confirmando todos os dias: as casas velhas, os paralelepípedos meio desfalcados, uma árvore na esquina, não lembrava bem se um salgueiro, um plátano ou uma casuarina, algumas hortênsias, ou rosas, ou petúnias. Mas isso não importava mais: não havia salgueiros nem plátanos nem casuarinas em nenhuma das quatro esquinas, e as casas eram novas, e os paralelepípedos corretos, sem falhas nem buracos, e nem hortênsias nem rosas nem petúnias. Mesmo assim resolveu abrir o portão e entrar, quase obrigado, porque o negro estava muito perto, com a coisa longa prestes a sair do bolso para entrar no seu peito, como nos jornais. E entrando rapidamente pelo jardim bem cuidado, Ele foi dizendo sem olhar para trás que desculpasse, que não tinha dinheiro, que era fim de mês, que dentro de uma semana quem sabe, no máximo duas. O negro sorria muito próximo repetindo que não tinha importância não, não tinha, prazer era prazer, e Ele já estava quase encurralado contra a porta, uma chave inútil nas mãos. Colocou-a novamente na fechadura e foi virando várias vezes, sem resultado, o rosto contra a madeira clara da porta e a pressão aguda da certamente uma faca do negro contra as suas nádegas.
Foi então que Ele decidiu perder mesmo a calma, a barriga doía muito e o frio estava apertando, e bateu disposto a gritar se fosse preciso. O negro recuou um pouco, mas Ele sorriu tranquilizador, não podia mostrar medo, e o negro voltou a aproximar-se enquanto Ele batia batia batia. Até que uma luz acendeu dentro de casa e Ele ouviu o barulho de uma chave útil dando voltas na fechadura para abrir a porta que mostrou uma cabeça despenteada de mulher loura. Ele pensou em explicar que não sabia como: a casa não era sua, nem a parada do ônibus, nem a rua, hortênsias, rosas, petúnias, salgueiros, plátanos, casuarinas, talvez nem o bairro ou a cidade — ou o mundo, até, não era aquele. Embora Ele não se enganasse, nunca. Mas a mulher não pedia nenhuma explicação: sorria da mesma forma do negro e escancarava a porta sem dizer nada. Ele enxergou a escada no fundo do corredor e começou a correr para lá. Ao fim do primeiro lance, ouviu os passos do negro e da mulher correndo atrás dele. A escada escura não terminava nunca, a mão ia tocando a poeira pelo corrimão, a barriga doía e seus ouvidos ouviam seis pés, inclusive os dele, batendo contra os degraus, cada vez mais rapidamente. A escada escura: a escada escura não terminava nunca. Ele sentia mãos estendidas atrás dele, quase a tocá-lo, como num complô, pensou em voltar-se e sorrir para tranquilizá-los, mas estava escuro, de nada adiantaria, o chapéu caiu numa curva, a escada era cheia de curvas, e Ele ouviu o som fofo do feltro pisado por quatro pés, um após o outro, e alguns palavrões, mas depois viu uma pequena luz no fim de um longo corredor. E foi correndo cada vez mais velozmente em direção à luz, até chegar bem perto e ver que era uma vidraça e, feito um automóvel desgovernado, não pôde deter os passos e então sentiu a carne varando os vidros, a barriga solta, o frio um pouco mais intenso, depois, um segundo antes de cair sobre a grama ressecada e áspera do jardim, olhou bem para uma porta de madeira escura, e um muro baixo, meio descascado, e as casas velhas em torno, e os paralelepípedos no meio da rua, com algumas hortênsias, e uma árvore qualquer na esquina, não sabia bem se salgueiro, plátano ou casuarina, mas não tinha importância, a chave servia, Eu, pensou antes da dor da faca entrando em sua nuca despenteada: Eu sempre disse que nunca me enganei.
Marcadores: Pedras de Calcuta
À sua frente: uma senhora gorda com duas meninas pela mão, a do lado direito de vestido azul e carpins brancos, a do lado esquerdo de vestido rosa e carpins laranja; às suas costas: um pedreiro sem camisa, o tronco reluzente de suor, empurrando um carrinho-de-mão cheio de cal contra sua bunda, pedindo-lhe que se apressasse; do lado direito: como uma cerca de ferro com um cartaz desses que dizem "Atenção: homens em obra", ou coisa assim; do lado esquerdo: um outdoor que visto de muito perto, por sobre o ombro, limitava-se a grânulos muito salientes, talvez um par de lábios vermelhos entreabertos; por cima: o sol como um ovo frito sem clara num céu lavado de janeiro; por baixo: os buracos da calçada; em volta, além ou longe ou mesmo perto: o rumor dos automóveis, escapamentos abertos, motocicletas, caminhões.
E a grande merda escondida atrás de tudo, quando fechava a porta do apartamento sobre as costas das visitas, e então olhava os pratos sujos e a geladeira vazia, os cinzeiros cheios, os restos de presenças pelos cantos, e tinha pensado em pedir para qualquer um, um pouco mais, uma conversa qualquer, as pequenas estocadas rechaçando aproximações: os olhos circundados pela carne um tanto flácida, um tanto escura, que via no espelho depois. Da porta, olhava. E lavava pratos como quem suspira, verificava a água das plantas tocando nas pequenas folhas, enveredava pelo pouco espaço disponível ainda com a tontura de alguns goles a mais levando a mente para lugares inesperados. E a grande mentira das janelas escancaradas sobre os paredões, ou a televisão ligada e um olho após o outro escorregando para uma espécie de sono, e o visgo, então, ou um cigarro — havia es demais na sua vida, como se uma ação gerasse outra ou desse continuidade às anteriores, num ciclo sem fim, como uma passarela lisa onde escorregava amável, ao ritmo dos vivaldis que escolhia especialmente para os vinhos brancos. Tinha vontade de vomitar, e não vomitava. Vontade de gritar e não gritava. Gentil, amável, tolerante e sem sexo, os patins dominando a lisa passarela, em gestos graciosos como os de um trapezista após o salto, mas nunca mortal a ponto de qualquer queda não ser prevista ou amparada por uma sólida rede de amenidades, e a grande merda, e o indisfarçável medo emboscado nas paredes do apartamento, e os inúteis cuidados, e a cama vazia no fundo do quarto, os dedos ansiosos, o ruído dos carros filtrado pelas paredes, a campainha em silêncio, algum livro e depois o poço viscoso. Algum cigarro, nenhum ombro, alguma insônia, nenhum toque, um último acorde de violino, e depois o sono, e depois.
À sua frente: a senhora gorda olhou para trás sem dizer nada, enquanto a menina de vestido azul e carpins brancos dizia que iam chegar atrasadas e a menina de vestido rosa e carpins laranja repetia que estava cansada; às suas costas: o tronco reluzente do pedreiro deixou escapar uma gota de suor que escorregou por entre os mamilos escuros para acompanhar o fio de pêlos da barriga, ultrapassar o umbigo para despencar calça adentro, pedindo-lhe que se apressasse; do lado direito: a cerca de ferro, a cerca de ferro, a cerca de ferro e a placa que não conseguia ler porque o movimento não permitia que se detivesse; do lado esquerdo: talvez lábios entreabertos, talvez um par de nádegas, talvez o interior rosado de pernas escancaradas, talvez o canto de um olho, retículas graúdas e um roxo ao fundo que o ombro lentamente ia deixando para trás; por cima e por baixo: o sol, o chão e pés inchados pelo calor e em volta os ruídos, a luz demasiado clara ferindo a retina, o chão irregular contra a sola dos sapatos, nem além nem longe mas demasiado perto em cheiros e tonturas de formas em movimento passando passando passando.
Não entendia direito, mas era tão bonito que acompanhava com o dedo, palavra por palavra, enquanto a chuva caía — he is always intoxicated with the madness of ecstatic love, um pensamento maligno em direção às visitas fugitivas, bem feito, a chuva desmancharia penteados e mancharia panos — he is always intoxicated... —, quem sabe um chá? mas voltava às folhas para encontrar a gôndola dourada e sempre aquela figura com o colar de flores brancas, a estranha luz em volta da cabeça, como era mesmo? áurea, diziam e ria, superior, aura, corrigia mentalmente, e mais atrás a vegetação, algumas palmeiras e plantas inidentificáveis, mas sempre tão verdes, uma torre ao fundo, os mantos brancos e alaranjados, e de repente o prego cravado entre os olhos, tão nitidamente que piscava, num outro lugar, de um outro jeito, onde pudesse soltar um gemido ao invés de um sorriso amável, os dedos ganhando vida própria em direção ao segredo adormecido, mas as vegetações, ou virar o disco, ou despejar o cinzeiro na privada, puxar a descarga, voltar-se para o espelho e beijá-lo com dentes e unhas, como era mesmo — he is always intoxicated with the madness... —, o cortejo avançava em direção contrária a seus passos, era mentira: virar a página como quem puxa a descarga, mas o prego, como se a privada resolvesse agir de modo contrário, ao invés de tragar, devolvendo a merda sobre a louça verde até o corredor, até a porta do quarto e a beira da cama, onde encolhia os pés, sem proteção — sem proteção alguma encolhia os pés enquanto a merda subia e podia distinguir os grãos de milho de ontem, os nacos duros de cenoura de hoje, um violino, um poço, um dedo de unha roída e um despertador amarelo marcando sempre a mesma hora.
À sua frente: a senhora gorda parou, enxugando a testa, sem dar atenção (viscosa, atingia os tornozelos) à menina de vestido azul e carpins brancos repetindo que iam chegar atrasadas e a menina de vestido rosa e carpins laranja estourava uma enorme bola de chiclete; às suas costas: o pedreiro chegou tão perto (envolvia os joelhos, macia) que pôde sentir o cheiro de carne suada; do lado direito: conseguia ler, agora, assim "Proibido Ultrapassar (feito mãos de palmas molhadas, circundando o sexo) a Cerca"; do lado esquerdo: talvez um horizonte, talvez o interior de um cravo (chegava ao umbigo, grânulos miúdos depositando-se no orifício), talvez uma funda garganta aberta; por baixo: o sol arrancando reflexos de um escarro esverdeado, uma lata vazia (atingia o peito, acariciava os mamilos) de cerveja e um prego enferrujado; em volta: sombras velozes, bolsas, cores, cotovelos, testas contraídas (suavemente, subia devagar pelo pescoço alcançando o queixo), pernas e bundas; por cima: ergueu a cabeça com sede, como o último impulso de um afogado, e antes de a massa marrom cobrir seus olhos ainda pôde ver a longa esteira branca de um avião a jato cortando o céu. O cheiro era insuportável mas, com as narinas apertadas, sem saber por quê, com alívio, teve certeza absoluta de que aquele avião estava indo para Calcutá.
E a grande merda escondida atrás de tudo, quando fechava a porta do apartamento sobre as costas das visitas, e então olhava os pratos sujos e a geladeira vazia, os cinzeiros cheios, os restos de presenças pelos cantos, e tinha pensado em pedir para qualquer um, um pouco mais, uma conversa qualquer, as pequenas estocadas rechaçando aproximações: os olhos circundados pela carne um tanto flácida, um tanto escura, que via no espelho depois. Da porta, olhava. E lavava pratos como quem suspira, verificava a água das plantas tocando nas pequenas folhas, enveredava pelo pouco espaço disponível ainda com a tontura de alguns goles a mais levando a mente para lugares inesperados. E a grande mentira das janelas escancaradas sobre os paredões, ou a televisão ligada e um olho após o outro escorregando para uma espécie de sono, e o visgo, então, ou um cigarro — havia es demais na sua vida, como se uma ação gerasse outra ou desse continuidade às anteriores, num ciclo sem fim, como uma passarela lisa onde escorregava amável, ao ritmo dos vivaldis que escolhia especialmente para os vinhos brancos. Tinha vontade de vomitar, e não vomitava. Vontade de gritar e não gritava. Gentil, amável, tolerante e sem sexo, os patins dominando a lisa passarela, em gestos graciosos como os de um trapezista após o salto, mas nunca mortal a ponto de qualquer queda não ser prevista ou amparada por uma sólida rede de amenidades, e a grande merda, e o indisfarçável medo emboscado nas paredes do apartamento, e os inúteis cuidados, e a cama vazia no fundo do quarto, os dedos ansiosos, o ruído dos carros filtrado pelas paredes, a campainha em silêncio, algum livro e depois o poço viscoso. Algum cigarro, nenhum ombro, alguma insônia, nenhum toque, um último acorde de violino, e depois o sono, e depois.
À sua frente: a senhora gorda olhou para trás sem dizer nada, enquanto a menina de vestido azul e carpins brancos dizia que iam chegar atrasadas e a menina de vestido rosa e carpins laranja repetia que estava cansada; às suas costas: o tronco reluzente do pedreiro deixou escapar uma gota de suor que escorregou por entre os mamilos escuros para acompanhar o fio de pêlos da barriga, ultrapassar o umbigo para despencar calça adentro, pedindo-lhe que se apressasse; do lado direito: a cerca de ferro, a cerca de ferro, a cerca de ferro e a placa que não conseguia ler porque o movimento não permitia que se detivesse; do lado esquerdo: talvez lábios entreabertos, talvez um par de nádegas, talvez o interior rosado de pernas escancaradas, talvez o canto de um olho, retículas graúdas e um roxo ao fundo que o ombro lentamente ia deixando para trás; por cima e por baixo: o sol, o chão e pés inchados pelo calor e em volta os ruídos, a luz demasiado clara ferindo a retina, o chão irregular contra a sola dos sapatos, nem além nem longe mas demasiado perto em cheiros e tonturas de formas em movimento passando passando passando.
Não entendia direito, mas era tão bonito que acompanhava com o dedo, palavra por palavra, enquanto a chuva caía — he is always intoxicated with the madness of ecstatic love, um pensamento maligno em direção às visitas fugitivas, bem feito, a chuva desmancharia penteados e mancharia panos — he is always intoxicated... —, quem sabe um chá? mas voltava às folhas para encontrar a gôndola dourada e sempre aquela figura com o colar de flores brancas, a estranha luz em volta da cabeça, como era mesmo? áurea, diziam e ria, superior, aura, corrigia mentalmente, e mais atrás a vegetação, algumas palmeiras e plantas inidentificáveis, mas sempre tão verdes, uma torre ao fundo, os mantos brancos e alaranjados, e de repente o prego cravado entre os olhos, tão nitidamente que piscava, num outro lugar, de um outro jeito, onde pudesse soltar um gemido ao invés de um sorriso amável, os dedos ganhando vida própria em direção ao segredo adormecido, mas as vegetações, ou virar o disco, ou despejar o cinzeiro na privada, puxar a descarga, voltar-se para o espelho e beijá-lo com dentes e unhas, como era mesmo — he is always intoxicated with the madness... —, o cortejo avançava em direção contrária a seus passos, era mentira: virar a página como quem puxa a descarga, mas o prego, como se a privada resolvesse agir de modo contrário, ao invés de tragar, devolvendo a merda sobre a louça verde até o corredor, até a porta do quarto e a beira da cama, onde encolhia os pés, sem proteção — sem proteção alguma encolhia os pés enquanto a merda subia e podia distinguir os grãos de milho de ontem, os nacos duros de cenoura de hoje, um violino, um poço, um dedo de unha roída e um despertador amarelo marcando sempre a mesma hora.
À sua frente: a senhora gorda parou, enxugando a testa, sem dar atenção (viscosa, atingia os tornozelos) à menina de vestido azul e carpins brancos repetindo que iam chegar atrasadas e a menina de vestido rosa e carpins laranja estourava uma enorme bola de chiclete; às suas costas: o pedreiro chegou tão perto (envolvia os joelhos, macia) que pôde sentir o cheiro de carne suada; do lado direito: conseguia ler, agora, assim "Proibido Ultrapassar (feito mãos de palmas molhadas, circundando o sexo) a Cerca"; do lado esquerdo: talvez um horizonte, talvez o interior de um cravo (chegava ao umbigo, grânulos miúdos depositando-se no orifício), talvez uma funda garganta aberta; por baixo: o sol arrancando reflexos de um escarro esverdeado, uma lata vazia (atingia o peito, acariciava os mamilos) de cerveja e um prego enferrujado; em volta: sombras velozes, bolsas, cores, cotovelos, testas contraídas (suavemente, subia devagar pelo pescoço alcançando o queixo), pernas e bundas; por cima: ergueu a cabeça com sede, como o último impulso de um afogado, e antes de a massa marrom cobrir seus olhos ainda pôde ver a longa esteira branca de um avião a jato cortando o céu. O cheiro era insuportável mas, com as narinas apertadas, sem saber por quê, com alívio, teve certeza absoluta de que aquele avião estava indo para Calcutá.
Marcadores: Pedras de Calcuta
Porto Alegre, verão de 2002
Queridos amiguinhos e amiguinhas, meu nome é Cláudia, sou a irmã caçula do Caio Fernando, autor deste livro, e quero dizer a vocês que As frangas é uma mistura de história com “estória”, pois antigamente a gente dizia que “estória” é quando se escreve sobre algo que não é verdade. Vivi parte da minha infância em Santiago, no Rio Grande do Sul, com o Caio, e posso confirmar aquilo que ele escreveu, e que vocês irão ler a seguir. As frangas realmente existiram e hoje algumas estão guardadas com muito carinho com o Luis Felipe (sobrinho do Caio e, conseqüentemente, meu), outras “fugiram” do galinheiro. Na página ao lado, você vê uma foto das sobreviventes e de outras que o Caio ganhou depois da publicação.
Quando o Caio escreve que você pode confirmar as peripécias de Ulla, Gabi, Juçara, Otília, Blondie e das Três Marias (p.17), infelizmente isso não é mais possível. Ele morreu em 1996 e meus pais também partiram para outro plano; hoje estão os três juntos. O telefone também mudou. Eu precisava dar este recado para vocês.
A todos, ótima leitura.
Com carinho
Cláudia
Para Clarice Lispector,
que também gostava delas,
ficar quentinha do lado de lá.
E para Rodrigo de Abreu Cabral
e Fernanda Gauss de Abreu,
meus primeiros sobrinhos,
ficarem quentinhos enquanto crescem.
Vai sempre existir uma galinha como Laura
e sempre vai haver uma criança como você.
Não é ótimo? Assim a gente não se sente só.
CLARICE LISPECTOR,
A VIDA ÍNTIMA DE LAURA
Queridos amiguinhos e amiguinhas, meu nome é Cláudia, sou a irmã caçula do Caio Fernando, autor deste livro, e quero dizer a vocês que As frangas é uma mistura de história com “estória”, pois antigamente a gente dizia que “estória” é quando se escreve sobre algo que não é verdade. Vivi parte da minha infância em Santiago, no Rio Grande do Sul, com o Caio, e posso confirmar aquilo que ele escreveu, e que vocês irão ler a seguir. As frangas realmente existiram e hoje algumas estão guardadas com muito carinho com o Luis Felipe (sobrinho do Caio e, conseqüentemente, meu), outras “fugiram” do galinheiro. Na página ao lado, você vê uma foto das sobreviventes e de outras que o Caio ganhou depois da publicação.
Quando o Caio escreve que você pode confirmar as peripécias de Ulla, Gabi, Juçara, Otília, Blondie e das Três Marias (p.17), infelizmente isso não é mais possível. Ele morreu em 1996 e meus pais também partiram para outro plano; hoje estão os três juntos. O telefone também mudou. Eu precisava dar este recado para vocês.
A todos, ótima leitura.
Com carinho
Cláudia
Para Clarice Lispector,
que também gostava delas,
ficar quentinha do lado de lá.
E para Rodrigo de Abreu Cabral
e Fernanda Gauss de Abreu,
meus primeiros sobrinhos,
ficarem quentinhos enquanto crescem.
Vai sempre existir uma galinha como Laura
e sempre vai haver uma criança como você.
Não é ótimo? Assim a gente não se sente só.
CLARICE LISPECTOR,
A VIDA ÍNTIMA DE LAURA
ACHO
... QUE A MELHOR HISTORIA sobre galinhas que eu conheço chama-se A vida íntima de Laura. Laura era uma galinha, claro. Lendo esse livro você vai descobrir que As galinhas também têm uma vida íntima. Quem contou a história de Laura foi uma grande escritora, a Clarice Lispector. Ela entendia muito de galinhas. De gente também. Bem no finzinho lá do livro dela, a Clarice diz assim: “Se você conhece alguma história de galinha, quero saber. Ou invente uma bem boazinha e me conte”.
Foi por isso que resolvi escrever esta história. Eu gostava muito da Clarice e queria agradar um pouco a ela. Ela ja morreu, mas sempre acho que a gente pode continuar querendo agradar a quem já morreu. Gosto de pensar que quem já morreu fica num lugar quentinho, que a gente não vê, cuidando de quem ainda não morreu. E se você quiser agradar a essa pessoa, é só fazer coisas que ela gostava. Aí ela fica ainda mais quentinha e cuida ainda melhor da gente.
Pois como eu sei umas histórias de galinhas bem engraçadas, vou tentar contar elas pra Clarice e pra vocês, certo? Mas antes de começar tenho que explicar que gosto muito mais de chamar galinha de franga do que de galinha. Por quê? Olha, pra dizer a verdade, nem sei direito. Quando olho para uma galinha, acho ela muito mais com cara de franga. Acho mais engraçado. Ou só acho que acho, nem sei. Faz tanto tempo que digo franga que agora já acostumei.
A história que quero contar é uma história de frangas. Mas se você quiser dizer que é uma história de galinhas, tudo bem. Pode dizer, eu não me importo.
Antes de começar tenho que explicar também que nasci numa cidade muito pequena, numa casa com um pátio enorme. Hoje em dia as pessoas quase não moram mais em casas com pátios. Nem enormes nem pequenininhos. Principalmente as que moram em cidades grandes.
Eu também moro agora numa cidade grande. Mas isso só vou contar daqui a pouco.
O que eu ia dizendo é que no pátio enorme dessa casa em que eu nasci tinha todas as coisas que têm em pátios. Uma porção de árvores, por exemplo. A que eu mais lembro é uma pereira. No verão ela enchia de peras. Daquelas meio avermelhadas, que nem bochecha de bebê gordinho.
Tinha também formiga, passarinho, cachorro. Os cachorros mudavam muito, porque uns iam embora, outros ficavam velhos e morriam. Tem casa que cachorro muda muito. A nossa era dessas.
Mas eu me lembro bem de dois. Um era o Faruque. Ele tinha esse nome porque era o mesmo de um rei da Pérsia que estava muito na moda, naquele tempo. A Pérsia agora virou Irã, nem tem mais rei. O Faruque não era rei nem nada. Pra ser bem sincero, era um cachorro bem vagabundo até. Desses que adoram roer as pernas das cadeiras. Acho que pensava que tudo era osso.
Me diga você: que rei você conhece que gosta de roer osso ou perna de cadeira? É por isso que eu digo que o Faruque não era rei coisíssima nenhuma. Mas era ótimo. Também, não precisa ser rei pra ser legal, não é?
A minha mãe, que sempre foi boa pra dar nomes, foi quem acho que Faruque é nome de cachorro mesmo. Que nem Duque ou Rex. Só que Faruque é muito mais original: nunca mais encontrei outro cachorro com esse nome.
O outro que eu lembro não era cachorro, era uma cadela. Como ela era muito grandona e desajeitada — e acho também que todo mundo estava com preguiça de inventar um nome — , a gente chamava ela de Cadeluda.
O pátio era tão enorme que tinha três partes. Uma ficava ao lado da casa. Era mais um jardim que um pátio. Era cheio de hortênsia, uma flor bem grande — como é que eu vou explicar? Uma flor assim feita de cachos com florzinhas azuis, brancas ou cor-de-rosa. As lá de casa eram das azuis. Tinha também um jasmineiro tão cheiroso que dava até tontura na gente, umas margaridas e uma bergamoteira.
Você sabe o que é ber-ga-mo-tei-ra?
Pois é a árvore que dá a bergamota, entendeu? Não? Tá bom, eu explico. É que tudo isso aconteceu bem lá no Sul do Brasil. Lá tem umas coisas que também tem aqui, só que a gente chama de outro nome. Bergamota, por exemplo, é essa frutinha amarela que em outros lugares chamam de mexerica.
Sempre achei que ela tinha mais cara mesmo era de bergamota. Assim como o Faruque, mesmo não sendo rei, tinha a cara perfeita dum Faruque. Assim que nem chamar galinha de franga. E agora eu estou pensando que o bom, quando a gente conta uma história, é poder chamar as coisas como a gente quer chamar, não como todo mundo chama. Experimente só, você vai ver.
Outra coisa boa de inventar uma história é que você pode ir contando aquilo que tem vontade de contar. Foi assim que eu comecei a falar das frangas e acabei falando no pátio. Depois parei de falar no pátio e comecei falar no que eu estava inventando.
Agora me lembrei do pátio e vou continuar.
Marcadores: As Frangas
Na segunda parte do pátio tinha aquela pereira que eu já falei. Tinha também um tanque de lavar roupa e uma parreira de uvas pretas, brancas e cor-de- rosa. As cor-de-rosa eram as mais doces. Claro que também eram as que todo mundo gostava mais, que ninguém é bobo.
Esquisito é que as uvas cor-de-rosa sempre eram as últimas a amadurecer. Desde dezembro, ficava todo mundo de olho nelas, na maior impaciência. Lá pelo Natal, amadureciam as pretas. As brancas só amadureciam no meio de janeiro, na época do aniversário do meu irmão, Gringo. Mas as cor-de-rosa... Meu Deus, como as diabas demoravam: só na altura do Carnaval. Isso que todo dia a gente cuidava.
Acho que era implicância delas. Pura birra. Ou medo de serem comidas, sei lá. Quem pode saber se uma fruta sente coisas, que nem a gente? Eu é que não. Vezenquando acho que até as pedras sentem. (Por falar nisso, você sabia que tem umas pedras que não param nunca de crescer?)
Outra coisa que eu penso quando me lembro daquelas uvas cor-de-rosa é que, na vida, as coisas mais doces custam muito a amadurecer. Mas isso é pensamento de gente grande, deixa pra lá.
(Vocês já repararam como estou dispersivo? Dispersão é quando a gente começa a contar uma coisa, aí interrompe e começa a contar outra, no meio daquela, depois começa a contar de novo a primeira coisa, e interrompe também para contar uma terceira. Por aí vai. Prometo que daqui a pouco vou me controlar. Mas por enquanto estou bem dispersivo mesmo.)
Bem, naquela parte do pátio tinha também um poço. Esse poço tem uma história tão estranha que eu não posso deixar de contar.
A gente nunca sabia onde tinha água. Claro, a água fica no fundo da terra, a gente não vê ela. Aí, para descobrir, o meu pai mandou chamar um descobridor de água muito famoso na cidade. Ele veio com uma forquilha enorme — um pedaço de madeira assim meio parecido com a letra Y. O homem segurava as duas pontas de cima da forquilha e a ponta de baixo ficava apontando para a terra.
Ele ficou a tarde inteira caminhando pelo pátio. Quando chegou atrás da pereira, nem te conto. Pois não é que a tal da forquilha começou a se mexer sozinha? Então ele garantiu que ali tinha água.
A gente duvidou e fez pouco. Mas meu pai chamou uns outros homens, que eram uns fazedores de poços muito famosos na cidade. Eles começaram a cavar, cavar, cavar, muito fundo. Pois não é que, lá naquele fundo bem fundo, tinha água mesmo?
Esse é um dos mistérios mais misteriosos que eu me lembro. Se você não acredita, meu pai, minha mãe e meus irmãos estão de prova até hoje. É só falar com eles, lá no Sul. O telefone é (51) 233-4197.
Nessa segunda parte do pátio, tinha também uma casinha de madeira cheia de coisas que a gente não usava mais, e minha mãe chamava de galpão. Galpão é mais ou menos isso que noutros lugares chamam de barraco.
Dum lado do galpão, ficava a casinha que vezenquando era do Faruque, da Cadeluda, do Rex ou do Duque. Do outro, estava o galinheiro, O galinheiro ficava, então, bem ali onde terminava a segunda parte do pátio e começava a terceira.
Esquisito é que as uvas cor-de-rosa sempre eram as últimas a amadurecer. Desde dezembro, ficava todo mundo de olho nelas, na maior impaciência. Lá pelo Natal, amadureciam as pretas. As brancas só amadureciam no meio de janeiro, na época do aniversário do meu irmão, Gringo. Mas as cor-de-rosa... Meu Deus, como as diabas demoravam: só na altura do Carnaval. Isso que todo dia a gente cuidava.
Acho que era implicância delas. Pura birra. Ou medo de serem comidas, sei lá. Quem pode saber se uma fruta sente coisas, que nem a gente? Eu é que não. Vezenquando acho que até as pedras sentem. (Por falar nisso, você sabia que tem umas pedras que não param nunca de crescer?)
Outra coisa que eu penso quando me lembro daquelas uvas cor-de-rosa é que, na vida, as coisas mais doces custam muito a amadurecer. Mas isso é pensamento de gente grande, deixa pra lá.
(Vocês já repararam como estou dispersivo? Dispersão é quando a gente começa a contar uma coisa, aí interrompe e começa a contar outra, no meio daquela, depois começa a contar de novo a primeira coisa, e interrompe também para contar uma terceira. Por aí vai. Prometo que daqui a pouco vou me controlar. Mas por enquanto estou bem dispersivo mesmo.)
Bem, naquela parte do pátio tinha também um poço. Esse poço tem uma história tão estranha que eu não posso deixar de contar.
A gente nunca sabia onde tinha água. Claro, a água fica no fundo da terra, a gente não vê ela. Aí, para descobrir, o meu pai mandou chamar um descobridor de água muito famoso na cidade. Ele veio com uma forquilha enorme — um pedaço de madeira assim meio parecido com a letra Y. O homem segurava as duas pontas de cima da forquilha e a ponta de baixo ficava apontando para a terra.
Ele ficou a tarde inteira caminhando pelo pátio. Quando chegou atrás da pereira, nem te conto. Pois não é que a tal da forquilha começou a se mexer sozinha? Então ele garantiu que ali tinha água.
A gente duvidou e fez pouco. Mas meu pai chamou uns outros homens, que eram uns fazedores de poços muito famosos na cidade. Eles começaram a cavar, cavar, cavar, muito fundo. Pois não é que, lá naquele fundo bem fundo, tinha água mesmo?
Esse é um dos mistérios mais misteriosos que eu me lembro. Se você não acredita, meu pai, minha mãe e meus irmãos estão de prova até hoje. É só falar com eles, lá no Sul. O telefone é (51) 233-4197.
Nessa segunda parte do pátio, tinha também uma casinha de madeira cheia de coisas que a gente não usava mais, e minha mãe chamava de galpão. Galpão é mais ou menos isso que noutros lugares chamam de barraco.
Dum lado do galpão, ficava a casinha que vezenquando era do Faruque, da Cadeluda, do Rex ou do Duque. Do outro, estava o galinheiro, O galinheiro ficava, então, bem ali onde terminava a segunda parte do pátio e começava a terceira.
Marcadores: As Frangas
Essa era a maior de todas. Meio que dava medo na gente de tão misteriosa. Quase ninguém ia lá, cheio de mato, de sombra, de grama alta. Tão alta que todo mundo pensava que podia ter cobra ali no meio. Acho que não tinha, pelo menos nunca ninguém viu uma. Mas cadê coragem pra ir lá conferir? Eu é que não tinha mesmo, nem me envergonho de dizer.
Por causa desse medo, a gente sempre parava de brincar ali por perto do galinheiro mesmo. Por isso também a gente olhava tanto as galinhas...
Ah, mas me bateu de novo a tal dispersão: sabe que também tinha uma horta por ali? Eu já ia esquecendo, deixa eu contar rapidinho, depois volto pro galinheiro. Era tão bonita, a horta.
Uma das coisas boas de quem mora numa casa com um pátio assim enorme é que pode ter uma horta e plantar. Hoje em dia as pessoas só compram legumes. Na feira, na quitanda, no supermercado, você sabe.
Mas você sabia que os plantadores botam remédio nesses legumes pra eles crescerem mais, e mais depressa? Juro que é verdade: esses remédios são o maior veneno. Então, pensa bem: se você plantar você mesmo o seu legume, você não vai botar veneno nele, certo? Nem vai se importar se ele não crescer muito, porque não vai precisar chamar a atenção de ninguém na feira.
Daí que a gente tinha uma porção de legumes sem veneno nenhum. Alface, cenoura, couve-flor, repolho, pimentão, cebola, rabanete, vagem, mandioca e até uns pés de milho altos, com aquela espécie de cabeleira loura. Milho era o que eu mais gostava. Já couve-flor eu achava que deviaera botar na sala, enfeitando, não na panela. Couve-flor é tão bonita, você já reparou?
Mas, com aquele monte de legumes, era só ir lá e colher. Não precisava comprar.
E o galinheiro? Pois o galinheiro era pertinho de onde a gente mais brincava. Daí que eu acho que veio esse meu gosto por galinhas, de tanto ver elas ciscando e cacarejando o dia inteiro. Mesmo agora, morando numa cidade grande, sem um pátio enorme como aquele, continuo tendo um galinheiro.
Como?
Pois é justamente essa história que estou querendo contar. Sai pra lá, dispersão...
Por causa desse medo, a gente sempre parava de brincar ali por perto do galinheiro mesmo. Por isso também a gente olhava tanto as galinhas...
Ah, mas me bateu de novo a tal dispersão: sabe que também tinha uma horta por ali? Eu já ia esquecendo, deixa eu contar rapidinho, depois volto pro galinheiro. Era tão bonita, a horta.
Uma das coisas boas de quem mora numa casa com um pátio assim enorme é que pode ter uma horta e plantar. Hoje em dia as pessoas só compram legumes. Na feira, na quitanda, no supermercado, você sabe.
Mas você sabia que os plantadores botam remédio nesses legumes pra eles crescerem mais, e mais depressa? Juro que é verdade: esses remédios são o maior veneno. Então, pensa bem: se você plantar você mesmo o seu legume, você não vai botar veneno nele, certo? Nem vai se importar se ele não crescer muito, porque não vai precisar chamar a atenção de ninguém na feira.
Daí que a gente tinha uma porção de legumes sem veneno nenhum. Alface, cenoura, couve-flor, repolho, pimentão, cebola, rabanete, vagem, mandioca e até uns pés de milho altos, com aquela espécie de cabeleira loura. Milho era o que eu mais gostava. Já couve-flor eu achava que deviaera botar na sala, enfeitando, não na panela. Couve-flor é tão bonita, você já reparou?
Mas, com aquele monte de legumes, era só ir lá e colher. Não precisava comprar.
E o galinheiro? Pois o galinheiro era pertinho de onde a gente mais brincava. Daí que eu acho que veio esse meu gosto por galinhas, de tanto ver elas ciscando e cacarejando o dia inteiro. Mesmo agora, morando numa cidade grande, sem um pátio enorme como aquele, continuo tendo um galinheiro.
Como?
Pois é justamente essa história que estou querendo contar. Sai pra lá, dispersão...
Marcadores: As Frangas
Como quase todo mundo numa cidade grande, moro num apartamento. Sei, agora você vai me perguntar assim: mas como é que você consegue ter um galinheiro dentro de um apartamento? Pois não é que tenho mesmo? Bem, claro que não é um galinheiro de verdade. Mas, aqui entre nós, também não estou nem um pouco me importando com o que é ou o que não é de verdade.
Eu comecei esse galinheiro meio sem querer. No começo, nem me dava conta que estava criando frangas em cima da geladeira. Só depois que tinha umas três foi que comecei a prestar atenção.
Agora pensei outro pensamento de gente grande. É assim: vezenquando, uma coisa só começa mesmo a existir quando você também começa a prestar atenção na existência dela. Quando a gente começa a gostar duma pessoa, é bem assim.
Eu comecei esse galinheiro meio sem querer. No começo, nem me dava conta que estava criando frangas em cima da geladeira. Só depois que tinha umas três foi que comecei a prestar atenção.
Agora pensei outro pensamento de gente grande. É assim: vezenquando, uma coisa só começa mesmo a existir quando você também começa a prestar atenção na existência dela. Quando a gente começa a gostar duma pessoa, é bem assim.
Marcadores: As Frangas
A mais antiga delas é a Ulla. Ela tem esse nome esquisito porque veio de um país chamado Suécia. Esse é um nome muito comum lá, que nem Maria aqui. A Ulla é assim toda pequenininha, gordinha, marrom-clara com o bico amarelo.
Quem me deu a Ullafoi um amigo, o Augusto. Ele morou muito tempo na Suécia, depois mudou para um país ali perto, a Noruega, onde só tem gente loira e alta. Cada vez que o Augusto me escreve, pede notícias da Ulla. Eu sempre respondo: vai bem, mandou lembranças. E mandou mesmo, ela é supereducada.
Ganhei a Ulla faz uns quatro anos. Como o galinheiro ainda não existia, ela viajou comigo por uma porção de lugares. Até na Bahia já foi, e adorou. Imagina que na terra dela não faz calor, não tem palmeiras nem samba.
Depois que mudei pra este apartamento, ela veio morar no meu quarto. Agora estou olhando pra ela e achando que ela não está nem um pouco assustada por estar aqui de novo. É que a Ulla já se acostumou com esses livros todos e com o barulho da máquina de escrever.
Logo depois da Ulla, veio a Gabi. Quem me deu a Gabi foi uma amiga minha que acho que é a pessoa que eu conheço que mais gosta de frangas. Depois de mim, é claro. O nome dela é Cacaia. Pois agora não é que me lembrei que foi com a Cacaia que aprendi a falar franga em vez de galinha?
A Cacaia mora no Rio de Janeiro, mas vezenquando vem a São Paulo me visitar.
Um dia ela chegou de viagem e perguntou assim:
— Adivinha o que eu trouxe de presente pra você?
Eu disse:
— Um disco.
Ela disse:
— Er-ra-do. Tenta de novo.
Eu disse:
— Um livro.
Ela disse:
— Puxa, mas você só pensa em disco e livro? Erradíssimo. Pode tentar só mais uma vez, senão não ganha nada.
Eu disse:
— Um... um... um...
Ela falou:
— Uma franga!
Não é que era mesmo, gente?
Ela me deu um pacotinho que fui desembrulhando, desembrulhando até encontrar a Gabi. A Cacaia me contou que ia passando por um camelô nordestino, em Copacabana, quando olhou e viu um tabuleiro cheio de frangas. Aí ficou encantada e escolheu a que parecia mais franga de todas. Era a Gabi.
A Gabi parece meio de verdade. Mas é falsa, claro. Ela tem penas de verdade. Os pés e o bico são de cartolina; a crista de pano vermelho. Mas ela é bem assim da cor de uma franga mesmo. Meio despenteada, como toda franga que se preza.
A Gabi ficou morando uma porção de tempo na sala, perto dos discos. Como a Cacaia me garantiu que ela era nordestina (da Paraíba, tenho quase certeza), eu sempre colocava uns forrós e uns xaxados pra ela ouvir. Aí comecei a notar que, quando eu colocava algum disco da Elba Ramalho, a Gabi ficava toda animadinha. Até hoje fica: é nordestina mesmo.
Acontece que toda criança que chegava em casa inventava de arrancar as penas da pobre Gabi. É que o lugar onde ficam os discos é baixinho, qualquer criança alcança. Não que eu não goste de criança, mas a coitada estava ficando toda depenada, horrorosa.
Foi por isso que resolvi colocá-la em cima da geladeira. Para que a Gabi não se sentisse muito sozinha, peguei a Ulla no quarto, coloquei ao lado dela. Vi que as duas tiveram uns desentendimentos no começo, porque a Ulla fala português muito mal e a Gabi só fala com sotaque nordestino. Nenhuma conseguia compreender direito a outra. Mas aos pouquinhos foram se acostumando. Hoje são grandes amigas.
Quem me deu a Ullafoi um amigo, o Augusto. Ele morou muito tempo na Suécia, depois mudou para um país ali perto, a Noruega, onde só tem gente loira e alta. Cada vez que o Augusto me escreve, pede notícias da Ulla. Eu sempre respondo: vai bem, mandou lembranças. E mandou mesmo, ela é supereducada.
Ganhei a Ulla faz uns quatro anos. Como o galinheiro ainda não existia, ela viajou comigo por uma porção de lugares. Até na Bahia já foi, e adorou. Imagina que na terra dela não faz calor, não tem palmeiras nem samba.
Depois que mudei pra este apartamento, ela veio morar no meu quarto. Agora estou olhando pra ela e achando que ela não está nem um pouco assustada por estar aqui de novo. É que a Ulla já se acostumou com esses livros todos e com o barulho da máquina de escrever.
Logo depois da Ulla, veio a Gabi. Quem me deu a Gabi foi uma amiga minha que acho que é a pessoa que eu conheço que mais gosta de frangas. Depois de mim, é claro. O nome dela é Cacaia. Pois agora não é que me lembrei que foi com a Cacaia que aprendi a falar franga em vez de galinha?
A Cacaia mora no Rio de Janeiro, mas vezenquando vem a São Paulo me visitar.
Um dia ela chegou de viagem e perguntou assim:
— Adivinha o que eu trouxe de presente pra você?
Eu disse:
— Um disco.
Ela disse:
— Er-ra-do. Tenta de novo.
Eu disse:
— Um livro.
Ela disse:
— Puxa, mas você só pensa em disco e livro? Erradíssimo. Pode tentar só mais uma vez, senão não ganha nada.
Eu disse:
— Um... um... um...
Ela falou:
— Uma franga!
Não é que era mesmo, gente?
Ela me deu um pacotinho que fui desembrulhando, desembrulhando até encontrar a Gabi. A Cacaia me contou que ia passando por um camelô nordestino, em Copacabana, quando olhou e viu um tabuleiro cheio de frangas. Aí ficou encantada e escolheu a que parecia mais franga de todas. Era a Gabi.
A Gabi parece meio de verdade. Mas é falsa, claro. Ela tem penas de verdade. Os pés e o bico são de cartolina; a crista de pano vermelho. Mas ela é bem assim da cor de uma franga mesmo. Meio despenteada, como toda franga que se preza.
A Gabi ficou morando uma porção de tempo na sala, perto dos discos. Como a Cacaia me garantiu que ela era nordestina (da Paraíba, tenho quase certeza), eu sempre colocava uns forrós e uns xaxados pra ela ouvir. Aí comecei a notar que, quando eu colocava algum disco da Elba Ramalho, a Gabi ficava toda animadinha. Até hoje fica: é nordestina mesmo.
Acontece que toda criança que chegava em casa inventava de arrancar as penas da pobre Gabi. É que o lugar onde ficam os discos é baixinho, qualquer criança alcança. Não que eu não goste de criança, mas a coitada estava ficando toda depenada, horrorosa.
Foi por isso que resolvi colocá-la em cima da geladeira. Para que a Gabi não se sentisse muito sozinha, peguei a Ulla no quarto, coloquei ao lado dela. Vi que as duas tiveram uns desentendimentos no começo, porque a Ulla fala português muito mal e a Gabi só fala com sotaque nordestino. Nenhuma conseguia compreender direito a outra. Mas aos pouquinhos foram se acostumando. Hoje são grandes amigas.
Marcadores: As Frangas
Depois disso, vieram as três irmãs: Maria Rosa, Maria Rita e Maria Ruth. Elas andam sempre juntas, porque são de madeira e estão pregadas numa tabuinha. Aí você puxa uma cordinha que tem embaixo e elas começam a bicar feito umas desesperadas, como se estivessem comendo milho.
A Maria Rosa, a Maria Rita e a Maria Ruth fui eu mesmo que comprei. Isso foi num dia meio triste. Eu estava caminhando com um amigo meu, o Jacob, no centro da cidade, ali perto da Praça da República, O Jacob é outro que adora frangas. Como ele é desenhista, até desenha umas de vez em quando. E desenha tribem, umas frangas da pesada.
Mas aquele dia tinha acontecido uma coisa de gente grande com a gente: nós tínhamos sido despedidos do trabalho. Estávamos caminhando meio de bobeira quando vimos as três. Eram umas gracinhas: verdes e amarelas, com a crista vermelha, uns olhos azuis bem redondinhos. Elas pareciam tão alegres naquela esquina, bicando sem parar, que de repente a gente ficou alegre também.
Eu falei assim:
— Jacob, você sabia que franga dá sorte?
Aí ele comprou três e eu comprei mais três. Não é que deram sorte mesmo? Hoje em dia eu e ele temos um trabalho bem melhor que o outro, graças a Deus. Ou às frangas.
Tive certeza que a Ulla e a Gabi iam gostar muito delas. Pois dito e feito: a-do-ra-ram. É que a Maria Rosa, a Maria Rita e a Maria Ruth são muito novinhas ainda, não incomodam ninguém. Só perguntam o tempo todo, são frangas perguntadeiras: o que é isto, o que é aquilo. Como a Gabi e a Ulla são muito sabidonas, até ensinam coisas pra elas.
Foi quando coloquei as três em cima da geladeira é que me dei conta que estava formando um galinheiro. Aí corri, peguei A vida íntima de Laura e coloquei embaixo delas, que nem um tapetinho. Pronto: ficaram ótimas
A Maria Rosa, a Maria Rita e a Maria Ruth fui eu mesmo que comprei. Isso foi num dia meio triste. Eu estava caminhando com um amigo meu, o Jacob, no centro da cidade, ali perto da Praça da República, O Jacob é outro que adora frangas. Como ele é desenhista, até desenha umas de vez em quando. E desenha tribem, umas frangas da pesada.
Mas aquele dia tinha acontecido uma coisa de gente grande com a gente: nós tínhamos sido despedidos do trabalho. Estávamos caminhando meio de bobeira quando vimos as três. Eram umas gracinhas: verdes e amarelas, com a crista vermelha, uns olhos azuis bem redondinhos. Elas pareciam tão alegres naquela esquina, bicando sem parar, que de repente a gente ficou alegre também.
Eu falei assim:
— Jacob, você sabia que franga dá sorte?
Aí ele comprou três e eu comprei mais três. Não é que deram sorte mesmo? Hoje em dia eu e ele temos um trabalho bem melhor que o outro, graças a Deus. Ou às frangas.
Tive certeza que a Ulla e a Gabi iam gostar muito delas. Pois dito e feito: a-do-ra-ram. É que a Maria Rosa, a Maria Rita e a Maria Ruth são muito novinhas ainda, não incomodam ninguém. Só perguntam o tempo todo, são frangas perguntadeiras: o que é isto, o que é aquilo. Como a Gabi e a Ulla são muito sabidonas, até ensinam coisas pra elas.
Foi quando coloquei as três em cima da geladeira é que me dei conta que estava formando um galinheiro. Aí corri, peguei A vida íntima de Laura e coloquei embaixo delas, que nem um tapetinho. Pronto: ficaram ótimas
Marcadores: As Frangas
A próxima que chegou foi a Otília. E de novo a Cacaia estava envolvida na história. Eu gosto muito de mar. Como São Paulo não tem mar, vez em quando vou ao Rio de Janeiro só pra ir à praia. Quase sempre fico na casa da Cacaia. Uma noite, a gente ia voltando pra casa quando passamos num parque de diversões e resolvemos brincar um pouco.
A gente estava saindo do trem fantasma quando vi a Otília. Ela estava numa daquelas barraquinhas onde tem uma porção de coisas. Você joga uma argola e, onde a argola cair, você ganha aquilo que a argola argolou, quer dizer, pegou.
Eu de cara fiquei louco pela Otília. Inclusive porque já tinha visto uma igualzinha na casa duns amigos meus, que também adoram frangas: a Maria Emília, o Reinaldo e o Ruy.
E a Maria Emília tinha me garantido que a Otília dela tinha muito bons sentimentos.
Mas acontece que a minha pontaria é péssima. Sou daqueles que não acerta num elefante a três passos de distância. Aí a Cacaia disse que jogava a argola pra mim. Na terceira argolada, mirou bem e argolou em cheio a franga. Tive a impressão que a Otília até deu uma cacarejada, de puro gosto. E a primeira coisa que falou foi que estava doida de vontade de vir para São Paulo morar com a Ulla, a Gabi e as três Marias.
A Otília, nem te conto, é empinadíssima. Toda de louça bege, com um olho preto e um bico meio aberto, como se estivesse sempre reclamando de alguma coisa. Ela é carioca de nascimento, fala tudo chiadinho, adora praia, pizza e chope.
Gosta de viajar, também. Ela contou pra Ulla que uma vez fez uma excursão pela Europa. Só que era daquelas de visitar uns vinte países nuns dez dias. Então ela mistura tudo. Outro dia ouvi ela dizendo, toda importante:
— Sabe, Ulla, o que eu mais gostei em Londres foi... da Torre Eiffel.
A Ulla, que sabe que a Torre Eiffel fica em Paris, e é muito bem-educada, nem disse nada. Só piscou um olho pra mim. Mas a Otília mistura tanto as coisas que até hoje pensa que a Ulla nasceu na Suíça, não na Suécia. A Ulla nem corrige mais. Outro dia a Ulla veio me contar em segredo que a Otília despreza a Gabi, porque as únicas viagens que a Gabi fez foram da
Paraíba para o Rio de Janeiro, e depois do Rio de Janeiro para São Paulo. Ainda por cima é analfabeta. A Ullacontou que a Gabi disse assim:
— Mas por que é que uma franga precisa saber ler, Otília?
— Pra saber das coisas, ora — respondeu a Otília, toda estufada. E começou a ler o jornal. Ela adora ler jornal. Principalmente notícias sobre frangas. Que, aliás, são muito raras, não sei se vocês já repararam.
A Gabi é boa gente, não fica chateada. O divertimento principal dela é ensinar coisas para a Maria Rosa, a Maria Rita e a Maria Ruth.
Que coisas ela ensina? Ah, são coisas bem de franga. Pra gente pode parecer até meio besta, mas pra uma franga é interessantíssimo, quer ver?
Grão de milho, por exemplo, tem um jeito certo de bicar. Não pode ser de lado, senão ele pula fora. Tem que ser bem em cima. E uma bicada só, bem rapidinho. É esse tipo de coisa que a Gabi ensina. Não falei que parecia meio besta? Só que, como a Maria Rosa, a Maria Rita e a Maria Ruth só pensam em comer, acham da maior importância. E deve ser mesmo.
A gente estava saindo do trem fantasma quando vi a Otília. Ela estava numa daquelas barraquinhas onde tem uma porção de coisas. Você joga uma argola e, onde a argola cair, você ganha aquilo que a argola argolou, quer dizer, pegou.
Eu de cara fiquei louco pela Otília. Inclusive porque já tinha visto uma igualzinha na casa duns amigos meus, que também adoram frangas: a Maria Emília, o Reinaldo e o Ruy.
E a Maria Emília tinha me garantido que a Otília dela tinha muito bons sentimentos.
Mas acontece que a minha pontaria é péssima. Sou daqueles que não acerta num elefante a três passos de distância. Aí a Cacaia disse que jogava a argola pra mim. Na terceira argolada, mirou bem e argolou em cheio a franga. Tive a impressão que a Otília até deu uma cacarejada, de puro gosto. E a primeira coisa que falou foi que estava doida de vontade de vir para São Paulo morar com a Ulla, a Gabi e as três Marias.
A Otília, nem te conto, é empinadíssima. Toda de louça bege, com um olho preto e um bico meio aberto, como se estivesse sempre reclamando de alguma coisa. Ela é carioca de nascimento, fala tudo chiadinho, adora praia, pizza e chope.
Gosta de viajar, também. Ela contou pra Ulla que uma vez fez uma excursão pela Europa. Só que era daquelas de visitar uns vinte países nuns dez dias. Então ela mistura tudo. Outro dia ouvi ela dizendo, toda importante:
— Sabe, Ulla, o que eu mais gostei em Londres foi... da Torre Eiffel.
A Ulla, que sabe que a Torre Eiffel fica em Paris, e é muito bem-educada, nem disse nada. Só piscou um olho pra mim. Mas a Otília mistura tanto as coisas que até hoje pensa que a Ulla nasceu na Suíça, não na Suécia. A Ulla nem corrige mais. Outro dia a Ulla veio me contar em segredo que a Otília despreza a Gabi, porque as únicas viagens que a Gabi fez foram da
Paraíba para o Rio de Janeiro, e depois do Rio de Janeiro para São Paulo. Ainda por cima é analfabeta. A Ullacontou que a Gabi disse assim:
— Mas por que é que uma franga precisa saber ler, Otília?
— Pra saber das coisas, ora — respondeu a Otília, toda estufada. E começou a ler o jornal. Ela adora ler jornal. Principalmente notícias sobre frangas. Que, aliás, são muito raras, não sei se vocês já repararam.
A Gabi é boa gente, não fica chateada. O divertimento principal dela é ensinar coisas para a Maria Rosa, a Maria Rita e a Maria Ruth.
Que coisas ela ensina? Ah, são coisas bem de franga. Pra gente pode parecer até meio besta, mas pra uma franga é interessantíssimo, quer ver?
Grão de milho, por exemplo, tem um jeito certo de bicar. Não pode ser de lado, senão ele pula fora. Tem que ser bem em cima. E uma bicada só, bem rapidinho. É esse tipo de coisa que a Gabi ensina. Não falei que parecia meio besta? Só que, como a Maria Rosa, a Maria Rita e a Maria Ruth só pensam em comer, acham da maior importância. E deve ser mesmo.
Marcadores: As Frangas
A outra que chegou depois foi a Juçara.
A Juçara, gente, é um caso à parte. Pro meu gosto pessoal, cá entre nós — e que ninguém nos ouça, senão sai a maior briga dentro do galinheiro, daquelas de voar pena —, bem, a Juçara é a mais bonita de todas. A Jacqueline, que mora comigo, também acha. E isso que a Jacqueline entende horrores de franga também.
Quem me deu a Juçara foi o Pedro. O Pedro mora lá no Sul, tinha vindo passar uns dias em São Paulo. Toda pessoa que vem passar uns dias aqui em casa tem primeiro que ser apresentada às frangas. Senão elas fazem o maior escarcéu na hora em que a pessoa vai abrir a geladeira pra comer alguma coisa. Tem coisa mais barulhenta que escarcéu de franga? É aquela gritaria, aquele cá-cá-cá, có-có-có, voa pena pra tudo que é lado. Uma zona.
Franga, eu já disse, tem muito medo de quem não conhece. Sempre acham que vão torcer o pescoço delas, depenar e enfiar numa panela pra servir no almoço de domingo. Acho que têm razão, coitadas. A maioria das pessoas só pensa numa franga como uma coisa que a gente pode comer, não gostar.
Estas aqui de casa estão acostumadas só comigo, com a Jacqueline e com a Lourdes, a empregada. Que está proibidíssima de torcer o pescoço delas, depenar e cozinhar. Quando avisei a Lourdes disso, ela ficou meio espantada:
— Ué, gente, mas como é que eu ia cozinhar elas se elas não são de verdade?
A Ulla me piscou um olho, eu não disse nada. Só pisquei o olho de volta pra ela. Como é que a gente vai explicar pra uma pessoa que qualquer coisa pode ser de verdade, é só a gente acreditar nela?
O que sei é que as frangas adoraram de paixão o Pedro. As três Marias até paravam de bicar quando ele chegava perto. A Otília ficava toda nervosa, falou até em mudar de penteado. Umas frangas, mesmo.
Pois um dia o Pedro trouxe da rua a Juçara, de presente. Já falei que ela é lindíssima, não é? Pois é mesmo. Tem a cabeça e o peito inteirinhos brancos, depois o corpo, até o rabo, é azulmarinho com bolinhas brancas.
Você já viu uma franga azul com bolinhas brancas até o rabo? Nem eu, nunca tinha visto. Pelo menos até conhecer a Juçara. Além disso, ela tem as pernas amarelas e está em cima duma coisinha verde que parece capim. É toda empinadinha, mais empinada que a Otília, só que não é metida como ela.
Na loja disseram pro Pedro que a Juçara veio da ilha de Marajó, uma ilha imensa, lá em cima, perto do Pará. Será que é por isso que ela é toda empinadinha assim? Deve ter o maior orgulho de ter nascido numa ilha...
Com o tempo, fui descobrindo que a Juçara é muito séria e adora comida natural. Em vez de bicar milho, por exemplo, ela só bica arroz integral. Tem horror de comida em lata, de barulho de cidade, automóvel, televisão. E sabe histórias incríveis do tempo em que ainda era meio índia e morava lá em Marajó. Outro dia contou uma que achei tão linda. Até vou repetir aqui pra vocês.
A Juçara, gente, é um caso à parte. Pro meu gosto pessoal, cá entre nós — e que ninguém nos ouça, senão sai a maior briga dentro do galinheiro, daquelas de voar pena —, bem, a Juçara é a mais bonita de todas. A Jacqueline, que mora comigo, também acha. E isso que a Jacqueline entende horrores de franga também.
Quem me deu a Juçara foi o Pedro. O Pedro mora lá no Sul, tinha vindo passar uns dias em São Paulo. Toda pessoa que vem passar uns dias aqui em casa tem primeiro que ser apresentada às frangas. Senão elas fazem o maior escarcéu na hora em que a pessoa vai abrir a geladeira pra comer alguma coisa. Tem coisa mais barulhenta que escarcéu de franga? É aquela gritaria, aquele cá-cá-cá, có-có-có, voa pena pra tudo que é lado. Uma zona.
Franga, eu já disse, tem muito medo de quem não conhece. Sempre acham que vão torcer o pescoço delas, depenar e enfiar numa panela pra servir no almoço de domingo. Acho que têm razão, coitadas. A maioria das pessoas só pensa numa franga como uma coisa que a gente pode comer, não gostar.
Estas aqui de casa estão acostumadas só comigo, com a Jacqueline e com a Lourdes, a empregada. Que está proibidíssima de torcer o pescoço delas, depenar e cozinhar. Quando avisei a Lourdes disso, ela ficou meio espantada:
— Ué, gente, mas como é que eu ia cozinhar elas se elas não são de verdade?
A Ulla me piscou um olho, eu não disse nada. Só pisquei o olho de volta pra ela. Como é que a gente vai explicar pra uma pessoa que qualquer coisa pode ser de verdade, é só a gente acreditar nela?
O que sei é que as frangas adoraram de paixão o Pedro. As três Marias até paravam de bicar quando ele chegava perto. A Otília ficava toda nervosa, falou até em mudar de penteado. Umas frangas, mesmo.
Pois um dia o Pedro trouxe da rua a Juçara, de presente. Já falei que ela é lindíssima, não é? Pois é mesmo. Tem a cabeça e o peito inteirinhos brancos, depois o corpo, até o rabo, é azulmarinho com bolinhas brancas.
Você já viu uma franga azul com bolinhas brancas até o rabo? Nem eu, nunca tinha visto. Pelo menos até conhecer a Juçara. Além disso, ela tem as pernas amarelas e está em cima duma coisinha verde que parece capim. É toda empinadinha, mais empinada que a Otília, só que não é metida como ela.
Na loja disseram pro Pedro que a Juçara veio da ilha de Marajó, uma ilha imensa, lá em cima, perto do Pará. Será que é por isso que ela é toda empinadinha assim? Deve ter o maior orgulho de ter nascido numa ilha...
Com o tempo, fui descobrindo que a Juçara é muito séria e adora comida natural. Em vez de bicar milho, por exemplo, ela só bica arroz integral. Tem horror de comida em lata, de barulho de cidade, automóvel, televisão. E sabe histórias incríveis do tempo em que ainda era meio índia e morava lá em Marajó. Outro dia contou uma que achei tão linda. Até vou repetir aqui pra vocês.
Marcadores: As Frangas
Vocês conhecem o chorão? Aquela árvore assim alta, magra, meio despencada, com uns galhos compridos até o chão? Pois diz a Juçara que o chorão não era assim.
Era uma árvore toda esticadinha, muito orgulhosa e antipática. Ela morava na beira de um lago bem clarinho. Pois imagina que o Chorão — que naquele tempo não se chamava chorão, mas salgueiro — inventou de se apaixonar pela Lua. Só que o Lago também se apaixonou, ao mesmo tempo.
Ficavam os dois, o Chorão e o Lago, todos suspirosos quando a Lua aparecia atrás da montanha, ao anoitecer. Tantas caras e bocas fizeram que um vaga-lume muito fofoqueiro ouviu a história da tal paixão e foi contar pra Lua.
A Lua, claro, ficou muito envaidecida. Quem que não gosta que os outros se apaixonem pela gente? Pois a Lua mandou dizer aos dois apaixonados que, na próxima sexta-feira, quando estivesse bem cheia e aparecesse atrás da montanha, o pretendente que estivesse mais bonito, na hora ela ficava noiva.
O Chorão ficou na maior empolgação. Fez amizade com o vaga-lume, interesseiro que era. E pediu a ele que chamasse todos os amigos vaga-lumes para enfeitá-lo todo, na sexta-feira de tardezinha. O pobre do Lago era muito desajeitado e humildezinho. Até tentou se enfeitar um pouco, mas os enfeites todos scorregavam na superfície dele e acabavam afundando.
Quando chegou a sexta-feira, o Chorão estava lindaço, cheio de vaga-lumezinhos vaga-lumeando brilhosos nos galhos. Parecia uma árvore de Natal. E tão atrevido! Debochava horrores do pobre Lago, que só tinha uns peixinhos muito assustados espiando de vez em quando. A Juçara diz que aquele salgueiro estava um nojo, de tão exibido e certo de que ia ficar noivo da Lua.
Mas acontece que, na hora em que a Lua apareceu atrás da montanha, ela viu todo aquele brilho do salgueiro refletido — onde? Ora, nas águas do pobrezinho do Lago, umas águas muito limpinhas e quietas. Claaaaaaaaro que ela achou o Lago muitíssimo mais bonito. Aí ficou noiva dele na hora, e nas sete noites de lua cheia vem se banhar nua nas suas águas quentinhas. O salgueiro? Ah, ficou tão desapontado que começou a despencar, despencar, despencar até virar essa árvore tristonha que a gente agora chama de chorão.
Não é bonita a historinha da Juçara? Você pode achar um pouquinho triste, também, mas eu acho ótimo que o chorão tenha sido castigado pelo seu orgulho. Daí, penso também outra coisa de gente grande: não adianta muito você se enfeitar todo pra uma pessoa gostar mais de você. Porque, se ela gostar, vai gostar de qualquer jeito, do jeito que você é mesmo, sem brilhos falsos.
A Ulla me disse depois que a Juçara contou a história bem alto, num dia em que a Otília estava insuportável, agredindo sem parar a pobre da Gabi. Quem sabe assim a Otília se toca um pouco, não é?
Era uma árvore toda esticadinha, muito orgulhosa e antipática. Ela morava na beira de um lago bem clarinho. Pois imagina que o Chorão — que naquele tempo não se chamava chorão, mas salgueiro — inventou de se apaixonar pela Lua. Só que o Lago também se apaixonou, ao mesmo tempo.
Ficavam os dois, o Chorão e o Lago, todos suspirosos quando a Lua aparecia atrás da montanha, ao anoitecer. Tantas caras e bocas fizeram que um vaga-lume muito fofoqueiro ouviu a história da tal paixão e foi contar pra Lua.
A Lua, claro, ficou muito envaidecida. Quem que não gosta que os outros se apaixonem pela gente? Pois a Lua mandou dizer aos dois apaixonados que, na próxima sexta-feira, quando estivesse bem cheia e aparecesse atrás da montanha, o pretendente que estivesse mais bonito, na hora ela ficava noiva.
O Chorão ficou na maior empolgação. Fez amizade com o vaga-lume, interesseiro que era. E pediu a ele que chamasse todos os amigos vaga-lumes para enfeitá-lo todo, na sexta-feira de tardezinha. O pobre do Lago era muito desajeitado e humildezinho. Até tentou se enfeitar um pouco, mas os enfeites todos scorregavam na superfície dele e acabavam afundando.
Quando chegou a sexta-feira, o Chorão estava lindaço, cheio de vaga-lumezinhos vaga-lumeando brilhosos nos galhos. Parecia uma árvore de Natal. E tão atrevido! Debochava horrores do pobre Lago, que só tinha uns peixinhos muito assustados espiando de vez em quando. A Juçara diz que aquele salgueiro estava um nojo, de tão exibido e certo de que ia ficar noivo da Lua.
Mas acontece que, na hora em que a Lua apareceu atrás da montanha, ela viu todo aquele brilho do salgueiro refletido — onde? Ora, nas águas do pobrezinho do Lago, umas águas muito limpinhas e quietas. Claaaaaaaaro que ela achou o Lago muitíssimo mais bonito. Aí ficou noiva dele na hora, e nas sete noites de lua cheia vem se banhar nua nas suas águas quentinhas. O salgueiro? Ah, ficou tão desapontado que começou a despencar, despencar, despencar até virar essa árvore tristonha que a gente agora chama de chorão.
Não é bonita a historinha da Juçara? Você pode achar um pouquinho triste, também, mas eu acho ótimo que o chorão tenha sido castigado pelo seu orgulho. Daí, penso também outra coisa de gente grande: não adianta muito você se enfeitar todo pra uma pessoa gostar mais de você. Porque, se ela gostar, vai gostar de qualquer jeito, do jeito que você é mesmo, sem brilhos falsos.
A Ulla me disse depois que a Juçara contou a história bem alto, num dia em que a Otília estava insuportável, agredindo sem parar a pobre da Gabi. Quem sabe assim a Otília se toca um pouco, não é?
Marcadores: As Frangas
Mas ainda está faltando uma franga que não falei.
Pois é a Blondie, gente. A Blondie eu ganhei faz pouco tempo, do Valdir. Depois da Cacaia, o Valdir é a pessoa que eu conheço que mais gosta de frangas. Aliás, pra gostar de frangas, entre o Valdir e a Cacaia, não sei quem ganha. A decoração da casa dele é toda à base de frangas. Na sala tem até um móbile de frangas de papel. Quando o vento bate, elas ficam cacarejando pra todo lado. Dá gosto ver.
O Valdir gosta tanto de frangas que chegou a dar de presente pra namorada dele, a Lena, uma camiseta com três frangas desenhadas bem no peito. Eu faço aula de dança junto com a Lena, lá no Viola, e juro que quando ela faz aula vestindo a tal camiseta de frangas ela dança muito, mas muito melhor.
Não estou dizendo tem horas que frangas fazem bem pra qualquer pessoa?
A Blondie é norte-americana, por isso tem esse nome, que na língua que eles falam lá quer dizer lourinha. E é justamente isso que ela mais é: inteirinha amarela, com o bico e os pezinhos cor de laranja. A Blondie tem um botãozinho do lado direito, que você vira e ela sai bicando sem parar. O que estiver pela frente, ela bica.
Acho que foi principalmente por isso que ela e as irmãs Maria Rosa, Maria Rita e Maria Ruth se deram tão bem. As quatro juntas só pensam em bicar o tempo todo. E bicam qualquer coisa — não são como a Juçara, que é naturalista e só bica arroz integral.
A Blondie foi muito bem recebida no galinheiro. Pela Gabi nem se fala, porque a Gabi gosta de todo mundo. Franga, gente — menos cozinheira. Pela Ulla, porque as duas são estrangeiras. E como a Ullaé muito culta e também fala inglês, as duas podem falar bastante. Imagina que até a Otília recebeu bem a Blondie: ela acha muito chique ser estrangeiro. E a melhor coisa do mundo pra ela, a mais importante, é ser chique. Maria
Rosa, Maria Rita e Maria Ruth, nem se fala: enfim, uma companhia para bicar sem parar.
A única que teve umas dificuldades, no começo, foi a Juçara. É que a Blondie adora coca-cola, e come muita porcaria, hambúrguer, cachorro-quente, catchup, coisas enlatadas. A Juçara achava um horror, mas acabou desculpando. Agora, vira e mexe, estão as duas de papo. A Juçara conta histórias de índio; a Blondie conta histórias de caubóis: dá tudo certo.
Mas o que a Blondie mais gosta mesmo é de um bom rock-and-roll. É só botar um disco da Rita Lee e virar o botãozinho dela que ela já sai dançando. Numa boa, acho que aprendeu com a Lena.
Pois é a Blondie, gente. A Blondie eu ganhei faz pouco tempo, do Valdir. Depois da Cacaia, o Valdir é a pessoa que eu conheço que mais gosta de frangas. Aliás, pra gostar de frangas, entre o Valdir e a Cacaia, não sei quem ganha. A decoração da casa dele é toda à base de frangas. Na sala tem até um móbile de frangas de papel. Quando o vento bate, elas ficam cacarejando pra todo lado. Dá gosto ver.
O Valdir gosta tanto de frangas que chegou a dar de presente pra namorada dele, a Lena, uma camiseta com três frangas desenhadas bem no peito. Eu faço aula de dança junto com a Lena, lá no Viola, e juro que quando ela faz aula vestindo a tal camiseta de frangas ela dança muito, mas muito melhor.
Não estou dizendo tem horas que frangas fazem bem pra qualquer pessoa?
A Blondie é norte-americana, por isso tem esse nome, que na língua que eles falam lá quer dizer lourinha. E é justamente isso que ela mais é: inteirinha amarela, com o bico e os pezinhos cor de laranja. A Blondie tem um botãozinho do lado direito, que você vira e ela sai bicando sem parar. O que estiver pela frente, ela bica.
Acho que foi principalmente por isso que ela e as irmãs Maria Rosa, Maria Rita e Maria Ruth se deram tão bem. As quatro juntas só pensam em bicar o tempo todo. E bicam qualquer coisa — não são como a Juçara, que é naturalista e só bica arroz integral.
A Blondie foi muito bem recebida no galinheiro. Pela Gabi nem se fala, porque a Gabi gosta de todo mundo. Franga, gente — menos cozinheira. Pela Ulla, porque as duas são estrangeiras. E como a Ullaé muito culta e também fala inglês, as duas podem falar bastante. Imagina que até a Otília recebeu bem a Blondie: ela acha muito chique ser estrangeiro. E a melhor coisa do mundo pra ela, a mais importante, é ser chique. Maria
Rosa, Maria Rita e Maria Ruth, nem se fala: enfim, uma companhia para bicar sem parar.
A única que teve umas dificuldades, no começo, foi a Juçara. É que a Blondie adora coca-cola, e come muita porcaria, hambúrguer, cachorro-quente, catchup, coisas enlatadas. A Juçara achava um horror, mas acabou desculpando. Agora, vira e mexe, estão as duas de papo. A Juçara conta histórias de índio; a Blondie conta histórias de caubóis: dá tudo certo.
Mas o que a Blondie mais gosta mesmo é de um bom rock-and-roll. É só botar um disco da Rita Lee e virar o botãozinho dela que ela já sai dançando. Numa boa, acho que aprendeu com a Lena.
Marcadores: As Frangas
Agora que já contei a história de cada uma delas, vou colocá-las de novo em cima da geladeira. Mas acho que elas gostaram de ficar uns dias no meu quarto.
A Ulla, que é a mais minha amiga e me conta tudo que elas falam, me disse há pouco que até a Otília achou muito chique essa porção de livros. A Gabi, coitada, analfabeta, perguntou — imaginem — pra que serviam. A Ulla disse que de vez em quando tem vontade de ensinar ela a ler, mas depois pensa que a Gabi é muito burra, não vale a pena.
Por natureza, franga é mesmo meio burra. Umas mais, outras menos. Tem exceções, claro. A Juçara, por exemplo, eu acho triinteligentinha, Mas a Gabi... Já falei sobre isso com a Jacqueline, ela também acha a Gabi burríssima. Mas melhor ser burra e boazinha como ela do que burra e metida como a Otília, não é?
(Ai, que medo me deu agora que a Gabi e a Otília descubram que ando falando essas coisas pra vocês!)
Mas mesmo que a Gabi soubesse ler, ela não ia se importar nem um pouco. A Gabi nunca guarda mágoa de ninguém. Pensando bem, acho que ela é a mais franga de todas. Porque franga que se preza é assim mesmo: boa o tempo todo, nunca pensa em machucar ninguém. E burra de pedra.
Vai ver, é por isso mesmo que gosto tanto de frangas. Pensando melhor, também porque quando eu era criança brinquei tanto perto daquele galinheiro que fiquei conhecendo bem a intimidade delas. A intimidade de uma franga é a coisa mais bonita que tem. Exatamente porque é meio boba.
Não é que pensei outra coisa de gente grande? Esta é assim: tudo que parece meio bobo é sempre muito bonito, porque não tem complicação. Coisa simples é lindo. E existe muito pouco.
Às vezes penso que quando eu puder, um dia, morar de novo numa casa com um pátio enorme — nem precisa ser muito enorme — vou ter galinheiro de verdade.
Já pensou?
Aí podia até ter um cachorro que se chamasse Faruque — esse ia ser o Faruque II, mais nome de rei ainda. Ou então uma cadela que se chamasse Cadeluda. Nossa! Pensei agorinha que podia também ter uma horta que nem aquela que falei. Como a casa ia ser minha, eu ia colocar couve-flor na sala, em vaso, que nem rosa. Até um poço de água encontrada com forquilha, podia ter. E peras. E uvas cor-de-rosa. E legumes sem veneno nenhum.
É que vezenquando dá uma saudade na gente dessas coisas. São todas coisas simples. Meio bobas, muito bonitas. Que nem as frangas.
Mas tudo bem. A gente sempre pode inventar. Inventar é uma das melhores coisas que tem no mundo. A Otília ainda não descobriu, mas a coisa mais chique do mundo é inventar. Que nem a Clarice, que inventou a história da Laura.
Só que eu não inventei quase nada da Ulla, da Gabi, da Maria Rosa, Maria Rita e Maria Ruth, da Otília, da Juçara, da Blondie. Elas existem mesmo, são bem como eu disse. Estão em cima da geladeira aqui de casa pra quem quiser ver. Vem tomar um guaraná comigo que eu te mostro.
Se você quiser, invente uma história e mande pra mim. Se for história de franga, melhor ainda. Prometo ler pra elas ouvirem. E, se você não tem um pátio enorme nem um galinheiro de verdade, também pode inventar um em cima da geladeira ou em qualquer outro cantinho. Eu gosto muito quando acordo de manhã e vou fazer café na cozinha. Aí as oito frangas cacarejam e repetem assim, oito vezes, uma cada uma:
— Bom dia!
— Bom dia!
— Bom dia!
— Bom dia!
— Bom dia!
— Bomdia!
— Bom dia!
— Bom dia!
Não é que dá certo? Quase sempre, o dia é bom mesmo. Principalmente quando eu invento sem parar.
Pois não estou falando o tempo todo que franga, além de ser um bicho bom de ter por perto, dá sorte? Se elas não existissem, eu nem tinha escrito esta história. E acho que escrever uma história é uma coisa muito boa. O coração da gente fica mais quentinho e a gente gosta mais das pessoas.
A coisa que uma pessoa mais precisa na vida é gostar das outras pessoas e ser gostada, também. Aí, pra ser gostado, a gente escreve histórias. Você gostou desta? Daí está tudo certo, porque então você gostou de mim e eu gostei de você também.
Qualquer dia conto outra, combinado?
A Ulla, que é a mais minha amiga e me conta tudo que elas falam, me disse há pouco que até a Otília achou muito chique essa porção de livros. A Gabi, coitada, analfabeta, perguntou — imaginem — pra que serviam. A Ulla disse que de vez em quando tem vontade de ensinar ela a ler, mas depois pensa que a Gabi é muito burra, não vale a pena.
Por natureza, franga é mesmo meio burra. Umas mais, outras menos. Tem exceções, claro. A Juçara, por exemplo, eu acho triinteligentinha, Mas a Gabi... Já falei sobre isso com a Jacqueline, ela também acha a Gabi burríssima. Mas melhor ser burra e boazinha como ela do que burra e metida como a Otília, não é?
(Ai, que medo me deu agora que a Gabi e a Otília descubram que ando falando essas coisas pra vocês!)
Mas mesmo que a Gabi soubesse ler, ela não ia se importar nem um pouco. A Gabi nunca guarda mágoa de ninguém. Pensando bem, acho que ela é a mais franga de todas. Porque franga que se preza é assim mesmo: boa o tempo todo, nunca pensa em machucar ninguém. E burra de pedra.
Vai ver, é por isso mesmo que gosto tanto de frangas. Pensando melhor, também porque quando eu era criança brinquei tanto perto daquele galinheiro que fiquei conhecendo bem a intimidade delas. A intimidade de uma franga é a coisa mais bonita que tem. Exatamente porque é meio boba.
Não é que pensei outra coisa de gente grande? Esta é assim: tudo que parece meio bobo é sempre muito bonito, porque não tem complicação. Coisa simples é lindo. E existe muito pouco.
Às vezes penso que quando eu puder, um dia, morar de novo numa casa com um pátio enorme — nem precisa ser muito enorme — vou ter galinheiro de verdade.
Já pensou?
Aí podia até ter um cachorro que se chamasse Faruque — esse ia ser o Faruque II, mais nome de rei ainda. Ou então uma cadela que se chamasse Cadeluda. Nossa! Pensei agorinha que podia também ter uma horta que nem aquela que falei. Como a casa ia ser minha, eu ia colocar couve-flor na sala, em vaso, que nem rosa. Até um poço de água encontrada com forquilha, podia ter. E peras. E uvas cor-de-rosa. E legumes sem veneno nenhum.
É que vezenquando dá uma saudade na gente dessas coisas. São todas coisas simples. Meio bobas, muito bonitas. Que nem as frangas.
Mas tudo bem. A gente sempre pode inventar. Inventar é uma das melhores coisas que tem no mundo. A Otília ainda não descobriu, mas a coisa mais chique do mundo é inventar. Que nem a Clarice, que inventou a história da Laura.
Só que eu não inventei quase nada da Ulla, da Gabi, da Maria Rosa, Maria Rita e Maria Ruth, da Otília, da Juçara, da Blondie. Elas existem mesmo, são bem como eu disse. Estão em cima da geladeira aqui de casa pra quem quiser ver. Vem tomar um guaraná comigo que eu te mostro.
Se você quiser, invente uma história e mande pra mim. Se for história de franga, melhor ainda. Prometo ler pra elas ouvirem. E, se você não tem um pátio enorme nem um galinheiro de verdade, também pode inventar um em cima da geladeira ou em qualquer outro cantinho. Eu gosto muito quando acordo de manhã e vou fazer café na cozinha. Aí as oito frangas cacarejam e repetem assim, oito vezes, uma cada uma:
— Bom dia!
— Bom dia!
— Bom dia!
— Bom dia!
— Bom dia!
— Bomdia!
— Bom dia!
— Bom dia!
Não é que dá certo? Quase sempre, o dia é bom mesmo. Principalmente quando eu invento sem parar.
Pois não estou falando o tempo todo que franga, além de ser um bicho bom de ter por perto, dá sorte? Se elas não existissem, eu nem tinha escrito esta história. E acho que escrever uma história é uma coisa muito boa. O coração da gente fica mais quentinho e a gente gosta mais das pessoas.
A coisa que uma pessoa mais precisa na vida é gostar das outras pessoas e ser gostada, também. Aí, pra ser gostado, a gente escreve histórias. Você gostou desta? Daí está tudo certo, porque então você gostou de mim e eu gostei de você também.
Qualquer dia conto outra, combinado?
Marcadores: As Frangas