Do corredor os rumores chegavam diluídos, cobertos de cinza caindo mansa sobre os objetos. Vezenquando um rosto desavisado espiava na porta. Ficavam a encarar-se, e nesse duelo -quem saía perdendo? Enquanto examinava o rosto, guardava dentro de si um pensamento intenso, mas inafirrnado em gesto ou palavra. Tinha consciência de estar sendo lento em seu exame, do movimento da mão baixando os óculos, do cigarro batido nas bordas do cinzeiro. E do olhar do outro, também parado, como se dissessem mutuamente me vês? e o que vês em mim? e em que essa visão te acrescenta ou diminui? te causa ódio ou amor ou que outra espécie de sentimento velado? Concordavam mudos, mas não saberiam ir além da primeira pergunta. Não saberiam definir a que espécie de quebrar interior se sujeitavam. Mas sabiam que um ser humano jamais atravessa incólume o círculo magnético de outro. Sabiam, mas sabiam também que, por condicionamento ou medo de verem periclitar a segurança fragilmente estruturada, atenuavam a carga de espanto oferecendo um cigarro ou perguntando se estava tudo bem. Fingindo-se imperturbáveis, não seriam obrigados a reinventar cada encontro ou desencontro. Por mais corajoso que fosse, por mais que se permitisse a queda, o desconhecimento, ainda assim não saberia precisar o movimento. Seria necessário um rótulo qualquer para pacificar-se. E os movimentos nunca vinham puros, em essência: era uma mansa piedade, quebrantada por um vislumbre de amor, ou um ódio com toques de desespero, ou ainda um simples dobrar-se, uma identificação de humano para humano, sem sequer um nome aproximado.

Assim, ele estava no escritório, cumprimentara há pouco a secretária que estava de aniversário, dizendo você é de Virgem, não? é o signo regido por Mercúrio, o planeta da inteligência, as pessoas de Virgem sempre conseguem o que querem embora no começo pareça tudo muito difícil. A moça sorria indefesa, querendo dizer que não tinha culpa nenhuma de estar de aniversário. Para disfarçar, dissera que o relatório estava pronto. De repente se olharam tão desesperadamente sós no corredor cheio de gente, uma ternura quase de cão brincando nos olhos, ele olhou para a ponta dos sapatos, ela batucou de leve na máquina, ele imaginou-a morando numa pensão barata, chegando do trabalho para lavar calcinhas na pia, indo ao cinema com o noivo, contando a ele as miudezas do dia -imagine, hoje o chefe me cumprimentou e até perguntou o meu signo, ele, que nunca tinha falado comigo. Não suportando mais, pergutou-Ihe quantas primaveras, colocando um acento meio trágico na voz. Vinte e quatro, ela respondeu de olhos baixos. E quando chegaram ao ponto de precisar fazer qualquer coisa para quebrar o insuportável momento de ternura, disse brusco você está dispensada por hoje. Seco, praticamente jogando-Ihe no rosto a sua bondade esmagadora, voltou as costas e saiu pisando duro corredor afora. Na mesa, abriu a gaveta para encontrar um velho pacote de bolachas, uma fotografia rasgada e um carretel de linha. Em instantes como esse gostaria de te no rosto uma expressão de ódio tão compacta e definida que ninguém suportasse encará-lo por mais de um segundo. Espiou o vulto refletido na vidraça. Impossível: havia nos olhos tal carga de espanto e indagação que causavam sempre um baixar de olhos, qual quer coisa assim como quem esconde a si própria com medo de ser descoberto. Distraído, tentava aproximações, mas tão inábeis que os outros se encolhi, am, medrosos da segunda intenção que ignorava inexistente. Como chegar para alguém e dizer de repente eu te amo para depois explicar que esse amor independia de qualquer solicitação, que lhe bastava amar, como uma coisa que só por ser sentida e formulada se completa e se cumpre? Pois se ninguém aceitaria ser objeto de amor sem exigências.

Agora esperava o empregado entrar, ouvira a conversa no corredor. A felicidade do outro esperando o momento quase certo, chego pra ele e digo assim eu preciso que o senhor me dê um aumento. Mergulhou na compreensão do sentimento do empregado quase, quase se sentiu pobre, assim, como cinco olhos, um pedindo um bicicleta, outro pedindo um livro, outro pedindo. ..pedindo. ..uma côdea de pão! era assim que lia antigamente nos livros que falavam dos pobrezinhos. E nada o comovia tanto quanto a expressão uma côdea. Imaginava um pobrezinho, a não estendida à espera da casca toda roída. Arrepia-se todo de amor pela humanidade. Quase não importando a si mesmo de tanto amor represado, saía o corredor e dava um berro para o primeiro que saisse. As paredes quase oscilavam, e ninguém, mas ninguém percebia que a sua raiva era um amor muito bem disfarçado, para que ninguém risse, para que ninguém o olhasse surpreso com a grandeza de seu coração. Preparava-se para levantar e berrar quando bateram à porta:

-Entre -disse.

O operário era magro, os maxilares agudos furando as faces, quase bonito teria sido talvez num outro tempo, sem a mulher e os cinco filhos, bebendo e rindo nos puteiros com os companheiros. Puteiro, não -bórdel, corrigiu-se rápido. Bebendo cerveja, naturalmente, e rindo nos bordéis com os companheiros. Ou prostíbulos. As palavras muitas vezes usadas, sem o toque cínico e carregado de sugestões, mesmo um pouco melancólicas no seu ridículo, provocavam uma ternura maior. Piscou para si mesmo. Ah como conhecia as suas próprias fraquezas, como sabia apelar ao que lhe machucava o coração executivo.

Mandou o operário sentar, ofereceu-lhe um cigarro americano, filtro branco. E escutou atento a estória que já conhecia. Batucou nervoso na mesa, esperando que o homem falasse. ..agora. ..já. ..uma côdea de pão. Por inexperiência de lidar com palavras ou por conhecimentos carentes da psicologia dos chefes, o homem manteve-se discreto e objetivo nos fatos. Explicou tudo com muita concisão, o cigarro sublinhando sem melodrama os detalhes mais amargos. Olhava-o pensando no que ele pensaria de si. O homem terminou de falar e encarou-o. Uma pausa de espera estabeleceu-se incômoda entre as paredes. Confiante, o operário percebia suas feições comovidas, o ar exato de quem vai concordar e dar um aumento. Até se atreveu a largar um pouquinho de cinza no chão. Alguém gritou no corredor. Os estilhaços de som vieram arrancá-lo das escuras favelas onde andava compassado, distribuindo côdeas de pão a mil pobres bem pobrezinhos, de bracinhos finos e barrigas estufadas feito criancinhas de Biafra.

Olhou o homem bem nos olhos, bateu o cigarro no cinzeiro -ah se pudesse ver a si mesmo assim, carregado, insuportável de amor, de tanto amor, de puro amor. E disse bem devagar:

-O senhor está despedido
(In O Inventário do Irremediável)

Marcadores:

| Por ludelfuego | 28.12.06 | 15:50.

Despido e solitário, organizou o prazer no banheiro, enquanto o mundo não lhe entregava aquela mulher predestinada desde o início dos tempos. Uma sensação de estranheza de seu corpo múltiplo e concentrado em um único ponto rijo de fogo, as mãos atarefadas conduzindo os movimentos. Envolto em vidro numa atmosfera ao mesmo tempo quente e delicada, como as concavidades da mulher ignorada. E de repente assim, já não vendo as próprias coxas onde o líquido tecia desenhos, de repente tendo outra vez oito anos na surpresa de perceber a mente infantil aprisionada num corpo adulto e satisfeito. Antes, o vidro ameaçava ceder a um matagal de veludo, qualquer coisa áspera e intensa: o vidro quebrado e os pesados reposteiros sobre ele, num vôo.

A mão suspensa exausta. E só após -a incompreensão da própria carne. O cérebro por segundos esvaziado de pensamentos cedia lugar unicamente ao gesto, o cérebro posto em repouso voltava a funcionar. Não, não eram recriminações: uma perplexidade distraída de não ter controlado o que era seu e, mais além, o medo de não controlando o que era seu não poder controlar jamais o que era alheio. O que seria alheio, corrigiu-se pensando na fêmea que lhe era destinada. Ajustou-se ao que voltara a ser, admitindo que já não conseguia tocar-se: havia-se formado como que uma aura em torno do corpo.

Não uma aura de santidade, nem de irradiações, mas de desnecessidade de tocar-se. O corpo tresandava exaustão. Não, já não era preciso tocar-se, e isso não doía. Doía apenas quando o gesto se impunha, e antes do toque, apenas antes. Vigoroso, olhou-se no espelho e sorriu como um animal, sem compreender que o sorriso não era para si próprio, mas para um outro -ainda não suspeitava da possibilidade de encontro de criaturas de mesma força, numa relação diversa da dominante-dominado que esperava. E mesmo que suspeitasse, não admitiria, pois em qualquer parte do mundo havia uma fêmea feita para ele, acreditava. Uma fêmea côncava em que, convexo e sem espanto, se acomodaria. Não, não suspeitava que asperezas e saliências pudessem se encontrar em violência e fogo, num círculo intenso, oculto. Admirou-se, a masculinidade expressa no olhar arrogante substituindo o instrumento exausto. A luz coada da tarde impunha um reflexo fantasmagórico no liso da pele e, sem entender, admitiu.

Por um momento, uma suspeita o fez oscilar precário: que estava se passando? A mão deslizou mansa na pele, num toque novamente além da aura, mas diferente, apenas isso, diferente. Nem mais nem menos profundo. Então, como no começo do mundo, começou a se fazer a luz. Atravessou seis dias anexando a si o claro e o escuro e o sim e o não e o amor e a guerra e as pestes e os sorrisos e as mãos dadas e os plátanos perdendo as folhas e novamente recuperando e os desertos e as planícies e os oásis e as chuvas e os ventos e as praças e as grandes extensões de nada e as galáxias e cada um dos grãos de areia do fundo dos oceanos e os animais e as pedra e o acúmulo de pedras formando templos e as estradas e as portas e as varandas e as ondas e as cidades de ferro e metal e organdi e o silêncio todos os silêncios e os gritos e os muros e os porões e as chaves. Mas no sétimo dia, no sétimo dia tremeu e hesitou, imediatamente cobrindo-se com toalha, expulso do que descobrira e que, por inexperiência de lidar com as coisas, poderia transmutar-se de paraíso em inferno. Não houve tempo de escolher nem paraíso nem inferno: preferia a segurança de um gesto...

De hoje em diante comerás o fruto de teu próprio suor- ainda ouviu, sim, sim: era preciso dar sangue e pão e carne a um evento para que não morresse. Era preciso sentir nos ombros as garras do que inventara. Então vestiu-se demorado, reconstruindo aos poucos o que não sabia se se ampliara ou fora destruí do, reassumindo-se no que era simplesmente, a sua demarcação com fronteiras e limites, obscuras negações. A firmeza e o conhecimento do que constituía seu próprio terreno, e que fechava a qualquer tentativa de modificações. Jamais teria sido guerreiro ou explorador de novas coisas ou um descobridor ou um cientista ou um astronauta: seu heroísmo residia na defesa, não no ataque. O máximo que pediria a Deus, se acreditasse nele -e acreditava- seria não permitir jamais que saísse de si próprio, nem avançasse além do que, descuidado, já avançara. Pois que, avançando, era obrigado a anexar o que descobrira, e não tinha forças nem vontade de reformular todos os dias o seu ser de cada dia. E olhando fora de si, pressentia avisos, seculares avisos de sangue de que o que o esperava não tardaria. A isso chamava, amável, de uma esperança. Em nenhum momento permitiria a si mesmo duvidar da concretização das esperanças, do que chamava esperanças.

Sim, sim, confirmou olhando-se no espelho, quase vestido. A mulher havia colocado a mão no seu ombro, dizendo: eu sou bonita. Mas ele fora além e respondera: eu sou. O prazer que sentia era quase o mesmo de quando jogava tênis e conseguia interceptar uma bola impossível para marcar pontos. Apenas, o esforço dos músculos doía depois. Uma dor imprecisa, ao mesmo tempo generalizada e concentrada, num ponto inatingível. Sim, repetiu uma outra vez, e já não doía, nada mais doía. Pensou numa fórmula matemática -ele era engenheiro -a mãe esperando para jantar -ele era órfão de pai -nos talheres de prata -ele era rico: conseguindo situar-se. Sim, sim, delimitar-se, sim, sabia o que era, quem era, sim. Aparou cuidadoso o bigode e, recomposto, desceu triunfante as escadarias de mogno envernizado.
(In O Inventário do Ir-remediável)

Marcadores:

| Por ludelfuego | 27.12.06 | 18:02.

Tem piedade, Satã,
desta longa miséria
(Baudelaire: Litanias de Satã)

Meu corpo está morrendo. A cada palavra, meu corpo está morrendo. Cada palavra é um fio de cabelo a menos, um imperceptível milímetro de ruga a mais -uma mínima extensão de tempo num acúmulo cada vez mais insuportável. Esta coisa terrível de não saber a minha idade, de não poder calcular o tempo que me resta, esta coisa terrível de não haver espelhos nem lagos, das águas do mar serem agitadas e não me permitirem ver a minha imagem. Perdi todas as minhas imagens: as das fotografias, dos espelhos, dos lagos. Se meus olhos fossem câmeras cinematográficas eu não veria chuvas nem estrelas nem lua, teria que construir chuvas, inventar luas, arquitetar estrelas. Mas meus olhos são feitos de retinas, não de lentes, e neles cabem todas as chuvas estrelas lua que vejo todos os dias todas as noites.

Chove todos os dias aqui, não tenho relógio nem rádio, mas sei que deve ser por volta das três horas, porque é pouco depois que o sol está no meio do céu e eu senti fome. Então começa a subir um vapor da terra, e as nuvens, há as nuvens que se amontoam e depois explodem em chuva, e depois da chuva são as estrelas e a lua. Não há uma manhã, uma tarde, uma noite: há o sol abrasador queimando aterra e a terra queimando meus pés, depois a chuva, depois as estrelas e a lua. No começo eu achava que não havia tempo. Só aos poucos fui percebendo que se formavam lentos sulcos nas minhas mãos, e que esses sulcos, pouco mais que linhas no princípio imperceptíveis, eram rugas. E que meus cabelos caíam. Meus dentes também caíam. E que minhas pernas já não eram suficientemente fortes para me levar até aquela elevação, de onde eu podia ver o mar e o mar que fica mais além do mar que eu via da praia. Antes, eu ia e voltava da elevação no sol abrasador depois eu só conseguia sair daqui no sol abrasador e voltar na chuva e, depois ainda só nas estrelas e na lua. Agora são necessárias muitas chuvas, muitas estrelas, muitas luas e muitos sóis para ir e voltar. E isso é o tempo, muito mais tarde descobri que isso era o tempo. Fico aqui o dia inteiro, não há ninguém, não há nada. Fico aqui na gruta o dia inteiro, sem saber mais quando é sol abrasador, quando é chuva ou lua e estrelas, eu não sei mais.

No começo eu pensei também que houvesse outros, índios talvez, animais, formigas, baratas. Não havia ninguém, nada. Da elevação eu podia ver o todo, e o todo era só a areia e os coqueiros que me alimentam. O todo não tinha ninguém, não tinha nada. Eu chorava, no começo eu chorava e não entendia, apenas não entendia, e não entender dói, e a dor fazia com que eu chorasse, no começo. Eu sentia saudade, no começo, uma saudade apertada de gente, principalmente de gente. Não me lembro mais qual era o meu sexo, agora olho no meio das minhas pernas e não vejo nada além de uma superfície lisa e áspera, mas no começo eu sabia, eu tinha um sexo determinado, e a saudade que eu tinha de gente fazia com que eu rolasse horas na areia do sol abrasador, abraçando meu próprio corpo, inventando um prazer que eu precisava para me sentir vivendo talvez, porque eu não tinha medos nem preocupações nem mágoas nem nada concreto nem expectativas, as minhas células amorteciam, eu sentia que ia acabar virando uma palmeira, os meus pés agora parecem raízes, mas ainda tenho mãos, então eu rolava na areia quente enquanto meus dentes faziam marcas fundas roxas nos meus braços, nas minhas pernas e de repente todas as minhas células explodiam em vida, exatamente isso, em vida, eu tinha dentro de mim todo aquele sol todo aquele mar tudo aquilo que eu conhecera antes, que conheceria depois, se não estivesse aqui. Eu ficava amplo, na areia, abraçado a mim mesmo.

Talvez, sim, talvez eu fosse mulher, porque pensava no príncipe, a minha mão direita era a minha mão e a minha mão esquerda era a mão do príncipe, e a minha mão direita e a minha mão esquerda juntas eram as nossas mãos. Apertava a mão do príncipe sem cavalo branco, sem castelo, sem espada, sem nada. O príncipe tinha uns olhos fundos, escuros, um pouco caídos nos cantos e caminhava devagar, afundando a areia com seus passos. O príncipe tinha essa coisa que eu esqueci como é o jeito e que se chama angústia. Eu chorava olhando para ele porque eu só tinha ele e ele não falava nunca, nada, e só me tocava com a minha mão esquerda, e eu cantava para ele umas cantigas de ninar que eu tinha aprendido antes, muito antes, quando era menina, talvez tenha sido uma menina daquelas de tranças, saia plissê azul-marinho, meias soquete, laço no cabelo, talvez. Sabe, às vezes eu me lembro de coisas assim, de muitas coisas, como essa da menina -como se houvesse uma parte de mim que não envelheceu e que guardou. Guardou tudo, até o príncipe que um dia não veio mais. Não, não foi um dia que ele não veio mais, foram muitos dias, em muitos dias ele não veio mais, a água do mar salgava a minha boca, o sol queimava a minha pele, eu tinha a impressão de ser de couro, um couro ressecado, sujo, mal curtido. E havia essa coisa que também esqueci o jeito e que se chamava ódio. De vez em quando eu pensava eu vou sentir essa coisa que se chama ódio. E sentia. Crescia uma coisa vermelha dentro de mim, os meus dentes rasgavam coisas. Devia ser bom, porque depois eu deitava na areia e ria, ria muito, era um riso que fazia doer a boca, os músculos todos, e fazia as minhas unhas enterrarem na areia, com força.

Tenho um livro comigo, não é um livro, era um livro, mas depois ficou só um pedaço de livro, depois só uma folha, e agora só um farrapo de folha, nesse farrapo de folha eu leio todos os dias uma coisa assim: "Tem piedade, Satã, desta longa miséria". Só isso. Fico repetindo: "tempiedadesatãdestalongamisériatempiedadesatãdestalongamisériatempiedade" tempo, tempo. Aí sinto essa coisa que ainda não esqueci o jeito e que se chama desespero.

Havia outras pessoas, sim. Não aqui, mas lá, bem para lá do mar que eu avistava de cima da elevação e que é o mar mais longe que eu vejo. Mais longe ainda tinha gente, a gente que me trouxe para cá. Só não lembro mais por quê. Verdade, eu tinha qualquer coisa assim como andar de costas, quando todos andam de frente. Qualquer coisa como gritar quando todos calam. Qualquer coisa que ofendia os outros, que não era a mesma deles e fazia com que me olhassem vermelhos, os dentes rasgando as coisas, eu doía neles como se fosse ácido, espinho, caco de vidro. Então eles me trouxeram. Por isso, me trouxeram. Lembro, sim, eu lembro que havia coisas escuras que eles faziam e que eu não fazia, correntes, sim, sim, eu lembro: havia correntes e fardas verdes e douraduras e cruzes, havia cruzes, cercas de arame farpado, chicotes e sangue, havia sangue, um sangue que eles deixavam escorrer sem gritar enquanto eu gritava, eu gritava bem alto, eu mordia defendendo meu sangue.

A gruta é úmida escura fria. Não tenho roupa, não tenho fome, não tenho sede. Só tenho tempo, muito tempo, um tempo inútil, enorme, e este farrapo de folha de livro. Não sei, até hoje não sei se o príncipe era um deles. Eu não podia saber, ele não falava. E, depois, ele não veio mais. Eu dava um cavalo branco para ele, uma espada, dava um castelo e bruxas para ele matar, dava todas essas coisas e mais as que ele pedisse, fazia com a areia, com o sal, com as folhas dos coqueiros, com as cascas dos cocos, até com a minha carne eu construía um cavalo branco para aquele príncipe. Mas ele não queria, acho que ele não queria, e eu não tive tempo de dizer que quando a gente precisa que alguém fique a gente constrói qualquer coisa, até um castelo.

Acho que não passo da lua desta noite, talvez não passe nem da chuva ou do sol abrasador que está lá fora. São muitas palavras, tantas quanto os fios de cabelo que caíram, quanto as rugas que ganhei, muito mais que os dentes que perdi. Esta coisa terrível de não ter ninguém para ouvir o meu grito. Esta coisa terrível de estar nesta ilha desde não sei quando. No começo eu esperava, que viesse alguém, um dia. Um avião, um navio, uma nave espacial. Não veio nada, não veio ninguém. Só este céu limpo, às vezes escuro, às vezes claro, mas sempre limpo, uma limpeza que continua além de qualquer coisa que esteja nele. Talvez tudo já tenha terminado e não exista ninguém mais para lá do mar mais longe que eu vejo. O mar que com este sol abrasador fica vermelho, o mar fica vermelho como aquela coisa que eu esqueci o nome, faz muito tempo. Aquela coisa que se eu lembrasse o jeito poderia ser minha matéria de salvação. Talvez olhando mais o vermelho eu lembre, o mar dilacera coisas com os dentes, enterra as unhas na areia, o mar tem aquela coisa que o príncipe também tinha, o mar de repente parece que. Não, não adianta, o vapor está subindo. Pela entrada da gruta vejo as primeiras nuvens se formando, não adianta, o mar está escurecendo, as nuvens aumentam, aumentam, é muito tarde, tarde demais. Daqui a pouco vai começar a chover .
(In O Inventário do Ir-remediável)

Marcadores:

| Por ludelfuego | 25.12.06 | 19:28.

Ela se debruçou sobre mim, tão próxima que consegui ver meu rosto em suas pupilas dilatadas. Era bonita? Pergunta Alguém-Ninguém, a quem tento contar essa história que nem história seria. Fico aflito, tenho sempre tanto medo que me desviem do que estou tentando desesperadamente organizar para dizer; qualquer atalho poderia me perder, e à minha quase história, para todo o sempre. E nada mais triste que histórias abortadas, arrastando correntes, fantasmas inconsoláveis.
Mesmo assim, pacientíssimo, respondi: Não, querido. Era, sim, uma cara de verdade. A de Simone Signoret no final, lembra? A de Irene Papa, Anna Magnani, Fernanda Montenegro. Sem artifícios, crua. Adéli a Prado, Jeane Moreau. Uma cara que se conquista e ousa, que a vida traça, impõe e esculpe fundo em lascas e vincos feitos num mapa em relevo. Anouk Aimée, Marguerite Duras, Vanessa Redgrave. Alguém-Ninguém entusiasma-se com o glamour dessas comparações. Cala-se, olho parado divaga em outras imagens, outras divas. Nem ouve mais, eu continuo a contar.

Nas pupilas dela, desmesurados buracos negros que a qualquer segundo poderiam me sugar para sempre, para o avesso, se eu não permanecer atento - nas pupilas dela vejo meu próprio horror refletido. Eu, porco sangrando em gritos desafinados, faca enfiada no ventre, entre convulsões e calafrios indignos. Eu gritava Senhor de Toda Luz e de Tudo que Existe, dai-me Força, Fé e Luz. Gritei também não-palavras, uivos, descobrindo na carne que o berro alivia a dor. Gado no matadouro, recém-nascido após o tapa e o choque, aterrorizado com a clareza dura e o ruído insuportável do mundo cá de fora. Grito também: Senhor, não agora, porque eu não quero que seja agora. Minhas histórias não escritas, meu jardim? Desafiei Deus, sinto muito, era a única maneira de me salvar. Ele me entendeu. Suponho, embora nunca seja confiável, como diz Hilda Hilst. Então apenas confiei no meu berro de cachorro atropelado na estrada deserta, gato de espinha quebrada a pau rastejando na sarjeto do poema de Ferreira Gullar. Ai, Frida Kahlo...
Naquela cara viva, transbordando para além das pupilas-buracos-negros vi não apenas o meu horror, mas o horror e a beleza de tudo que é vivo e pulsa e freme no Universo, principalmente o humano. Aleph, quem sabe Anima. Não parecia cruel, apenas exata, meticulosa sacerdotisa. Sabre na mão, prestes a arrancar o coração palpitante do menino e da virgem que eu também era. Cumpria sua tarefa. Paraca, Moira, Harpia. Sua pele nem transpirava. E de repente, talvez porque eu tenha lido e sonhado e visto filmes demais, a cara transformou-se na da Górgona. Nada de cabelos de cobras entrelaçados, dentes pontiagudos de marfim.
Continuava de certa forma linda, mas também medonha e agora também mítica. Grega, etrusca, asteca, bizantina, a teia enorme de cabelos negros emaranhados em torno dos pômulos de pedra.

Tão próxima da minha a cara do meu horror de verme vivo, seria fácil ir com ela. Mergulhar em alívio no buraco negro meu de bicho vil, no meu pedantismo de animal aculturado. Para sempre ir. Para o outro lado, onde? Eu não quis. Ou foi Deus que não deixou? Não era hora ou Deus nem tem nada a ver com isso ou qualquer outra coisa, e sequer existe. Não sei. Sei, sem dúvida, que a vi. Depois, emergindo do coma artificial da morfina, cateteres enfiados nas veias, nunca mais a vi. Pelos corredores sangrentos das CTIs, pelos brancos labirintos hospitalares, empurrando macas, fazendo curativos, em nenhum lugar estava mais. Desapareceu. Não temo que volte um dia. E voltará, sina de todo o humano. E sei, sabemos perfeitamente que é essa cara nossa de cada dia, sempre à espreita. Alguém-Ninguém parece despertar. Como se chamava? Pergunta. Respondo em voz tão baixa que nem sei se chego a falar. Nem é preciso.
Amanhã à meia-noite volto a nascer. Você também. Que seja suave, perfumado nosso parto entre ervas na manjedoura. Que sejamos doces com nossa mãe Gaia, que anda morrendo de morte matada por nós. Façamos um brinde a todas as coisas que o Senhor pôs na Terra para nosso deleite e terror. Brindemos à Vida - talvez seja esse o nome daquele cara, e não o que você imaginou. Embora sejam iguais. Sinônimos, indissociáveis. Feliz, feliz Natal. Merecemos.

O Estado de São Paulo, 24/12/1995
(In Pequenas Epifanias)

Marcadores:

| Por ludelfuego | 23.12.06 | 11:01.

Eu não tenho culpa. Não fui eu quem fez as coisas ficarem assim desse jeito que não entendo, que não entenderia nunca. Você também não tem culpa, vou chamá-lo de você porque nin-guém nunca ficará sabendo, nem era preciso, a culpa é de todos e não é de ninguém. Não sei quem foi que fez o mundo assim horrível às vezes quando ainda valia a pena eu ficava horas pensando que podia voltar tudo a ser como antes muito antes dos edifícios dos bancos da fuligem dos automóveis das fábricas das letras de câmbio e então quem sabe podia tudo ser de outra forma depois de pensar nisso eu ficava alegre quem sabe quem sabe um dia aconte-ceria mas depois pensava também que não ia adiantar nada e tudo começaria a ficar igual de novo no momento que um homem qualquer resolvesse trocar duas pedras por um pedaço de madeira porque a madeira valia mais e de repente outra vez iam existir essas coisas duras que vejo da janela na televisão no cinema na rua em mim mesmo e que eu ia como sempre sair caminhando sem saber aonde ir sem saber onde parar onde pôr as mãos os olhos e ia me dar aquela coisa escura no coração e eu ia chorar chorar durante muito tempo sem nin-guém ver é verdade tenho pena de mim e sou fraco nunca antes uma coisa nem ninguém me doeu tanto como eu mesmo me dôo agora mas ao menos nesse agora eu quero ser como eu sou e como nunca fui e nunca seria se continuasse me entende eu não conseguiria não você não me entendeu nem entende nem entenderia você nem sequer soube sabe saberá amanhã você vai ler esta carta e nem vai saber que você poderia ser você mesmo e ainda que soubesse você não poderia fazer nada nem ninguém eu já não acredito nessas coisas por isso eu não te disse compreende talvez se eu não tivesse visto de repente o que vi não sei no mo-mento em que a gente vê uma coisa ela se torna irreversível inconfundível porque há um mo-mento do irremediável como existem os momentos anteriores de passar adiante tentando arrancar o espinho da carne há o momento em que o irremediável se torna tangível eu sei disso não queria demonstrar que li algumas coisas e até aprendi a lidar um pouco com as palavras apesar de que a gente nunca aprende mas aprende dentro dos limites do possível acho não quero me valorizar não sou nada e agora sei disso eu só queria ter tido uma vida completa elas eram horríveis mas não quero falar nisso podia falar de quando te vi pela primeira vez sem jeito de repente te vi assim como se não fosse ver nunca mais e seria bom que eu não tivesse visto nunca mais porque de repente vi outra vez e outra e outra e enquanto eu te via nascia um jardim nas minhas faces não me importo de ser vulgar não me importa o lugar-comum dizer o que outros já disseram não tenho mais nada a resguardar um momento à beira de não ser eu não sou mais tudo se revelou tão inútil à medida em que o tempo passava tudo caía num espaço enorme amar esse espaço enorme entre mim e você mas não se culpe deixa eu falar como se você não soubesse não se culpe por favor não se culpe ainda que esse som na campainha fosse gerada pelos teus dedos eu não atenderia eu me recuso a ser salvo e é tão estranho o entorpecimento começa pelos pés aquela noite eu ainda esperava quase digo sem querer teu nome digo ou escrevo não tem importância vou escrevendo e falando ao mesmo tempo com o gravador ligado é estranho me desculpa saí correndo no parque e me joguei na água gelada de agosto invadi sem ter direito a névoa dos canteiros destaquei meu corpo contra a madrugada esmaguei flores não nascidas apertei meu peito na laje fria do cimento a névoa e eu o parque e eu a madrugada e eu costurado na noite cerzido no escuro porque me dissolvia à medida em que me integrava no ser do parque e me desintegrava de mim mesmo preenchendo espaços aqueles enormes es'paços brancos terrivelmente brancos e você não teve olhos para ver que o parque era você a água você a névoa você a madrugada você as flores você os canteiros você o cimento você não teve mãos para mim só aquela ternura distraída a mesma dos edifícios e das ruas mas eles me desesperavam você me desesperava eu não quero falar nelas mas elas estão na minha cabeça como os meus cabelos e as vejo a todo instante cantando aquela canção de morte a minha carne dilacerada e eu ridículo queria ter uma vida completa você não se parecia com Denise tinha os olhos de mangaba madura os mesmos que tive um dia e perdi não sei onde não sei por que e de repente voltavam em você nos cabelos finos muito finos finos como cabelos finos 'minto que me bastaria tocá-los para que tudo fosse outra vez mas não toquei eu não tocaria nunca na carne viva e livre eles me rotularam me analisaram jogaram mil complexos em cima de mim problemas introjeções fugas neuroses recalques traumas e eu só queria uma coisa limpa verde como uma folha de malva aquela mesmo que existiu ao lado do telhado carcomido do poço e da paineira mas onde me buscava só havia sombra eu me julgava demoníaco mas não pense que estou disfarçando e pensando como-eu-sou-bonzinho-porque-ninguém-me-ama eu me achava envilecido me sentia sórdido humilhado uma faixa de treva crescia em mim feito um câncer a minha carne lacerada estou dentro dessa carne lacerada que anda e fala inútil a carne conjunta das xifópagas e o vento um vento que batia nos ciprestes e me levava embora por sobre os te-lhados as cisternas as varandas os sobrados os porões os jardins o campo o campo e o lago e a fazenda e o mar eu quero me chamar Mar você dizia e ria e ríamos porque era absurdo alguém querer se chamar Mar ah mar amar e você dizia coisas tolas como quando o vento bater no trigo te lembrarás da cor dos meus cabelos você não vai muito além desses príncipes pequenos suas palavras todas não tenho culpa não tenho culpa eram de quem pedia cativa-me eu já não conseguiria bem lento eu não conseguiria eu não sei mais inventar. a não ser coisas sangrentas como esta a minha maneira de ser um momento à beira de não mais ser não me permite um invento que seja apenas um entrecaminho para um outro e outro invento mesmo a destruição tem que ser final e inteira qualquer coisa tem que ser a última uma era inteira e a outra nascia da cintura e existia só da cintura para cima como um ipsilone mole esponjosa uma carne vil uma carne preparada por toda uma estrutura de guerras epidemias pestes ódios quedas eu me sentia culpado ao vê-Ias assim nosso podre sangue a humanidade inteira nelas que não riam e cantavam aquela sombria canção de morte brutalmente doce elas cantavam e minhas costas doíam como se eu sozinho as sustentasse e não uma à outra mas eu eu com este sangue apodrecido que assassina crianças de fome droga adolescentes bombardeia cidades e também você e todos nós grudados indissoluvelmente grudados nojentos mas me recuso a continuar ninguém sofrerá por mim sem mim chorar ninguém entende nem precisa nem você nem eu o anel que tu me deste sobre a folha que me contém sem compreender sem compreender que você carrega toda uma culpa milenar e imperdoável a História como concreto sobre os teusmeusnossos ombros Cristo sobre nossos ombros todas as cruzes do mundo e as fogueiras da inquisição e os judeus mortos e as torturas e as juntas militares e a prostituição e doenças e bares e drogas e rios podres e todos os loucos bêbados suicidas desesperados sobre os teus meus nossos ombros leves os teus porque não sabes sim sim eu tenho culpa não é de ninguém esse desgosto de lâmina nas entranhas não é de ninguém esse sangue espantado e esse cosmos incompreensível sobre nossas cabeças não posso ser salvo por ninguém vivo e os mortos não existem a fita está acabando começo a ficar tonto a dormência chegou quem sabe ao coração talvez eu pudesse eu soubesse eu devesse eu quisesse quem sabe mas não chore nem compreenda te digo enfim que o silêncio e o que sobra sempre como em García Lorca solo resta el silêncio un ondulado silêncio os espaço de tempo a nos situar fragmentados no tempoespaçoagora não sei onde fiquei onde estive onde andei nada compreendi desta travessia cega a mesma névoa do parque outra vez a mesma dor de não ser visto elas gritam sua canção de morte este sangue nojento escorrendo dos meus pulsos sobre a cama o assoalho os lençóis a sacada a rua a cidade os trilhos o trigo as estradas o mar o mundo o espaço os astronautas navegando por meu sangue em direção a Netuno e rindo não não quebres nunca os teus invólucros as tuas formas passa
Lentamente a mão do anel que eu te dei e era vidro depois ri ri muito ri bêbado ri louco ri ate te surpreenderes com a tua não dor até te surpreenderes com não me ver nunca mais e com a desimportancia absoluta de não me ver nunca mais e com minha mão nos teus cabelos dis-tante invisível intocada no vento
Perdida a minha mão de espuma abrindo de leve esta porta assim:
(In "O Inventário do Ir-remediável")

Marcadores:

| Por ludelfuego | 22.12.06 | 00:06.

Pois que ele era uma pessoa e ela outra, descobriu de repente, afastando as cortinas. E eu que quis fazer de mim algo tão claro como um rio sem profundidade, disse para si mesma, em distração colocando em movimento os átomos de poeira. Curvou-se até o chão para apanhar um grampo. Quando se curvava assim, o cabelo caindo no rosto, assumia um ar humilde de coisa grande que se curva.

Ela era toda grande, de mãos e pés e olhos e busto, mas um grande que não se impunha, não feria. Um grande que pousava como quem já vai embora. Ela parecia levantar vôo, no surpreendente de que ao elevar-se não deslocasse o ar em torno nem provocasse ventania. Até mesmo seu coração era grande. Era coração, aquele escondido pedaço de ser onde fica guardado o que se sente e o que se pensa sobre as pessoas das quais se gosta? Devia ser. Para tornar mais fácil o desenrolar do pensamento, ela concordava. E argumentava de si para si, lembrando músicas e poemas vagamente vulgares que falavam em coração: pois se alguém fazia uma música ou um poema forçosamente devia ser mais inteligente do que ela, que nunca fizera nada. Alguém mais inteligente certamente saberia o lugar exato onde ficam guardadas essas coisas. Coração, então, repetiu para si, consumando a descoberta. E acrescentou: mas ele está tão longe. Podia dar um tom de desalento ao que pensava, mas podia também solicitar, agredir exigir. Qualquer coisa que doesse.

Ai, a necessidade que tinha de doer em alguém, como se já estivesse exausta de tanto ser grande e boa. Por um instante conteve um movimento, toda concentrada no desejo de ser pequena e má e vil e mesquinha. Até mesmo um pouco corcunda ou meio vesga de tanta ruindade. Ou continuar a ser grande, mas sem aquela bondade que pesava, para tomar-se lasciva. Obscena. Mas o máximo de obscenidade que conseguia era entrar de repente no banheiro quando o marido tomava banho, afastando as cortinas para entregar a ele um sabonete ou perguntar qualquer coisa sem importância. O importante era que o motivo não fosse importante. Justamente aí estava o obsceno. Depois saía toda corada, pisando na ponta dos pés rindo um risinho de virgem. Virgem. Ai, estava tudo tão mudado que as meninas não davam mais importância à virgindade, andavam de calça comprida, cortavam os cabelos curtinho, fumavam, até fumavam, meu deus. E os rapazes, então, cabelos imensos, colares, roupas coloridas. Meu deus, ela repetia para si e para os outros que não sabia mais distinguir um jovem de uma jovem, e que isso a perturbava como se tivesse um filho ou uma filha e não soubesse dizer se era mesmo filho ou filha. Ai, era terrível.

Espiou o marido nu, as cobertas afastadas por causa do calor. Ai, era tão moço ainda, tão não-sei-como que dava uma vontade meio bruta de machucá-lo só porque era assim daquele jeito. Sentou na poltrona à beira da cama, espiando o dia. Mas ele é uma pessoa, eu sou outra, repetiu, repetiu, recusando a claridade que entrava pela janela para se encolher dentro dela, toda sem problemas nem angústias. De manhã bem cedo.

- Jorge - chamou, a voz ressoando estranha no silêncio. E desejou que ele abrisse os olhos e sorrisse dizendo: Alzira.

Mas ele não abriu os olhos, não sorriu nem disse. Então ela pensou e esta empregada que não chega. Era de manhã-bem-cedo e a empregada só chegava de manhã-bem-tarde. A dor que sentia de ser assim tão como era. Sorriu devagar, prosseguindo na doçura que sempre fora o seu caminho. O marido tinha cabelos no peito, pernas grossas, braços fortes. Ela era gorda, mole, grande. O marido tinha olhos azuis. Ela, pretos. Pretos como a noite, ele escrevera num poema antes de casarem. O marido tinha mãos quadradas, dedos compridos. Ela grandes, redondas, gordas, acolchoadas. Leves como as de uma fada – o poema era o mesmo, mas as mãos também seriam? Precisava encerar o chão, mandar as cortinas para a lavanderia, fazer café. Ah, era domingo. Só agora ela lembrava. A empregada não viria. Era dia do marido dormir até tarde. Era dia dela mesma ficar na cama até as dez. Era dia de tantas coisas diferentes dos outros dias que ela conteve a respiração, abalada no que estivera construindo e preparando para um dia que não seria mais.

Vagou inquieta pelo quarto. Era domingo. Se fumasse, acenderia agora um cigarro para ficar com ar de pessoa distraída. Mas assim tão sem vícios e portanto sem ter sobre o que derramar a distração que desejava, ai - assim ficava tão solta. Perdi até o sono, suspirou, como se o sono fosse a sua última reserva de segurança. Nem de ler eu gosto, acrescentou. E estou com preguiça de trabalhar e tenho vontade de falar um palavrão, que merda também. Sem sentir conseguira a distração que procurava. Mas agora que chegava a ela, consciente de que chegara, a distração se esgotava. Fazia-se necessário ir adiante. Mas o que vinha depois de uma distração? Não tinha em que nem como se concentrar. Nunca tivera instrumentos para forçar a atenção num determinado ponto. Era tão pobre. Tão.

Ai.

Caminhou até o banheiro, afogou a agitação abrindo três torneiras ao mesmo tempo. A água escorrendo gerava uma espécie de paz dentro dela. Molhou as pontas dos dedos, passou-as devagar pelo rosto. O espelho refletia um rosto amassado de pessoa em estado de desordem interna e externa. Começou a escovar os cabelos, fechou a gola do robe amarelo, deu dois beliscões nas faces para torná-las mais coradas. Voltou ao quarto. O marido mudara de posição: encolhido feito feto, mãos cruzadas sobre o peito. Alzira sentou na beira da cama. Espreitou o dia avançando, o medo avançando. Estendeu a mão num experimento de ternura. Retraiu-se. A lembrança da discussão do dia anterior barrava qualquer gesto. Que fazer, que fazer, que fazer, perguntou-se lenta, sem entonação. Não havia resposta. Engoliu algo parecido com um soluço. A cabeça encostada no travesseiro, espiava o dia crescendo. De repente deu com o olhar do marido fixo nela. Arrumou-se inteira, preocupada em afetar uma naturalidade de pessoa surpreendida em meio à higiene íntima.

- Hoje é domingo - disse.
- Pois é - concordou o marido.

E ela queria tanto mas tanto tanto que ele dissesse o nome dela assim bem devagarinho Al-zi-ra como se as sílabas fossem uma casquinha de sorvete quebrada entre os dentes e quase perguntava como é mesmo o meu nome? você lembra do meu nome? mas não adiantaria ele apenas a olharia surpreendido e se dissesse seria um dizer mecânico não aquele dizer denso lindo fundo e ela não queria isso não queria. Então falou:

-Dia de dormir até tarde.
E dormiu.

(em Inventário do Ir-remediável » Da Solidão » O Coração de Alzira)

Marcadores:

| Por ludelfuego | 19.12.06 | 18:40.

Naquele verão, quando a Mãe avisou que o primo Alex vinha passar o fim de semana conosco na casa da praia alugada, eu não gostei nem um pouco. Não por causa dele, que eu mal lembrava a cara direito, podia até ser qualquer outro primo, tio, avô. Mais por minha causa mesmo, que tinha começado a crescer para todos os lados, de um jeito assim meio louco. Pernas e braços demais, pêlos nos lugares errados, uma voz que desafinava igual de pato, eu queria me esconder de todos. Só tardezinha saía de casa, na hora que as empregadas domésticas - as dosas, o Pai dizia - estavam voltando da praia. Então caminhava quilômetros na beira do mar, me rolava na areia, vez enquando chorava e repetia: pequeno monstro, pequeno monstro, ninguém te quer. Não suportava ninguém por perto. Uma Mãe insistindo o tempo inteiro pra tu ires à praia na mesma hora que todo mundo normal vai e um Pai que te olha como se tu fosses a criatura mais nojenta do mundo e só pensa em te botar no quartel pra aprender o que é bom - isso já é dose suficiente para um verão. Como se não bastasse a minha desgraça, agora ia ter que dividir meu quarto com o tal de primo Alex. E não queria que ninguém ouvisse minha voz de pato grasnando, visse meus braços compridos demais, minhas pernas de avestruz, meus pêlos todos errados.
Fiz cara feia, a Mãe nem ligou. Falou que ele vinha e pronto, que tinha estudado muito o ano todo, passado no vestibular não sei de que e precisava descansar e tal e tudo e que ela devia aquela obrigação à tia Dulcinha coitada tão só e que além do mais o Alex era um bom rapaz tão esforçado o pobre. Isso eu odiava mais que tudo: aqueles bons rapazes tão esforçados e de óculos sempre saindo com sacolas de lona na hora do almoço para comprar cervejas e coca-colas e cigarros pra todo mundo, ajudando a lavar pratos e jogando aquelas chatíssimas canastras sobre o cobertor verde na ponta da mesa. Empurrei a compota de pêssego argentino, a calda virou na toalha, armei a tromba. Esse era meu jeito de dizer: não careço nem ver a cara dele para ter certeza que é um coió.
Quase dormindo, mais tarde, naquela mesma noite que a Mãe avisou que o primo Alex vinha, eu tentava lembrar a cara dele e não conseguia. Na verdade, não conseguia lembrar a cara de ninguém desde uns dois anos atrás, desde que eu tinha começado a ficar meio monstro e os parentes se cutucavam quando eu passava, davam risadinhas, falavam coisas baixinho, olhando disfarçado pra mim. Eu tinha horros deles, que achavam que sabiam tudo sobre mim. Sabiam nada, sabiam bosta do meu ódio enorme por um por um de cada um deles, aquelas barrigonas, aqueles peitos suados, pés cheios de calos. Eu nunca ia ser igual a eles - pequeno monstro, seria sempre diferente de todos. Era assim mesmo que ia me comportar com o primo Alex, decidi: pequeno monstro cada vez mais monstro, até ele não agüentar mais um minuto e dar o fora pra sempre. Fiquei olhando com força pro colchão sem lençol da cama ao lado onde ele ia dormir, até encher o colchão com todo o meu ódio, pra ele se sentir mal e ir embora no mesmo dia.
No dia que era o dia que ele vinha - e eu sabia porque a Mãe não falava outra coisa, arrumou lençóis limpos na cama ao lado, mandou eu empilhar os gibis, guardar no guarda-roupa a roupa da guarda da cadeira, saí de casa um pouco mais cedo e fiquei caminhando séculos na praia. Eu gostava de ir até aquele farol no caminho da Cidreira, onde tinha umas dunas e era bom ficar deitado na areia, olhando o mar sem fim. Vezenquando passava um navio, eu perguntava pra onde vai? pra onde vai? Bem besta mesmo, não pensava o lugar, só perguntava assim: pra onde vai, sem pensar o nome nem nada. Depois pensava também se eu saísse agora reto daqui e entrasse no mar e que nem Jesus Cristo fosse capaz de pisar sobre as águas e fosse andando sempre em frente sem parar - ia dar onde? Achava que na África, na Índia, sei lá. Em algum lugar, ia dar. Longe dali, de Tramandaí. Aí começou a sair do mar uma lua cheia bem redonda, e eu primeiro fiquei tentando ver nela São Jorge e o dragão, depois lembrei que era besteira, coisa de criança, e pensei crateras, desertos, quase via, Mar da Serenidade. Ou era Fertilidade? Fui olhando as coisas, me atrolhando por ali, até que de repente tinha anoitecido total, e eu tinha que voltar pra merda daquela casa com aquele Pai e aquela Mãe. Ainda por cima, fui lembrando no caminho, cada vez mais puto, e por causa disso caminhava mais devagar ainda e ficava cada vez mais noite, agora com aquele tal de primo Alex lá, enfiado no meu quarto. Passaram uns bagaceiras com violão e uma garrafa de cinzano, abraçados, cantando uma música de parque. Desviei deles, fui enfiando os pés na água morna do mar, de cabeça baixa pra não mexerem comigo. Vezenquando olhava pra trás e só ouvia aquelas vozes bem de bagaceiras mesmo, cada vez mais longe, cantando a noite tá tão escura/ a lua fez feriado/ estou sofrendo a tortura/ de não sentir-te ao meu lado. Bestas, pensei, porque a lua não tinha feito feriado coisa nenhuma, feriado era lua nova, não aquela luona enorme, redonda, amarela, bem ali em cima do mar e da cabeça da gente. Quando eu já tinha caminhado um pouco em direção ao norte, e os bagaceiras tinham sumido, olhando por cima do ombro direito pensei quem sabe agora, saindo reto aqui eu dou justo ali, no sulzinho da África, cabo das Tormentas. Ou era o da Boa Esperança? Aí de repente despencou uma baita estrela cadente, quase do tamanho da lua, tão grande que cheguei a parar pra ouvir o tchuááááááááááááááá da estrela caindo dentro do mar. Não aconteceu nada, então falei bem alto, imitando aquela vozinha de taquara rachada da dona Irineide, professora de Geografia: bó-li-dos, isso que o populacho chama de estrelas cadentes na verdade são bó-li-dos. Me senti muito culto e tudo, mas meio sem graça, daí lembrei que podia fazer um pedido, ou três, não sei bem, a gente podia. Então peguei e fiz. Que já que o primo Alex tinha mesmo que estar lá naquela merda de casa - e era impossível pedir que não viesse, porque já tinha vindo - que pelo menos ele fosse legal e não me enchesse o saco.
Bem devagarinho, fui me distraindo com essas coisas pelo caminho. Daí me atrasei tanto que, quando cheguei em casa, estava armado um começo de alvoroço. O Pai já estava de chinelo e pijama, me chamou de desgranido e disse que ia me proibir de ir à praia a essa hora de louco e eu respondi que se me proibisse de ir nessa hora eu ia ficar no quarto trancado e não ia em hora nenhuma nunca mais, e a Mãe falou baixo, mas eu escutei, é a idade não liga, não implica com o guri, criatura, e me deu uma janta meio fria com milho duro e eu cheguei a abrir a boca pra falar que não era cavalo quando ela disse que o primo Alex já tinha chegado e estava dormindo, podre da viagem. Nem precisava dizer nada: sentado na ponta da mesa, eu já tinha visto aquela campeira xadrez pendurada numa guarda de cadeira. Mesmo que não pudesse ver nada, farejava um cheiro no ar. Nem bom nem mau, cheiro de gente estranha recém-chegada de viagem. Polvadeira, bodum, sei lá. Quase não consegui comer, de tanto ódio. O Pai foi dormir azedo, falando que no quartel eu ia ver. A Mãe ficou mexendo no rádio, mas só dava descarga no meio dumas rádios castelhanas, êle-êrre-uno-êle-êrre-dôs. Nada de Elvis, que eu gostava e ela fingia que não, só Gardel, que ela gostava e eu tinha certeza que não. Falei que ia dormir também, a Mãe botou a mão no meu ombro e muito séria pediu pra mim prometer que ia ser educado com o primo Alex coitado que o pai dele tinha morrido e a tia Dulcinha passava muito trabalho e coisa e tal. Até prometi, não custava nada. Mas fiquei torcendo os dedos, rezando prela não repetir que ele era um bom rapaz tão esforçado o pobre, senão meu ódio voltava. Ela acabou falando, bem na hora que o Gardel cantava sabía que nel mundo no cabía toda la humilde alegría de mi pobre corazón, e eu fui dormir com muito ódio. Dela, do Pai, do primo Alex, da tia Dulcinha, dos bagaceiras da praia, do Gardel, de tudo.
Tirei a areia dos pés no bidê, lavei a cara e fiquei parado na frente do espelho. Pequeno monstro, falei. Mais de uma vez, três, doze, vinte, eu repetia sempre, me olhando no espelho antes de dormir: pequeno, pequeno monstro, ninguém, ninguém te quer. Mijei, escovei os dentes, gargarejei. Me deu vontade de vomitar, sempre dava. Mas não vomitei, nunca vomitava. Tive vontade de me encolher ali mesmo, embaixo da pia, feito cusco escorraçado. Meu quarto agora não era mais só meu, não podia ficar lendo até tarde nem nada, luz acesa até altas: a droga do primo Alex estava lá, e eu tinha prometido ser bem educado com ele, coitado.
Aquele quarto que agora não era mais meu, mas meu e do tal de primo Alex, ficava na parte de trás da casa de tábuas, numa espécie de puxado, ao lado de um banheiro que antes dele chegar também era só meu, mas agora era meu e dele, que nojo. Apaguei a luz, parei na porta do banheiro e fiquei remanchando um pouco por ali, parado no corredor escuro, antes de entrar. Eu tinha que estar preparado para enfrentar aquele tapume de óculos, que certamente - eu conhecia bem essa gente - tinha deixado seus óculos sebentos na minha mesinha-de-cabeceira, e aqueles vulcabrás nojentos com umas meias duras no garrão saindo pra fora e um fedor de chulé no ar, escarrapachado na cama, roncando e peidando feito um porco. Que ódio, que ódio eu sentia parado naquele biricuete escuro entre o banheiro e o quarto que não eram mais meus.
Abri a porta devagarinho. A janela-guilhotina estava levantada, a luz apagada. Não tinha nenhum fedor no ar. A luz da lua entrando pela janela era tão clara que eu fui me guiando pelo escuro até a minha cama, sem precisar estender a mão nem nada. Sentei, levei a mão até a mesinha-de-cabeceira e apalpei: não tinha nenhum óculos em cima dela. Só meu livro Tarzan, o Invencível da coleção Terramarear. Pelo menos isso, pensei: a trolha não usa óculos. Fiquei de cueca, camiseta, me deitei. Não tinha nenhum barulho de ronco, nenhum cheiro de peido no ar, só aquele perfume meio enjoativo do jasmineiro ali no pátio ao lado. Os meus olhos foram se acostumando mais no escuro, e eu comecei a olhar para a cama onde o primo Alex estava deitado, do outro lado do quarto.
A luz da lua batia direto nele. Ele estava deitado por cima do lençol, completamente pelado. Meus olhos se acostumavam cada vez mais, e eu podia ver o primo Alex virado sobre o lado direito, as duas mãos juntas fechadas no meio das pernas meio dobradas. Ele parecia muito grande, tinha que encolher um pouco as pernas, senão os pés batiam lá na guarda do fim da cama-patente. Ele tinha muitos pêlos no corpo, a luz da lua batendo assim neles fazia brilhar as pontas dos pêlos. Ele tinha a cara virada de lado, afundada no travesseiro, eu não podia ver. Via aqueles pêlos brilhando - uns pêlos nos lugares certos, não errados, que nem os meus - descendo para baixo do pescoço, pelo peito, pela barriga, escondidos e mais cerrados naquele lugar onde ele enfiava as mãos, depois espalhados pelas pernas, até os pés. Os pés encolhidos do primo Alex eram muito brancos, o pai dele tinha morrido, ele tinha estudado o ano inteiro e passado no vestibular não sei de quê, lembrei. E não fazia barulho nenhum quando dormia, coitado.
Fiquei deitado na minha cama, olhando para ele. Depois de um tempo, comecei a ouvir a respiração dele e fui prestando atenção na minha própria respiração, até conseguir que ela ficasse igual à dele. Eu respirava, ele respirava. Eu cruzei as mãos no peito e encostei a cabeça na guarda da cama para poder olhar melhor. Ele tinha cruzado as mãos no meio das pernas decerto para dormir melhor, o pobre, podre da viagem. Fiquei olhando pra ele, respirando devagar, no mesmo ritmo. Bem devagar, para não acordá-lo. Não sei por quê, mas de repente todo o meu ódio passou. Ali deitado, olhando pro primo Alex dormindo inteiramente pelado, embaixo daquela lua enorme, o cheiro enjoativo dos jasmins entrando pela janela aberta, me dava uma coisa assim que eu não entendia direito se era tontura, sono, nojo ou quem sabe aquele ódio se transformando devagarzinho em outra coisa que eu ainda não sabia o que era.
(em Os Dragões não conhecem o Paraíso - Caio 3D - O Essencial da Década de 1980)

Marcadores:

| Por ludelfuego | 6.12.06 | 18:52.

Sei que é uma ousadia dirigir-me ao senhor assim, desta maneira meio estabanada. Aprendi na escola, há tantos anos que já esqueci, que deveria dirigir-me ao senhor como "Vossa Excelência" ou algo assim. Mas hoje, ao despertar muito cedo neste Hotel Schwanenwik, que parece saído de um filme dos anos 40, espiando pela janela as árvores começando a ficar douradas no parque em frente ao lago, me surpreendi pensando com força e fé no senhor e no Brasil.
Nos últimos dias, li nos jornais europeus que o senhor foi eleito sem necessidade de um segundo turno. Não votei no senhor. Aliás, não votei em ninguém. Estava em trânsito, em Porto Alegre, e embarquei para Frankfurt um dia após as eleições, quando a sua vitória já era dada como certa. E embora talvez o senhor não fosse meu candidato, fico feliz. Devo dizer que o senhor me parece muitíssimo mais, digamos, preparado, que todos os outros seus antecessores. Amigos europeus e desconhecidos que fazem perguntas nas leituras e debates que ando fazendo por aqui com outros escritores também parecem pensar o mesmo. Por favor, não nos decepcione.
É grande a nossa esperança, snehor presidente. E falo não como escritor ou jornalista, mas como brasileiro comum. Tão comum que nada tenho e, nos últimos anos, não fosse direitos autorais vindos do estrangeiro e a lealdade de muitos amigos, estria desempregado e passando dificuldades. Porque ando pelas ruas, porque entro nos bares e vejo as caras sofridas das pessoas pelas esquinas, posso dizer ao senhor com segurança: estamos cansados, senhor presidente. E é no senhor que confiamos, acima de tudo, para dar jeito nesse grande cansaço que já vem de anos.
Vem do golpe militar que cortou os sonhos de uma geração inteira; vem daquela morte misteriosa de Tancredo Neves; vem do desastre de José Sarney e principalmente da vergonhosa catástrofe que foi Fernando Collor.

Vem de muito antes disso, talvez desde que os colonizadores mataram nossos índios, dizimaram nossas matas, levaram nosso ouro. Há quase 500 anos, sempre fomos escravos, roubados, humilhados. Nos últimos tempos esse cansaço nosso aumentou, com a impunidade dos corruptos e o empreguismo fácil que se tornou a política. Os senhores ganham muito bem, senhor presidente, e a maioria de nós morre de fome.
O que quero pedir, quando penso no senhor, olhando pela janela aberta desta cidade estrangeira, não tem nada de extraordinário. Nós queremos comida, senhor presidente. Queremos trabalho, escolas. Queremos saúde e um mínimo de segurança para andarmos nas ruas sem o risco de sermos atingidos por alguma bala perdida. Queremos um mínimo de honestidade, e esperamos que o senhor reforce a nossa auto-estima como brasileiros, não através de um nacionalismo irracional e perigoso, mas apenas por termos satisfeitas as nossas necessidades humanas básicas.
Por favor, não gaste à toa o dinheiro dos nossos impostos. Por favor, preste atenção na infinidade de mendigos que apodrecem pelas ruas de nossas cidades. Não queremos ser o Haiti nem Ruanda, mas apenas um país decente. E temos medo enorme que logo após a sua posse, esse Plano Real que tanto ajudou a elegê-lo, desabe sobre nossas cabeças com uma inflação de 100% ao mês. Estamos tão cansados de mentiras, promessas, aparências, fraudes, ilusões. Nós queremos gostar do senhor, senhor presidente, queremos tanto confiar no senhor. Nós entregamos os nossos destinos nas suas mãos, com boa fé e boa vontade.
E é por tudo isso e muito mais que, daqui de muito longe, quase na Escandinávia, tenho a ousadia de concluir pedindo: pense bem, senhor presidente, no que vai fazer com as nossas vidas. Pode ser bom, isso a ser feito, pode ser nobre e grandioso. Depende um pouco de nós, que temos sido tão pacientes, mas depende principalmente do senhor. Seja justo, honesto, amoroso. Boa sorte.
(Caio Fernando Abreu para O Estado de São Paulo em 16/10/1994)

Marcadores:

| Por ludelfuego | | 18:48.

Oracy:

Tive uma grande emoção, há pouco, ao abrir o pacote com o seu livro. Você não sabe, mas a sua figura foi uma das mais importantes durante a infância e uma parte da adolescência que passei aí em Santiago. Com o seu livro nas mãos, me voltou imediatamente na memória a visão que eu tinha da casa de vocês da janela de meu quarto. Uma casinha de madeira quase escondida atrás de muitas plantas, com um coqueiro de onde surgia a lua, quando estava cheia.
No meio da tensão e da corrida que é sempre esta cidade, foi qualquer coisa como um sopro de ar fresco, um gole dágua, qualquer coisa assim. Não é saudade, porque para mim a vida é dinâmica e nunca lamento o que se perdeu - mas é sem dúvida uma sensação muito clara de que a vida escorre talvez rápida demais e, a cada momento, tudo se perde. Nunca nos falamos, praticamente, nunca nos olhamos. Ficou só aquela vibração de silêncio, muito forte.
Numa cidadezinha perdida, dois malditos que se reconhecem nem que seja necessário sequer falar sobre isso. Uma cumplicidade muda, e tão secreta que, penso, talvez você nunca tenha percebido. Na minha memória - já tão congestionada - e no meu coração - tão cheio de marcas e poços - você ocupa um dos lugares mais bonitos. O mesmo que ocupa aquele branco do Quarto RC, no fim da rua. Ou os circos que acampavam na frente da casa de Dona Ernesta. Ou o campinho na frente de tua casa, onde eu deitava olhando as nuvens ou jogava futebol (pessimamente).
Neste momento, estou todo arrepiado e com muita vontade de chorar. É como se ouvisse outra vez, escondido em meu quarto, com o cheiro forte de um jasmineiro ali embaixo, os discos de música erudita que você ouvia muito alto. Até hoje penso que seria Beethoven ou quem sabe Wagner. Era algo muito vibrante. Foi a primeira vez que ouvi música erudita. Foi a primeira vez que eu soube que existiam poetas. Tudo isso me toma agora de novo e é tão mágico que quero agradecer a você a lembrança - deus, tão remota e ao mesmo tempo tão dilaceradamente viva.

Sobre teu livro: vou lê-lo com muito carinho, hoje à noite. E te prometo que, em nosso número de fevereiro, sairá uma ficha registrando a publicação e, se possível, também uma nota nessa secção que chama-se "De Orelha". Vou tentar encaminhá-lo a alguém para que faça uma apreciação. Temos pouco espaço, e menos ainda para poesia. Faço o possível, mas é uma luta diária que, freqüentemente, perco.

Não sabia que José Santiago Naud era também nosso conterrâneo.
Vou tentar localizá-lo para você.

Outra coisa. Mande seu livro para:

-Marília Pacheco Fiorillo - revista Veja
-Caio Túlio Costa - jornal Folha de São Paulo
-Geraldo Galvão Ferraz - revista Istoé
-Mario da Silva Brito - revista Istoé

Agora, sendo franco: dificilmente eles darão ao seu trabalho a atenção merecida. A grande imprensa e a grande cidade são muito viciadas. Há uma politicagem terrível. Só se escreve praticamente sobre os livros de grandes editoras, que são também anunciantes.
Tudo muito amargo e triste. Mas falarei de você e do seu trabalho para as pessoas. Se quiser enviar os livros aos meus cuidados, comprometo-me a encaminhá-los.

Quanto a mim, vivo sozinho num pequeno sobrado, numa vila, em um bairro calmo. Trabalho aqui o dia inteiro, à noite leio, escrevo, ouço música (principalmente Erik Satie, Chopin e hoje comprei A Pastoral de Beethoven). Vivi dois anos no exterior(Suécia e Inglaterra) e este ano talvez viaje de novo. Mais um livro meu deve sair em abril, chama-se Morangos Mofados. Te envio um. Vivo bastante só, e viajo muito. Estou um bom astrólogo, estudo já há oito anos(tenho Sol em Virgo, ascendente Libra, Lua em Capricórnio), e há dez anos curto o Tarot, também o I-Ching e todo o esoterismo, incluindo candomblé(sou Oxalá de frente, com Oxum e Ogum) - umbanda não gosto, nem kardecismo, acho baixo-astral. Lembro uma vez que você leu o Tarot para mim e Romanita Martins, agora Romanita Desconzi, a artista plástica - e previu muito sucesso.
Romanita, aliás, adora você, e sempre que nos encontramos acabamos falando no seu nome.
Gostaria que você me falasse da sua vida aí, dos seus sonhos, da sua - imagino - grande solidão. Estou enviando alguns exemplares aqui do "meu jornal" e espero que esta carta, que me está saindo longa demais, sirva como reinício da nossa amizade, tão profunda e tão antiga. Vai meu endereço particular e o convite, verdadeiro, para uma visita, quando você quiser.

Receba todo o meu carinho e as minhas melhores vibrações.

Seu amigo

Caio Fernando Abreu


carta extraída do livro "O que importa em Oracy", organizado por Fátima Friedriczewski,

Marcadores:

| Por ludelfuego | | 18:46.