Reza não muito antiga lenda que homossexuais masculinos de qualquer idade ou nação – além de bofe, bicha, tia ou denominação similar – dividem-se em quatro grupos distintos. Seriam na verdade, sempre segundo a lenda, quatro irmãos que atendem por nomes femininos. A saber, e essa ordem arbitrária não implica cronologia nem preferência: Jacira, Telma, Irma e Irene.
Para começo de conversa, vamos à mais popular delas: a Jacira. Suficientemente conhecida, seja pelo personagem Jaci (que no romance Onde Andará Dulce Veiga?, de minha autoria, em dias de arco-íris recebe uma Oxumaré de frente e transforma-se na devastadora Jacira) ou pelos louváveis esforços do jornalista Eduardo Logullo em divulgá-la através da coluna Joyce Pascowitch, na Folha de São Paulo.
Das quatro irmãs, Jacira é aquela que todo mundo sabe que é homossexual, e ela mesma – que refere-se a si própria, seja qual for seu nome, sempre no feminino – acha ótimo ser. A Jacira usa roupas e cores chamativas, fala alto em público, geralmente anda em grupos de amigos também jaciras como ela, todas exercendo o velho hábito de “fechar”. Como diria Antônio Bivar, é uma pintosa. Uma pintosa assumida, despudorada. Sempre foi bicha, adora ser bicha e, maniqueísta como ela só, continua achando que a humanidade divide-se entre bofes e bichas, categoria esta última na qual se inclui. Com orgulho. Superinformada, embora não leia muito (existem Jaciras nigrinhas,analfabetas), ela sempre sabe – de orelhada – tudo que está em cartaz na cidade. Fofocas que insinuam viperinas dubiedades sobre a sexualidade alheia. Ao entrar em qualquer ambiente, uma Jacira sempre é imediatamente notada. O que satisfaz seu principal objetivo na vida: aparecer.
Bem menos luminosa e sem graça que a Jacira é: a Telma. Seu nome provavelmente originou-se daquela versão que Ney Matogrosso cantava: “Telma eu não sou gay/ o que falam de mim são maldades”, algo assim. Ao contrário da Jacira, a Telma é infelicíssima. Ela bebe. Bebe para esquecer que poderia ser homossexual. O problema é que, exatamente quando bebe, mais exatamente ainda depois do terceiro ou quarto uísque, é que a Telma transforma-se em homo. Embriagada, Telma ataca. E dramaticamente na manhã seguinte não lembra de nada. Aquela Jane Fonda de The Morning After perde. Embora a Telma fique muito erotizada em estado etílico, ela sempre nega que é, e negará até a morte. A única solução para uma Telma empedernida seria a psicanálise (que ela, a mais doente, acha que não precisa) ou parar de beber. O que, por tabela, significaria também parar de trepar. Pobres Telmas – categoria da qual países como o Brasil (vide academias de ginástica, futebol, chopadas com o pessoal da repartição, etc.) está cheio.
Menos trágica, mas ainda mais complexa, é a terceira irmã: a Irma. As Irmas não são exatamente infelizes – pelo menos, não tanto quanto as Telmas --, embora bem menos felizes que as Jaciras – que aparentam ser e realmente são felicíssimas. Irma é aquela que todo mundo jura que é, incluindo a mãe, a irmã e a esposa (Irmas casam muito) – mas ela mesma não sabe que é. Não sabe ou finge que não. A Irma dá quase tanta pinta quanto a Jacira, adora todo o folclore gay, de Carmen Miranda a show de travesti, passando por concurso de miss, Mae West, leopardos, James Dean e Marilyn Monroe. Estranhamente não “faz”. Quando solteira ninguém de sexo algum poderá afirmar – muito menos provar – que já fez sexo com uma Irma. Ou se fez, não prestou muito, pois há quem diga que Irmas costumam ser mal-dotadas, impotentes, dessas assim. Pode ser. A verdade é, quando casadas, as esposas das Irmas raramente apresentam um ar satisfeito. Sexualmente satisfeito.
Irmas costumam ser afáveis – ao contrário das problemáticas Telmas, introvertidas e depressivas. Adoram Jaciras, apesar destas gostarem de chamá-las, sobretudo em público e aos gritos, de “queridaaaaaaaa”. É que toda Jacira sabe – ou supõe – que no fundo toda Irma é tão Jacira quanto ela. Mas como as Telmas, Irmas fogem de definições. E ao contrário das Telmas, muito pecadoras, podem até morrer sem se atreverem a provar os prazeres do – para citar uma Jacira clássica – amor que não ousa dizer seu próprio etc.
Inicialmente limitada a essas três, a lenda recentemente incluiu a existência de uma quarta irmã: a Irene. Tão assumida quanto a Jacira, ao contrário desta, a Irene não dá pinta. Ela é, sabe que é, mas não exibe nem constrange. Pode até usar brinquinho na orelha, dar alguma rabanada menos comedida, ou mesmo – de brincadeira – referir-se a si mesma ou uma amiga no feminino. Mas a Irene é tranqüila. Geralmente analisada, culta. Bom nível social, numa palavra – Irene parece serena em relação à própria sexualidade. Que é diversificada. Podem ter longos casos, morar junto, ou viverem certas idiossincrasias eróticas. Só gostarem de working class, por exemplo, ou de adolescentes, choferes de táxi ou estudantes de Física. Ou de Irenes como elas: são as Irenes lésbicas, bastante comuns e conhecidas, literalmente, como gays. Telmas e Irmas escondem tudo da família, vizinhos e colegas, embora a Irma não tenha nada a esconder. Jaciras não escondem coisa alguma, explicitérrimas. Irenes deixam no ar: se alguém perceber, que perceba. Educação é básico para elas. Serenamente educadas, pois, às vezes até casam. Com mulheres.
Entre as quatro, desgraçadamente as relações são turbulentas. Jaciras, por exemplo, adoram seduzir Telmas. Estas (quando sóbrias, claro) têm medo pânico de Jaciras. Irenes por sua vez, nutrem uma espécie de carinho apiedado pelas desventuradas Telmas – e isso pode até resultar numa ardente noite de paixão entre ambas. Da qual naturalmente a Telma jamais lembrará, embora tenha feito horrores. O grande risco que toda Irene corre é apaixonar-se por uma Telma: comerá o pão que o diabo amassou, até entrar noutra. Com a Irma, de quem Irene também gosta, o risco não é tão grave: Irenes sabem que com Irmas não rola. E pode assim transformar tudo numa aparentemente saudável “amizade viril”: as duas fingindo, para usar a terminologia antiga, que são bofes. Há quem creia. Jaciras não simpatizam muito com Irenes, acham-nas “metidas”. A recíproca também é verdadeira: Irenes acham Jaciras pintosas demais, apesar de divertidas, folclóricas. E inconvenientes. E com a imperdoável mania de roubar namorados alheios. Irenes adoram namorar, pegar na mão, ir ao cinema, comer pizza, fim de semana em Ilhabela, ver TV – tudo isso together. Já Telmas e Irenes, entre si, são hostis. Talvez uma tema o julgamento da outra, vai saber. Irmas, no entanto, podem ceder aos insistentes encantos das Jaciras. Existem mesmo certas Irmas que algumas Jaciras – para ódio das Irenes – juram já ter feito. Jaciras, por sua vez, não raramente invejam Irenes, que sempre aparentam certa prosperidade (ao contrário das Telmas), com um cotêzinho decadente). Irenes mais neuróticas gostariam, de vez em quando, de serem confundidas com Irmas. E Telmas costumam sentir cegos, súbitos impulsos de desvendar suas almas abissais para os ouvidos compreensivos e ombros amigos das Irenes. Na verdade, Telmas, Irenes e Jaciras invejam um pouco aquela impressão (nem sempre verdadeira) de pureza que toda Irma passa. Assim como se estivesse por fora de qualquer grupo de risco.
A propósito, já que abordamos esse desagradável tema: embora aparentem ser as mais perigosas, no que se refere a riscos, e apesar de promíscuas (a promiscuidade esta implícita na jacirice). Jaciras cuidam-se muito. Verdade que com camisinhas nacionais, daquelas que arrebentam na hora H, na primeira golfada.
Irenes sempre carregam na frasqueira sortido estoque de poderosas camisinhas estrangeiras, compradas em suas viagens. Com a idade se tornam um tanto maníacas com higiene, meio obcecadas com safe sex. Certas Irenes não fazem há anos, vivem em permanente estado de nervos.
Já as Irmas como não fazem, ou quando fazem é tão escondido que ninguém sabe dizer como fazem, não se preocupam com isso.
O problema, novamente, são as Telmas. Impulsivas e atormentadas, nunca estão prevenidas. Jamais podem prever quando passarão do quarto uísque ou da décima quinta cerveja, e isso normalmente acontece em horas que as farmácias estão fechadas. Telmas, portanto, não carregam camisinha. Sequer as têm no banheiro, tamanha a negação. Enlouquecidas na cama (uma Telma com tesão vale por cem Jaciras), Telmas fazem coisas que Madonna (ídolo das Jaciras) duvidaria. Essa representa outra secreta tortura mental das Telmas: como às vezes realmente não lembram do que fizeram (por lapso etílico), têm sempre rabo preso e um medonho medo de serem positivas.
Irmas sempre são negativas. Ou aparentam ser. Acontecem surpresas, pois ser Irma não significa necessariamente ser casta. Irenes via de regra lidam bem com um teste positivo: espiritualizam-se, viram vegetarianas, zen-budistas, fazem ioga, procuram o Santo Daime ou Thomas Green Morton. Lêem muito Louise Hay, e até se recusam a tomar AZT. Jaciras muitas vezes negam-se decididamente a fazer O Teste: têm uma certeza irracional de que daria positivo. O que nem sempre é verdade, visto que nada mais forte que santo de Jacira.
Vírus e suas saias-justas sem nesga à parte, na verdade a AIDS não mudou muito o comportamento das quatro. Elas são arquetípicas, atávicas, eternas.
Freud, por exemplo, na opinião geral era irmésima. Já Platão parece ter sido uma boa Irene. Ninguém colocaria em dúvida a jacirice de Oscar Wilde. Rimbaud, por sua vez, dá a impressão de ter começado como Jacira (quando chegou a Paris) para transformar-se – o que é raro – em Telma ( na Abissínia). Já Verlaine, teria sido uma Irma que se ajacirou.
Clássicas ou contemporâneas, nenhuma delas deve ser criticada por isso. À sua maneira, cada uma busca apenas essa coisa – o Amor: a Ancestral Sede Antropológica. O que pode acontecer (vide Rimbaud e Verlaine) são transmutações: Irenes que se ajaciram; Irmas (com tendência etílica) que viram Telmas; Telmas que – bem comidas – se irenizam ou mesmo ajaciram e etc. As mutações são tantas quanto as do I Ching. Há quem diga que essas novas têm até nome, como as Juremas (Jaciras que se tornam Irenes) ou Jandiras (Jaciras exacerbadas tipo Clóvis Bornay). Pode ser. Mas segundo nossos estudos, Jacira que é Jacira nasce Jacira, vive Jacira, morre Jacira. No fundo, achando o tempo todo que Telmas, Irmas e Irenes não passam de Jaciras tão loucas quanto elas. E talvez tenham razão.
Para começo de conversa, vamos à mais popular delas: a Jacira. Suficientemente conhecida, seja pelo personagem Jaci (que no romance Onde Andará Dulce Veiga?, de minha autoria, em dias de arco-íris recebe uma Oxumaré de frente e transforma-se na devastadora Jacira) ou pelos louváveis esforços do jornalista Eduardo Logullo em divulgá-la através da coluna Joyce Pascowitch, na Folha de São Paulo.
Das quatro irmãs, Jacira é aquela que todo mundo sabe que é homossexual, e ela mesma – que refere-se a si própria, seja qual for seu nome, sempre no feminino – acha ótimo ser. A Jacira usa roupas e cores chamativas, fala alto em público, geralmente anda em grupos de amigos também jaciras como ela, todas exercendo o velho hábito de “fechar”. Como diria Antônio Bivar, é uma pintosa. Uma pintosa assumida, despudorada. Sempre foi bicha, adora ser bicha e, maniqueísta como ela só, continua achando que a humanidade divide-se entre bofes e bichas, categoria esta última na qual se inclui. Com orgulho. Superinformada, embora não leia muito (existem Jaciras nigrinhas,analfabetas), ela sempre sabe – de orelhada – tudo que está em cartaz na cidade. Fofocas que insinuam viperinas dubiedades sobre a sexualidade alheia. Ao entrar em qualquer ambiente, uma Jacira sempre é imediatamente notada. O que satisfaz seu principal objetivo na vida: aparecer.
Bem menos luminosa e sem graça que a Jacira é: a Telma. Seu nome provavelmente originou-se daquela versão que Ney Matogrosso cantava: “Telma eu não sou gay/ o que falam de mim são maldades”, algo assim. Ao contrário da Jacira, a Telma é infelicíssima. Ela bebe. Bebe para esquecer que poderia ser homossexual. O problema é que, exatamente quando bebe, mais exatamente ainda depois do terceiro ou quarto uísque, é que a Telma transforma-se em homo. Embriagada, Telma ataca. E dramaticamente na manhã seguinte não lembra de nada. Aquela Jane Fonda de The Morning After perde. Embora a Telma fique muito erotizada em estado etílico, ela sempre nega que é, e negará até a morte. A única solução para uma Telma empedernida seria a psicanálise (que ela, a mais doente, acha que não precisa) ou parar de beber. O que, por tabela, significaria também parar de trepar. Pobres Telmas – categoria da qual países como o Brasil (vide academias de ginástica, futebol, chopadas com o pessoal da repartição, etc.) está cheio.
Menos trágica, mas ainda mais complexa, é a terceira irmã: a Irma. As Irmas não são exatamente infelizes – pelo menos, não tanto quanto as Telmas --, embora bem menos felizes que as Jaciras – que aparentam ser e realmente são felicíssimas. Irma é aquela que todo mundo jura que é, incluindo a mãe, a irmã e a esposa (Irmas casam muito) – mas ela mesma não sabe que é. Não sabe ou finge que não. A Irma dá quase tanta pinta quanto a Jacira, adora todo o folclore gay, de Carmen Miranda a show de travesti, passando por concurso de miss, Mae West, leopardos, James Dean e Marilyn Monroe. Estranhamente não “faz”. Quando solteira ninguém de sexo algum poderá afirmar – muito menos provar – que já fez sexo com uma Irma. Ou se fez, não prestou muito, pois há quem diga que Irmas costumam ser mal-dotadas, impotentes, dessas assim. Pode ser. A verdade é, quando casadas, as esposas das Irmas raramente apresentam um ar satisfeito. Sexualmente satisfeito.
Irmas costumam ser afáveis – ao contrário das problemáticas Telmas, introvertidas e depressivas. Adoram Jaciras, apesar destas gostarem de chamá-las, sobretudo em público e aos gritos, de “queridaaaaaaaa”. É que toda Jacira sabe – ou supõe – que no fundo toda Irma é tão Jacira quanto ela. Mas como as Telmas, Irmas fogem de definições. E ao contrário das Telmas, muito pecadoras, podem até morrer sem se atreverem a provar os prazeres do – para citar uma Jacira clássica – amor que não ousa dizer seu próprio etc.
Inicialmente limitada a essas três, a lenda recentemente incluiu a existência de uma quarta irmã: a Irene. Tão assumida quanto a Jacira, ao contrário desta, a Irene não dá pinta. Ela é, sabe que é, mas não exibe nem constrange. Pode até usar brinquinho na orelha, dar alguma rabanada menos comedida, ou mesmo – de brincadeira – referir-se a si mesma ou uma amiga no feminino. Mas a Irene é tranqüila. Geralmente analisada, culta. Bom nível social, numa palavra – Irene parece serena em relação à própria sexualidade. Que é diversificada. Podem ter longos casos, morar junto, ou viverem certas idiossincrasias eróticas. Só gostarem de working class, por exemplo, ou de adolescentes, choferes de táxi ou estudantes de Física. Ou de Irenes como elas: são as Irenes lésbicas, bastante comuns e conhecidas, literalmente, como gays. Telmas e Irmas escondem tudo da família, vizinhos e colegas, embora a Irma não tenha nada a esconder. Jaciras não escondem coisa alguma, explicitérrimas. Irenes deixam no ar: se alguém perceber, que perceba. Educação é básico para elas. Serenamente educadas, pois, às vezes até casam. Com mulheres.
Entre as quatro, desgraçadamente as relações são turbulentas. Jaciras, por exemplo, adoram seduzir Telmas. Estas (quando sóbrias, claro) têm medo pânico de Jaciras. Irenes por sua vez, nutrem uma espécie de carinho apiedado pelas desventuradas Telmas – e isso pode até resultar numa ardente noite de paixão entre ambas. Da qual naturalmente a Telma jamais lembrará, embora tenha feito horrores. O grande risco que toda Irene corre é apaixonar-se por uma Telma: comerá o pão que o diabo amassou, até entrar noutra. Com a Irma, de quem Irene também gosta, o risco não é tão grave: Irenes sabem que com Irmas não rola. E pode assim transformar tudo numa aparentemente saudável “amizade viril”: as duas fingindo, para usar a terminologia antiga, que são bofes. Há quem creia. Jaciras não simpatizam muito com Irenes, acham-nas “metidas”. A recíproca também é verdadeira: Irenes acham Jaciras pintosas demais, apesar de divertidas, folclóricas. E inconvenientes. E com a imperdoável mania de roubar namorados alheios. Irenes adoram namorar, pegar na mão, ir ao cinema, comer pizza, fim de semana em Ilhabela, ver TV – tudo isso together. Já Telmas e Irenes, entre si, são hostis. Talvez uma tema o julgamento da outra, vai saber. Irmas, no entanto, podem ceder aos insistentes encantos das Jaciras. Existem mesmo certas Irmas que algumas Jaciras – para ódio das Irenes – juram já ter feito. Jaciras, por sua vez, não raramente invejam Irenes, que sempre aparentam certa prosperidade (ao contrário das Telmas), com um cotêzinho decadente). Irenes mais neuróticas gostariam, de vez em quando, de serem confundidas com Irmas. E Telmas costumam sentir cegos, súbitos impulsos de desvendar suas almas abissais para os ouvidos compreensivos e ombros amigos das Irenes. Na verdade, Telmas, Irenes e Jaciras invejam um pouco aquela impressão (nem sempre verdadeira) de pureza que toda Irma passa. Assim como se estivesse por fora de qualquer grupo de risco.
A propósito, já que abordamos esse desagradável tema: embora aparentem ser as mais perigosas, no que se refere a riscos, e apesar de promíscuas (a promiscuidade esta implícita na jacirice). Jaciras cuidam-se muito. Verdade que com camisinhas nacionais, daquelas que arrebentam na hora H, na primeira golfada.
Irenes sempre carregam na frasqueira sortido estoque de poderosas camisinhas estrangeiras, compradas em suas viagens. Com a idade se tornam um tanto maníacas com higiene, meio obcecadas com safe sex. Certas Irenes não fazem há anos, vivem em permanente estado de nervos.
Já as Irmas como não fazem, ou quando fazem é tão escondido que ninguém sabe dizer como fazem, não se preocupam com isso.
O problema, novamente, são as Telmas. Impulsivas e atormentadas, nunca estão prevenidas. Jamais podem prever quando passarão do quarto uísque ou da décima quinta cerveja, e isso normalmente acontece em horas que as farmácias estão fechadas. Telmas, portanto, não carregam camisinha. Sequer as têm no banheiro, tamanha a negação. Enlouquecidas na cama (uma Telma com tesão vale por cem Jaciras), Telmas fazem coisas que Madonna (ídolo das Jaciras) duvidaria. Essa representa outra secreta tortura mental das Telmas: como às vezes realmente não lembram do que fizeram (por lapso etílico), têm sempre rabo preso e um medonho medo de serem positivas.
Irmas sempre são negativas. Ou aparentam ser. Acontecem surpresas, pois ser Irma não significa necessariamente ser casta. Irenes via de regra lidam bem com um teste positivo: espiritualizam-se, viram vegetarianas, zen-budistas, fazem ioga, procuram o Santo Daime ou Thomas Green Morton. Lêem muito Louise Hay, e até se recusam a tomar AZT. Jaciras muitas vezes negam-se decididamente a fazer O Teste: têm uma certeza irracional de que daria positivo. O que nem sempre é verdade, visto que nada mais forte que santo de Jacira.
Vírus e suas saias-justas sem nesga à parte, na verdade a AIDS não mudou muito o comportamento das quatro. Elas são arquetípicas, atávicas, eternas.
Freud, por exemplo, na opinião geral era irmésima. Já Platão parece ter sido uma boa Irene. Ninguém colocaria em dúvida a jacirice de Oscar Wilde. Rimbaud, por sua vez, dá a impressão de ter começado como Jacira (quando chegou a Paris) para transformar-se – o que é raro – em Telma ( na Abissínia). Já Verlaine, teria sido uma Irma que se ajacirou.
Clássicas ou contemporâneas, nenhuma delas deve ser criticada por isso. À sua maneira, cada uma busca apenas essa coisa – o Amor: a Ancestral Sede Antropológica. O que pode acontecer (vide Rimbaud e Verlaine) são transmutações: Irenes que se ajaciram; Irmas (com tendência etílica) que viram Telmas; Telmas que – bem comidas – se irenizam ou mesmo ajaciram e etc. As mutações são tantas quanto as do I Ching. Há quem diga que essas novas têm até nome, como as Juremas (Jaciras que se tornam Irenes) ou Jandiras (Jaciras exacerbadas tipo Clóvis Bornay). Pode ser. Mas segundo nossos estudos, Jacira que é Jacira nasce Jacira, vive Jacira, morre Jacira. No fundo, achando o tempo todo que Telmas, Irmas e Irenes não passam de Jaciras tão loucas quanto elas. E talvez tenham razão.
Marcadores: Dispersos
A: Você é meu companheiro.
B: Hein?
A: Você é meu companheiro, eu disse
B: O quê?
A: Eu disse que você é meu companheiro.
B: O que é que você quer dizer com isso?
A: Eu quero dizer que você é meu companheiro, Só isso.
B: Tem alguma coisa atrás, eu sinto.
A: Não. Não tem nada. Deixa de ser paranóico.
B: Não é disso que estou falando.
A: Você está falando do quê, então?
B: Estou falando disso que você falou agora.
A: Ah, sei. Que eu sou teu companheiro.
B: Não, não foi assim: que eu sou teu companheiro.
A: Você também sente?
B: O quê?
A: Que você é meu companheiro?
B: Não me confunda. Tem alguma coisa atrás, eu sei.
A: Atrás do companheiro?
B: È.
A: Não.
B: Você não sente?
A: Que você é meu companheiro? Sinto, sim. Claro que eu sinto. E você, não?
B: Não. Não é isso. Não é assim.
A: Você não quer que seja isso assim?
B: Não é que eu não queira: é que não é.
A: Não me confunda, por favor, não me confunda. No começo era claro.
B: Agora não?
A: Agora sim. Você quer?
B: O quê?
A: Ser meu companheiro.
B: Ser teu companheiro?
A: È.
B: Companheiro?
A: Sim.
B: Eu não sei. Por favor não me confunda. No começo era claro. Tem alguma coisa atrás, voc~e não vê?
A: eu vejo. Eu quero.
B: O quê?
A: Que você seja meu companheiro.
B: Hein?
A: Eu quero que você seja meu companheiro, eu disse.
B: O quê?
A: Eu disse que eu quero que você seja meu companheiro.
B: Você disse?
A: Eu disse?
B: Não, não foi assim: eu disse.
A: O quê?
B: Você é meu companheiro.
A: Hein?
(ad infinitum)
(In Morangos Mofados)
| Por ludelfuego
| 28.11.06 | 19:20.
B: Hein?
A: Você é meu companheiro, eu disse
B: O quê?
A: Eu disse que você é meu companheiro.
B: O que é que você quer dizer com isso?
A: Eu quero dizer que você é meu companheiro, Só isso.
B: Tem alguma coisa atrás, eu sinto.
A: Não. Não tem nada. Deixa de ser paranóico.
B: Não é disso que estou falando.
A: Você está falando do quê, então?
B: Estou falando disso que você falou agora.
A: Ah, sei. Que eu sou teu companheiro.
B: Não, não foi assim: que eu sou teu companheiro.
A: Você também sente?
B: O quê?
A: Que você é meu companheiro?
B: Não me confunda. Tem alguma coisa atrás, eu sei.
A: Atrás do companheiro?
B: È.
A: Não.
B: Você não sente?
A: Que você é meu companheiro? Sinto, sim. Claro que eu sinto. E você, não?
B: Não. Não é isso. Não é assim.
A: Você não quer que seja isso assim?
B: Não é que eu não queira: é que não é.
A: Não me confunda, por favor, não me confunda. No começo era claro.
B: Agora não?
A: Agora sim. Você quer?
B: O quê?
A: Ser meu companheiro.
B: Ser teu companheiro?
A: È.
B: Companheiro?
A: Sim.
B: Eu não sei. Por favor não me confunda. No começo era claro. Tem alguma coisa atrás, voc~e não vê?
A: eu vejo. Eu quero.
B: O quê?
A: Que você seja meu companheiro.
B: Hein?
A: Eu quero que você seja meu companheiro, eu disse.
B: O quê?
A: Eu disse que eu quero que você seja meu companheiro.
B: Você disse?
A: Eu disse?
B: Não, não foi assim: eu disse.
A: O quê?
B: Você é meu companheiro.
A: Hein?
(ad infinitum)
(In Morangos Mofados)
Marcadores: Morangos Mofados
"Não, meu bem, não adianta bancar o distante
lá vem o amor nos dilacerar de novo..."
Andei pensando coisas. O que é raro, dirão os irônicos. Ou "o que foi?" - perguntariam os complacentes. Para estes últimos, quem sabe, escrevo. E repito: andei pensando coisas sobre amor, essa palavra sagrada. O que mais me deteve, do que pensei, era assim: a perda do amor é igual à perda da morte. Só que dói mais. Quando morre alguém que você ama, você se dói inteiro(a)- mas a morte é inevitável, portanto normal. Quando você perde alguém que você ama, e esse amor - essa pessoa - continua vivo(a), há então uma morte anormal. O NUNCA MAIS de não ter quem se ama torna-se tão irremediável quanto não ter NUNCA MAIS quem morreu. E dói mais fundo- porque se poderia ter, já que está vivo(a). Mas não se tem, nem se terá, quando o fim do amor é: NEVER.
Pensando nisso, pensei um pouco depois em Boy George: meu-amor-me-abandonou-e-sem-ele-eu-nao-vivo-então-quero-morrer-drogado. Lembrei de John Hincley Jr., apaixonado por Jodie Foster, e que escreveu a ela, em 1981: "Se você não me amar, eu matarei o presidente". E deu um tiro em Ronald Regan. A frase de Hincley é a mais significativa frase de amor do século XX. A atitude de Boy George - se não houver algo de publicitário nisso - é a mais linda atitude de amor do século XX. Penso em Werther, de Goethe. E acho lindo.
No século XX não se ama. Ninguém quer ninguém. Amar é out, é babaca, é careta. Embora persistam essas estranhas fronteiras entre paixão e loucura, entre paixão e suicídio. Não compreendo como querer o outro possa tornar-se mais forte do que querer a si próprio. Não compreendo como querer o outro possa pintar como saída de nossa solidão fatal. Mentira:compreendo sim. Mesmo consciente de que nasci sozinho do útero de minha mãe,berrando de pavor para o mundo insano,e que embarcarei sozinho num caixão rumo a sei lá o quê, além do pó.O que ou quem cruzo entre esses dois portos gelados da solidão é mera viagem: véu de maya,ilusão,passatempo.E exigimos o terno do perecível,loucos.
Depois, pensei também em Adèle Hugo, filha de Victor Hugo. A Adèle H. de François Truffaut, vivida por Isabelle Adjani. Adèle apaixonou-se por um homem. Ele não a queria. Ela o seguiu aos Estados Unidos, ao Caribe, escrevendo cartas jamais respondidas, rastejando por amor. Enlouqueceu mendigando a atenção dele. Certo dia, em Barbados, esbarraram na rua. Ele a olhou. Ela, louca de amor por ele, não o reconheceu. Ele havia deixado de ser ele: transformara-se em símbolosem face nem corpo da paixão e da loucura dela. Não era mais ele: ela amava alguém que não existia mais, objetivamente. Existia somente dentro dela. Adèle morreu no hospício, escrevendo cartas (a ele: "É para você, para você que eu escrevo" - dizia Ana C.) numa língua que, até hoje, ninguém conseguiu decifrar.
Andei pensando em Adèle H., em Boy George e em John Hincley Jr. Andei pensando nesses extremos da paixão, quando te amo tanto e tão além do meu ego que - se você não me ama: eu enlouqueço, eu me suicido com heroína ou eu mato o presidente. Me veio um fundo desprezo pela minha/nossa dor mediana, pela minha/nossa rejeição amorosa desempenhando papéis tipo sou-forte-seguro-essa-sou-mais-eu. Que imensa miséria o grande amor - depois do não, depois do fim - reduzir-se a duas ou três frases frias ou sarcásticas. Num bar qualquer, numa esquina da vida.
Ai que dor: que dor sentida e portuguesa de Fernando Pessoa - muito mais sábio -, que nunca caiu nessas ciladas. Pois como já dizia Drummond, "o amor car(o,a,) colega esse não consola nunca de núncaras". E apesar de tudo eu penso sim, eu digo sim, eu quero Sins.
(in Pequenas Epifanias)
lá vem o amor nos dilacerar de novo..."
Andei pensando coisas. O que é raro, dirão os irônicos. Ou "o que foi?" - perguntariam os complacentes. Para estes últimos, quem sabe, escrevo. E repito: andei pensando coisas sobre amor, essa palavra sagrada. O que mais me deteve, do que pensei, era assim: a perda do amor é igual à perda da morte. Só que dói mais. Quando morre alguém que você ama, você se dói inteiro(a)- mas a morte é inevitável, portanto normal. Quando você perde alguém que você ama, e esse amor - essa pessoa - continua vivo(a), há então uma morte anormal. O NUNCA MAIS de não ter quem se ama torna-se tão irremediável quanto não ter NUNCA MAIS quem morreu. E dói mais fundo- porque se poderia ter, já que está vivo(a). Mas não se tem, nem se terá, quando o fim do amor é: NEVER.
Pensando nisso, pensei um pouco depois em Boy George: meu-amor-me-abandonou-e-sem-ele-eu-nao-vivo-então-quero-morrer-drogado. Lembrei de John Hincley Jr., apaixonado por Jodie Foster, e que escreveu a ela, em 1981: "Se você não me amar, eu matarei o presidente". E deu um tiro em Ronald Regan. A frase de Hincley é a mais significativa frase de amor do século XX. A atitude de Boy George - se não houver algo de publicitário nisso - é a mais linda atitude de amor do século XX. Penso em Werther, de Goethe. E acho lindo.
No século XX não se ama. Ninguém quer ninguém. Amar é out, é babaca, é careta. Embora persistam essas estranhas fronteiras entre paixão e loucura, entre paixão e suicídio. Não compreendo como querer o outro possa tornar-se mais forte do que querer a si próprio. Não compreendo como querer o outro possa pintar como saída de nossa solidão fatal. Mentira:compreendo sim. Mesmo consciente de que nasci sozinho do útero de minha mãe,berrando de pavor para o mundo insano,e que embarcarei sozinho num caixão rumo a sei lá o quê, além do pó.O que ou quem cruzo entre esses dois portos gelados da solidão é mera viagem: véu de maya,ilusão,passatempo.E exigimos o terno do perecível,loucos.
Depois, pensei também em Adèle Hugo, filha de Victor Hugo. A Adèle H. de François Truffaut, vivida por Isabelle Adjani. Adèle apaixonou-se por um homem. Ele não a queria. Ela o seguiu aos Estados Unidos, ao Caribe, escrevendo cartas jamais respondidas, rastejando por amor. Enlouqueceu mendigando a atenção dele. Certo dia, em Barbados, esbarraram na rua. Ele a olhou. Ela, louca de amor por ele, não o reconheceu. Ele havia deixado de ser ele: transformara-se em símbolosem face nem corpo da paixão e da loucura dela. Não era mais ele: ela amava alguém que não existia mais, objetivamente. Existia somente dentro dela. Adèle morreu no hospício, escrevendo cartas (a ele: "É para você, para você que eu escrevo" - dizia Ana C.) numa língua que, até hoje, ninguém conseguiu decifrar.
Andei pensando em Adèle H., em Boy George e em John Hincley Jr. Andei pensando nesses extremos da paixão, quando te amo tanto e tão além do meu ego que - se você não me ama: eu enlouqueço, eu me suicido com heroína ou eu mato o presidente. Me veio um fundo desprezo pela minha/nossa dor mediana, pela minha/nossa rejeição amorosa desempenhando papéis tipo sou-forte-seguro-essa-sou-mais-eu. Que imensa miséria o grande amor - depois do não, depois do fim - reduzir-se a duas ou três frases frias ou sarcásticas. Num bar qualquer, numa esquina da vida.
Ai que dor: que dor sentida e portuguesa de Fernando Pessoa - muito mais sábio -, que nunca caiu nessas ciladas. Pois como já dizia Drummond, "o amor car(o,a,) colega esse não consola nunca de núncaras". E apesar de tudo eu penso sim, eu digo sim, eu quero Sins.
(in Pequenas Epifanias)
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Porto, 22 de dezembro de 1979
Zézim,
cheguei hoje de tardezinha da praia, fiquei lá uns cinco dias, completamente só (ótimo!), e encontrei tUa carta. Esses dias que tô aqui, dez, e já parece um mês, não paro de pensar em você. Tou preocupado, Zézim, e quero te falar disso. Fica quietO e ouve, ou lê, você deve estar cheio de vibrações adeliopradianas e, portantO, todo atento aos pequenos mistérios. É carta longa, vai te preparando, porque eu já me preparei por aqui com uma xícara de chá Mu, almofada sob a bunda e um maço de Galaxy, a decisão pseudo-inteligente.
Seguinte, das poucas linhas da tua carta, 12 frases terminam com ponto de interrogação. São, portanto, perguntas. Respondo a algumas. A solução, concordo, não está na temperança. Nunca esteve nem vai estar. Sempre achei que os dois tipos mais fascinantes de pessoas são as putas e os santos, e ambos são inteiramente destemperados, certo? Não há que abster-se: há que comer desse banquete. Zézim, ninguém te ensinará os caminhos. Ninguém me ensinará os caminhos. Ninguém nunca me ensinou caminho nenhum, nem a você, suspeito. Avanço às cegas. Não há caminhos a serem ensinados, nem aprendidos. Na verdade, não há caminhos. E lembrei duns versos dum poeta peruano (será Vallejo? não estou certo): “Caminante, no hay camino. Pero el camino se hace ai anda”.
Mais: já pensei, sim, se Deus pifar. E pifará, pifará porque você diz ”Deus é minha última esperança". Zézim, eu te quero tanto, não me ache insuportavelmente pretensioso dizendo essas coisas, mas ocê parece cabeça-dura demais. Zézim, não há última esperança, a não ser a morte. Quem procura não acha. É preciso estar distraído e não esperando absolutamente nada. Não há nada a ser esperado. Nem desesperado. Tudo é maya / ilusão. Ou samsara / círculo vicioso.
Certo, eu li demais zen-budismo, eu fiz ioga demais, eu tenho essa coisa de ficar mexendo com a magia, eu li demais Krishnamurti, sabia? E também Allan Watts, e D. T. Suzuki, e isso freqüentem ente parece um pouco ridículo às pessoas. Mas, dessas coisas, acho que tirei pra meu gasto pessoal pelo menos uma certa tranqüilidade.
Você me pergunta: que que eu faço? Não faça, eu digo. Não faça nada, fazendo tUdo, acordando todo dia, passando café, arrumando a cama, dando uma volta na quadra, ouvindo um som, alimentando a Pobre. Você tá ansioso e isso é muito pouco religioso. Pasme: acho que você é muito pouco religioso. Mesmo. Você deixou de queimar fumo e foi procurar Deus. Que é isso? Tá substituindo a maconha por Jesusinho? Zézim, vou te falar um lugar-comum desprezível, agora, lá vai: você não vai encontrar caminho nenhum fora de você. E você sabe disso. O caminho é in, não off. Você não vai encontrá-lo em Deus nem na maconha, nem mudando para Nova York, nem.
Você quer escrever. Certo, mas você quer escrever? Ou todo mundo te cobra e você acha que tem que escrever? Sei que não é simplório assim, e tem mil coisas outras envolvidas nisso. Mas de repente você pode estar confuso porque fica todo mundo te cobrando, como é que é, e a sua obra? Cadê o romance, quedê a novela, quedê a peça teatral? DANEM-SE, demônios. Zézim, você só tem que escrever se isso vier de dentro pra fora, caso contrário não vai prestar, eu tenho certeza, você poderá enganar a alguns, mas não enganaria a si e, portanto, não preencheria esse oco. Não tem demônio nenhum se interpondo entre você e a máquina. O que tem é uma questão de honestidade básica. Essa perguntinha: você quer mesmo escrever? Isolando as cobranças, você continua querendo? Então vai, remexe fundo, como diz um poeta gaúcho, Gabriel de Britto Velho, "apaga o cigarro no peito / diz pra ti o que não gostas de ouvir / diz tudo". Isso é escrever. Tira sangue com as unhas. E não importa a forma, não importa a "função social", nem nada, não importa que, a princípio, seja apenas uma espécie de auto-exorcismo. Mas tem que sangrar a-bun-dan-te-men-te. Você não está com medo dessa entrega? Porque dói, dói, dói. É de uma solidão assustadora. A única recompensa é aquilo que Laing diz que é a única coisa que pode nos salvar da loucura, do suicídio, da auto-anulação: um sentimento de glória interior. Essa expressão é fundamental na minha vida.
Eu conheci razoavelmente bem Clarice Lispector. Ela era infelicíssima, Zézim. A primeira vez que conversamos eu chorei depois a noite inteira, porque ela inteirinha me doía, porque parecia se doer também, de tanta compreensão sangrada de tudo. Te falo nela porque Clarice, pra mim, é o que mais conheço de GRANDIOSO, literariamente falando. E morreu sozinha, sacaneada, desamada, incompreendida, com fama de "meio doida”. Porque se entregou completamente ao seu trabalho de criar. Mergulhou na sua própria trip e foi inventando caminhos, na maior solidão. Como Joyce. Como Kafka, louco e só lá em Praga. Como Van Gogh. Como Artaud. Ou Rimbaud.
É esse tipo de criador que você quer ser? Então entregue-se e pague o preço do pato. Que, freqüentemente, é muito caro. Ou você quer fazer uma coisa bem-feitinha pra ser lançada com salgadinhos e uísque suspeito numa tarde amena na CultUra, com todo mundo conhecido fazendo a maior festa? Eu acho que não. Eu conheci / conheço muita gente assim. E não dou um tostão por eles todos. A você eu amo. Raramente me engano.
Zézim, remexa na memória, na infância, nos sonhos, nas tesões, nos fracassos, nas mágoas, nos delírios mais alucinados, nas esperanças mais descabidas, na fantasia mais desgalopada, nas vontades mais homicidas, no mais aparentemente inconfessável, nas culpas mais terríveis, nos lirismos mais idiotas, na confusão mais generalizada, no fundo do poço sem fundo do inconsciente: é lá que está o seu texto. Sobretudo, não se angustie procurando-o: ele vem até você, quando você e ele estiverem prontos. Cada um tem seus processos, você precisa entender os seus. De repente, isso que parece ser uma dificuldade enorme pode estar sendo simplesmente o processo de gestação do sub ou do inconsciente.
E ler, ler é alimento de quem escreve. Várias vezes você me disse que não conseguia mais ler. Que não gostava mais de ler. Se não gostar de ler, como vai gostar de escrever? Ou escreva então para destruir o texto, mas alimente-se. Fartamente. Depois vomite. Pra mim, e isso pode ser muito pessoal, escrever é enfiar um dedo na garganta. Depois, claro, você peneira essa gosma, amolda-a, transforma. Pode sair até uma flor. Mas o momento decisivo é o dedo na garganta. E eu acho — e posso estar enganado — que é isso que você não tá conseguindo fazer. Como é que é? Vai ficar com essa náusea seca a vida toda? E não fique esperando que alguém faça isso por você. Ocê sabe, na hora do porre brabo, não há nenhum dedo alheio disposto a entrar na garganta da gente.
Ou então vá fazer análise. Falo sério. Ou natação. Ou dança moderna. Ou macrobiótica radical. Qualquer coisa que te cuide da cabeça ou/ e do corpo e, ao mesmo tempo, te distraia dessa obsessão. Até que ela se resolva, no braço ou por si mesma, não importa. Só não quero te ver assim engasgado, meu amigo querido.
Pausa.
Quanto a mim, te falava desses dias na praia. Pois olha, acordava às seis, sete da manhã, ia pra praia, corria uns quatro quilômetros, fazia exercícios, lá pelas dez voltava, ia cozinhar meu arroz. Comia, descansava um pouco, depois sentava e escrevia. Ficava exausto. Fiquei exausto. Passei os dias falando sozinho, mergulhado num texto, consegui arrancá-lo. Era um farrapo que tinha me nascido em setembro, em Sampa. Aí nasceu, sem que eu planejasse. Estava pronto na minha cabeça. Chama-se Morangos mofados, vai levar uma epígrafe de Lennon & McCartney, tô aqui com a letra de Strawberry fields forever pra traduzir. Zézim, eu acho que tá tão bom. Fiquei completamente cego enquanto escrevia, a personagem (um publicitário, ex-hippie, que cisma que tem câncer na alma, ou uma lesão no cérebro provocada por excessos de drogas, em velhos carnavais, e o sintoma — real — é um persistente gosto de morangos mofados na boca) tomou o freio nos dentes e se recusou a morrer ou a enlouquecer no fim. Tem um fim lindo, positivo, alegre. Eu fiquei besta. O fim se meteu no texto e não admitiu que eu interferisse. Tão estranho. Às vezes penso que, quando escrevo, sou apenas um canal transmissor, digamos assim, entre duas coisas totalmente alheias a mim, não sei se você entende. Um canal transmissor com um certo poder, ou capacidade, seletivo, sei lá. Hoje pela manhã não fui à praia e dei o conto por concluído, já acho que na quarta versão. Mas vou deixá-lo dormir pelo menos um mês, aí releio — porque sempre posso estar enganado, e os meus olhos de agora serem incapazes de verem certas coisas.
Aí tomei notas, muitas notas, pra outras coisas. A cabeça ferve. Que bom, Zézim, que bom, a coisa não morreu, e é só isso que eu quero, vou pedir demissão de todos os empregos pela vida afora quando sentir que isso, a literatura, que é só o que tenho, estiver sendo ameaçada como estava, na Nova.
E li. Descobri que ADORO DALTON TREVISAN. Menino, fiquei dando gritos enquanto lia A faca no coração, tem uns contos incríveis, e tão absolutamente lapidados, reduzidos ao essencial cintilante, sobretudo um, chamado "Mulher em chamas". Li quase todo o Ivan Ângelo, também gosto muito, principalmente de O verdadeiro filho da puta, mas aí o conto-título começou a me dar sono e parei. Mas ele tem um texto, ah se tem. E como. Mas o melhor que li nesses dias não foi ficção. Foi um pequeno artigo de Nirlando Beirão na última IstoÉ (do dia 19 de dezembro, please, leia), chamado "O recomeço do sonho". Li várias vezes. Na primeira, chorei de pura emoção - porque ele reabilita todas as vivências que eu tive nesta década. Claro que ele fala de uma geração inteira, mas daí saquei, meu Deus, como sou típico, como sou estereótipo da minha geração. Termina com uma alegria total: reinstaurando o sonho. É lindo demais. É atrevido demais. É novo, sadio. Deu uma luz na minha cabeça, sabe quando a coisa te ilumina? Assim como se ele formulasse o que eu, confusamente, estava apenas tateando. Leia, me diga
o que acha. Eu não me segurei e escrevi uma carta a ele dizendo isso. Não sou amigo dele, só conhecido, mas acho que a gente deve dizer.
Escrevendo, eu falo pra caralho, não é?
Aqui em casa tá bom. É sempre um grande astral, não adianta eu criticar. O astral ótimo deles independe da opinião que eu possa ter a respeito, não é fantástico? A casa tá meio em obras, Nair mandou construir uma espécie de jardim de inverno nos fundos, vai ligar com a sala. Hoje estava pUta porque o Felipe não vai mais fazer vestibular: foi reprovado novamente no 3º colegial. Minha irmã Cláudia ganhou uma Caloi 10 de Natal do noivo (Jorge, lembra?), e eu me apossei dela e hoje mesmo dei voltas incríveis pelo Menino Deus(?). Márcia tá bonita, mais adultinha, assim com um ar meio da Mila. Zaél cozinhando, hoje faz arroz com passas para o jantar.
Povos outros, nem vi. Soube que A comunidade está em cartaz ainda e tenho granas pra receber. Amanhã acho que vou lá.
Tô tão só, Zézim. Tão eu-eu-comigo, porque o meu eu com a família é meio de raspão. Tá bom assim, não tenho mais medo nenhum de nenhuma emoção ou fantasia minha, sabe como? Os dias de solidão total na praia foram principalmente sadios.
Ocê viu a Nova? Tá lá o seu Chico, tartamudeante, e uma foto muito engraçada de toda a redação — eu com cara de "não me comprometam, não tenho nada a ver com isso". Dê uma olhada. Falar nisso, Juan passou por aqui, eu tava na praia, falou com Nair por telefone, estava descendo de um ônibus e subindo noUtro. Deixou dito que volta dia três de janeiro ou fevereiro, Nair não lembra, pra ficar uns dias. Ficará? E nada acontecerá. Uma vez me disseram que eu jamais amaria dum jeito que "desse certo", caso contrário deixaria de escrever. Pode ser. Pequenas magias. Quando terminei Morangos mofados, escrevi embaixo, sem querer, "criação é coisa sagrada”. É mais ou menos o que diz o Chico no fim daquela matéria. É misterioso, sagrado, maravilhoso
Zézim, me dê notícias, muitas, e rápido. Eu não pensei que ia sentir tanta falta docê. Não sei quanto tempo ainda fico, mas vou ficando. Quero escrever mais, voltar à praia, fazer os documentos todos. Até pensei: mais adiante, quando já estivesse chegando a hora de eu voltar, você não queria vir? A gente faria o mesmo esquema de novo, voltaríamos juntos. A família te ama perdidamente, hoje pintaram até uns salseirinhos rápidos porque todo mundo queria ler a matéria do Chico ao mesmo tempo.
Let me take you down
cause I’m going to strawberry fields
nothing is real, and nothing to get hung about
strawberry fields forever
strawberry fields forever
strawberry fields forever
Isso é o que te desejo na nova década. Zézim, vamos lá. Sem últimas esperanças. Temos esperanças novinhas em folha, todos os dias. E nenhuma, fora de viver cada vez mais plenamente, mais confortáveis dentro do que a gente, sem culpa, é. Let me take you: I’m going to strawberry fields.
Me conta da Adélia.
E te cuida, por favor, te cuida bem. Qualquer poço mais escuro, disque 0512-33-41-97. Eu posso pelo menos ouvir. Não leve a mal alguma dureza dita. É porque te quero claro. Citando Arantes, pra terminar: "Eu quero te ver com saúde I sempre de bom humor I e de boa vontade".
Um beijo do
Caio
PS — Abraço pro Nello. Pra Ana Matos, e Nino também.
Zézim,
cheguei hoje de tardezinha da praia, fiquei lá uns cinco dias, completamente só (ótimo!), e encontrei tUa carta. Esses dias que tô aqui, dez, e já parece um mês, não paro de pensar em você. Tou preocupado, Zézim, e quero te falar disso. Fica quietO e ouve, ou lê, você deve estar cheio de vibrações adeliopradianas e, portantO, todo atento aos pequenos mistérios. É carta longa, vai te preparando, porque eu já me preparei por aqui com uma xícara de chá Mu, almofada sob a bunda e um maço de Galaxy, a decisão pseudo-inteligente.
Seguinte, das poucas linhas da tua carta, 12 frases terminam com ponto de interrogação. São, portanto, perguntas. Respondo a algumas. A solução, concordo, não está na temperança. Nunca esteve nem vai estar. Sempre achei que os dois tipos mais fascinantes de pessoas são as putas e os santos, e ambos são inteiramente destemperados, certo? Não há que abster-se: há que comer desse banquete. Zézim, ninguém te ensinará os caminhos. Ninguém me ensinará os caminhos. Ninguém nunca me ensinou caminho nenhum, nem a você, suspeito. Avanço às cegas. Não há caminhos a serem ensinados, nem aprendidos. Na verdade, não há caminhos. E lembrei duns versos dum poeta peruano (será Vallejo? não estou certo): “Caminante, no hay camino. Pero el camino se hace ai anda”.
Mais: já pensei, sim, se Deus pifar. E pifará, pifará porque você diz ”Deus é minha última esperança". Zézim, eu te quero tanto, não me ache insuportavelmente pretensioso dizendo essas coisas, mas ocê parece cabeça-dura demais. Zézim, não há última esperança, a não ser a morte. Quem procura não acha. É preciso estar distraído e não esperando absolutamente nada. Não há nada a ser esperado. Nem desesperado. Tudo é maya / ilusão. Ou samsara / círculo vicioso.
Certo, eu li demais zen-budismo, eu fiz ioga demais, eu tenho essa coisa de ficar mexendo com a magia, eu li demais Krishnamurti, sabia? E também Allan Watts, e D. T. Suzuki, e isso freqüentem ente parece um pouco ridículo às pessoas. Mas, dessas coisas, acho que tirei pra meu gasto pessoal pelo menos uma certa tranqüilidade.
Você me pergunta: que que eu faço? Não faça, eu digo. Não faça nada, fazendo tUdo, acordando todo dia, passando café, arrumando a cama, dando uma volta na quadra, ouvindo um som, alimentando a Pobre. Você tá ansioso e isso é muito pouco religioso. Pasme: acho que você é muito pouco religioso. Mesmo. Você deixou de queimar fumo e foi procurar Deus. Que é isso? Tá substituindo a maconha por Jesusinho? Zézim, vou te falar um lugar-comum desprezível, agora, lá vai: você não vai encontrar caminho nenhum fora de você. E você sabe disso. O caminho é in, não off. Você não vai encontrá-lo em Deus nem na maconha, nem mudando para Nova York, nem.
Você quer escrever. Certo, mas você quer escrever? Ou todo mundo te cobra e você acha que tem que escrever? Sei que não é simplório assim, e tem mil coisas outras envolvidas nisso. Mas de repente você pode estar confuso porque fica todo mundo te cobrando, como é que é, e a sua obra? Cadê o romance, quedê a novela, quedê a peça teatral? DANEM-SE, demônios. Zézim, você só tem que escrever se isso vier de dentro pra fora, caso contrário não vai prestar, eu tenho certeza, você poderá enganar a alguns, mas não enganaria a si e, portanto, não preencheria esse oco. Não tem demônio nenhum se interpondo entre você e a máquina. O que tem é uma questão de honestidade básica. Essa perguntinha: você quer mesmo escrever? Isolando as cobranças, você continua querendo? Então vai, remexe fundo, como diz um poeta gaúcho, Gabriel de Britto Velho, "apaga o cigarro no peito / diz pra ti o que não gostas de ouvir / diz tudo". Isso é escrever. Tira sangue com as unhas. E não importa a forma, não importa a "função social", nem nada, não importa que, a princípio, seja apenas uma espécie de auto-exorcismo. Mas tem que sangrar a-bun-dan-te-men-te. Você não está com medo dessa entrega? Porque dói, dói, dói. É de uma solidão assustadora. A única recompensa é aquilo que Laing diz que é a única coisa que pode nos salvar da loucura, do suicídio, da auto-anulação: um sentimento de glória interior. Essa expressão é fundamental na minha vida.
Eu conheci razoavelmente bem Clarice Lispector. Ela era infelicíssima, Zézim. A primeira vez que conversamos eu chorei depois a noite inteira, porque ela inteirinha me doía, porque parecia se doer também, de tanta compreensão sangrada de tudo. Te falo nela porque Clarice, pra mim, é o que mais conheço de GRANDIOSO, literariamente falando. E morreu sozinha, sacaneada, desamada, incompreendida, com fama de "meio doida”. Porque se entregou completamente ao seu trabalho de criar. Mergulhou na sua própria trip e foi inventando caminhos, na maior solidão. Como Joyce. Como Kafka, louco e só lá em Praga. Como Van Gogh. Como Artaud. Ou Rimbaud.
É esse tipo de criador que você quer ser? Então entregue-se e pague o preço do pato. Que, freqüentemente, é muito caro. Ou você quer fazer uma coisa bem-feitinha pra ser lançada com salgadinhos e uísque suspeito numa tarde amena na CultUra, com todo mundo conhecido fazendo a maior festa? Eu acho que não. Eu conheci / conheço muita gente assim. E não dou um tostão por eles todos. A você eu amo. Raramente me engano.
Zézim, remexa na memória, na infância, nos sonhos, nas tesões, nos fracassos, nas mágoas, nos delírios mais alucinados, nas esperanças mais descabidas, na fantasia mais desgalopada, nas vontades mais homicidas, no mais aparentemente inconfessável, nas culpas mais terríveis, nos lirismos mais idiotas, na confusão mais generalizada, no fundo do poço sem fundo do inconsciente: é lá que está o seu texto. Sobretudo, não se angustie procurando-o: ele vem até você, quando você e ele estiverem prontos. Cada um tem seus processos, você precisa entender os seus. De repente, isso que parece ser uma dificuldade enorme pode estar sendo simplesmente o processo de gestação do sub ou do inconsciente.
E ler, ler é alimento de quem escreve. Várias vezes você me disse que não conseguia mais ler. Que não gostava mais de ler. Se não gostar de ler, como vai gostar de escrever? Ou escreva então para destruir o texto, mas alimente-se. Fartamente. Depois vomite. Pra mim, e isso pode ser muito pessoal, escrever é enfiar um dedo na garganta. Depois, claro, você peneira essa gosma, amolda-a, transforma. Pode sair até uma flor. Mas o momento decisivo é o dedo na garganta. E eu acho — e posso estar enganado — que é isso que você não tá conseguindo fazer. Como é que é? Vai ficar com essa náusea seca a vida toda? E não fique esperando que alguém faça isso por você. Ocê sabe, na hora do porre brabo, não há nenhum dedo alheio disposto a entrar na garganta da gente.
Ou então vá fazer análise. Falo sério. Ou natação. Ou dança moderna. Ou macrobiótica radical. Qualquer coisa que te cuide da cabeça ou/ e do corpo e, ao mesmo tempo, te distraia dessa obsessão. Até que ela se resolva, no braço ou por si mesma, não importa. Só não quero te ver assim engasgado, meu amigo querido.
Pausa.
Quanto a mim, te falava desses dias na praia. Pois olha, acordava às seis, sete da manhã, ia pra praia, corria uns quatro quilômetros, fazia exercícios, lá pelas dez voltava, ia cozinhar meu arroz. Comia, descansava um pouco, depois sentava e escrevia. Ficava exausto. Fiquei exausto. Passei os dias falando sozinho, mergulhado num texto, consegui arrancá-lo. Era um farrapo que tinha me nascido em setembro, em Sampa. Aí nasceu, sem que eu planejasse. Estava pronto na minha cabeça. Chama-se Morangos mofados, vai levar uma epígrafe de Lennon & McCartney, tô aqui com a letra de Strawberry fields forever pra traduzir. Zézim, eu acho que tá tão bom. Fiquei completamente cego enquanto escrevia, a personagem (um publicitário, ex-hippie, que cisma que tem câncer na alma, ou uma lesão no cérebro provocada por excessos de drogas, em velhos carnavais, e o sintoma — real — é um persistente gosto de morangos mofados na boca) tomou o freio nos dentes e se recusou a morrer ou a enlouquecer no fim. Tem um fim lindo, positivo, alegre. Eu fiquei besta. O fim se meteu no texto e não admitiu que eu interferisse. Tão estranho. Às vezes penso que, quando escrevo, sou apenas um canal transmissor, digamos assim, entre duas coisas totalmente alheias a mim, não sei se você entende. Um canal transmissor com um certo poder, ou capacidade, seletivo, sei lá. Hoje pela manhã não fui à praia e dei o conto por concluído, já acho que na quarta versão. Mas vou deixá-lo dormir pelo menos um mês, aí releio — porque sempre posso estar enganado, e os meus olhos de agora serem incapazes de verem certas coisas.
Aí tomei notas, muitas notas, pra outras coisas. A cabeça ferve. Que bom, Zézim, que bom, a coisa não morreu, e é só isso que eu quero, vou pedir demissão de todos os empregos pela vida afora quando sentir que isso, a literatura, que é só o que tenho, estiver sendo ameaçada como estava, na Nova.
E li. Descobri que ADORO DALTON TREVISAN. Menino, fiquei dando gritos enquanto lia A faca no coração, tem uns contos incríveis, e tão absolutamente lapidados, reduzidos ao essencial cintilante, sobretudo um, chamado "Mulher em chamas". Li quase todo o Ivan Ângelo, também gosto muito, principalmente de O verdadeiro filho da puta, mas aí o conto-título começou a me dar sono e parei. Mas ele tem um texto, ah se tem. E como. Mas o melhor que li nesses dias não foi ficção. Foi um pequeno artigo de Nirlando Beirão na última IstoÉ (do dia 19 de dezembro, please, leia), chamado "O recomeço do sonho". Li várias vezes. Na primeira, chorei de pura emoção - porque ele reabilita todas as vivências que eu tive nesta década. Claro que ele fala de uma geração inteira, mas daí saquei, meu Deus, como sou típico, como sou estereótipo da minha geração. Termina com uma alegria total: reinstaurando o sonho. É lindo demais. É atrevido demais. É novo, sadio. Deu uma luz na minha cabeça, sabe quando a coisa te ilumina? Assim como se ele formulasse o que eu, confusamente, estava apenas tateando. Leia, me diga
o que acha. Eu não me segurei e escrevi uma carta a ele dizendo isso. Não sou amigo dele, só conhecido, mas acho que a gente deve dizer.
Escrevendo, eu falo pra caralho, não é?
Aqui em casa tá bom. É sempre um grande astral, não adianta eu criticar. O astral ótimo deles independe da opinião que eu possa ter a respeito, não é fantástico? A casa tá meio em obras, Nair mandou construir uma espécie de jardim de inverno nos fundos, vai ligar com a sala. Hoje estava pUta porque o Felipe não vai mais fazer vestibular: foi reprovado novamente no 3º colegial. Minha irmã Cláudia ganhou uma Caloi 10 de Natal do noivo (Jorge, lembra?), e eu me apossei dela e hoje mesmo dei voltas incríveis pelo Menino Deus(?). Márcia tá bonita, mais adultinha, assim com um ar meio da Mila. Zaél cozinhando, hoje faz arroz com passas para o jantar.
Povos outros, nem vi. Soube que A comunidade está em cartaz ainda e tenho granas pra receber. Amanhã acho que vou lá.
Tô tão só, Zézim. Tão eu-eu-comigo, porque o meu eu com a família é meio de raspão. Tá bom assim, não tenho mais medo nenhum de nenhuma emoção ou fantasia minha, sabe como? Os dias de solidão total na praia foram principalmente sadios.
Ocê viu a Nova? Tá lá o seu Chico, tartamudeante, e uma foto muito engraçada de toda a redação — eu com cara de "não me comprometam, não tenho nada a ver com isso". Dê uma olhada. Falar nisso, Juan passou por aqui, eu tava na praia, falou com Nair por telefone, estava descendo de um ônibus e subindo noUtro. Deixou dito que volta dia três de janeiro ou fevereiro, Nair não lembra, pra ficar uns dias. Ficará? E nada acontecerá. Uma vez me disseram que eu jamais amaria dum jeito que "desse certo", caso contrário deixaria de escrever. Pode ser. Pequenas magias. Quando terminei Morangos mofados, escrevi embaixo, sem querer, "criação é coisa sagrada”. É mais ou menos o que diz o Chico no fim daquela matéria. É misterioso, sagrado, maravilhoso
Zézim, me dê notícias, muitas, e rápido. Eu não pensei que ia sentir tanta falta docê. Não sei quanto tempo ainda fico, mas vou ficando. Quero escrever mais, voltar à praia, fazer os documentos todos. Até pensei: mais adiante, quando já estivesse chegando a hora de eu voltar, você não queria vir? A gente faria o mesmo esquema de novo, voltaríamos juntos. A família te ama perdidamente, hoje pintaram até uns salseirinhos rápidos porque todo mundo queria ler a matéria do Chico ao mesmo tempo.
Let me take you down
cause I’m going to strawberry fields
nothing is real, and nothing to get hung about
strawberry fields forever
strawberry fields forever
strawberry fields forever
Isso é o que te desejo na nova década. Zézim, vamos lá. Sem últimas esperanças. Temos esperanças novinhas em folha, todos os dias. E nenhuma, fora de viver cada vez mais plenamente, mais confortáveis dentro do que a gente, sem culpa, é. Let me take you: I’m going to strawberry fields.
Me conta da Adélia.
E te cuida, por favor, te cuida bem. Qualquer poço mais escuro, disque 0512-33-41-97. Eu posso pelo menos ouvir. Não leve a mal alguma dureza dita. É porque te quero claro. Citando Arantes, pra terminar: "Eu quero te ver com saúde I sempre de bom humor I e de boa vontade".
Um beijo do
Caio
PS — Abraço pro Nello. Pra Ana Matos, e Nino também.
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(Do conto Dodecaedro de Caio Fernando Abreu)
Não consegui. Do grande esforço através dos doze meses, doze signos, doze faces, só guardo essa certeza. Que tonta travessia. Tudo bem, descansa. Faz parte, não conseguir. Como Sísifo, se queres mitologias. Queres ainda? Por favor, estou farto. Brilhos baratos, as jóias eram todas falsas. Está certo, mas não quiseram te fazer mal. O mal não existe reverso do bem. Tanto faz, só peço que me deixem. Vou ficar encostado na árvore até amanhecer. Olhos abertos, feito uma vela acesa. Se ela insistir, direi que não tenho piedade alguma. Que não compreendo, não aceito nem perdôo mais a loucura. Se ele vier, pedirei que fique. Serei bom para ele. Mentira, não pedirei nem direi nada a ninguém. É indivisível, aprendi. Talvez consiga dormir. Talvez consiga acordar amanhã finalmente livre de tudo isso. Terei apenas um corpo, poucos pensamentos, todos pequenos. Sei que foi inútil quando os vejo obstinados recomeçar e recomeçar sempre. Uma serpente que morde a própria cauda, um círculo infinito de enganos, Maya. Talvez não, perdeste a fé? Não te castiga assim, está tudo em paz. Nunca houve cães. É como uma cantiga de ninar nas cinzas do fim do mundo. Um barbitúrico, se preferires. Entorpece, melancólico, te leva para longe. Já se perdeu, não há futuro. Repousa, meu amigo. Deixa-me passar a mão nos teus cabelos. Está amanhecendo. Em voz baixa, eu canto para te enganar.
Ele sabia dançar. Era bonito dançando. Mandavam sempre que repetíssemos, talvez para que os outros aprendessem a beleza. Ou mais cruéis: para que ele mesmo percebesse como eu já não conseguia dissimular o desejo de tocá-lo. Um dia, toquei. Mas sem cuidado. Como numa pirueta errada. Sem sentir, você calcula mal alguma coisa no passo e, em vez de vôo, vem a queda. O ridículo é que só no chão você percebe que caiu. Então é tarde demais. Mas havia um esboço de prazer quando nos tocávamos, na dança. E o próprio prazer, aquela noite. Gritos de gozo, mordidas, pêlos melados da porra do outro. Disse a ele que conhecia o gosto. Quando me permitem descer a colina, as pessoas olham com suspeita minha cabeça raspada: as cicatrizes expostas denunciam que estive lá. Não há como escondê-las, as marcas de Obaluaê. Por ter estado lá, quem sabe, um Quase Encontro merece punição? Me explica, que as vezes tenho medo. Deixo de ter, como agora, quando o vento cessa e o sol volta a bater nos verdes. Mesmo sem compreender, quero continuar aqui onde está constantemente amanhecendo
Então invadirias subitossuave a minha porta e me falarias de coisas tão caras a mim, feitas de frágeis, falsos encantamentos, como aquele botão de rosa branca que te dei faz algum tempo, e depois se abriu espantosamente, feito uma estrela, (...) nem eu nem tu saberíamos dizer de quem partiu o início do gesto, a mão de um tocaria redondaleve a pele do rosto do outro para que começasse a acontecer tudo aquilo de beijos e suores e salivas e gritos de prazer, misturados num sonho não sei se meu o teu/meu corpo que já não sabia até onde era meu ou teu, sentindo sempre, desde antes do início do gesto, de toque, que não haveria depois, e na manhã seguinte tonta, (...) atravessaria o dia meio cega para descobrir vagamente que, além de mentiras, terias deixado em mim a semente de uma história complicada (...) até enfim te concluir primário, tosco, terês, nunca capaz de compreender que além desta nítida dor cravada que por muitas vezes beirou a morte, porque te queria como se quer, vadia, humanamente, deixavas também um encontro que não aconteceu, que talvez nada esclareça, porque tudo é de vidro, porque brotou da confusão apaixonada que despertasse em mim, que te julguei esclarecendo a vida, peça final de um quebra-cabeça, peça inicial de outro, de um excesso de líquidos e desejos para sempre incompletos, mas que ficará, ainda que ninguém a entenda, esses ramos, esses castelos, como não ficaste, porque eras só mensagem de algo que ainda não sei.
Não consegui. Do grande esforço através dos doze meses, doze signos, doze faces, só guardo essa certeza. Que tonta travessia. Tudo bem, descansa. Faz parte, não conseguir. Como Sísifo, se queres mitologias. Queres ainda? Por favor, estou farto. Brilhos baratos, as jóias eram todas falsas. Está certo, mas não quiseram te fazer mal. O mal não existe reverso do bem. Tanto faz, só peço que me deixem. Vou ficar encostado na árvore até amanhecer. Olhos abertos, feito uma vela acesa. Se ela insistir, direi que não tenho piedade alguma. Que não compreendo, não aceito nem perdôo mais a loucura. Se ele vier, pedirei que fique. Serei bom para ele. Mentira, não pedirei nem direi nada a ninguém. É indivisível, aprendi. Talvez consiga dormir. Talvez consiga acordar amanhã finalmente livre de tudo isso. Terei apenas um corpo, poucos pensamentos, todos pequenos. Sei que foi inútil quando os vejo obstinados recomeçar e recomeçar sempre. Uma serpente que morde a própria cauda, um círculo infinito de enganos, Maya. Talvez não, perdeste a fé? Não te castiga assim, está tudo em paz. Nunca houve cães. É como uma cantiga de ninar nas cinzas do fim do mundo. Um barbitúrico, se preferires. Entorpece, melancólico, te leva para longe. Já se perdeu, não há futuro. Repousa, meu amigo. Deixa-me passar a mão nos teus cabelos. Está amanhecendo. Em voz baixa, eu canto para te enganar.
Ele sabia dançar. Era bonito dançando. Mandavam sempre que repetíssemos, talvez para que os outros aprendessem a beleza. Ou mais cruéis: para que ele mesmo percebesse como eu já não conseguia dissimular o desejo de tocá-lo. Um dia, toquei. Mas sem cuidado. Como numa pirueta errada. Sem sentir, você calcula mal alguma coisa no passo e, em vez de vôo, vem a queda. O ridículo é que só no chão você percebe que caiu. Então é tarde demais. Mas havia um esboço de prazer quando nos tocávamos, na dança. E o próprio prazer, aquela noite. Gritos de gozo, mordidas, pêlos melados da porra do outro. Disse a ele que conhecia o gosto. Quando me permitem descer a colina, as pessoas olham com suspeita minha cabeça raspada: as cicatrizes expostas denunciam que estive lá. Não há como escondê-las, as marcas de Obaluaê. Por ter estado lá, quem sabe, um Quase Encontro merece punição? Me explica, que as vezes tenho medo. Deixo de ter, como agora, quando o vento cessa e o sol volta a bater nos verdes. Mesmo sem compreender, quero continuar aqui onde está constantemente amanhecendo
Então invadirias subitossuave a minha porta e me falarias de coisas tão caras a mim, feitas de frágeis, falsos encantamentos, como aquele botão de rosa branca que te dei faz algum tempo, e depois se abriu espantosamente, feito uma estrela, (...) nem eu nem tu saberíamos dizer de quem partiu o início do gesto, a mão de um tocaria redondaleve a pele do rosto do outro para que começasse a acontecer tudo aquilo de beijos e suores e salivas e gritos de prazer, misturados num sonho não sei se meu o teu/meu corpo que já não sabia até onde era meu ou teu, sentindo sempre, desde antes do início do gesto, de toque, que não haveria depois, e na manhã seguinte tonta, (...) atravessaria o dia meio cega para descobrir vagamente que, além de mentiras, terias deixado em mim a semente de uma história complicada (...) até enfim te concluir primário, tosco, terês, nunca capaz de compreender que além desta nítida dor cravada que por muitas vezes beirou a morte, porque te queria como se quer, vadia, humanamente, deixavas também um encontro que não aconteceu, que talvez nada esclareça, porque tudo é de vidro, porque brotou da confusão apaixonada que despertasse em mim, que te julguei esclarecendo a vida, peça final de um quebra-cabeça, peça inicial de outro, de um excesso de líquidos e desejos para sempre incompletos, mas que ficará, ainda que ninguém a entenda, esses ramos, esses castelos, como não ficaste, porque eras só mensagem de algo que ainda não sei.
Marcadores: Dispersos
Querida mãe, querido pai,
Não sei mais conviver com as pessoas. Tenho medo de uma casa cheia de pais e mães e irmãos e sobrinhos e cunhados e cunhadas. Tenho vivido tão só durante tantos – quase 40 – anos. Devo estar acostumado.
Dormir 24 horas foi a maneira mais delicada que encontrei de não perturbar o equilíbrio de vocês – que é muito delicado. E também de não perturbar o meu próprio equilíbrio – que é tão ou mais delicado.
Estou me transformando aos poucos num ser humano meio viciado em solidão. E que só sabe escrever. Não sei mais falar, abraçar, dar beijos, dizer coisas aparentemente simples como "eu gosto de você". Gosto de mim. Acho que é o destino dos escritores. E tenho pensado que, mais do que qualquer outra coisa, sou um escritor. Uma pessoa que escreve sobre a vida – como quem olha de uma janela – mas não consegue vivê-la.
Amo vocês como quem escreve para uma ficção: sem conseguir dizer nem mostrar isso. O que sobra é o áspero do gesto, a secura da palavra. Por trás disso, há muito amor. Amor louco – todas as pessoas são loucas, inclusive nós; amor encabulado – nós, da fronteira com a Argentina, somos especialmente encabulados. Mas amor de verdade. Perdoem o silêncio, o sono, a rispidez, a solidão. Está ficando tarde, e eu tenho medo de ter desaprendido o jeito. É muito difícil ficar adulto.
Amo vocês, seu filho,
Caio
Não sei mais conviver com as pessoas. Tenho medo de uma casa cheia de pais e mães e irmãos e sobrinhos e cunhados e cunhadas. Tenho vivido tão só durante tantos – quase 40 – anos. Devo estar acostumado.
Dormir 24 horas foi a maneira mais delicada que encontrei de não perturbar o equilíbrio de vocês – que é muito delicado. E também de não perturbar o meu próprio equilíbrio – que é tão ou mais delicado.
Estou me transformando aos poucos num ser humano meio viciado em solidão. E que só sabe escrever. Não sei mais falar, abraçar, dar beijos, dizer coisas aparentemente simples como "eu gosto de você". Gosto de mim. Acho que é o destino dos escritores. E tenho pensado que, mais do que qualquer outra coisa, sou um escritor. Uma pessoa que escreve sobre a vida – como quem olha de uma janela – mas não consegue vivê-la.
Amo vocês como quem escreve para uma ficção: sem conseguir dizer nem mostrar isso. O que sobra é o áspero do gesto, a secura da palavra. Por trás disso, há muito amor. Amor louco – todas as pessoas são loucas, inclusive nós; amor encabulado – nós, da fronteira com a Argentina, somos especialmente encabulados. Mas amor de verdade. Perdoem o silêncio, o sono, a rispidez, a solidão. Está ficando tarde, e eu tenho medo de ter desaprendido o jeito. É muito difícil ficar adulto.
Amo vocês, seu filho,
Caio
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A crônica abaixo foi publicada no Caderno 2 em 28 de janeiro de 1987
Jamais esquecerei Lyris Castellani. Mas eu tinha esquecido que jamais esqueceria Lyris Castellani. Só há umas duas semanas, comecei a lembrar outra vez. Deve ter sido provocado por uma crônica de Marcos Rey, perguntando por Elvira Pagã, mas certamente continuou com um encontro casual com Wladir Dupont. Há alguns anos, num jantar, conversando sobre essas deusas misteriosamente desaparecidas - entre mais de dez pessoas (todas versadas nesse ramo da cultura inútil), só o velho e bom Wladir lembrava dela. A minha deusa para sempre preferida: Lyris Castellani.
Não que tivéssemos tocado no assunto, Wladir e eu. Nem uma palavra. Deixei-o na chuva e saí pensando em Lyris - onde andará? onde andará? - assim, numa voragem vertiginosa. Eu precisava saber se havia algo no arquivo do jornal sobre ela: ridículo escrever sobre Lyris sem uma foto. E havia: nem uma linha de texto, mas quatro fotos preciosas - esta escolhida a dedo -, embora nenhuma delas seja daquelas que eu recortava e colecionava, com paixão e estranheza, entre os 12 e os 15 anos. E lá se vão tantos, tantos. De roldão, sem Lyris.
Jamais vou lembrar exatamente da primeira vez que a vi. Mas deve ter sido nas páginas de O Cruzeiro ou Cinelândia. O que Lyris tinha para me enlouquecer tanto? Eu conto, embora doa: tinha olhos verdes profundos-abissais, tinha lábios carnudos de pecado, tinha a cintura fina de vespa e - acima de tudo, antes de nada - Lyris tinha COXAS. Ah, que coxas! Tão grossas e sólidas que merecem este detestável ponto de exclamação que acabo de usar. As coxas de Lyris eram tão monumentais que, aos poucos, consegui iniciar e seduzir meu irmão Gringo e meu primo Beco nos mistérios de Lyris. E Lyris deixou de ser nome próprio para se tornar substantivo, sinônimo de: coxas. Quando a gente espiava um par especial delas, nos comunicávamos em código: "Que Lyris, hein?"
Aos poucos, descobri tudo sobre ela. Lyris era bailarina de O Beco, em São Paulo (e eu lá, nos cafundós da fronteira com a Argentina!), depois foi lançada por Walter Hugo Khoury como atriz séria em A Ilha, ao lado de Eva Wilma e Luigi Picchi, filmado em Bertioga. Andei à cata do filme durante anos. E valeu o encontro: guardo gravada a fogo na memória a imagem de Lyris encostada numa rocha áspera. Com as coxas à mostra. Aquelas coxas. Lembro dela num pequeno papel, em Fronteiras do Inferno, tropical e demoníaca, e de uma cena forte de estupro num filme de cangaço (seria A Morte Comanda o Cangaço?) Em todos eles: olhos verdes fundos como o mar, cintura que se podia fechar numa mão. E coxas. Coxas de coluna grega, coxas morenas de mel e mal, coxas alucinantes onde qualquer um, fácil, poderia perder-se para sempre. Como Ulisses perdeu-se entre as sereias. Como eu me perdi até hoje.
Nunca mais soube dela. Nem Abelardo ou Laurinha Figueiredo souberam informar. Posso imaginá-la casada com um conde austríaco, morando em Viena. Ou numa casinha com quintal, quem sabe em Vila Mariana, entre roseiras. Se quero me doer, penso nela empapuçando-se de gim pelas bocas da vida, com um recorte amarelado de jornal na bolsa, entre vidros de dienpax. Que morta não estará, pois Lyris é imortal. Mas prefiro imaginá-la feliz: as coxas de Lyris eram a garantia mais segura de um futuro daqueles tipo feliz para sempre. Que certamente ela teve.
Mas eu a quero de volta. De alguma forma irracional, como se quer o tempo que se foi. Por favor - como Drummond procurava Luísa Porto, eu procuro Lyris Castellani. Procurem, procurem. Até achar. Só não me digam nada se, porventura, ela teve um destino infeliz. Então prefiro não saber. Melhor guardá-la até o momento de minha morte para sempre assim como a tive, tantas vergonhosas vezes, na minha adolescência. Me escrevam, me telefonem, me dêem notícias de Lyris Castellani. Se por acaso cruzarem com ela na feira, no elevador, no bar da esquina ou no Gallery, digam a Lyris que mando meu mais carinhoso beijo. E que jamais a esquecerei. Domingo último, enlouquecido, casei com ela no altar criado por Mira Haar, em A Trama do Gosto. Casei três vezes. Casaria dez, casaria cem, casaria mil.
Jamais esquecerei Lyris Castellani. Mas eu tinha esquecido que jamais esqueceria Lyris Castellani. Só há umas duas semanas, comecei a lembrar outra vez. Deve ter sido provocado por uma crônica de Marcos Rey, perguntando por Elvira Pagã, mas certamente continuou com um encontro casual com Wladir Dupont. Há alguns anos, num jantar, conversando sobre essas deusas misteriosamente desaparecidas - entre mais de dez pessoas (todas versadas nesse ramo da cultura inútil), só o velho e bom Wladir lembrava dela. A minha deusa para sempre preferida: Lyris Castellani.
Não que tivéssemos tocado no assunto, Wladir e eu. Nem uma palavra. Deixei-o na chuva e saí pensando em Lyris - onde andará? onde andará? - assim, numa voragem vertiginosa. Eu precisava saber se havia algo no arquivo do jornal sobre ela: ridículo escrever sobre Lyris sem uma foto. E havia: nem uma linha de texto, mas quatro fotos preciosas - esta escolhida a dedo -, embora nenhuma delas seja daquelas que eu recortava e colecionava, com paixão e estranheza, entre os 12 e os 15 anos. E lá se vão tantos, tantos. De roldão, sem Lyris.
Jamais vou lembrar exatamente da primeira vez que a vi. Mas deve ter sido nas páginas de O Cruzeiro ou Cinelândia. O que Lyris tinha para me enlouquecer tanto? Eu conto, embora doa: tinha olhos verdes profundos-abissais, tinha lábios carnudos de pecado, tinha a cintura fina de vespa e - acima de tudo, antes de nada - Lyris tinha COXAS. Ah, que coxas! Tão grossas e sólidas que merecem este detestável ponto de exclamação que acabo de usar. As coxas de Lyris eram tão monumentais que, aos poucos, consegui iniciar e seduzir meu irmão Gringo e meu primo Beco nos mistérios de Lyris. E Lyris deixou de ser nome próprio para se tornar substantivo, sinônimo de: coxas. Quando a gente espiava um par especial delas, nos comunicávamos em código: "Que Lyris, hein?"
Aos poucos, descobri tudo sobre ela. Lyris era bailarina de O Beco, em São Paulo (e eu lá, nos cafundós da fronteira com a Argentina!), depois foi lançada por Walter Hugo Khoury como atriz séria em A Ilha, ao lado de Eva Wilma e Luigi Picchi, filmado em Bertioga. Andei à cata do filme durante anos. E valeu o encontro: guardo gravada a fogo na memória a imagem de Lyris encostada numa rocha áspera. Com as coxas à mostra. Aquelas coxas. Lembro dela num pequeno papel, em Fronteiras do Inferno, tropical e demoníaca, e de uma cena forte de estupro num filme de cangaço (seria A Morte Comanda o Cangaço?) Em todos eles: olhos verdes fundos como o mar, cintura que se podia fechar numa mão. E coxas. Coxas de coluna grega, coxas morenas de mel e mal, coxas alucinantes onde qualquer um, fácil, poderia perder-se para sempre. Como Ulisses perdeu-se entre as sereias. Como eu me perdi até hoje.
Nunca mais soube dela. Nem Abelardo ou Laurinha Figueiredo souberam informar. Posso imaginá-la casada com um conde austríaco, morando em Viena. Ou numa casinha com quintal, quem sabe em Vila Mariana, entre roseiras. Se quero me doer, penso nela empapuçando-se de gim pelas bocas da vida, com um recorte amarelado de jornal na bolsa, entre vidros de dienpax. Que morta não estará, pois Lyris é imortal. Mas prefiro imaginá-la feliz: as coxas de Lyris eram a garantia mais segura de um futuro daqueles tipo feliz para sempre. Que certamente ela teve.
Mas eu a quero de volta. De alguma forma irracional, como se quer o tempo que se foi. Por favor - como Drummond procurava Luísa Porto, eu procuro Lyris Castellani. Procurem, procurem. Até achar. Só não me digam nada se, porventura, ela teve um destino infeliz. Então prefiro não saber. Melhor guardá-la até o momento de minha morte para sempre assim como a tive, tantas vergonhosas vezes, na minha adolescência. Me escrevam, me telefonem, me dêem notícias de Lyris Castellani. Se por acaso cruzarem com ela na feira, no elevador, no bar da esquina ou no Gallery, digam a Lyris que mando meu mais carinhoso beijo. E que jamais a esquecerei. Domingo último, enlouquecido, casei com ela no altar criado por Mira Haar, em A Trama do Gosto. Casei três vezes. Casaria dez, casaria cem, casaria mil.
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Vórtice, voragem, vertigem: qualquer abismo nas estrelas de papel brilhante no teto.
Queria tanto poder usar a palavra voragem. Poder não, não quero poder nenhum, queria saber. Saber não, não quero saber nada, queria conseguir. Conseguir também não - sem esforço, é como eu queria. Queria sentir, tão dentro, tão fundo que quando ela, a palavra, viesse à tona, desviaria da razão evitaria o intelecto para corromper o ar com seu som perverso. A-racional, abismal. Não me basta escrevê-la - que estou escrevendo agora e sou capaz de encher pilhas de papel repetindo voragem voragem voragem voragem voragem voragem voragem sete vezes ao infinito até perder o sentido e nada mais significar - não é dessa forma que eu a desejo. Ah essa palavra de desgrenhados cabelos, enormes olhos e trêmulas mãos. Melodramática palavra, de voz roiuca igual à daquelas mulheres que, como dizia John Fante, só a adquirem depois de muitos conhaques e muitos cigarros. Eu quero sê-la, voragem.
Espio no dicionário seu significado oficial, tentativa inútil de exorcizar o encantamento maligno. O que leio, inquieta ainda mais: "Aquilo que sorve ou devora". E vejo um redemoinho lamacento de areias movediças à superfície do qual uma única mão se crispa. Vórtice, penso, numa vertigem. Repito, hipnotizado: vertigem, vórtice, voragem. "Qualquer abismo" - continuo a ler. Os abismos de rosas, os abismos de urzes, e aqueles abismos à beira do qual duas crianças correm perigo, protegidas pelas sas do Anjo da Guarda. Os abismos de estrelas falsas no falso céu do teto do meu quarto, os abismos de beijos e desejos, o abismo onde se detém o rei daquela história zen para abrir o anel que lhe deu o monge, onde está guardado o condão capaz de salvá-lo - e o condão é a frase: "isto tambèm passará". Sim, leio então: "Tudo que subverte ou consome" - paixões, ideologias, ódios, feitiçarias, vocações, ilusões, morte e vida. Essas outras palavras de maiúsculas implícitas - vorazes, voragem -, abismais.
Eu estava lá, no centro do furacão. E repito as palavras que são e não são minhas enquanto o porteiro do edifício em frente toca violão e canta, e a chuva desaba outra vez, e peço: por favor, me socorre, me socorre que hoje estou sentido e português, lusitano e melancólico. Me ajuda que hoje eu tenho certeza absoluta que já fui Pessoa ou Virgínia Woolf em outras vidas, e filosófo em tupi-guarani, enganado pelos búzios, pelas cartas, pelos astros, pelas fadas. Me puxa para fora deste túnel, me mostra p caminho para baixo da quaresmeira em flor que eu quero encostar em seu tronco o lótus de mil pétalas do topo da minha cabeça tonta para sair de mim e respirar aliviado de por um instante não ser mais eu, que hoje não me suporto nem me perdôo de ser como sou e não ter solução. Me ajuda, peço, quando Excalibur afunda sem volta no lago.
Ela se debruça sobre mim, me beija com sua grande boca vermelha movediça. Tenho medo mas abro minha boca para me perder.
Ela repete baixinho em meus ouvidos nomes cheios de sangue - Galizia, Ana Cristina, Júlio Barroso - enquanto contemplo o céu no teto do meu quarto, girando intergaláctico em direção a ER-8, a estrela de 10 bilhões de anos, o cadáver insepulto para sempre da estrela perdida nos confins do Universo. Choro sozinho no escuro, você não enxuga as minhas lágrimas. Você não quer ver a minha infância. Solto nesse abismo onde só brilham as estrelas de papel no teto, desguardado do anjo com suas mornas asas abertas. Você não me ouve nem me vê, e se ouvisse e visse não compreenderia quando eu abrir os braços para Ela e saudar, amável e desesperado como quem dá boas-vindas ao terror consentido: voragem, voragem.
Voragem, vórtice, vertigem: ego. Farpas e trapos. Quero um solo de guitarra rasgando a madrugada. Te espero aqui onde estou, abismo, no centro do furacão. Em movimento, águas
Queria tanto poder usar a palavra voragem. Poder não, não quero poder nenhum, queria saber. Saber não, não quero saber nada, queria conseguir. Conseguir também não - sem esforço, é como eu queria. Queria sentir, tão dentro, tão fundo que quando ela, a palavra, viesse à tona, desviaria da razão evitaria o intelecto para corromper o ar com seu som perverso. A-racional, abismal. Não me basta escrevê-la - que estou escrevendo agora e sou capaz de encher pilhas de papel repetindo voragem voragem voragem voragem voragem voragem voragem sete vezes ao infinito até perder o sentido e nada mais significar - não é dessa forma que eu a desejo. Ah essa palavra de desgrenhados cabelos, enormes olhos e trêmulas mãos. Melodramática palavra, de voz roiuca igual à daquelas mulheres que, como dizia John Fante, só a adquirem depois de muitos conhaques e muitos cigarros. Eu quero sê-la, voragem.
Espio no dicionário seu significado oficial, tentativa inútil de exorcizar o encantamento maligno. O que leio, inquieta ainda mais: "Aquilo que sorve ou devora". E vejo um redemoinho lamacento de areias movediças à superfície do qual uma única mão se crispa. Vórtice, penso, numa vertigem. Repito, hipnotizado: vertigem, vórtice, voragem. "Qualquer abismo" - continuo a ler. Os abismos de rosas, os abismos de urzes, e aqueles abismos à beira do qual duas crianças correm perigo, protegidas pelas sas do Anjo da Guarda. Os abismos de estrelas falsas no falso céu do teto do meu quarto, os abismos de beijos e desejos, o abismo onde se detém o rei daquela história zen para abrir o anel que lhe deu o monge, onde está guardado o condão capaz de salvá-lo - e o condão é a frase: "isto tambèm passará". Sim, leio então: "Tudo que subverte ou consome" - paixões, ideologias, ódios, feitiçarias, vocações, ilusões, morte e vida. Essas outras palavras de maiúsculas implícitas - vorazes, voragem -, abismais.
Eu estava lá, no centro do furacão. E repito as palavras que são e não são minhas enquanto o porteiro do edifício em frente toca violão e canta, e a chuva desaba outra vez, e peço: por favor, me socorre, me socorre que hoje estou sentido e português, lusitano e melancólico. Me ajuda que hoje eu tenho certeza absoluta que já fui Pessoa ou Virgínia Woolf em outras vidas, e filosófo em tupi-guarani, enganado pelos búzios, pelas cartas, pelos astros, pelas fadas. Me puxa para fora deste túnel, me mostra p caminho para baixo da quaresmeira em flor que eu quero encostar em seu tronco o lótus de mil pétalas do topo da minha cabeça tonta para sair de mim e respirar aliviado de por um instante não ser mais eu, que hoje não me suporto nem me perdôo de ser como sou e não ter solução. Me ajuda, peço, quando Excalibur afunda sem volta no lago.
Ela se debruça sobre mim, me beija com sua grande boca vermelha movediça. Tenho medo mas abro minha boca para me perder.
Ela repete baixinho em meus ouvidos nomes cheios de sangue - Galizia, Ana Cristina, Júlio Barroso - enquanto contemplo o céu no teto do meu quarto, girando intergaláctico em direção a ER-8, a estrela de 10 bilhões de anos, o cadáver insepulto para sempre da estrela perdida nos confins do Universo. Choro sozinho no escuro, você não enxuga as minhas lágrimas. Você não quer ver a minha infância. Solto nesse abismo onde só brilham as estrelas de papel no teto, desguardado do anjo com suas mornas asas abertas. Você não me ouve nem me vê, e se ouvisse e visse não compreenderia quando eu abrir os braços para Ela e saudar, amável e desesperado como quem dá boas-vindas ao terror consentido: voragem, voragem.
Voragem, vórtice, vertigem: ego. Farpas e trapos. Quero um solo de guitarra rasgando a madrugada. Te espero aqui onde estou, abismo, no centro do furacão. Em movimento, águas
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Para meus pais Zael e Nair
e meus irmãos José Cláudio, Luiz Felipe, Márcia e Cláudia
INTRODUÇÃO
Tinham um olhar dentro, de quem olha fixo e sacode a cabeça, acenando como se numa penetração entrassem fundo demais, concordando, refletidas. Olhavam fixo, pupilas perdidas na extensão amarelada das órbitas, e concordavam mudas. A sabedoria humilhante de quem percebe coisas apenas suspeitas pelos outros. Jamais saberíamos das conclusões a que chegavam, mas oblíquos olhávamos em tomo numa desconfiança que só findava com algum gesto ou palavra.
nem sempre oportunos. O fato é que tínhamos medo, ou quem sabe alguma espécie de respeito grande, de quem se vê menor frente a outros seres mais fortes e inexplicáveis. Medo por carência de outra palavra para. melhor definir o sentimento escorregadio na gente, de leve escapando para um canto da consciência de onde, ressabiado, espreitaria. E enveredávamos então pelo caminho do fácil, tentando suavizar o que não era suave. Recusando-lhes o mistério, recusávamos o nosso próprio medo e as encarávamos rotulando-as sem problema como "irracionais", relegando-as ao mundo bruto a que deviam forçosamente pertencer. O mundo de dentro do qual não podiam atrever-se a desafiar-nos com o conhecimento de algo ignorado por nós. Pois orgulhos, não admitiríamos que vissem ou sentissem além de seus limites. Condicionadas a seus corpos atarracados, de penas cinzentas e três garras quase ridículas na agressividade forçada -condicionadas à sua precariedade, elas não poderiam ter mais do que lhe seria permitido por nós, humanos.
A CHEGADA
Vieram de manhã cedo, a casa adormecida recusando-se preguiçosa a admiti-las em seu cotidiano.
Apenas a empregada levantou-se entre resmungos para abrir a porta. Aceitou-as impassível em sua sonolência, dentro da gaiola em que estavam. O homem que as trouxera exigira apenas um sabonete em troca. Não sei se chegaram, a saber, disso -talvez não, pois quem sabe a troca mesquinha faria oscilar o orgulho delas, amenizando-lhes a ousadia no encarar-nos. Sobre a mesa, uma encolhida contra a outra, massa informe, cinzenta e tímida, onde ainda não se distinguia o grito amarelo dos olhos, aguardaram pacientes que o sol subisse e as gentes acordadas viessem cercá-las de espantos e sustos. Meu pai no entanto não lhes deu atenção. Constatou-as e passou adiante, em direção ao banheiro. Minha mãe sorriu-lhes, tentando a primeira carícia, recusada talvez por inexperiência de afeto. Contudo, não as penetrou fundo, anexando-as inofensivas em seu esparramar de bondade sem precauções.
Foram as crianças as primeiras a hesitar, num recuo que seria de ofensa se pertencesse à gente grande. Crianças trocaram assombros frente à estranheza dos bichos nunca antes vistos. Por terem menos tempo de existência eram talvez as mais vulneráveis ao mistério. O viver constante demorado e desiludido dos outros, acostumados a dureza, não podena por caminhos diretos render-se à solicitação dos olhos delas. Mas a inexperiência das crianças levava-as ao extremo oposto de desrespeitá-las em sua individualidade, trazendo-as sem cerimônias para seu mundo de brinquedos. Perguntaram o nome dos bichos à empregada atarefada em passar café.
Coruja- foi a resposta seca, desinteressada, como se se tratassem de um saco de açúcar.
Aparentemente satisfeitas, compenetraramtse em cercá-las de uma ternura meio brusca. Aquela mesma dispensada às bonecas novas, que em pouco tempo restavam espatifadas em braços e pernas pelo quintal. Essa ternura bruta que destrói por excesso inábil de amor. Restou-me o consolo de ter sido o primeiro a identificá-las como realmente eram. Ou como eu as via, duvidando que a visão dos outros fosse mais correta, profunda ou corajosa.
O sol já alto da manhã as fizera abrir os olhos, investigando o ambiente. Creio que a brancura dos azulejos da cozinha as surpreendeu, pois em breve voltaram a encolher-se, alheias. Acostumadas como estavam aos vastos céus e campos percorridos dias inteiros preferiam buscar as coisas perdidas no calor dos corpos uma da outra. Prática, minha mãe informava: eram boas para comer baratas. E conscientes de sua liberdade interrompida, elas esperavam pela tarefa que lhes era destinada.
BATISMO
Logo caminhavam pela casa inteira, desvendando segredos. As crianças seguravam-nas, embalando-as como nenéns. Sem esperar, de repente, agente deparava com o olhar amarelo fixo duma -perturbando, interrogando, confundindo. A acusação muda fazia com que me investigasse ansioso, buscando erros. E punha-me em dia comigo mesmo, para me apresentar novamente a elas de banho tomado, unhas cortadas, rosto barbeado, cabelo penteado -na ilusão de que a limpeza externa arrancasse um aceno de aprovação. Mas eu sabia -embora, obstinado, recusasse a convicção até o último minuto -, sabia que seu olhar ultrapassava roupa, pele, carne, músculos e ossos para fixar-se num compartimento remoto, cujo conteúdo eu mesmo desconhecesse. Admitia-as envergonhado, mas hesitava em mostrar-me, criminoso negando o crime até a evidência dos fatos. Observava os olhares desviados dos adultos, e desviava também o meu, cirandando com eles na mesma negação.
As crianças disputavam a posse, é minha, não, é minha, manhê, a Claudia quer se adornar das corujas, mas elas passavam adiante, sabendo-se para sempre impossuídas, indecifráveis. Disputavam também a primazia de batizá-las, ignorando que o anonimato fazia parte de sua natureza. Nessa ignorância, chamaram nas Tutuca e Telecoteco. Pisquei um olho para elas, rindo da ingenuidade, tentando penetrar em sua intimidade, cada vez mais e mais negada. Ofélia e Hamlet, sugeriu um leitor óbvio de Shakespeare. Mas recusei-os ainda. Secretamente, reivindicava para mim seu batismo e posse, investigava almanaques em busca do nome que melhor assentasse. Chamá-las de alguma coisa seria dar um passo no caminho de seu conhecimento, como se sutilmente as fosse amoldando à minha maneira de desejá-las. Finalmente achei. Eram nomes de criaturas estranhas, indecifráveis como elas, já perdidas no tempo, misteriosas até hoje. Rasputin e Cassandra. Calei a descoberta, ocultei o batizado, apropriando-me cada vez mais de sua natureza, embora inconscientemente soubesse da inutilidade de tudo. Rasputin era menor, mais ágil, caminhava lento pelo parquê, os olhos sempre abertos, inesperadamente alcançando o encosto das cadeiras num vôo raso. Cassandra procurava os cantos escuros, os olhos constantemente semicerrados, uma perna encolhida, atitude de rosto-pendido-e-ar-pensativo.
A FOME
Passados os primeiros dias, principiaram a entrar na rotina. Vezenquando ainda me surpreendia a encará-las num duelo de mistérios. Eu, ocultando cuidadoso o meu, feroz na defesa, embora fosse sempre o primeiro a desviar os olhos. Recusei tocá-las. A maciez de seus corpos passava quente, impassível, de mão em mão, quando havia visitas. E só nessas ocasiões elas voltavam a espantar. Cumpriam honestamente sua tarefa de devorar baratas, mas recusavam qualquer outro alimento. O homem que as trouxera informara a minha mãe de seu orgulho: feridas em liberdade faziam greve de fome até a morte. Com a iminência de seu suicídio, planejamos soltá-las no campo.
Quase podia vê-las erguendo-se de leve num vôo contido, experimentando forças, as asas abrindo-se aos poucos numa subida lenta. Fundidas em azul, subindo, subindo.
As asas cortadas, porém, exigiam tempo para crescer novamente. Éramos obrigados a esperar. Desejei comunicá-las sua próxima libertação, mas a ineficiência de gestos e palavras isolou-me num mutismo para elas incompreensível. Eramos definitivamente incomunicáveis. Eu, gente; elas, bichos. Corujas, mesmo batizadas em segredo. Cassandra e Rasputin. Ofélia e Hamlet. Tutuca e Telecoteco. Qualquer nome não modificaria a sua natureza. Nunca. Corujas para sempre.
Mas a greve de fome persistia. Tão bem cumpriram seu serviço de comer baratas que em breve, creio, não restava mais nenhuma. Orgulhosas, passeavam seus estômagos vazios pela casa toda, a gente se olhando culpado, as mãos desertas de soluções. Não nos restava mais nada a fazer senão esperar. Por sua morte ou sua capitulação. Quem as visse, convictas em seu dês ilar faminto, poderia facilmente imaginá-las carregando cartazes de protesto. Contra quê? Contra quem? perguntávamos temerosos da resposta óbvia.
DESFECHO
Num começo de manhã ainda sem sol, igual a que as tinha trazido, Rasputin foi encontrado morto. O corpo pequeno e cinzento, já rígido, sobre os mosaicos frios da cozinha. Desviei os olhos sem dar nome ao sentimento que me invadia. Encolhida em seu canto, Cassandra diminuía cada vez mais. Olhos cerrados com força, eu tinha impressão que vezenquando seu corpo oscilava, talo de capim ao vento, quase quebrado.Até que morreu também. Digna e solitária, quem sabe virgem. Enterraram-na no fundo do quintal, uns jasmins jogados por cima da cova rasa, feita com as mãos.
Não fui ver a sepultura. Não sei se me assustava o mistério adensado ou para sempre desfeito.
e meus irmãos José Cláudio, Luiz Felipe, Márcia e Cláudia
INTRODUÇÃO
Tinham um olhar dentro, de quem olha fixo e sacode a cabeça, acenando como se numa penetração entrassem fundo demais, concordando, refletidas. Olhavam fixo, pupilas perdidas na extensão amarelada das órbitas, e concordavam mudas. A sabedoria humilhante de quem percebe coisas apenas suspeitas pelos outros. Jamais saberíamos das conclusões a que chegavam, mas oblíquos olhávamos em tomo numa desconfiança que só findava com algum gesto ou palavra.
nem sempre oportunos. O fato é que tínhamos medo, ou quem sabe alguma espécie de respeito grande, de quem se vê menor frente a outros seres mais fortes e inexplicáveis. Medo por carência de outra palavra para. melhor definir o sentimento escorregadio na gente, de leve escapando para um canto da consciência de onde, ressabiado, espreitaria. E enveredávamos então pelo caminho do fácil, tentando suavizar o que não era suave. Recusando-lhes o mistério, recusávamos o nosso próprio medo e as encarávamos rotulando-as sem problema como "irracionais", relegando-as ao mundo bruto a que deviam forçosamente pertencer. O mundo de dentro do qual não podiam atrever-se a desafiar-nos com o conhecimento de algo ignorado por nós. Pois orgulhos, não admitiríamos que vissem ou sentissem além de seus limites. Condicionadas a seus corpos atarracados, de penas cinzentas e três garras quase ridículas na agressividade forçada -condicionadas à sua precariedade, elas não poderiam ter mais do que lhe seria permitido por nós, humanos.
A CHEGADA
Vieram de manhã cedo, a casa adormecida recusando-se preguiçosa a admiti-las em seu cotidiano.
Apenas a empregada levantou-se entre resmungos para abrir a porta. Aceitou-as impassível em sua sonolência, dentro da gaiola em que estavam. O homem que as trouxera exigira apenas um sabonete em troca. Não sei se chegaram, a saber, disso -talvez não, pois quem sabe a troca mesquinha faria oscilar o orgulho delas, amenizando-lhes a ousadia no encarar-nos. Sobre a mesa, uma encolhida contra a outra, massa informe, cinzenta e tímida, onde ainda não se distinguia o grito amarelo dos olhos, aguardaram pacientes que o sol subisse e as gentes acordadas viessem cercá-las de espantos e sustos. Meu pai no entanto não lhes deu atenção. Constatou-as e passou adiante, em direção ao banheiro. Minha mãe sorriu-lhes, tentando a primeira carícia, recusada talvez por inexperiência de afeto. Contudo, não as penetrou fundo, anexando-as inofensivas em seu esparramar de bondade sem precauções.
Foram as crianças as primeiras a hesitar, num recuo que seria de ofensa se pertencesse à gente grande. Crianças trocaram assombros frente à estranheza dos bichos nunca antes vistos. Por terem menos tempo de existência eram talvez as mais vulneráveis ao mistério. O viver constante demorado e desiludido dos outros, acostumados a dureza, não podena por caminhos diretos render-se à solicitação dos olhos delas. Mas a inexperiência das crianças levava-as ao extremo oposto de desrespeitá-las em sua individualidade, trazendo-as sem cerimônias para seu mundo de brinquedos. Perguntaram o nome dos bichos à empregada atarefada em passar café.
Coruja- foi a resposta seca, desinteressada, como se se tratassem de um saco de açúcar.
Aparentemente satisfeitas, compenetraramtse em cercá-las de uma ternura meio brusca. Aquela mesma dispensada às bonecas novas, que em pouco tempo restavam espatifadas em braços e pernas pelo quintal. Essa ternura bruta que destrói por excesso inábil de amor. Restou-me o consolo de ter sido o primeiro a identificá-las como realmente eram. Ou como eu as via, duvidando que a visão dos outros fosse mais correta, profunda ou corajosa.
O sol já alto da manhã as fizera abrir os olhos, investigando o ambiente. Creio que a brancura dos azulejos da cozinha as surpreendeu, pois em breve voltaram a encolher-se, alheias. Acostumadas como estavam aos vastos céus e campos percorridos dias inteiros preferiam buscar as coisas perdidas no calor dos corpos uma da outra. Prática, minha mãe informava: eram boas para comer baratas. E conscientes de sua liberdade interrompida, elas esperavam pela tarefa que lhes era destinada.
BATISMO
Logo caminhavam pela casa inteira, desvendando segredos. As crianças seguravam-nas, embalando-as como nenéns. Sem esperar, de repente, agente deparava com o olhar amarelo fixo duma -perturbando, interrogando, confundindo. A acusação muda fazia com que me investigasse ansioso, buscando erros. E punha-me em dia comigo mesmo, para me apresentar novamente a elas de banho tomado, unhas cortadas, rosto barbeado, cabelo penteado -na ilusão de que a limpeza externa arrancasse um aceno de aprovação. Mas eu sabia -embora, obstinado, recusasse a convicção até o último minuto -, sabia que seu olhar ultrapassava roupa, pele, carne, músculos e ossos para fixar-se num compartimento remoto, cujo conteúdo eu mesmo desconhecesse. Admitia-as envergonhado, mas hesitava em mostrar-me, criminoso negando o crime até a evidência dos fatos. Observava os olhares desviados dos adultos, e desviava também o meu, cirandando com eles na mesma negação.
As crianças disputavam a posse, é minha, não, é minha, manhê, a Claudia quer se adornar das corujas, mas elas passavam adiante, sabendo-se para sempre impossuídas, indecifráveis. Disputavam também a primazia de batizá-las, ignorando que o anonimato fazia parte de sua natureza. Nessa ignorância, chamaram nas Tutuca e Telecoteco. Pisquei um olho para elas, rindo da ingenuidade, tentando penetrar em sua intimidade, cada vez mais e mais negada. Ofélia e Hamlet, sugeriu um leitor óbvio de Shakespeare. Mas recusei-os ainda. Secretamente, reivindicava para mim seu batismo e posse, investigava almanaques em busca do nome que melhor assentasse. Chamá-las de alguma coisa seria dar um passo no caminho de seu conhecimento, como se sutilmente as fosse amoldando à minha maneira de desejá-las. Finalmente achei. Eram nomes de criaturas estranhas, indecifráveis como elas, já perdidas no tempo, misteriosas até hoje. Rasputin e Cassandra. Calei a descoberta, ocultei o batizado, apropriando-me cada vez mais de sua natureza, embora inconscientemente soubesse da inutilidade de tudo. Rasputin era menor, mais ágil, caminhava lento pelo parquê, os olhos sempre abertos, inesperadamente alcançando o encosto das cadeiras num vôo raso. Cassandra procurava os cantos escuros, os olhos constantemente semicerrados, uma perna encolhida, atitude de rosto-pendido-e-ar-pensativo.
A FOME
Passados os primeiros dias, principiaram a entrar na rotina. Vezenquando ainda me surpreendia a encará-las num duelo de mistérios. Eu, ocultando cuidadoso o meu, feroz na defesa, embora fosse sempre o primeiro a desviar os olhos. Recusei tocá-las. A maciez de seus corpos passava quente, impassível, de mão em mão, quando havia visitas. E só nessas ocasiões elas voltavam a espantar. Cumpriam honestamente sua tarefa de devorar baratas, mas recusavam qualquer outro alimento. O homem que as trouxera informara a minha mãe de seu orgulho: feridas em liberdade faziam greve de fome até a morte. Com a iminência de seu suicídio, planejamos soltá-las no campo.
Quase podia vê-las erguendo-se de leve num vôo contido, experimentando forças, as asas abrindo-se aos poucos numa subida lenta. Fundidas em azul, subindo, subindo.
As asas cortadas, porém, exigiam tempo para crescer novamente. Éramos obrigados a esperar. Desejei comunicá-las sua próxima libertação, mas a ineficiência de gestos e palavras isolou-me num mutismo para elas incompreensível. Eramos definitivamente incomunicáveis. Eu, gente; elas, bichos. Corujas, mesmo batizadas em segredo. Cassandra e Rasputin. Ofélia e Hamlet. Tutuca e Telecoteco. Qualquer nome não modificaria a sua natureza. Nunca. Corujas para sempre.
Mas a greve de fome persistia. Tão bem cumpriram seu serviço de comer baratas que em breve, creio, não restava mais nenhuma. Orgulhosas, passeavam seus estômagos vazios pela casa toda, a gente se olhando culpado, as mãos desertas de soluções. Não nos restava mais nada a fazer senão esperar. Por sua morte ou sua capitulação. Quem as visse, convictas em seu dês ilar faminto, poderia facilmente imaginá-las carregando cartazes de protesto. Contra quê? Contra quem? perguntávamos temerosos da resposta óbvia.
DESFECHO
Num começo de manhã ainda sem sol, igual a que as tinha trazido, Rasputin foi encontrado morto. O corpo pequeno e cinzento, já rígido, sobre os mosaicos frios da cozinha. Desviei os olhos sem dar nome ao sentimento que me invadia. Encolhida em seu canto, Cassandra diminuía cada vez mais. Olhos cerrados com força, eu tinha impressão que vezenquando seu corpo oscilava, talo de capim ao vento, quase quebrado.Até que morreu também. Digna e solitária, quem sabe virgem. Enterraram-na no fundo do quintal, uns jasmins jogados por cima da cova rasa, feita com as mãos.
Não fui ver a sepultura. Não sei se me assustava o mistério adensado ou para sempre desfeito.
Marcadores: O Inventario do Irremediavel
Ele veio vindo pela beira do mar, as luzes da cidade longe às suas costas. Às vezes escorregava tentando segurar - se em alguma coisa, mas na praia deserta não havia mais nada para segurar - se além das ondas que fugiam sempre. A areia molhada umedecia as calças pretas do smoking, salpicava as fraldas soltas da camisa, respingava o cravo vermelho pendendo da lapela.
Viu-a de longe, e parecia linda com os cabelos longos soltos naquela brisa com cheiro de mulher, algas e sal.
_ Betinha – chamou, tropeçando outra vez nos sapatos de verniz.
Ela continuou a correr pela praia como se não ouvisse, como se não o visse. Descalça, braços erguidos acima da cabeça, saltava alto, redondo, depois deixava - se cair como num desmaio, e quando o coração dele começava a bater mais forte pensando em ajudá-la, tornava a levantar - se leve feito essas pandorgas que os meninos empinam pelas tardes e mantinha - se no ar por alguns segundos, projetada para a frente. Folha, pluma branca, ave.
_ Betinha – ele chamou de novo, mais perto. Então ela olhou e sorriu. Não era Betinha.
_ Olá – a voz dela era tão clara que o fez pensar que a maioria das pessoas não devia falar à beira - mar.
A voz humana sempre parecia tosca demais entre o rumor das ondas, mas a dela, a voz da moça descalça, de branco, era sonora e limpa e de certa forma verde como as próprias ondas. Fundia - se com elas, e como elas também parecia crescer aos poucos, explodir num ponto mais alto, depois fugir outra vez.
_Está procurando alguém?
_Betinha – repetiu. _Onde está Betinha?
Ela riu alto sem responder. Estendeu o braço para tocá-la, mas aconteceu alguma coisa no momento em que seus dedos alongaram-se em direção ao vestido branco transparente. Ele estava bêbado, estava sem óculos e muito bêbado, portanto não saberia dizer se aquilo chegara mesmo a acontecer. A impressão - a impressão era de que seus dedos tinham atravessado o corpo dela.
Não só o tecido leve do vestido, mas o próprio corpo de carne, como se atravessa uma névoa sem ver a névoa quando se está dentro dela.
_ Você viu a lua? – ela perguntou.
Só então ele olhou para cima, para lua cheia no céu de dezembro. Ficou olhando quase esquecido dela, entendendo devagar por que fosforesciam a areia, a crista das ondas, o vestido, a pele, os cabelos da moça. Tornou a olhá-la, ela já não estava onde pensou que estaria.
Continuava a dançar longe dele, como se cumprisse algum ritual profano para o mar e a lua. Deve estar drogada, pensou, chegando bem perto. Nos olhos dela as pupilas eram remotas ilhas no horizonte e alguma coisa, alguma coisa ele não entendia.
_ Quer um gole?- perguntou tirando a pequena garrafa do bolso interno do paletó. Ela sacudiu a cabeça e ele bebeu sozinho, o líquido escorreu pelo queixo, pelo peito rendado da camisa até gotejar na areia formando poças miúdas que começaram também a fosforescer. Só depois de enxugar a boca nas costas das mãos estendeu a garrafa para ela. Com suas mãos claras de unhas curtas sem pintura, a moça apanhou-a e jogou-a ao mar.
_Veja, ela voa - ela gritou enquanto a garrafa brilhava no ar. E quando caiu nas ondas, riu mais alto, começando a correr.
Começou a persegui-la pela praia, mas estava tão completamente bêbado e ainda, como se não bastasse, sem óculos, e sempre acontecia outra vez àquela sensação de névoa, o corpo dela como se atravessando seus dedos para depois projetar - se mais longe no espaço. Ele caiu muitas vezes, placas de areia grudavam na roupa, e quando um fio de saliva escorregou do canto da boca, lembrou-se de repente de um desenho em algum livro de mitologia, o sátiro perseguindo uma ninfa. Só não tinha flauta, nem pés de bode, verificou, tirando as meias, depois os sapatos, o paletó, camisa e gravata. Molhado de suor, puxou as calças até os joelhos e ficou jogado de costas na areia enquanto ela dançava sem parar à sua volta.
_Você consegue vê-las?- ela apontou o mar.
_Hein - ele disse, sem acompanhar o gesto.
_Hein - ele disse, sem acompanhar o gesto.
Ela repetiu, olhando fixo para onde as ondas quebravam, mas já não parecia uma pergunta:
_Você consegue vê-las.
_As ondas?- ele esticou o pescoço, apoiando-se no topo da cabeça para olhar o mar lá atrás, e ficou ainda mais tonto.
Foi assim, oblíqua, que a viu aproximar - se das ondas, curvando-se para tocar na superfície das águas. Estranho, pensou, estranho como ele a via de longe, desse ângulo - as ondas cercavam-na sem molhar seus pés, circundavam os tornozelos como guirlandas até explodirem em espuma no ar em torno do corpo, feito uma aura de gotas. Ela colheu essa espuma ainda mais brilhante nas palmas das mãos e estendeu-as abertas para ele. Parecia uma oferenda.
_Não, não as ondas. As ondas todo mundo vê. Essas moças todas, vestidas de espuma branca. São tantas, você não vê? Aproveite agora, as ondinas só aparecem no apogeu da lua cheia. Você não consegue mesmo vê-las?
_Eu não consigo - ele disse. Via apenas o balanço das águas, para baixo, como se estivesse no convés de um navio, para cima, muitas vezes, para baixo, sem parar, para cima. Deixou a cabeça tombar para a frente: _ Acho que vou vomitar.
Ela ajoelhou-se ao lado dele, as mãos de dedos abertos em torno da sua cabeça tonta, sem tocá-la. Tão rápida, pensou, lá no meio das ondas e de repente aqui do meu lado outra vez.
_Você não devia beber tanto - os dedos frescos dela passavam a um milímetro da sua testa suada. Nesse milímetro entre a pele dele e a dela estava o frescor, feito um sopro. _Desse jeito você nunca conseguirá vê-las.
Ela uniu os indicadores e os polegares em triângulo, apontando o vértice para o centro exato da testa dele, naquele ponto justo, centro da cruz entre o horizontal das duas têmporas e o vertical dos pêlos unidos das sobrancelhas no alto do nariz até o início dos cabelos.
Então uma coisa amarga contraiu-se no estômago dele, depois derramou - se morna sobre as calças, as pernas, a areia. Antes, antes de novo, pareceram atravessar o vestido dela sem querer respingá-lo.
_O seu vestido - começou a dizer.
_Não tem importância - ela puxou o vestido para cima, despiu-o, rodou-o no ar e jogou-o nas águas. Olhou-a mais uma vez, e ela não usava mesmo nada por baixo, inteiramente nua, inteiramente branca, sem marca alguma no corpo liso, seios de adolescente.
_Você nunca toma sol?- perguntou.
_Eu sou filha da lua - a moça disse.
Ele não ouviu. Cabeça baixa, vomitava concentrado sobre os seus próprios pés. Depois deitou - se na areia e olhou para lua cheia ao lado da estrela brilhante, Vênus talvez, ficou pensando enquanto ela desabotoava suas calças, puxava-a pelos pés melados depois amontoava rindo numa trouxa com as cuecas roxas, o paletó, sapatos, camisa, meias, e jogava tudo no mar. Ele também ficou inteiramente nu, mas só a pele branca em torno do sexo fosforescia à luz da lua, o resto era tão moreno de sol que quase não via a si mesmo assim, fundido ao escuro.
_Quem é você?-perguntou.
Ela ergueu-se num único impulso e caminhou novamente para o mar. Os anúncios luminosos da cidade longe refletiam - se nos seios, as ondas cavalgavam o ventre raso para explodirem primeiro no sexo liso de pêlo, depois nos bicos à medida que entrava mar adentro.
_Quem é você?-tornou a perguntar, tentando levantar-se.
_Venha-ela gritou do meio das ondas, as águas cobriam metade do corpo. _Venha logo, venha comigo para o reino das ondinas.
Ele tentou e tornou outra vez a tentar levantar-se enquanto via o mar arrastar suas roupas cada vez mais pra longe. Preciso pegá-las, pensou, as chaves do carro, a carteira, e com grande esforço conseguiu parar em pé. Entrou na água, as ondas envolveram os tornozelos, lamberam suas coxas. Curvou-se, molhou as pontas dos dedos, passou-as na altura do coração, como a mãe ensinara naquela remota primeira vez em que viu o mar. Quando a água chegou no pescoço, mergulhou de repente para encontrá-la no fundo, as pupilas guardando pérolas negras, navios submersos, grutas de coral. Ao emergir, a cabeça dele estava lúcida como se estivesse bebido apenas daquela água salgada que cuspia em volta.
_Olha-ela brotou do meio das águas apontando o céu. Dezenas de estrelas cadentes cruzavam-se em todas as direções sobre suas cabeças.
Numa vertigem, ele baixou os olhos, e foi quando pela primeira vez deu-se conta que eram um homem e uma mulher inteiramente nus naquela praia deserta.
Plena madrugada, quase verão. Avançou, os dois braços estendidos e a voz tosca de quem não sabe estar junto ao mar, percebia. Mesmo assim, insistiu:
_Como é mesmo o seu nome, gatinha?
_Ondina - ela disse. Ou qualquer coisa assim, ele jamais teria certeza. Suspirou fundo, parecia triste, e acrescentou antes de desaparecer: _ Que pena, você não está preparado.
Os ouvidos dele estavam cheios d´água, as ondas explodiam barulhentas. Tornou a mergulhar procurando, mas não havia nada nas águas frias. Ao voltar à tona olhou para cima e já não havia também estrelas cadentes, nem sequer estrelas no baço céu de lua álgida. Só o cinza das águas, o visgo de formas vivas enleadas em suas pernas. Nada mais fosforescia.
Saiu tremendo do mar, jogou-se de bruços na areia e outra vez olhou para céu. A nuvem negra cobria a lua cheia. Na praia deserta ele estava nu e bêbado, o estômago voltou a contrair-se, alguém gritou ao longe, no lado das luzes da cidade, parecia seu nome, Betinha, lembrou, procurando as roupas, a carteira, as chaves, encontrou apenas um sapato de verniz preto todo enlameado e um cravo murcho. Foi - se dobrando sobre os joelhos lembrando daquela primeira vez, a mãe, o mar, tanto tempo, Vênus talvez, bem perto da lua cheia, tinha frio, o sapato numa das mãos, restos de cravo na outra, a vontade de vomitar voltava, que porre infernal, ele gemeu arquejando sobre a areia opaca, nunca vão acreditar.
_Ondina - pediu para ninguém, sozinho na praia, nu no meio da noite. _Ondina, por favor, me ajuda.
Viu-a de longe, e parecia linda com os cabelos longos soltos naquela brisa com cheiro de mulher, algas e sal.
_ Betinha – chamou, tropeçando outra vez nos sapatos de verniz.
Ela continuou a correr pela praia como se não ouvisse, como se não o visse. Descalça, braços erguidos acima da cabeça, saltava alto, redondo, depois deixava - se cair como num desmaio, e quando o coração dele começava a bater mais forte pensando em ajudá-la, tornava a levantar - se leve feito essas pandorgas que os meninos empinam pelas tardes e mantinha - se no ar por alguns segundos, projetada para a frente. Folha, pluma branca, ave.
_ Betinha – ele chamou de novo, mais perto. Então ela olhou e sorriu. Não era Betinha.
_ Olá – a voz dela era tão clara que o fez pensar que a maioria das pessoas não devia falar à beira - mar.
A voz humana sempre parecia tosca demais entre o rumor das ondas, mas a dela, a voz da moça descalça, de branco, era sonora e limpa e de certa forma verde como as próprias ondas. Fundia - se com elas, e como elas também parecia crescer aos poucos, explodir num ponto mais alto, depois fugir outra vez.
_Está procurando alguém?
_Betinha – repetiu. _Onde está Betinha?
Ela riu alto sem responder. Estendeu o braço para tocá-la, mas aconteceu alguma coisa no momento em que seus dedos alongaram-se em direção ao vestido branco transparente. Ele estava bêbado, estava sem óculos e muito bêbado, portanto não saberia dizer se aquilo chegara mesmo a acontecer. A impressão - a impressão era de que seus dedos tinham atravessado o corpo dela.
Não só o tecido leve do vestido, mas o próprio corpo de carne, como se atravessa uma névoa sem ver a névoa quando se está dentro dela.
_ Você viu a lua? – ela perguntou.
Só então ele olhou para cima, para lua cheia no céu de dezembro. Ficou olhando quase esquecido dela, entendendo devagar por que fosforesciam a areia, a crista das ondas, o vestido, a pele, os cabelos da moça. Tornou a olhá-la, ela já não estava onde pensou que estaria.
Continuava a dançar longe dele, como se cumprisse algum ritual profano para o mar e a lua. Deve estar drogada, pensou, chegando bem perto. Nos olhos dela as pupilas eram remotas ilhas no horizonte e alguma coisa, alguma coisa ele não entendia.
_ Quer um gole?- perguntou tirando a pequena garrafa do bolso interno do paletó. Ela sacudiu a cabeça e ele bebeu sozinho, o líquido escorreu pelo queixo, pelo peito rendado da camisa até gotejar na areia formando poças miúdas que começaram também a fosforescer. Só depois de enxugar a boca nas costas das mãos estendeu a garrafa para ela. Com suas mãos claras de unhas curtas sem pintura, a moça apanhou-a e jogou-a ao mar.
_Veja, ela voa - ela gritou enquanto a garrafa brilhava no ar. E quando caiu nas ondas, riu mais alto, começando a correr.
Começou a persegui-la pela praia, mas estava tão completamente bêbado e ainda, como se não bastasse, sem óculos, e sempre acontecia outra vez àquela sensação de névoa, o corpo dela como se atravessando seus dedos para depois projetar - se mais longe no espaço. Ele caiu muitas vezes, placas de areia grudavam na roupa, e quando um fio de saliva escorregou do canto da boca, lembrou-se de repente de um desenho em algum livro de mitologia, o sátiro perseguindo uma ninfa. Só não tinha flauta, nem pés de bode, verificou, tirando as meias, depois os sapatos, o paletó, camisa e gravata. Molhado de suor, puxou as calças até os joelhos e ficou jogado de costas na areia enquanto ela dançava sem parar à sua volta.
_Você consegue vê-las?- ela apontou o mar.
_Hein - ele disse, sem acompanhar o gesto.
_Hein - ele disse, sem acompanhar o gesto.
Ela repetiu, olhando fixo para onde as ondas quebravam, mas já não parecia uma pergunta:
_Você consegue vê-las.
_As ondas?- ele esticou o pescoço, apoiando-se no topo da cabeça para olhar o mar lá atrás, e ficou ainda mais tonto.
Foi assim, oblíqua, que a viu aproximar - se das ondas, curvando-se para tocar na superfície das águas. Estranho, pensou, estranho como ele a via de longe, desse ângulo - as ondas cercavam-na sem molhar seus pés, circundavam os tornozelos como guirlandas até explodirem em espuma no ar em torno do corpo, feito uma aura de gotas. Ela colheu essa espuma ainda mais brilhante nas palmas das mãos e estendeu-as abertas para ele. Parecia uma oferenda.
_Não, não as ondas. As ondas todo mundo vê. Essas moças todas, vestidas de espuma branca. São tantas, você não vê? Aproveite agora, as ondinas só aparecem no apogeu da lua cheia. Você não consegue mesmo vê-las?
_Eu não consigo - ele disse. Via apenas o balanço das águas, para baixo, como se estivesse no convés de um navio, para cima, muitas vezes, para baixo, sem parar, para cima. Deixou a cabeça tombar para a frente: _ Acho que vou vomitar.
Ela ajoelhou-se ao lado dele, as mãos de dedos abertos em torno da sua cabeça tonta, sem tocá-la. Tão rápida, pensou, lá no meio das ondas e de repente aqui do meu lado outra vez.
_Você não devia beber tanto - os dedos frescos dela passavam a um milímetro da sua testa suada. Nesse milímetro entre a pele dele e a dela estava o frescor, feito um sopro. _Desse jeito você nunca conseguirá vê-las.
Ela uniu os indicadores e os polegares em triângulo, apontando o vértice para o centro exato da testa dele, naquele ponto justo, centro da cruz entre o horizontal das duas têmporas e o vertical dos pêlos unidos das sobrancelhas no alto do nariz até o início dos cabelos.
Então uma coisa amarga contraiu-se no estômago dele, depois derramou - se morna sobre as calças, as pernas, a areia. Antes, antes de novo, pareceram atravessar o vestido dela sem querer respingá-lo.
_O seu vestido - começou a dizer.
_Não tem importância - ela puxou o vestido para cima, despiu-o, rodou-o no ar e jogou-o nas águas. Olhou-a mais uma vez, e ela não usava mesmo nada por baixo, inteiramente nua, inteiramente branca, sem marca alguma no corpo liso, seios de adolescente.
_Você nunca toma sol?- perguntou.
_Eu sou filha da lua - a moça disse.
Ele não ouviu. Cabeça baixa, vomitava concentrado sobre os seus próprios pés. Depois deitou - se na areia e olhou para lua cheia ao lado da estrela brilhante, Vênus talvez, ficou pensando enquanto ela desabotoava suas calças, puxava-a pelos pés melados depois amontoava rindo numa trouxa com as cuecas roxas, o paletó, sapatos, camisa, meias, e jogava tudo no mar. Ele também ficou inteiramente nu, mas só a pele branca em torno do sexo fosforescia à luz da lua, o resto era tão moreno de sol que quase não via a si mesmo assim, fundido ao escuro.
_Quem é você?-perguntou.
Ela ergueu-se num único impulso e caminhou novamente para o mar. Os anúncios luminosos da cidade longe refletiam - se nos seios, as ondas cavalgavam o ventre raso para explodirem primeiro no sexo liso de pêlo, depois nos bicos à medida que entrava mar adentro.
_Quem é você?-tornou a perguntar, tentando levantar-se.
_Venha-ela gritou do meio das ondas, as águas cobriam metade do corpo. _Venha logo, venha comigo para o reino das ondinas.
Ele tentou e tornou outra vez a tentar levantar-se enquanto via o mar arrastar suas roupas cada vez mais pra longe. Preciso pegá-las, pensou, as chaves do carro, a carteira, e com grande esforço conseguiu parar em pé. Entrou na água, as ondas envolveram os tornozelos, lamberam suas coxas. Curvou-se, molhou as pontas dos dedos, passou-as na altura do coração, como a mãe ensinara naquela remota primeira vez em que viu o mar. Quando a água chegou no pescoço, mergulhou de repente para encontrá-la no fundo, as pupilas guardando pérolas negras, navios submersos, grutas de coral. Ao emergir, a cabeça dele estava lúcida como se estivesse bebido apenas daquela água salgada que cuspia em volta.
_Olha-ela brotou do meio das águas apontando o céu. Dezenas de estrelas cadentes cruzavam-se em todas as direções sobre suas cabeças.
Numa vertigem, ele baixou os olhos, e foi quando pela primeira vez deu-se conta que eram um homem e uma mulher inteiramente nus naquela praia deserta.
Plena madrugada, quase verão. Avançou, os dois braços estendidos e a voz tosca de quem não sabe estar junto ao mar, percebia. Mesmo assim, insistiu:
_Como é mesmo o seu nome, gatinha?
_Ondina - ela disse. Ou qualquer coisa assim, ele jamais teria certeza. Suspirou fundo, parecia triste, e acrescentou antes de desaparecer: _ Que pena, você não está preparado.
Os ouvidos dele estavam cheios d´água, as ondas explodiam barulhentas. Tornou a mergulhar procurando, mas não havia nada nas águas frias. Ao voltar à tona olhou para cima e já não havia também estrelas cadentes, nem sequer estrelas no baço céu de lua álgida. Só o cinza das águas, o visgo de formas vivas enleadas em suas pernas. Nada mais fosforescia.
Saiu tremendo do mar, jogou-se de bruços na areia e outra vez olhou para céu. A nuvem negra cobria a lua cheia. Na praia deserta ele estava nu e bêbado, o estômago voltou a contrair-se, alguém gritou ao longe, no lado das luzes da cidade, parecia seu nome, Betinha, lembrou, procurando as roupas, a carteira, as chaves, encontrou apenas um sapato de verniz preto todo enlameado e um cravo murcho. Foi - se dobrando sobre os joelhos lembrando daquela primeira vez, a mãe, o mar, tanto tempo, Vênus talvez, bem perto da lua cheia, tinha frio, o sapato numa das mãos, restos de cravo na outra, a vontade de vomitar voltava, que porre infernal, ele gemeu arquejando sobre a areia opaca, nunca vão acreditar.
_Ondina - pediu para ninguém, sozinho na praia, nu no meio da noite. _Ondina, por favor, me ajuda.
Marcadores: Ovelhas Negras
Teu ego é minha base
Meu ego é teu destino
Meu destino é o teu outro
Teu destino é o meu ego
Teu outro é o meu destino
Tua base é o meu outro
Meu outro é a tua base
- Por tudo simplesmente
Não compreendo por quê: não.
Que coisas são essas que me dizes sem dizer, escondidas atrás do que realmente quer dizer?
Tenho me confundido na tentativa de te decifrar, todos os dias. Mas confuso, perdido, sozinho, minha única certeza é que cada vez aumenta ainda mais a minha necessidade de ti. Torna-se desesperada, urgente. Eu já não sei o que faço. Não sinto nenhuma outra alegria além de ti.
Como pude cair assim nesse fundo de poço? Quando foi que me desequilibrei? Não quero me afogar: Quero beber tua água. Não te negues, minha sede é clara.
Ex-pedir
Pedidos de socorro
Em todas as direções
Postado à janela
o laço na mão
ex-pirar
por dentro, inútil
medo em branco
examinando possibilidades
as mais diversas
de escape que não há
A natureza se esmera em reunir no corpo dele todos aqueles traços de beleza dispersos irregularmente pelos outros membros da família. Conjugava, assim, os cabelos pretos e lisos do pai aos olhos claros da mãe, o jeito lento de uma tia-avó ao nariz aquilino da rima, mais o corpo bem-feito de um primo aos dentes de uma sobrinha, e por aí afora. Tudo isso de maneira tão ostensiva que, em ocasiões como natal, ano-novo ou páscoa (sobretudo nas fotografias posteriores), ele sobressaía tanto que os outros parentes podiam esquivar-se a um movimento de inveja, cópias imperfeitas de um original impecável.
Não cantes como eu,
Os outros por bebedeira
Não saúdes
A morte em literatura
Boa negra
Voltada para as estrelas
Pés de chumbo
Cravados na lama:
O canhão
E sua escandalosa metafísica
E agora?
Três, quatro anos depois
Cadê você?
Cadê a grande mutação?
Pintaram as rebordosas. Continuaram pintando. Nós continuávamos resistindo mas às vezes penso que viver não deve ser apenas isso, segurar a barra.
Continuamos carregando nossas pequenas maldições – mais orgasmos, insônia, pesadelos, excessos de álcool e cigarros, procura cega, iluminações ilusórias e passageiras, etc. O mundo continua apodrecendo, os amigos vão para a Europa, para a clínica ou para a prisão, viciaram-se nas drogas mais diversas. Em nome de que resistimos? De onde tiramos essa energia, que é meio talvez uma falta de energia por não termos conseguido radicalizar e mudar alguém ou a nós próprios, ou enlouquecer e fugir pro mato. Normalmente resistimos enquanto o coração resseca, os olhos endurecem, as deliberações se frustram.
Desmascaramos a farsa para continuarmos a existir no meio dela. De que nos tem servido essa lucidez senão para chamar barra cada vez mais pesada?
Batalhamos a paz, a divina diferença. Pra termos sede de amor e de beleza.
(estou sem dinheiro no verão, baixa o astral de qualquer um)
Com ou sem nova convivência, somos profundamente infelizes. Nosso saldo é o desencanto. E você, onde andará?
Meu ego é teu destino
Meu destino é o teu outro
Teu destino é o meu ego
Teu outro é o meu destino
Tua base é o meu outro
Meu outro é a tua base
- Por tudo simplesmente
Não compreendo por quê: não.
Que coisas são essas que me dizes sem dizer, escondidas atrás do que realmente quer dizer?
Tenho me confundido na tentativa de te decifrar, todos os dias. Mas confuso, perdido, sozinho, minha única certeza é que cada vez aumenta ainda mais a minha necessidade de ti. Torna-se desesperada, urgente. Eu já não sei o que faço. Não sinto nenhuma outra alegria além de ti.
Como pude cair assim nesse fundo de poço? Quando foi que me desequilibrei? Não quero me afogar: Quero beber tua água. Não te negues, minha sede é clara.
Ex-pedir
Pedidos de socorro
Em todas as direções
Postado à janela
o laço na mão
ex-pirar
por dentro, inútil
medo em branco
examinando possibilidades
as mais diversas
de escape que não há
A natureza se esmera em reunir no corpo dele todos aqueles traços de beleza dispersos irregularmente pelos outros membros da família. Conjugava, assim, os cabelos pretos e lisos do pai aos olhos claros da mãe, o jeito lento de uma tia-avó ao nariz aquilino da rima, mais o corpo bem-feito de um primo aos dentes de uma sobrinha, e por aí afora. Tudo isso de maneira tão ostensiva que, em ocasiões como natal, ano-novo ou páscoa (sobretudo nas fotografias posteriores), ele sobressaía tanto que os outros parentes podiam esquivar-se a um movimento de inveja, cópias imperfeitas de um original impecável.
Não cantes como eu,
Os outros por bebedeira
Não saúdes
A morte em literatura
Boa negra
Voltada para as estrelas
Pés de chumbo
Cravados na lama:
O canhão
E sua escandalosa metafísica
E agora?
Três, quatro anos depois
Cadê você?
Cadê a grande mutação?
Pintaram as rebordosas. Continuaram pintando. Nós continuávamos resistindo mas às vezes penso que viver não deve ser apenas isso, segurar a barra.
Continuamos carregando nossas pequenas maldições – mais orgasmos, insônia, pesadelos, excessos de álcool e cigarros, procura cega, iluminações ilusórias e passageiras, etc. O mundo continua apodrecendo, os amigos vão para a Europa, para a clínica ou para a prisão, viciaram-se nas drogas mais diversas. Em nome de que resistimos? De onde tiramos essa energia, que é meio talvez uma falta de energia por não termos conseguido radicalizar e mudar alguém ou a nós próprios, ou enlouquecer e fugir pro mato. Normalmente resistimos enquanto o coração resseca, os olhos endurecem, as deliberações se frustram.
Desmascaramos a farsa para continuarmos a existir no meio dela. De que nos tem servido essa lucidez senão para chamar barra cada vez mais pesada?
Batalhamos a paz, a divina diferença. Pra termos sede de amor e de beleza.
(estou sem dinheiro no verão, baixa o astral de qualquer um)
Com ou sem nova convivência, somos profundamente infelizes. Nosso saldo é o desencanto. E você, onde andará?
(Dispersos - Caio 3D O Essencial da Década de 1980)
Marcadores: Dispersos
Sei que na verdade não, mas na minha cabeça o Menino Deus é uma ilha. Não sou muito bom em pontos cardeais, e agora não é noite para tentar ver o Cruzeiro do Sul nem há uma agulha à mão para ser posta boiando na água (ainda que houvesse, é para o sul ou para o norte que aponta a ponta, afinal?), portanto é correndo o risco de cometer erros e arbitrariedades mis que tento cartografar: o Menino Deus limita-se apenas por duas águas, as do riacho Ipiranga ao norte e as do Guaíba a oeste. Ao sul, a fronteira confunde-se com o Morro Santa Tereza; à leste, com a Azenha.
Nada disso é definitivo, eu mesmo coloco dúvidas. Por exemplo: aquelas ruas logo depois da ponte da Ipiranga, onde ficam o Teatro Renascença e o prédio de Zero Hora, são mais Menino Deus ou Cidade Baixa? E a avenida Erico Verissimo (que é inventada, duvido que alguém lembre direito o que havia antes dela) limita ou não a fronteira com a Azenha? E nas subidas do morro, onde exatamente acaba o Menino Deus e começa Santa Tereza? Seria a José de Alencar o marco divisório? Há um ponto ainda mais delicado: a quem pertence o Parque Marinha do Brasil? Porque a Praia de Belas, como a avenida Erico Veríssimo, também é tão inventada que, feito a Holanda, é mais aterro do que terra propriamente dita. Antigamente, disso lembro bem, o Guaíba terminava (ou começava) mesmo no Menino Deus. Além do mais, não consigo levar a Praia de Belas muito a sério - sei que o que vou dizer é polêmico e pode provocar acusações de colonialismo, mas tenho que dizer: a Praia de Belas está para o Menino Deus assim como Santa Catarina para o Rio Grande do Sul... Reticências.
De qualquer forma, imagino essa ilha - e por imaginá-la, sendo eu o dono dessa invenção, posso demarcá-la como quiser e inclusive me apropriar de certos territórios mais além do imaginário. Caso contrário onde colocaria, por exemplo, aquela paineira enorme no alto de um morro numa rua que não digo o nome?
Como um gigantesco tronco humano de pernas abertas enterradas na terra abaixo dos joelhos e braços abertos em galhos estendidos para o alto, o Oxóssi mais soberbo que já vi, essa paineira poderia fazer parte da bandeira do Menino Deus.
Que se não é uma ilha, certamente é independente. Há mercados super e inhos, há farmácias alo e homeopáticas, há feiras (uma ótima, só de produtos naturais, aos sábados, no Parque de Exposições, onde não se corre o terrível risco de encontrar-todo-mundo, como no Brique da Redenção), há sobretudo ruas cheias de árvores onde você pode se perder em túneis vermelhos, se for tempo de hibiscos, ou roxos, se for tempo de ipês e assim por diante. Agora é tempo de uma árvore de cachos amarelíssimos, uma espécie assim de alegoria à mais dourada das Oxuns.
Tropicalismo à parte, parece a Suíça. Sei, você vai dizer que isso também já é exagerado e argumentar que tem mendigos. Tem, claro. Mas os mendigos do Menino Deus são tão, mas tão suíços que têm até horário para bater nas portas. Aos sábados, bem na hora do almoço, sabemos sempre aqui em casa que é o Juca. Depois do jantar, que é-aquele-ou-aquela-cheirando-a-cola. Em outros dias, numa hora sempre inadequada, que é aquele-meio-enfrentativo-com-mania-de-apertar-a-mão. A hora dele é errar a hora, compreende? Mendigos à parte, já observei que no Menino Deus tanto passarinhos quanto borboletas não têm medo dos humanos. Isso quer dizer muita coisa.
Mas agora me dou conta que, mal comecei a dizer o que queria, terminou o espaço. O Menino Deus é, sim, uma ilha. Pode não ser cercada de água por todos os lados, mas tem até náufragos. Só que, felizmente para vocês e para mim, isso já seria outra história.
(Publicado em Zero Hora, 21/01/1995)
Nada disso é definitivo, eu mesmo coloco dúvidas. Por exemplo: aquelas ruas logo depois da ponte da Ipiranga, onde ficam o Teatro Renascença e o prédio de Zero Hora, são mais Menino Deus ou Cidade Baixa? E a avenida Erico Verissimo (que é inventada, duvido que alguém lembre direito o que havia antes dela) limita ou não a fronteira com a Azenha? E nas subidas do morro, onde exatamente acaba o Menino Deus e começa Santa Tereza? Seria a José de Alencar o marco divisório? Há um ponto ainda mais delicado: a quem pertence o Parque Marinha do Brasil? Porque a Praia de Belas, como a avenida Erico Veríssimo, também é tão inventada que, feito a Holanda, é mais aterro do que terra propriamente dita. Antigamente, disso lembro bem, o Guaíba terminava (ou começava) mesmo no Menino Deus. Além do mais, não consigo levar a Praia de Belas muito a sério - sei que o que vou dizer é polêmico e pode provocar acusações de colonialismo, mas tenho que dizer: a Praia de Belas está para o Menino Deus assim como Santa Catarina para o Rio Grande do Sul... Reticências.
De qualquer forma, imagino essa ilha - e por imaginá-la, sendo eu o dono dessa invenção, posso demarcá-la como quiser e inclusive me apropriar de certos territórios mais além do imaginário. Caso contrário onde colocaria, por exemplo, aquela paineira enorme no alto de um morro numa rua que não digo o nome?
Como um gigantesco tronco humano de pernas abertas enterradas na terra abaixo dos joelhos e braços abertos em galhos estendidos para o alto, o Oxóssi mais soberbo que já vi, essa paineira poderia fazer parte da bandeira do Menino Deus.
Que se não é uma ilha, certamente é independente. Há mercados super e inhos, há farmácias alo e homeopáticas, há feiras (uma ótima, só de produtos naturais, aos sábados, no Parque de Exposições, onde não se corre o terrível risco de encontrar-todo-mundo, como no Brique da Redenção), há sobretudo ruas cheias de árvores onde você pode se perder em túneis vermelhos, se for tempo de hibiscos, ou roxos, se for tempo de ipês e assim por diante. Agora é tempo de uma árvore de cachos amarelíssimos, uma espécie assim de alegoria à mais dourada das Oxuns.
Tropicalismo à parte, parece a Suíça. Sei, você vai dizer que isso também já é exagerado e argumentar que tem mendigos. Tem, claro. Mas os mendigos do Menino Deus são tão, mas tão suíços que têm até horário para bater nas portas. Aos sábados, bem na hora do almoço, sabemos sempre aqui em casa que é o Juca. Depois do jantar, que é-aquele-ou-aquela-cheirando-a-cola. Em outros dias, numa hora sempre inadequada, que é aquele-meio-enfrentativo-com-mania-de-apertar-a-mão. A hora dele é errar a hora, compreende? Mendigos à parte, já observei que no Menino Deus tanto passarinhos quanto borboletas não têm medo dos humanos. Isso quer dizer muita coisa.
Mas agora me dou conta que, mal comecei a dizer o que queria, terminou o espaço. O Menino Deus é, sim, uma ilha. Pode não ser cercada de água por todos os lados, mas tem até náufragos. Só que, felizmente para vocês e para mim, isso já seria outra história.
(Publicado em Zero Hora, 21/01/1995)
Marcadores: Pequenas Epifanias
E de novo me vens e me contas do mar aberto das costas de tua terra, do vento gelado soprando desde o pólo, nos invernos, sem nenhuma baía, nenhuma gaivota ou albatroz sobrevoando rasante o cinza das águas para mergulhar, como certa vez, em algum lugar, rápido iscando um peixe no bico agudo, mas essas outras águas que lembro eram claras verdes, havia sol e acho que também um reflexo de prata no bico da ave no momento justo do mergulho, nessas águas de que me falas quando me tomas assim e me levas para histórias ou caminhadas sem fim não há verde nem é claro, o sol não transpõe as nuvens, e te imagino então parado sozinho entre a faixa interminável de areia, o vento que bate em teu rosto, as mãos com os dedos roxos de frio enfiadas até o fundo dos bolos, o vento e novamente o vento que bate em teu rosto, esse mesmo que não me olha agora, raramente, teu olho bate em mim e logo se desvia, como se em minhas pupilas houvesse uma faca, uma pedra, um gume, teu rosto mais nu que sempre, à beira-mar, com esse vento a bater e a revolver teus cabelos e pensamentos, e eu sem saber que me envolve agora quando teu olho outra vez escorrega para fora e longe do meu, entre tua testa larga de onde às vezes costuma afastar os cabelos com ambas as mãos, numa mistura de preguiça e sensualidade expostas, e quando teu olho se afasta assim, não sei para onde, talvez para esse mesmo lugar onde te encontravas ontem, à beira do mar aberto, onde não penetro, como não te penetro agora, mas é quando a pedra ou faca no fundo do meu olho afasta o teu é que te olho detalhado, e nunca saberás quanto e como já conheço cada milímetro da tua pele, esses vincos cada vez mais fundos circundando as sobrancelhas que se erguem súbitas para depois diluírem-se em pêlos cada vez mais ralos, até a região onde os raspas quase sempre mal, e conheço também esses tocos de pêlos duros e secretos, escondidos sob teu lábio inferior, levemente partido ao meio, e tão dissimulado te espio que nunca me percebes assim, te devassando como se através de cada fiapo, de cada poro, pudesse chegar a esse mais de dentro que me escondes sutil, obstinado, através de histórias como essa, do mar, das velhas tias, das iniciações, dos exílios, das prisões, das cicatrizes, e em tudo que me contas pensando, suponho, que é teu jeito de dar-se a mim, percebo farpado que te escondes ainda mais, como se te contando a mim negasses quase deliberado a possibilidade de te descobrir atrás e além de tudo que me dizes, é por isso que me escondo dessas tuas histórias que me enredam cada vez mais no que não és tu, mas o que foste, tento fugir para longe e a cada noite, como uma criança temendo pecados, punições de anjos vingadores com espadas flamejantes, prometo a mim mesmo nunca mais ouvir, nunca mais ter a ti tão mentirosamente próximo, e escapo brusco para que percebas que mal suporto a tua presença, veneno, veneno, às vezes digo coisas ácidas e de alguma forma quero te fazer compreender que não é assim, que tenho um medo cada vez maior do que vou sentindo em todos esses meses, e não se soluciona, mas volto e volto sempre, então me invades outra vez com o mesmo jogo e embora supondo conhecer as regras, me deixo tomar por inteiro por tuas estranhas liturgias, a compactuar com teus medos que não decifro, a aceitá-los como um cão faminto aceita um osso descarnado, essas migalhas que me vais jogando entre as palavras e os pratos vazios, torno sempre a voltar, talvez penalizado do teu olho que não se debruça sobre nenhum outro assim como sobre o meu, temendo a faca, a pedra, o gume das tuas histórias longas, das tuas memórias tristes, cheias de corredores mofados, donzelas velha trancadas em seus quartos, balcões abertos sobre ruazinhas onde moças solteiras secam o cabelo, exibindo os peitos, tornarei sempre a voltar porque preciso desse osso, dos farelos que me têm alimentado ao longo deste tempo e choro sempre quando os dias terminam porque sei que não nos procuraremos pelas noites, quando o meu perigo aumenta e sem me conter te assaltaria feito um vampiro faminto para te sangrar enquanto meus dentes penetrando nas veias de tua garganta arrancassem do fundo essa vida que me negas delicadamente, de cada vez que me procuras e me tomas, contudo me enveneno mais quando não vens e ninguém então me sabe parado feito velho num resto de sol de agosto, escurecido pela tua ausência, e me anoiteço ainda mais e me entrevo tanto quando estás presente e novamente me tomas e me arrancas de mim me desguiando por esses caminhos conhecidos onde atrás de cada palavra tento desesperado encontrar um sentido, um código, uma senha qualquer que me permita esperar por um atalho onde não desvies tão súbito os olhos, onde teu dedo não roce tão passageiro no meu braço, onde te detenhas mais demorando sobre isso que sou e penses que sabe que se aceito tuas tramas, e vomitas sobre mim, e depois puxa a descarga e te vais, me deixando repleto dos restos amargos do que não digeriste, mas mesmo assim penses que poderias aceitar também meus jogos, esses que não proponho, ah detritos, mas tudo isso é inútil e bem sei de como tenho tentado me alimentar dessa casca suja que chamamos com fome e pena de pequenas-esperanças, enquanto definho feito um animal alimentado, apenas com água, uma água rala e pouca, não essa densa espessa turva do mar de que me falaste no começo da tarde que agora vai-se indo devagar atrás das minhas costas, e parado aqui do teu lado, sem que me vejas, lentamente afio as pedras e as facas do fundo das minhas pupilas, para que a noite não me encontre outra vez insone, recomponho sozinho um por um dos teus traços, dos teus pêlos, para que quando esses teus olhos escuros e parados como as águas do mar de inverno na praia onde talvez caminhes ainda, enquanto me adentro em gumes, resvalaram outra vez pelos meus, que seu fio esteja tão aguçado que possa rasgar-te até o fundo, para que te arrastes nesse chão que juncamos todos os dias de papéis rabiscadas e pontas de cigarro, sangrando e gemendo, a implorar de mim aquele mesmo gesto que nunca fizeste, e nem sempre sei exatamente qual seria, mas que nos arrancasse brusco e definitivo dessa mentira gentil onde não sei se deliberados ou casuais afundamos pouco a pouco, bêbados como moscas sobre açúcar, melados de nossa própria cínica doçura acovardada, contaminado por nossa falsa pureza, encharcados de palavras e literatura, e depois nos jogasse completamente nus, sem nenhuma história, sem nenhuma palavra, nessa mesma beira de mar das costas da tua terra, e de novo então me vens e me chegas e me invades e me tomas e me pedes e me perdes e te derramas sobre mim com teus olhos sempre fugitivos e abres a boca para libertar novas histórias e outra vez me completo assim, sem urgências, e me concentro inteiro nas coisas que me contas, e assim calado, e assim submisso, te mastigo dentro de mim enquanto me apunhalas com lenta delicadeza deixando claro em cada promessa que jamais será cumprida, que nada devo esperar além dessa máscara colorida, que me queres assim porque é assim que és e unicamente assim é que me queres e me utilizas todos os dias, e nos usamos honestamente assim, eu digerindo faminto o que teu corpo rejeita, bebendo teu mágico veneno porco que me ilumina e me anoitece a cada dia, e passo a passo afundo nesse charco que não sei se é o grande conhecimento de nós ou o imenso engano de ti e de mim, nos afastamos depois cautelosos ao entardecer, e na solidão de cada um sei que tecemos lentos nossa próxima mentira, tão bem urdida que na manhã seguinte será como verdade pura e sorriremos amenos, desviando os olhos, corriqueiros, à medida que o dia avança estruturando milímetro a milímetro uma harmonia que só desabará levemente em cada roçar temeroso de olhos ou de peles, os gelos, os vermes roendo os porões que insistimos em manter até que o não-feito acumulado durante todo esse tempo cresça feito célula cancerosa para quem sabe explodir em feridas visíveis indisfarçáveis, flores de um louco vermelho na superfície da pele que recusamos tocar por nojo ou covardia ou paixão tão endemoniada que não suportaria a água benta de seu próprio batismo, e enquanto falas e me enredas e me envolves e me fascinas com tua voz monocórdia e sempre baixa, de estranho acento estrangeiro, penso sempre que o mar não é esse denso escuro que me contas, sem palmeiras nem ilhas nem baías nem gaivotas, mas um outro mais claro e verde, num lugar qualquer onde é sempre verão e as emoções limpas como as areias que pisamos, não sabes desse meu mar porque nada digo, e temo que seja outra vez aquela coisa piedosa, faminta, as pequenas-esperanças, mas quando desvio meu olho do teu, dentro de mim guardo sempre teu rosto e sei que por escolha impossível recuar para não ir até o fim e o fundo disso que nunca vivi antes e talvez tenha inventado apenas para me distrair nesses dias onde aparentemente nada acontece e tenha inventado quem sabe em ti um brinquedo semelhante ao meu para que não passem tão desertas as manhãs e as tardes buscando motivos para os sustos e as insônias e as inúteis esperas ardentes e loucas invenções noturnas, e lentamente falas, e lentamente calo, e lentamente aceito, e lentamente quebro, e lentamente falho, e lentamente caio cada vez mais fundo e já não consigo voltar à tona porque a mão que me estendes ao invés de me emergir me afunda mais e mais enquanto dizes e contas e repetes essas histórias longas, essas histórias tristes, essas histórias loucas como esta que acabaria aqui, agora, assim, se outra vez não viesses e me cegasses e me afogasses nesse mar aberto que nós sabemos que não acaba assim nem agora nem aqui.
Marcadores: Os Dragoes nao conhecem o paraiso
Para atravessar agosto é preciso antes de mais nada paciência e fé. Paciência para cruzar os dias sem se deixar esmagar por eles, mesmo que nada aconteça de mau; fé para estar seguro, o tempo todo, que chegará setembro- e também certa não-fé, para não ligar a mínima às negras lendas deste mês de cachorro louco.É preciso quem sabe ficar-se distraído, inconsciente de que é agosto, e só lembrar disso no momento de, por exemplo, assinar um cheque e precisar da data. Então dizer mentalmente ah!, escrever tanto de tanto de mil novecentos e tanto e ir em frente. Este é um ponto importante:ir, sobretudo, em frente.
Para atravessar agosto também é necessário reaprender a dormir,dormir muito, com gosto, sem comprimidos, de preferência também sem sonhos. São incontroláveis os sonhos de agosto: se bons, deixam a vontade impossível de morar neles, se maus,
fica a suspeita de sinistros angúrios , premonições.Armazenar víveres, como às vésperas de um furacão anunciado, mas víveres espirituais, intelectuais, e sem muito critério de qualidade. Muitos vídeos de chanchadas da Atlântida a Bergman; muitos CDs, de Mozart a Sula Miranda; muitos livros, de Nietzche a Sidney Sheldon. Controle remoto na mão e dezenas de canais a cabo ajudam bem:qualquer problema , real ou não, dê um zap na telinha e filosoficamente considere, vagamente onipotente, que isso também passará. Zaps mentais, emocionais, psicológicos, não só eletrônicos, são fundamentais para atravessar agostos. Claro que falo em agostos burgueses, de médio ou alto poder aquisitivo. Não me critiquem por isso, angústias agostianas são mesmo coisa de gente assim, meio fresca que nem nós. Para quem toma trem de subúrbio às cinco da manhã todo dia, pouca diferença faz abril, dezembro ou, justamente, agosto. Angústia agostiana é coisa cultural, sim. E econômica. Mas pobres ou ricos, há conselhos- ou precauções-úteis a todos. O mais difícil:evitar a cara de Fernando Henrique Cardoso em foto ou vídeo, sobretudo se estiver se pavoneando com um daqueles chapéus de desfile a fantasia categoria originalidade...Esquecê-lo tão
completamente quanto possível(santo ZAP!):FHC agrava agosto, e isso é tão grave que vou mudar de assunto já.
Para atravessar agosto ter um amor seria importante, mas se você não conseguiu, se avida não deu, ou ele partiu- sem o menor pudor, invente um.Pode ser Natália Lage, Antonio Banderas, Sharon Stone, Robocop, o carteiro, a caixa do banco, o
seu dentista. emoto ou acessível, que você possa pensar nesse amor nas noites de agosto, viajar por ilhas do Pacífico Sul, Grécia, Cancún ou Miami, ao gosto do freguês. Que se possa sonhar, isso é que conta, com mãos dadas, suspiros,
juras, projetos, abraços no convés à lua cheia, brilhos na costa ao longe. E beijos, muitos. Bem molhados.
Não lembrar dos que se foram, não desejar o que não se tem e talvez nem se terá, não discutir, nem vingar-se , e temperar tudo isso com chás, de preferência ingleses, cristais de gengibre, gotas de codeína, se a barra pesar, vinhos, conhaques-tudo isso ajuda a atravessar agosto. Controlar o excesso de informações para que as desgraças sociais ou pessoais não dêem a impressão de serem maiores do que são. Esquecer o Zaire , a ex-Iugoslávia, passar por cima das páginas policiais. Aprender decoração, jardinagem, ikebana, a arte das bandejas de asas de borboletas- coisas assim são eficientíssimas, pouco me
importa ser acusado de alienação. É isso mesmo, evasão, escapismos, explícitos.
Mas para atravessar agosto, pensei agora, é preciso principalmente nãose deter de mais no tema. Mudar de assunto,digitar rápido o ponto final, sinto muito perdoe o mau jeito, assim, veja, bruto e seco:.
(crônica escrita em AGOSTO de 1995, O ESTADO DE SÃO PAULO)
Para atravessar agosto também é necessário reaprender a dormir,dormir muito, com gosto, sem comprimidos, de preferência também sem sonhos. São incontroláveis os sonhos de agosto: se bons, deixam a vontade impossível de morar neles, se maus,
fica a suspeita de sinistros angúrios , premonições.Armazenar víveres, como às vésperas de um furacão anunciado, mas víveres espirituais, intelectuais, e sem muito critério de qualidade. Muitos vídeos de chanchadas da Atlântida a Bergman; muitos CDs, de Mozart a Sula Miranda; muitos livros, de Nietzche a Sidney Sheldon. Controle remoto na mão e dezenas de canais a cabo ajudam bem:qualquer problema , real ou não, dê um zap na telinha e filosoficamente considere, vagamente onipotente, que isso também passará. Zaps mentais, emocionais, psicológicos, não só eletrônicos, são fundamentais para atravessar agostos. Claro que falo em agostos burgueses, de médio ou alto poder aquisitivo. Não me critiquem por isso, angústias agostianas são mesmo coisa de gente assim, meio fresca que nem nós. Para quem toma trem de subúrbio às cinco da manhã todo dia, pouca diferença faz abril, dezembro ou, justamente, agosto. Angústia agostiana é coisa cultural, sim. E econômica. Mas pobres ou ricos, há conselhos- ou precauções-úteis a todos. O mais difícil:evitar a cara de Fernando Henrique Cardoso em foto ou vídeo, sobretudo se estiver se pavoneando com um daqueles chapéus de desfile a fantasia categoria originalidade...Esquecê-lo tão
completamente quanto possível(santo ZAP!):FHC agrava agosto, e isso é tão grave que vou mudar de assunto já.
Para atravessar agosto ter um amor seria importante, mas se você não conseguiu, se avida não deu, ou ele partiu- sem o menor pudor, invente um.Pode ser Natália Lage, Antonio Banderas, Sharon Stone, Robocop, o carteiro, a caixa do banco, o
seu dentista. emoto ou acessível, que você possa pensar nesse amor nas noites de agosto, viajar por ilhas do Pacífico Sul, Grécia, Cancún ou Miami, ao gosto do freguês. Que se possa sonhar, isso é que conta, com mãos dadas, suspiros,
juras, projetos, abraços no convés à lua cheia, brilhos na costa ao longe. E beijos, muitos. Bem molhados.
Não lembrar dos que se foram, não desejar o que não se tem e talvez nem se terá, não discutir, nem vingar-se , e temperar tudo isso com chás, de preferência ingleses, cristais de gengibre, gotas de codeína, se a barra pesar, vinhos, conhaques-tudo isso ajuda a atravessar agosto. Controlar o excesso de informações para que as desgraças sociais ou pessoais não dêem a impressão de serem maiores do que são. Esquecer o Zaire , a ex-Iugoslávia, passar por cima das páginas policiais. Aprender decoração, jardinagem, ikebana, a arte das bandejas de asas de borboletas- coisas assim são eficientíssimas, pouco me
importa ser acusado de alienação. É isso mesmo, evasão, escapismos, explícitos.
Mas para atravessar agosto, pensei agora, é preciso principalmente nãose deter de mais no tema. Mudar de assunto,digitar rápido o ponto final, sinto muito perdoe o mau jeito, assim, veja, bruto e seco:.
(crônica escrita em AGOSTO de 1995, O ESTADO DE SÃO PAULO)
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