Quando teve consciência do que fazia, seus dedos já haviam apertado o botão do porteiro eletrônico. Não conhecia aquele prédio nem ninguém que morasse ali. Também não conhecia a rua e se acontecesse algo, como um policial perguntar o-que-fazia-ali-àquela-hora, não saberia responder. Sabia que era noite, que era domingo, e não estava sequer um pouco bêbado. Sabia também que não sentia nada especial, nem mesmo uma vaga vontade de aventura. Mas soube disso tudo muito tarde, pois seus dedos (uns dedos um tanto grossos e meio avermelhados que, vistos agora, pareciam estranhamente independentes) já haviam apertado o botão, e sua voz (uma voz também estranhamente independente, também grossa e como que avermelhada pelo frio) perguntava:
— A Maria está?
— É ela mesma — ouviu a voz feminina e sorridente saindo distorcida pelos orifícios do aparelho.
Foi só no elevador, apertando o botão do sétimo andar, que lhe ocorreu que não conhecia nenhuma Maria (conhecia muitas Marias, mas nenhuma em especial), que poderia não ter entrado, não ter aberto a porta do elevador, não ter apertado o botão. Mas novamente era muito tarde. O elevador subia, a fórmica amarela doendo um pouco nos olhos. Quando abriu a porta, uma réstia de luz no corredor orientou-o até o apartamento.
E, ainda então, poderia ter voltado. Da mesma forma que os dedos e a voz, agora eram suas pernas, independentes, carregando-o para a porta e para a mulher que o cumprimentava sorrindo:
— Boa noite — ele disse. E antes de poder conter-se: — Eu sou amigo do Paulo.
— Paulo? — (Mas ele também não conhecia nenhum Paulo, ou conhecia vários, como todo mundo, nenhum em especial.) — Claro, o Paulo.
E como vai ele?
A mulher se afastou para que entrasse. Havia um abajur aceso a um canto, um sofá de plástico avermelhado imitando couro, duas poltronas iguais, uma mesinha com cinzeiros e nenhum quadro nas paredes.
— Vai bem, vai muito bem. — A voz continuava dizendo coisas que ele não pretendia dizer. — Passou no exame, está muito contente. — Viu as cortinas um pouco encardidas e, além delas, o bloco de edifícios tapando a visão. Acrescentou: — Está até pensando em trocar o carro por um mais novo, deste ano.
— Que ótimo — a mulher sorriu novamente. — Não quer sentar?
Ele sentou numa das poltronas. O plástico frio. Agora controlava os gestos, cruzando as pernas devagar e olhando a mulher pela primeira vez.
Devia ter um pouco mais de trinta anos. Talvez seja uma espécie de puta de classe, pensou, acostumada a receber visitas a esta hora. Tirou com cuidado o maço de cigarros do bolso do casaco.
— Fuma?
Ela apanhou um cigarro. Ele remexeu nos bolsos à procura de fósforos. Não encontrou. Ela apanhou sorrindo (sorria muito) um enorme isqueiro de acrílico roxo transparente de cima da mesinha e acendeu os dois cigarros, primeiro o dele.
— Acho que é muito tarde — ele disse.
— Você tem horas?
— Não.
Ela tornou a sorrir, olhando os próprios pulsos.
— Eu também não. Faz uns cinco anos que deixei de usar.
Achava neurotizante demais, nunca conseguia ficar num lugar muito tempo, sempre querendo saber se era muito tarde.
Ele fez um movimento para a frente com o tronco, estendeu o braço para bater a cinza do cigarro. Ela se adiantou e empurrou o cinzeiro.
Depois sentou-se à frente dele.
— Agora peguei uma certa prática — continuou. — Esteja onde estiver, seja que hora for, sou sempre capaz de adivinhar. Quer ver?
Ele fez que sim com a cabeça, querendo achar divertido. Grave, ela fechou os olhos, fingindo concentração.
— Meia-noite e vinte.
— Pode ser — ele disse. — Não tem como confirmar?
— Só ligando o rádio.
Ele pensou que ela fosse levantar para apanhar o rádio (devia haver um, provavelmente de pilhas). Mas ela não se moveu.
— Eu tinha vontade de ter um daqueles rádios com relógio junto, você conhece?
Ele fez que não com a cabeça.
— É assim: você coloca o despertador para uma determinada hora e escolhe uma rádio. Aí, na hora que você escolheu, em vez de o despertador fazer trrrrrriiiiiimmmm!, o rádio liga automaticamente e começa a tocar música.
— Deve ser bom.
— É maravilhoso. Mas pode coincidir justamente com uma propaganda, aí não é tão bom assim. Mas acho que tem umas rádios que só tocam música, não é?
— Não sei. Nunca ouço rádio.
— Eu também não. Queria um desses — repetiu. — Mas é tão caro. Acho que é coisa importada. Japonesa, americana. Aqui não tem disso.
— Suspirou. — Bebe alguma coisa?
— O quê?
— Perguntei se você bebe alguma coisa.
— Pensei que você ainda estivesse falando do rádio.
— Não estou falando mais disso — ela tornou a sorrir, distraída.
— Agora estou falando de bebidas. Tenho conhaque, uísque e cachaça. Devia ter vinho, com esse frio. Você não acha que eu devia ter vinho?
— Não sei. Talvez.
— Pois é, mas não tenho. — De repente a voz soou meio seca.
— O que você prefere?
— Conhaque — ele disse. E ficou olhando enquanto ela se levantava para ir à cozinha. Tinha movimentos mansos, o cabelo escuro um pouco desalinhado, usava um vestido comprido, de uma fazenda que ele imaginou quente e macia. Olhou em volta, rápido, como se não quisesse ser apanhado de surpresa. Não havia quase nada para olhar. O sofá, as poltronas, a mesinha (tampo branco de fórmica, pernas de madeira), as cortinas, a porta para a cozinha, a porta para o corredor e a porta para dentro. Quando voltou a cabeça, ela estava novamente à sua frente, com os dois copos de conhaque. Ele bebeu.
— Está ótimo — disse.
— Esquenta um pouco, não é?
— Esquenta.
— Você está com frio? — Ele ia dizer que não, que já não estava, mas ela não prestou atenção. — Estava olhando pela janela antes de você chegar e imaginando o frio que deve estar lá fora. As ruas estão vazias, não estão?
— Estão.
— E deve haver uma pequena camada de gelo em cima dos automóveis estacionados, não é?
— Acho que sim, não prestei muita atenção.
— E quando a gente fala, deve sair uma fumacinha pela boca, assim, veja.
— Ela tragou o cigarro, depois o apagou e soprou a fumaça devagar, para cima.
— Só que lá fora é ar condensado, não fumaça. — Riu.
— Aprendi no colégio.
— É assim mesmo — ele concordou. E apagou o cigarro.
Ela parou de falar. Ou louca, ele pensou. Ou puta ou louca. Mas ela era discreta e mansa, os cabelos caindo em mechas desalinhadas sobre a testa, o rosto um pouco gasto, as sobrancelhas depiladas e arrumadas em arco. As unhas sem pintura, roídas — observou, enquanto ela levava novamente o copo à boca, depois tornava a sorrir, os dentes irregulares, mas claros e parecendo naturais. Moveu-se incômodo na poltrona. Se ela não dissesse nada no próximo momento, não saberia como agir. Ela pareceu adivinhar. Pousou o copo sobre a mesa e perguntou:
— Como é mesmo o seu nome?
— João — mentiu, a voz brotando antes de qualquer pensamento.
— É um nome simpático. Meio antigo, você não acha? Ninguém mais se chama João, hoje em dia. Os meninos costumam se chamar Marcelo, Alexandre, Fabiano, essas coisas. As meninas são Simone, Jacqueline, Vanessa. Leio sempre aquelas participações de ascimento no jornal, é o que mais gosto de ler.
Ele não disse nada.
— Há cada vez menos Marias — ela continuou. — E cada vez menos Joões e Paulos. Exceto nós, claro. Quer mais um conhaque?
Foi então que ele começou a sentir como um perigo rondando.
Ela avançara o busto em direção a ele. De repente teve certeza: ela também estava mentindo. Pensou em perguntar, mas a certeza foi tanta que não era preciso. Além disso, a desconfiança de que uma pergunta assim fizesse desabar — o quê? Levantou-se.
— Acho que vou andando. Ela não disse nada.
— É muito tarde.
Ela continuou sem dizer nada.
— Tenho que trabalhar amanhã cedo.
Ela ajeitou uma das mechas do cabelo. Ele encaminhou-se para a porta. Estendeu a mão para abrir. Mas ela foi mais rápida. Antes que ele pudesse completar o gesto ela estava do seu lado, e muito próxima. Tão próxima que sentiu contra o pescoço um bafo morno de cigarro e conhaque.
As costas de sua mão esquerda roçaram a fazenda do vestido comprido.
Quente, macia. Bastava menos que um gesto. Mas ela já abria a porta:
— Dizem que se o visitante abre ele mesmo a porta, não volta nunca mais.
Ele saiu. O corredor de mosaicos gelados.
— Volte quando quiser — ela sorriu.
Ele deu alguns passos em direção ao elevador. Ela continuava na porta. Antes de entrar no elevador ainda se voltou para encará-la mais uma vez. E não conseguiu conter-se.
— Não conheço nenhum Paulo — disse.
— Eu também não — ela sorriu. Ela sorria sempre. Ele apertou o botão do Térreo. Conseguiu segurar a porta um momento antes que se fechasse, para gritar:
— Eu não me chamo João.
— Eu também não me chamo Maria — julgou ouvir.
Mas não tinha certeza. Difícil separar a voz sorridente do barulho de ferros do elevador. Rangendo, puxando para baixo.
Na porta do edifício, tornou a apertar o botão do porteiro eletrônico:
— Escuta — perguntou —, você não tem um rádio-despertador?
— Claro que sim. Na minha cabeeeira.
O riso chegou distorcido através dos pequenos orifícios do aparelho.
— E tenho também uma garrafa de vinho. Mas agora é muito tarde.
— A Maria está?
— É ela mesma — ouviu a voz feminina e sorridente saindo distorcida pelos orifícios do aparelho.
Foi só no elevador, apertando o botão do sétimo andar, que lhe ocorreu que não conhecia nenhuma Maria (conhecia muitas Marias, mas nenhuma em especial), que poderia não ter entrado, não ter aberto a porta do elevador, não ter apertado o botão. Mas novamente era muito tarde. O elevador subia, a fórmica amarela doendo um pouco nos olhos. Quando abriu a porta, uma réstia de luz no corredor orientou-o até o apartamento.
E, ainda então, poderia ter voltado. Da mesma forma que os dedos e a voz, agora eram suas pernas, independentes, carregando-o para a porta e para a mulher que o cumprimentava sorrindo:
— Boa noite — ele disse. E antes de poder conter-se: — Eu sou amigo do Paulo.
— Paulo? — (Mas ele também não conhecia nenhum Paulo, ou conhecia vários, como todo mundo, nenhum em especial.) — Claro, o Paulo.
E como vai ele?
A mulher se afastou para que entrasse. Havia um abajur aceso a um canto, um sofá de plástico avermelhado imitando couro, duas poltronas iguais, uma mesinha com cinzeiros e nenhum quadro nas paredes.
— Vai bem, vai muito bem. — A voz continuava dizendo coisas que ele não pretendia dizer. — Passou no exame, está muito contente. — Viu as cortinas um pouco encardidas e, além delas, o bloco de edifícios tapando a visão. Acrescentou: — Está até pensando em trocar o carro por um mais novo, deste ano.
— Que ótimo — a mulher sorriu novamente. — Não quer sentar?
Ele sentou numa das poltronas. O plástico frio. Agora controlava os gestos, cruzando as pernas devagar e olhando a mulher pela primeira vez.
Devia ter um pouco mais de trinta anos. Talvez seja uma espécie de puta de classe, pensou, acostumada a receber visitas a esta hora. Tirou com cuidado o maço de cigarros do bolso do casaco.
— Fuma?
Ela apanhou um cigarro. Ele remexeu nos bolsos à procura de fósforos. Não encontrou. Ela apanhou sorrindo (sorria muito) um enorme isqueiro de acrílico roxo transparente de cima da mesinha e acendeu os dois cigarros, primeiro o dele.
— Acho que é muito tarde — ele disse.
— Você tem horas?
— Não.
Ela tornou a sorrir, olhando os próprios pulsos.
— Eu também não. Faz uns cinco anos que deixei de usar.
Achava neurotizante demais, nunca conseguia ficar num lugar muito tempo, sempre querendo saber se era muito tarde.
Ele fez um movimento para a frente com o tronco, estendeu o braço para bater a cinza do cigarro. Ela se adiantou e empurrou o cinzeiro.
Depois sentou-se à frente dele.
— Agora peguei uma certa prática — continuou. — Esteja onde estiver, seja que hora for, sou sempre capaz de adivinhar. Quer ver?
Ele fez que sim com a cabeça, querendo achar divertido. Grave, ela fechou os olhos, fingindo concentração.
— Meia-noite e vinte.
— Pode ser — ele disse. — Não tem como confirmar?
— Só ligando o rádio.
Ele pensou que ela fosse levantar para apanhar o rádio (devia haver um, provavelmente de pilhas). Mas ela não se moveu.
— Eu tinha vontade de ter um daqueles rádios com relógio junto, você conhece?
Ele fez que não com a cabeça.
— É assim: você coloca o despertador para uma determinada hora e escolhe uma rádio. Aí, na hora que você escolheu, em vez de o despertador fazer trrrrrriiiiiimmmm!, o rádio liga automaticamente e começa a tocar música.
— Deve ser bom.
— É maravilhoso. Mas pode coincidir justamente com uma propaganda, aí não é tão bom assim. Mas acho que tem umas rádios que só tocam música, não é?
— Não sei. Nunca ouço rádio.
— Eu também não. Queria um desses — repetiu. — Mas é tão caro. Acho que é coisa importada. Japonesa, americana. Aqui não tem disso.
— Suspirou. — Bebe alguma coisa?
— O quê?
— Perguntei se você bebe alguma coisa.
— Pensei que você ainda estivesse falando do rádio.
— Não estou falando mais disso — ela tornou a sorrir, distraída.
— Agora estou falando de bebidas. Tenho conhaque, uísque e cachaça. Devia ter vinho, com esse frio. Você não acha que eu devia ter vinho?
— Não sei. Talvez.
— Pois é, mas não tenho. — De repente a voz soou meio seca.
— O que você prefere?
— Conhaque — ele disse. E ficou olhando enquanto ela se levantava para ir à cozinha. Tinha movimentos mansos, o cabelo escuro um pouco desalinhado, usava um vestido comprido, de uma fazenda que ele imaginou quente e macia. Olhou em volta, rápido, como se não quisesse ser apanhado de surpresa. Não havia quase nada para olhar. O sofá, as poltronas, a mesinha (tampo branco de fórmica, pernas de madeira), as cortinas, a porta para a cozinha, a porta para o corredor e a porta para dentro. Quando voltou a cabeça, ela estava novamente à sua frente, com os dois copos de conhaque. Ele bebeu.
— Está ótimo — disse.
— Esquenta um pouco, não é?
— Esquenta.
— Você está com frio? — Ele ia dizer que não, que já não estava, mas ela não prestou atenção. — Estava olhando pela janela antes de você chegar e imaginando o frio que deve estar lá fora. As ruas estão vazias, não estão?
— Estão.
— E deve haver uma pequena camada de gelo em cima dos automóveis estacionados, não é?
— Acho que sim, não prestei muita atenção.
— E quando a gente fala, deve sair uma fumacinha pela boca, assim, veja.
— Ela tragou o cigarro, depois o apagou e soprou a fumaça devagar, para cima.
— Só que lá fora é ar condensado, não fumaça. — Riu.
— Aprendi no colégio.
— É assim mesmo — ele concordou. E apagou o cigarro.
Ela parou de falar. Ou louca, ele pensou. Ou puta ou louca. Mas ela era discreta e mansa, os cabelos caindo em mechas desalinhadas sobre a testa, o rosto um pouco gasto, as sobrancelhas depiladas e arrumadas em arco. As unhas sem pintura, roídas — observou, enquanto ela levava novamente o copo à boca, depois tornava a sorrir, os dentes irregulares, mas claros e parecendo naturais. Moveu-se incômodo na poltrona. Se ela não dissesse nada no próximo momento, não saberia como agir. Ela pareceu adivinhar. Pousou o copo sobre a mesa e perguntou:
— Como é mesmo o seu nome?
— João — mentiu, a voz brotando antes de qualquer pensamento.
— É um nome simpático. Meio antigo, você não acha? Ninguém mais se chama João, hoje em dia. Os meninos costumam se chamar Marcelo, Alexandre, Fabiano, essas coisas. As meninas são Simone, Jacqueline, Vanessa. Leio sempre aquelas participações de ascimento no jornal, é o que mais gosto de ler.
Ele não disse nada.
— Há cada vez menos Marias — ela continuou. — E cada vez menos Joões e Paulos. Exceto nós, claro. Quer mais um conhaque?
Foi então que ele começou a sentir como um perigo rondando.
Ela avançara o busto em direção a ele. De repente teve certeza: ela também estava mentindo. Pensou em perguntar, mas a certeza foi tanta que não era preciso. Além disso, a desconfiança de que uma pergunta assim fizesse desabar — o quê? Levantou-se.
— Acho que vou andando. Ela não disse nada.
— É muito tarde.
Ela continuou sem dizer nada.
— Tenho que trabalhar amanhã cedo.
Ela ajeitou uma das mechas do cabelo. Ele encaminhou-se para a porta. Estendeu a mão para abrir. Mas ela foi mais rápida. Antes que ele pudesse completar o gesto ela estava do seu lado, e muito próxima. Tão próxima que sentiu contra o pescoço um bafo morno de cigarro e conhaque.
As costas de sua mão esquerda roçaram a fazenda do vestido comprido.
Quente, macia. Bastava menos que um gesto. Mas ela já abria a porta:
— Dizem que se o visitante abre ele mesmo a porta, não volta nunca mais.
Ele saiu. O corredor de mosaicos gelados.
— Volte quando quiser — ela sorriu.
Ele deu alguns passos em direção ao elevador. Ela continuava na porta. Antes de entrar no elevador ainda se voltou para encará-la mais uma vez. E não conseguiu conter-se.
— Não conheço nenhum Paulo — disse.
— Eu também não — ela sorriu. Ela sorria sempre. Ele apertou o botão do Térreo. Conseguiu segurar a porta um momento antes que se fechasse, para gritar:
— Eu não me chamo João.
— Eu também não me chamo Maria — julgou ouvir.
Mas não tinha certeza. Difícil separar a voz sorridente do barulho de ferros do elevador. Rangendo, puxando para baixo.
Na porta do edifício, tornou a apertar o botão do porteiro eletrônico:
— Escuta — perguntou —, você não tem um rádio-despertador?
— Claro que sim. Na minha cabeeeira.
O riso chegou distorcido através dos pequenos orifícios do aparelho.
— E tenho também uma garrafa de vinho. Mas agora é muito tarde.
Marcadores: Pedras de Calcuta
Havia sol naquele tempo e apenas um dente doía. No começo, apenas um. Eu conseguia localizar a dor e orientava três de meus dedos, indicador, médio, polegar, as extremidades unidas, até aquele ponto latejante. Eu inspirava fundo. E quando expirava, alguns raios saíam das extremidades dos dedos e atravessavam a pele dos maxilares e a carne das gengivas para ir ao encontro do ponto exato. Depois de alguns minutos eu suspirava, os músculos se soltavam, as pernas e os braços se distendiam e minha cabeça afundava na grama, o rosto voltado para o sol. Agora ficou escuro e todos os dentes doem ao mesmo tempo. Como se um enorme animal ferido passeasse, sangrando e gemendo, dentro de minha boca. Levo as duas mãos ao rosto, continuamente. Inspiro, expiro. Mas nada mais
acontece.
Antes, antes ainda, foram os piolhos. Eu sentia alguns movimentos estranhos entre meus cabelos. Mas naquele tempo eram tantos pensamentos novos e incontroláveis dentro da minha cabeça que eu não sabia mais distingui-los daqueles outros movimentos, externos, escuros. Até o dia em que alguém tocou nos meus cabelos eu julguei que apenas dentro
havia aquelas súbitas corridas, aquele fervilhar. Ainda havia sol, então, e esse alguém puxou para fora, entre as pontas unidas de três dedos, aquela pequena coisa branca, mole, redonda, que ficou se contorcendo ao sol.
Desde então, alertado, passei a separar a sua ebulição daquela outra, a de dentro. E por vezes eles desciam por meu pescoço, procurando os pêlos do peito, dos braços, do sexo. Quando não me doíam os dentes e quando havia sol, às vezes eu os comprimia devagar entre as unhas para depois jogá-los pela janela, sobre a rua, a grama. Alguns eram levados pelo vento. Os outros se reproduziam ferozmente, sem que eu nada pudesse fazer para de tê-los.
Um pouco antes, não sei, ou mesmo durante ou depois, não importa — o certo é que um dia houve também as bolhas. Apareciam primeiro entre os dedos das mãos, pequenas, rosadas. Comichavam um pouco e, quando eu as apertava entre as unhas, libertavam um líquido
grosso que escorria abundante entre os dedos, até pingar no chão. Daqueles vales no meio das falanges, elas escalaram os braços e atingiram o pescoço, onde se bifurcaram em dois caminhos: algumas subiram pelo rosto, outras desceram pelas pernas, alcançaram os joelhos e os pés, onde se detiveram, na impossibilidade de furar a terra. À medida que avançavam, tornavam-se maiores e comichavam ainda com mais intensidade. Minhas unhas crescidas dilaceravam a frágil pele rosada que escamava, transformando-se em feridas úmidas e lilases. A princípio o sol fazia com que secassem e cicatrizassem. Mas depois ele se foi. E agora nada mais as detém.
É preciso falar também nos outros. E na casa. Eu estava tão absorvido pelo que acontecia em meu próprio corpo que nada em volta me parecia suficientemente real. A casa, os outros. Quando percebi que eles existiam — e eram muitos, doze, treze comigo —, já meu corpo estava completamente tomado. E temi que me expulsassem. Não tínhamos luz elétrica, o sol tinha-se ido havia algum tempo, os dias eram curtos e escuros, dormíamos muito e, quando acendíamos aquelas longas velas que costumávamos roubar das igrejas, a chama não era suficiente para que pudéssemos ver uns aos outros. E também havia muito tempo não nos olhávamos nos olhos.
Somente há uma semana — como fazia muito frio e precisássemos de lenha para a lareira — fomos obrigados a queimar os móveis do andar de cima. As chamas enormes duraram algumas horas.
Creio que movido pela esperança de que a luz e o calor pudessem amenizar a dor e secar as feridas, aproximei-me lentamente do fogo. Estendi as mãos e, quando olhei em volta, havia mais doze pares de mãos estendidas ao lado das minhas. Os doze pares de mãos estavam cheios de feridas úmidas e violáceas. Todos viram ao mesmo tempo, mas ninguém gritou. Eu gostaria de ter conseguido olhá-los no fundo dos olhos, de ter visto neles qualquer coisa como compaixão, paciência, tolerância, ou mesmo amizade, quem sabe amor. Não tenho certeza de ter conseguido. Na verdade não sei se não estarei cego. Há feridas em torno de meus olhos, as sobrancelhas e os cílios fervilham de piolhos. Os dentes fizeram meu rosto inchar tanto que os olhos se estreitaram e recuaram até se tornarem quase invisíveis. Suponho que os olhos de todos eles também estejam assim. Suponho também que seus pensamentos tenham sido iguais aos meus, porque quando a última madeira estalou no fogo e se consumiu aos poucos, fazendo voltar o frio e a escuridão, aproximamo-nos lentamente uns dos outros e dormimos todos assim, aconchegados, confundidos. Pela noite julguei ter escutado alguns gemidos. E fiquei pensando se era mesmo verdade que ainda sofríamos.
Na noite seguinte queimamos todos os móveis do andar de baixo. Nas noites posteriores queimamos os móveis deste único andar que resta. Como o frio não terminou, queimamos depois as paredes, as escadas, os tapetes, os objetos do banheiro, da cozinha, os quadros, as portas e as janelas. Chegou um momento em que precisamos queimar também os livros e as nossas roupas. Consegui localizar um movimento interno em mim no momento em que queimei aquela fita azul. Eu a guardava fazia muito tempo.
Foi uma menina de cabelos vermelhos que a jogou para mim, um dia, no parque, como quem joga um osso a um cão faminto. A minha mão estremeceu quando a lancei ao fogo. Tive vontade de gritar e tentei segurar a mão mais próxima. Mas ela recuou como se tivesse nojo, então segurei minha própria mão e fiquei sentindo entre os dedos a umidade das feridas.
Hoje é o dia em que não temos mais nada para queimar. Havia ainda algumas cartas antigas, e são elas que estão queimando agora. Estamos olhando as chamas e pensando que cada uma pode ser a última. Há bem pouco um pensamento cruzou minha mente, talvez a mente de todos: creio que quando esta última chama apagar um de nós terá de jogar-se ao fogo. Quando pensei nisso, minha primeira reação foi o medo. Depois achei que seria bom. Os piolhos morreriam queimados, as bolhas rebentariam com o calor, o fogo cicatrizaria todas as feridas. Os dentes não doeriam mais. Não nos falaremos, não nos olharemos dentro dos olhos.
Apenas um de nós treze fará o primeiro movimento, se jogará ao fogo, aquecerá os outros por alguns momentos, depois se tornará cinza, e depois mais um, e outro mais. Como um ritual. Uma ciranda, daquelas em que uma criança entra dentro dessa roda, diz um verso bem bonito, diz adeus e vai embora. Apenas já não somos crianças e desaprendemos a cantar. As cartas continuam queimando. Eu tentei pensar em Deus. Mas Deus morreu faz muito tempo. Talvez se tenha ido junto com o sol, com o calor. Pensei que talvez o sol, o calor e Deus pudessem voltar de repente, no momento exato em que a última chama se desfizer e alguém esboçar o primeiro gesto. Mas eles não voltarão. Seria bonito, e as coisas bonitas já não acontecem mais.
Apertei minhas fontes com aqueles três dedos unidos. Então tentei pensar que não estava mais aqui. E disse para mim mesmo: estive lá, faz algum tempo. Como se já tivesse passado. Mas não passou. Ainda estou aqui. Talvez daqui a pouco eu chore, ou grite, ou saia correndo no escuro.
Nossos corpos estão muito próximos. Trocamos nossos piolhos, nossas bolhas. Se nos beijássemos trocaríamos também os grandes animais sangrentos das nossas bocas. Talvez eu não chore nem saia correndo. Talvez apenas afaste esses braços e pernas que enredam meus movimentos e faça o primeiro gesto em direção ao fogo. Daqui a pouco.
acontece.
Antes, antes ainda, foram os piolhos. Eu sentia alguns movimentos estranhos entre meus cabelos. Mas naquele tempo eram tantos pensamentos novos e incontroláveis dentro da minha cabeça que eu não sabia mais distingui-los daqueles outros movimentos, externos, escuros. Até o dia em que alguém tocou nos meus cabelos eu julguei que apenas dentro
havia aquelas súbitas corridas, aquele fervilhar. Ainda havia sol, então, e esse alguém puxou para fora, entre as pontas unidas de três dedos, aquela pequena coisa branca, mole, redonda, que ficou se contorcendo ao sol.
Desde então, alertado, passei a separar a sua ebulição daquela outra, a de dentro. E por vezes eles desciam por meu pescoço, procurando os pêlos do peito, dos braços, do sexo. Quando não me doíam os dentes e quando havia sol, às vezes eu os comprimia devagar entre as unhas para depois jogá-los pela janela, sobre a rua, a grama. Alguns eram levados pelo vento. Os outros se reproduziam ferozmente, sem que eu nada pudesse fazer para de tê-los.
Um pouco antes, não sei, ou mesmo durante ou depois, não importa — o certo é que um dia houve também as bolhas. Apareciam primeiro entre os dedos das mãos, pequenas, rosadas. Comichavam um pouco e, quando eu as apertava entre as unhas, libertavam um líquido
grosso que escorria abundante entre os dedos, até pingar no chão. Daqueles vales no meio das falanges, elas escalaram os braços e atingiram o pescoço, onde se bifurcaram em dois caminhos: algumas subiram pelo rosto, outras desceram pelas pernas, alcançaram os joelhos e os pés, onde se detiveram, na impossibilidade de furar a terra. À medida que avançavam, tornavam-se maiores e comichavam ainda com mais intensidade. Minhas unhas crescidas dilaceravam a frágil pele rosada que escamava, transformando-se em feridas úmidas e lilases. A princípio o sol fazia com que secassem e cicatrizassem. Mas depois ele se foi. E agora nada mais as detém.
É preciso falar também nos outros. E na casa. Eu estava tão absorvido pelo que acontecia em meu próprio corpo que nada em volta me parecia suficientemente real. A casa, os outros. Quando percebi que eles existiam — e eram muitos, doze, treze comigo —, já meu corpo estava completamente tomado. E temi que me expulsassem. Não tínhamos luz elétrica, o sol tinha-se ido havia algum tempo, os dias eram curtos e escuros, dormíamos muito e, quando acendíamos aquelas longas velas que costumávamos roubar das igrejas, a chama não era suficiente para que pudéssemos ver uns aos outros. E também havia muito tempo não nos olhávamos nos olhos.
Somente há uma semana — como fazia muito frio e precisássemos de lenha para a lareira — fomos obrigados a queimar os móveis do andar de cima. As chamas enormes duraram algumas horas.
Creio que movido pela esperança de que a luz e o calor pudessem amenizar a dor e secar as feridas, aproximei-me lentamente do fogo. Estendi as mãos e, quando olhei em volta, havia mais doze pares de mãos estendidas ao lado das minhas. Os doze pares de mãos estavam cheios de feridas úmidas e violáceas. Todos viram ao mesmo tempo, mas ninguém gritou. Eu gostaria de ter conseguido olhá-los no fundo dos olhos, de ter visto neles qualquer coisa como compaixão, paciência, tolerância, ou mesmo amizade, quem sabe amor. Não tenho certeza de ter conseguido. Na verdade não sei se não estarei cego. Há feridas em torno de meus olhos, as sobrancelhas e os cílios fervilham de piolhos. Os dentes fizeram meu rosto inchar tanto que os olhos se estreitaram e recuaram até se tornarem quase invisíveis. Suponho que os olhos de todos eles também estejam assim. Suponho também que seus pensamentos tenham sido iguais aos meus, porque quando a última madeira estalou no fogo e se consumiu aos poucos, fazendo voltar o frio e a escuridão, aproximamo-nos lentamente uns dos outros e dormimos todos assim, aconchegados, confundidos. Pela noite julguei ter escutado alguns gemidos. E fiquei pensando se era mesmo verdade que ainda sofríamos.
Na noite seguinte queimamos todos os móveis do andar de baixo. Nas noites posteriores queimamos os móveis deste único andar que resta. Como o frio não terminou, queimamos depois as paredes, as escadas, os tapetes, os objetos do banheiro, da cozinha, os quadros, as portas e as janelas. Chegou um momento em que precisamos queimar também os livros e as nossas roupas. Consegui localizar um movimento interno em mim no momento em que queimei aquela fita azul. Eu a guardava fazia muito tempo.
Foi uma menina de cabelos vermelhos que a jogou para mim, um dia, no parque, como quem joga um osso a um cão faminto. A minha mão estremeceu quando a lancei ao fogo. Tive vontade de gritar e tentei segurar a mão mais próxima. Mas ela recuou como se tivesse nojo, então segurei minha própria mão e fiquei sentindo entre os dedos a umidade das feridas.
Hoje é o dia em que não temos mais nada para queimar. Havia ainda algumas cartas antigas, e são elas que estão queimando agora. Estamos olhando as chamas e pensando que cada uma pode ser a última. Há bem pouco um pensamento cruzou minha mente, talvez a mente de todos: creio que quando esta última chama apagar um de nós terá de jogar-se ao fogo. Quando pensei nisso, minha primeira reação foi o medo. Depois achei que seria bom. Os piolhos morreriam queimados, as bolhas rebentariam com o calor, o fogo cicatrizaria todas as feridas. Os dentes não doeriam mais. Não nos falaremos, não nos olharemos dentro dos olhos.
Apenas um de nós treze fará o primeiro movimento, se jogará ao fogo, aquecerá os outros por alguns momentos, depois se tornará cinza, e depois mais um, e outro mais. Como um ritual. Uma ciranda, daquelas em que uma criança entra dentro dessa roda, diz um verso bem bonito, diz adeus e vai embora. Apenas já não somos crianças e desaprendemos a cantar. As cartas continuam queimando. Eu tentei pensar em Deus. Mas Deus morreu faz muito tempo. Talvez se tenha ido junto com o sol, com o calor. Pensei que talvez o sol, o calor e Deus pudessem voltar de repente, no momento exato em que a última chama se desfizer e alguém esboçar o primeiro gesto. Mas eles não voltarão. Seria bonito, e as coisas bonitas já não acontecem mais.
Apertei minhas fontes com aqueles três dedos unidos. Então tentei pensar que não estava mais aqui. E disse para mim mesmo: estive lá, faz algum tempo. Como se já tivesse passado. Mas não passou. Ainda estou aqui. Talvez daqui a pouco eu chore, ou grite, ou saia correndo no escuro.
Nossos corpos estão muito próximos. Trocamos nossos piolhos, nossas bolhas. Se nos beijássemos trocaríamos também os grandes animais sangrentos das nossas bocas. Talvez eu não chore nem saia correndo. Talvez apenas afaste esses braços e pernas que enredam meus movimentos e faça o primeiro gesto em direção ao fogo. Daqui a pouco.
Marcadores: Pedras de Calcuta
O primeiro aviso foi um barulhinho, de manhã bem cedo, quando ele se curvava para cuspir água e pasta de dentes na pia. Pensou que fosse o jato de água da torneira aberta e não ligou muito: sempre esquecia portas, janelas e torneiras abertas pelas casas e banheiros por onde andava.
Então fechou a torneira para ouvir, como todos os dias, o silêncio meio azulado das manhãs, com os periquitos cantando na varanda e os rumores diluídos dos automóveis, poucos ainda. Mas o barulhinho continuava. Fonte escorrendo: água clara de cântaros, bilhas, grutas — e ele achou bonito e lembrou (um pouco só, porque não havia tempo) remotos passeios, infâncias, encantos, namoradas.
Quando se curvou para amarrar o cordão do sapato é que percebeu que o barulhinho vinha do chão e, mais atentamente curvado, exatamente de dentro do próprio pé esquerdo. Tornou a não ligar muito; achou até bonito poder sacudir de quando em vez o pé para ouvir o barulhinho trazendo marés, memórias. Quando foi amarrar o cordão do sapato do pé direito, voltou a ouvir o mesmo barulhinho e sorriu para as obturações refletidas no espelho: dois pés, duas fontes, duas alegrias.
Ao abotoar as calças, sentiu o umbigo saltar exatamente como uma concha empurrada por uma onda mais forte e, logo após, o mesmo barulhinho, agora mais nítido, mais alto. Sentou na privada e acendeu um cigarro, pensando na feijoada do dia anterior. Antes de dar a primeira tragada, passou a mão pelo pescoço, prevenindo a áspera barba a ser feita, e
o pomo-de-adão deu um salto, umbigo, concha, como se engolisse ar em seco, e não engolia nada, apenas esperava, o cigarro parado no ar.
Ergueu-se para olhar a própria cara no espelho, as calças caídas sobre os sapatos desamarrados, e abriu a boca libertando uma espécie de arroto.
Foi então que a água começou a jorrar boca afora. Primeiro em gotas, depois em fluxos mais fortes, ondas, marés, até que um quase maremoto o arrastou para fora do banheiro. Espantado, tentou segurar-se no corrimão da escada, chegou a estender os dedos, mas não havia dedos, só água se derramando degraus abaixo, atravessando o corredor, o escritório, a
pequena sala de samambaias desmaiadas. Antes de atingir o patamar de entrada ele ainda pensou que seria bom, agora, não ser mais regato, nem fonte, nem lago, mas rio farto, caminhando em direção à rua, talvez ao mar.
Mas quando as ondas mais fortes rebentaram a porta de entrada para inundar o jardim, ele se contraiu, se distendeu e cessou, inteiro e vazio.
Não passava de uma gota na imensa massa de água, que descia das outras casas inundando as ruas.
Então fechou a torneira para ouvir, como todos os dias, o silêncio meio azulado das manhãs, com os periquitos cantando na varanda e os rumores diluídos dos automóveis, poucos ainda. Mas o barulhinho continuava. Fonte escorrendo: água clara de cântaros, bilhas, grutas — e ele achou bonito e lembrou (um pouco só, porque não havia tempo) remotos passeios, infâncias, encantos, namoradas.
Quando se curvou para amarrar o cordão do sapato é que percebeu que o barulhinho vinha do chão e, mais atentamente curvado, exatamente de dentro do próprio pé esquerdo. Tornou a não ligar muito; achou até bonito poder sacudir de quando em vez o pé para ouvir o barulhinho trazendo marés, memórias. Quando foi amarrar o cordão do sapato do pé direito, voltou a ouvir o mesmo barulhinho e sorriu para as obturações refletidas no espelho: dois pés, duas fontes, duas alegrias.
Ao abotoar as calças, sentiu o umbigo saltar exatamente como uma concha empurrada por uma onda mais forte e, logo após, o mesmo barulhinho, agora mais nítido, mais alto. Sentou na privada e acendeu um cigarro, pensando na feijoada do dia anterior. Antes de dar a primeira tragada, passou a mão pelo pescoço, prevenindo a áspera barba a ser feita, e
o pomo-de-adão deu um salto, umbigo, concha, como se engolisse ar em seco, e não engolia nada, apenas esperava, o cigarro parado no ar.
Ergueu-se para olhar a própria cara no espelho, as calças caídas sobre os sapatos desamarrados, e abriu a boca libertando uma espécie de arroto.
Foi então que a água começou a jorrar boca afora. Primeiro em gotas, depois em fluxos mais fortes, ondas, marés, até que um quase maremoto o arrastou para fora do banheiro. Espantado, tentou segurar-se no corrimão da escada, chegou a estender os dedos, mas não havia dedos, só água se derramando degraus abaixo, atravessando o corredor, o escritório, a
pequena sala de samambaias desmaiadas. Antes de atingir o patamar de entrada ele ainda pensou que seria bom, agora, não ser mais regato, nem fonte, nem lago, mas rio farto, caminhando em direção à rua, talvez ao mar.
Mas quando as ondas mais fortes rebentaram a porta de entrada para inundar o jardim, ele se contraiu, se distendeu e cessou, inteiro e vazio.
Não passava de uma gota na imensa massa de água, que descia das outras casas inundando as ruas.
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Para Carlos Augusto Crusius
Foi de repente que o cigarro queimou os cabelos dele. Levantamos os olhos, nos encaramos tensos, quase em ódio, quase em amor, naquela repressão à beira de alguma coisa que poderia conduzit a qualquer gesto, mesmo ao homicídio. Mas sorrimos, e foi depois que tudo quebrou. Jamais voltamos à entrega mesma de antes e à ausência de solicitações e à aceitação sem barreiras. Foi de um de nós que partiu a morte, ou ela já nascia involuntária como a madrugada por trás dos vidros?
Olha em torno, o vazio do olhar fundindo-se com o vazio da sala. As pessoas, máscaras penduradas em corpos, o colorido das roupas gritando alto como se pudesse emprestar alguma individualidade ao que não era sequer sombra. O ar pesado de fumaça dos cigarros. Aperta nas mãos a caixa de fósforos vazia. Deixara o telefone do bar, o endereço, a hora que estaria ali. Um detalhado roteiro, feito dissesse dissimulado estou esperando, você pode me encontrar. Ah como doía manter-se assim disponível, completamente em branco para a procura. Não consegue fixar-se em nada. As faces inexpressivas, as paredes brancas onde não há sequer quadros, a toalha vermelha da mesa -tudo em ordem atrás da aparente desordem. Uma ordem interna, imutável, solidificada. Quase odeia os risos que brotam súbitos dos cantos. Por que lhe é negada essa possibilidade de entrega ao que está sendo? Por que a espera, se a espera não o cabe mais? Só o ar denso, azulado de cigarros fumados. E o vazio da caixa de fósforos. Examina o relógio, mas não vê as horas, não vê nada. Seu pensamento lateja preso numa imagem determinada. Quase não pode projetá-la para fora de si, concretizá-la em visão. E o vê abrindo lento a porta,investigando em tomo, de repente erguendo as sobrancelhas num gesto de quem reconhece. Então se encaminharia devagarinho até a mesa, vestido de azul -não sabe por que, nunca o viu de azul, não sabe mesmo se existe aquele casaco jogado sobre os ombros. Só vê uma mancha azul e o rosto destacado em indagação. Os olhos. Como se dissessem: fala. Falaria? O quê? A porta se abre, cortando o pensamento. Dobra-se em ânsia, quase vira os copos: uma mulher de verde, nariz grande, ar de psicóloga em busca de material. Vira para a outra mesa, pede um fósforo.
Eu não procurei, não insisti. Contive tudo dentro de mim até que houvesse um movimento qualquer de aceitação. Quando houve, cedi. A sua cabeça pesava no meu braço. Ele estava bêbado? Estava cansado? Eu era apenas um braço onde ele debruçava a sua exaustão? Ele se indagava se eu o recebia como receberia qualquer cansaço humano ou sabia que eu estava tenso, na espreita, dilacerado? Os outros dois dançavam no meio da sala. Não viam ou não queria, ver ou não havia nada para ver? O corpo de Lídia era 19udo como uma flecha. Aquele contato era premeditado ou ocasional?
As indagações pesavam sem resposta, e numa lucidez desesperada eu num repente assimilava todos os detalhes, dissecava o que acontecia em tomo como se tivesse mil olhos, envelhecia como a noite lá fora, virando madrugada, a luz fraca -eu tudo compreendia, tudo sabia. Menos aquela cabeça pesando no meu braço. Que espécie de busca o levara àquele gesto? Me quebrava por dentro, a cabeça afundando cada vez mais no meu corpo, eu negava, fugia, tenso, o cigarro morto nas mãos, a cinza caindo s'obre o tapete.
Eles dançavam há muito tempo, muito tempo. E eu morria. A cabeça dele se movimentava, sua boca esmagava meu braço. Fechei os olhos e afundei os dedos nos seus cabelos.
Ergue-se de um salto ouvindo o toque do telefone. Espreita a secretária levando o fone ao ouvido. Lentamente, acompanha os olhos da secretária vagando em tomo, inexpressivos. Depois ela chama por outro nome. Não o seu. O tampo verde da mesa recebe os seus braços e o peso da cabeça. Abre uma gaveta à toa, papéis misturados, envelopes, cartas que não dizem nada, não trazem nada.
Espalma as mãos sobre o teclado da máquina. Bate, leve. Podia escrever um poema. Não. Recusa mesmo essa espécie de alívio. Não quer a cor. Prefere o dilaceramento cada vez mais intenso, mais insolucionado. Precisa sofrer e morrer muitas vezes por dia para sentir-se vivo. Chegara à constatação de que era só, Único, e que devia bastar-se a si mesmo, e justamente por isso precisava de uma outra pessoa. Os grãos de areia nunca se tocam. Mesmo quando juntos há entre eles uma espécie de carapaça que não os deixa tocarem se. Jamais um núcleo toca outro núcleo. A terra é azul, os olhos eram azuis, ele vestiria azul -dentro de muitos azuis concêntricos, ele voltaria a se perder. Um certo prazer em saber-se assim solto, assim perdido entre as coisas, assim contendo um mal-estar que ninguém saberia de quê. O tic-tac das máquinas de escrever. O sol coado pelas persianas. Uma brecha de luz em cima da mesa. A sombra de seu perfil na parede. Amassa várias folhas de papel, joga-as no chão, gesto brusco. Você sabe que vai ser sempre assim. Que essa queda não é a última. Que muitas vezes você vai cair e hesitar no levantar-se, até uma próxima queda. Prefere jogar-se numa atitude que seria teatral, não fosse verdadeira, sentir os espinhos rasgando carne, as pedras entrando no corpo, o rosto espatifado contra o fim desconhecido. Precisa ir até o fundo.
Guardou vários dias o perfume dos cabelos dele nos pêlos do próprio braço. Como um adolescente. Agora só vê um braço deserto, a pulseira preta do relógio sublinhando a zona do pulso. A parede em frente cheia de fotografias. Arranca todas, vai picando em pedaços cada vez e cada vez menores. Solta devagar no cesto de lixo. Guarda um entre os dedos. Espia. Num fundo indeciso, resta um olho a observá-lo. Azul.
Foi na segunda vez que sentei no chão. Carlos dormia. Lídia desenhava. O copo estava quase vazio. Foi então que ele sentou perto de mim. As mãos sustentavam a cabeça. A posição devia ser incômoda -o corpo apoiado em meio sobre o assoalho, a cabeça no ar, os pés no ar. Eu tremia? Não. Sentia minhas próprias unhas furando as palmas das mãos, mas meu corpo estava seguro, em riste. O primeiro toque foi dele. As mãos comprimiram minhas pernas. Depois, uma das mãos libertou-se avançando em forma de ternura. Nos seus cabelos, as minhas mãos iam e vinham, adivinhando a tessitura. Era noite, ainda. O ritual já fora cumprido. Puxou-me para si, os nossos corpos opostos no assoalho, duas lanças apontando uma para a outra. E de repente nos ferimos. Com a boca. Senti seus lábios nos meus, os dentes se chocando, ,s mãos que seguravam meu rosto, investigavam meus traços, eu nascia por dentro, quase gritava, tentávamos desvendar um ao outro, mas não íamos além da tentativa, , que já se fazia angústia em suas mãos como espinhos, subindo por meu corpo inteiro, busca tensa. Não, não era amor, não foi amor. Tudo explodia num plano muito mais alto, muito mais intenso. Nos desvendávamos com a fúria dos que antecipadamente sabem que não vão conseguir jamais.
Alguma coisa morria em mim naquela procura de meta inatingível, desconhecida -e num tempo mesmo algo nascia de repente, puxado não sei de que desvão, de que sombra oculta, de que arca fechada, coberta de poeira, abriam-se portas em mim, janelas quebravam, estilhaços saltavam, pedaços de vidro me cortavam sem piedade, já não via a noite, o dia, o tempo, o espaço onde estávamos, vagávamos no cosmos ou estávamos presos numa esfera conhecida? eu não sabia, eu morria, eu nascia sucessivamente, em desespero, eu compreendia súbito. Não, não era amor. Era terror.
Desce do ônibus, alcança a escada rolante. O dia morre no fim da avenida que se espalha nas nascentes da galeria. Os degraus subindo em lenta ascensão. Vai além deles, corre vencendo a máquina. A rua apinhada de gente e carros. As buzinas em loucura. Os anúncios luminosos começam a acender, indecisos. As luzes dos postes. Atravessa a rua correndo. O automóvel freia. Pessoas param, suspensas, atentas a um acontecimento que quebraria súbito o estático do momento. Junta os livros no chão, alcança a calçada, quase corre, esbarra, vira a esquina, ofega, a subida põe gotas de suor no seu rosto. Entra no edifício. O zelador lê uma fotonovela. Alguma coisa para mim? pergunta. Quê? Alguma coisa para mim. Não pergunta mais, afirma, sabe que tem. Ah sim, uma carta. Estende o envelope pesado de que angústia, de que explicação, de que riso talvez? Olha o remetente, amassa em desalento o apoio que não quer, que não busca, que não espera.
Ninguém me procurou? Não. Ninguém. Aperta o botão do elevador. Pelo corredor vai desabotoando a camisa, tira o paletó, a gravata, afrouxa o cinto. Abre a porta. Espia, os olhos meio estrábicos no medo de ver o bilhete que não existe sobre o assoalho vazio. Joga as roupas numa cadeira. Apóia o corpo na janela. Acende um cigarro. Espia a rua, as pessoas, a noite que se cumpre mais uma vez. Liga o rádio. Não ouve a música. Os olhos se turvam, por dentro uma coisa aperta num jeito de quem estrangula. Não pode gritar. As paredes se dobram, fremem, prenhes de ironia.
Suspira. Exausto.
Não queria, desde o começo eu não quis. Desde que senti que ia cair e me quebrar inteiro na queda para depois restar incompleto, destruído talvez, as mãos desertas, o corpo lasso. Fugi. Eu não buscaria porque conhecia a queda, porque já caíra muitas vezes, e em cada vez restara mais morto, mais indefinido -e seria preciso reestruturar verdades, seria preciso ir construindo tUdo aos poucos, eu temia que meus instrumentos se revelassem precários, e que nada eu pudesse fazer além de ceder. Mas no meio da fuga, você aconteceu. Foi você, não eu, quem buscou. Mas olf1ilaceramento foi só meu, como só meu foi o desespero. Que espécie de coisa o cigarro queimou, além dos cabelos? Sei que foi mais fundo, mais dentro, que nessa ignorada dimensão rompeu alguma coisa que estava em marcha. Eu quis tanto ser a tua paz, quis tanto que você fosse o meu encontro. Quis tanto dar, tanto receber. Quis precisar, sem exigências. E sem solicitações, aceitar o que me era dado. Sem ir além, compreende? Não queria pedir mais do que você tinha, assim como eu não daria mais do que dispunha, por limitação humana. Mas o que tinha, era seu. A noite ultrapassou a si mesma, encontrou a madrugada, se desfez em manhã, em dia claro, em tarde verde, em anoitecer e em noite outra vez. Fiquei. Você sabe que eu fiquei. E que ficaria até o fim, até o fundo. Que aceitei a queda, que aceitei a morte. Que nessa aceitação, caí. Que nessa queda, morri. Tenho me carregado tão perdido e pesado pelos dias afora. E ninguém vê que estou morto.
Abre devagar o armário do banheiro. O espelho reflete uma face de barba não feita, olheiras fundas, leve contração nas sobrancelhas. Abre o pacote de lâminas, retira uma, vai amassando aos poucos o papel. Senta na beira da cama, o aço nas mãos.
Examina a cicatriz já antiga, um simples fio no pulso. Aperta.
Sente as pulsações. O frio da lâmina entre os dedos. A cicatriz, lembrança de uma outra queda. Do apartamento ao lado chegam os sons desfeitos de algo que devia ser música. Um vento indeciso de madrugada entra pela janela. Está sentado na cama, corpo nu, pés descalços, costas curvas. A lâmina vibra entre os dedos. Nenhum pensamento. Só espera. Atenção fixa em si mesma. Dobra os ombros, como se chorasse. E não corta. Joga a lâmina pela janela, vai-se curvando para si mesmo. Os braços se cruzam, enlaçam os joelhos, a cabeça afunda entre as pernas. Não chora sequer. No cinzeiro, o cigarro esquecido queima. Um fino fio de fumaça sobe aos poucos indeciso, adensando o ar que se enche de olhos, de mãos, de gestos incompletos, vozes veladas, palavras não formuladas. Sem compreender, vaga entre a fumaça e tomba. Como um cego, vendo apenas para dentro.
Foi de repente que o cigarro queimou os cabelos dele. Levantamos os olhos, nos encaramos tensos, quase em ódio, quase em amor, naquela repressão à beira de alguma coisa que poderia conduzit a qualquer gesto, mesmo ao homicídio. Mas sorrimos, e foi depois que tudo quebrou. Jamais voltamos à entrega mesma de antes e à ausência de solicitações e à aceitação sem barreiras. Foi de um de nós que partiu a morte, ou ela já nascia involuntária como a madrugada por trás dos vidros?
Olha em torno, o vazio do olhar fundindo-se com o vazio da sala. As pessoas, máscaras penduradas em corpos, o colorido das roupas gritando alto como se pudesse emprestar alguma individualidade ao que não era sequer sombra. O ar pesado de fumaça dos cigarros. Aperta nas mãos a caixa de fósforos vazia. Deixara o telefone do bar, o endereço, a hora que estaria ali. Um detalhado roteiro, feito dissesse dissimulado estou esperando, você pode me encontrar. Ah como doía manter-se assim disponível, completamente em branco para a procura. Não consegue fixar-se em nada. As faces inexpressivas, as paredes brancas onde não há sequer quadros, a toalha vermelha da mesa -tudo em ordem atrás da aparente desordem. Uma ordem interna, imutável, solidificada. Quase odeia os risos que brotam súbitos dos cantos. Por que lhe é negada essa possibilidade de entrega ao que está sendo? Por que a espera, se a espera não o cabe mais? Só o ar denso, azulado de cigarros fumados. E o vazio da caixa de fósforos. Examina o relógio, mas não vê as horas, não vê nada. Seu pensamento lateja preso numa imagem determinada. Quase não pode projetá-la para fora de si, concretizá-la em visão. E o vê abrindo lento a porta,investigando em tomo, de repente erguendo as sobrancelhas num gesto de quem reconhece. Então se encaminharia devagarinho até a mesa, vestido de azul -não sabe por que, nunca o viu de azul, não sabe mesmo se existe aquele casaco jogado sobre os ombros. Só vê uma mancha azul e o rosto destacado em indagação. Os olhos. Como se dissessem: fala. Falaria? O quê? A porta se abre, cortando o pensamento. Dobra-se em ânsia, quase vira os copos: uma mulher de verde, nariz grande, ar de psicóloga em busca de material. Vira para a outra mesa, pede um fósforo.
Eu não procurei, não insisti. Contive tudo dentro de mim até que houvesse um movimento qualquer de aceitação. Quando houve, cedi. A sua cabeça pesava no meu braço. Ele estava bêbado? Estava cansado? Eu era apenas um braço onde ele debruçava a sua exaustão? Ele se indagava se eu o recebia como receberia qualquer cansaço humano ou sabia que eu estava tenso, na espreita, dilacerado? Os outros dois dançavam no meio da sala. Não viam ou não queria, ver ou não havia nada para ver? O corpo de Lídia era 19udo como uma flecha. Aquele contato era premeditado ou ocasional?
As indagações pesavam sem resposta, e numa lucidez desesperada eu num repente assimilava todos os detalhes, dissecava o que acontecia em tomo como se tivesse mil olhos, envelhecia como a noite lá fora, virando madrugada, a luz fraca -eu tudo compreendia, tudo sabia. Menos aquela cabeça pesando no meu braço. Que espécie de busca o levara àquele gesto? Me quebrava por dentro, a cabeça afundando cada vez mais no meu corpo, eu negava, fugia, tenso, o cigarro morto nas mãos, a cinza caindo s'obre o tapete.
Eles dançavam há muito tempo, muito tempo. E eu morria. A cabeça dele se movimentava, sua boca esmagava meu braço. Fechei os olhos e afundei os dedos nos seus cabelos.
Ergue-se de um salto ouvindo o toque do telefone. Espreita a secretária levando o fone ao ouvido. Lentamente, acompanha os olhos da secretária vagando em tomo, inexpressivos. Depois ela chama por outro nome. Não o seu. O tampo verde da mesa recebe os seus braços e o peso da cabeça. Abre uma gaveta à toa, papéis misturados, envelopes, cartas que não dizem nada, não trazem nada.
Espalma as mãos sobre o teclado da máquina. Bate, leve. Podia escrever um poema. Não. Recusa mesmo essa espécie de alívio. Não quer a cor. Prefere o dilaceramento cada vez mais intenso, mais insolucionado. Precisa sofrer e morrer muitas vezes por dia para sentir-se vivo. Chegara à constatação de que era só, Único, e que devia bastar-se a si mesmo, e justamente por isso precisava de uma outra pessoa. Os grãos de areia nunca se tocam. Mesmo quando juntos há entre eles uma espécie de carapaça que não os deixa tocarem se. Jamais um núcleo toca outro núcleo. A terra é azul, os olhos eram azuis, ele vestiria azul -dentro de muitos azuis concêntricos, ele voltaria a se perder. Um certo prazer em saber-se assim solto, assim perdido entre as coisas, assim contendo um mal-estar que ninguém saberia de quê. O tic-tac das máquinas de escrever. O sol coado pelas persianas. Uma brecha de luz em cima da mesa. A sombra de seu perfil na parede. Amassa várias folhas de papel, joga-as no chão, gesto brusco. Você sabe que vai ser sempre assim. Que essa queda não é a última. Que muitas vezes você vai cair e hesitar no levantar-se, até uma próxima queda. Prefere jogar-se numa atitude que seria teatral, não fosse verdadeira, sentir os espinhos rasgando carne, as pedras entrando no corpo, o rosto espatifado contra o fim desconhecido. Precisa ir até o fundo.
Guardou vários dias o perfume dos cabelos dele nos pêlos do próprio braço. Como um adolescente. Agora só vê um braço deserto, a pulseira preta do relógio sublinhando a zona do pulso. A parede em frente cheia de fotografias. Arranca todas, vai picando em pedaços cada vez e cada vez menores. Solta devagar no cesto de lixo. Guarda um entre os dedos. Espia. Num fundo indeciso, resta um olho a observá-lo. Azul.
Foi na segunda vez que sentei no chão. Carlos dormia. Lídia desenhava. O copo estava quase vazio. Foi então que ele sentou perto de mim. As mãos sustentavam a cabeça. A posição devia ser incômoda -o corpo apoiado em meio sobre o assoalho, a cabeça no ar, os pés no ar. Eu tremia? Não. Sentia minhas próprias unhas furando as palmas das mãos, mas meu corpo estava seguro, em riste. O primeiro toque foi dele. As mãos comprimiram minhas pernas. Depois, uma das mãos libertou-se avançando em forma de ternura. Nos seus cabelos, as minhas mãos iam e vinham, adivinhando a tessitura. Era noite, ainda. O ritual já fora cumprido. Puxou-me para si, os nossos corpos opostos no assoalho, duas lanças apontando uma para a outra. E de repente nos ferimos. Com a boca. Senti seus lábios nos meus, os dentes se chocando, ,s mãos que seguravam meu rosto, investigavam meus traços, eu nascia por dentro, quase gritava, tentávamos desvendar um ao outro, mas não íamos além da tentativa, , que já se fazia angústia em suas mãos como espinhos, subindo por meu corpo inteiro, busca tensa. Não, não era amor, não foi amor. Tudo explodia num plano muito mais alto, muito mais intenso. Nos desvendávamos com a fúria dos que antecipadamente sabem que não vão conseguir jamais.
Alguma coisa morria em mim naquela procura de meta inatingível, desconhecida -e num tempo mesmo algo nascia de repente, puxado não sei de que desvão, de que sombra oculta, de que arca fechada, coberta de poeira, abriam-se portas em mim, janelas quebravam, estilhaços saltavam, pedaços de vidro me cortavam sem piedade, já não via a noite, o dia, o tempo, o espaço onde estávamos, vagávamos no cosmos ou estávamos presos numa esfera conhecida? eu não sabia, eu morria, eu nascia sucessivamente, em desespero, eu compreendia súbito. Não, não era amor. Era terror.
Desce do ônibus, alcança a escada rolante. O dia morre no fim da avenida que se espalha nas nascentes da galeria. Os degraus subindo em lenta ascensão. Vai além deles, corre vencendo a máquina. A rua apinhada de gente e carros. As buzinas em loucura. Os anúncios luminosos começam a acender, indecisos. As luzes dos postes. Atravessa a rua correndo. O automóvel freia. Pessoas param, suspensas, atentas a um acontecimento que quebraria súbito o estático do momento. Junta os livros no chão, alcança a calçada, quase corre, esbarra, vira a esquina, ofega, a subida põe gotas de suor no seu rosto. Entra no edifício. O zelador lê uma fotonovela. Alguma coisa para mim? pergunta. Quê? Alguma coisa para mim. Não pergunta mais, afirma, sabe que tem. Ah sim, uma carta. Estende o envelope pesado de que angústia, de que explicação, de que riso talvez? Olha o remetente, amassa em desalento o apoio que não quer, que não busca, que não espera.
Ninguém me procurou? Não. Ninguém. Aperta o botão do elevador. Pelo corredor vai desabotoando a camisa, tira o paletó, a gravata, afrouxa o cinto. Abre a porta. Espia, os olhos meio estrábicos no medo de ver o bilhete que não existe sobre o assoalho vazio. Joga as roupas numa cadeira. Apóia o corpo na janela. Acende um cigarro. Espia a rua, as pessoas, a noite que se cumpre mais uma vez. Liga o rádio. Não ouve a música. Os olhos se turvam, por dentro uma coisa aperta num jeito de quem estrangula. Não pode gritar. As paredes se dobram, fremem, prenhes de ironia.
Suspira. Exausto.
Não queria, desde o começo eu não quis. Desde que senti que ia cair e me quebrar inteiro na queda para depois restar incompleto, destruído talvez, as mãos desertas, o corpo lasso. Fugi. Eu não buscaria porque conhecia a queda, porque já caíra muitas vezes, e em cada vez restara mais morto, mais indefinido -e seria preciso reestruturar verdades, seria preciso ir construindo tUdo aos poucos, eu temia que meus instrumentos se revelassem precários, e que nada eu pudesse fazer além de ceder. Mas no meio da fuga, você aconteceu. Foi você, não eu, quem buscou. Mas olf1ilaceramento foi só meu, como só meu foi o desespero. Que espécie de coisa o cigarro queimou, além dos cabelos? Sei que foi mais fundo, mais dentro, que nessa ignorada dimensão rompeu alguma coisa que estava em marcha. Eu quis tanto ser a tua paz, quis tanto que você fosse o meu encontro. Quis tanto dar, tanto receber. Quis precisar, sem exigências. E sem solicitações, aceitar o que me era dado. Sem ir além, compreende? Não queria pedir mais do que você tinha, assim como eu não daria mais do que dispunha, por limitação humana. Mas o que tinha, era seu. A noite ultrapassou a si mesma, encontrou a madrugada, se desfez em manhã, em dia claro, em tarde verde, em anoitecer e em noite outra vez. Fiquei. Você sabe que eu fiquei. E que ficaria até o fim, até o fundo. Que aceitei a queda, que aceitei a morte. Que nessa aceitação, caí. Que nessa queda, morri. Tenho me carregado tão perdido e pesado pelos dias afora. E ninguém vê que estou morto.
Abre devagar o armário do banheiro. O espelho reflete uma face de barba não feita, olheiras fundas, leve contração nas sobrancelhas. Abre o pacote de lâminas, retira uma, vai amassando aos poucos o papel. Senta na beira da cama, o aço nas mãos.
Examina a cicatriz já antiga, um simples fio no pulso. Aperta.
Sente as pulsações. O frio da lâmina entre os dedos. A cicatriz, lembrança de uma outra queda. Do apartamento ao lado chegam os sons desfeitos de algo que devia ser música. Um vento indeciso de madrugada entra pela janela. Está sentado na cama, corpo nu, pés descalços, costas curvas. A lâmina vibra entre os dedos. Nenhum pensamento. Só espera. Atenção fixa em si mesma. Dobra os ombros, como se chorasse. E não corta. Joga a lâmina pela janela, vai-se curvando para si mesmo. Os braços se cruzam, enlaçam os joelhos, a cabeça afunda entre as pernas. Não chora sequer. No cinzeiro, o cigarro esquecido queima. Um fino fio de fumaça sobe aos poucos indeciso, adensando o ar que se enche de olhos, de mãos, de gestos incompletos, vozes veladas, palavras não formuladas. Sem compreender, vaga entre a fumaça e tomba. Como um cego, vendo apenas para dentro.
Marcadores: O Inventario do Irremediavel
Falávamos de caracóis, mas no vidro se refletiam as mãos em movimentos descontrolados de acender cigarros, a madeira da parede suportando papéis, fotografias, cartazes, e eu já não tinha nada além de palavras formuladas em perguntas despidas, apenas letras, estátuas de sal, de gelo, de pedra.
Era um silêncio muito grande e os dois falavam de caracóis. Súbito, sentia uma alegria interna quase como uma primavera. E a alegria crescia, expandindo-se em muitas direções, tomando conta das mãos, dos olhos, já transcendia o pensamento para se apossar do corpo inteiro. Mas de repente tudo já não cabia mais só dentro dele; precisava de um acontecimento externo que justificasse toda aquela largueza de dentro. A coisa externa não acontecia. E, se acontecia, não justificava. Por que não se render ao avanço natural das coisas, sem procurar definições? Como uma primavera, em mim. Mas se não havia justificativa, a queda era lenta e longa. No fundo do poço: baixou a cabeça, espiou-o por baixo das sobrancelhas. Tinha os olhos claros. Falava de caracóis.
Subi em cima da mesa e comecei a acenar para as aves de rapina que inventavam podridões no cimento. Pois se em breve todas as estátuas cairiam sobre a sombra desdobrada do casarão antigo, e como num medo muito grande eu subiria em cima da mesa, gritando sem ninguém ouvir, acenando com mãos que não se desprenderiam dos ombros. Protegia a si mesmo daquela primavera surgida brusca no meio do dia revestido de luz. Na sala ao lado, alguém cantava uma música antiga enquanto um telefone chamava sem que ninguém atendesse, sem que ninguém entendesse. Um estranho e triste apelo sem resposta partido no ar em fatias de aço. Que bom se fossemos cavalos e corrêssemos por um campo de trigo, com papoulas nas margens.
Encarou-o tenso, colocando no olhar o desafio: eu te vejo mais fundo do que você me vê, porque eu te invento nesse olhar, porque você se torna o meu invento, porque depois de olhar muito dentro eu prescindo da imagem e o meu olhar repleto se basta, como se eu fosse cego, mas tivesse guardado todas as imagens: um cego vê mais que um homem comum porque não precisa olhar para fora de si, porque o que ele deseja ver está completamente dentro e é inteiramente seu. Mas os olhos claros barravam o inventário. Não ia além da cor, não ia além das pupilas contraídas pela luz. O máximo que distinguia era um rosto perto do seu. Um rosto muito perto do seu falando de caracóis. Suspirou, num reconhecimento de fraqueza. Se meu olhar não te desvenda é porque você me vê mais fundo, mas você não pode ver mais fundo porque o meu fundo está cheio de musgo, porque o meu fundo é verde como um muro antigo, roído como mármore de cemitério, denso como uma floresta onde eu ando lento, as árvores barrando meus passos e a transparência de seus olhos barrando os meus.
Você já tomou gim com mariscos? Não, porque eu tenho nojo e medo: eu não conseguiria provar a carne mais íntima de um objeto ou de um animal. Tome logo, você não sabe o que está perdendo. Não, não seria madrugada, não seria noite vestida de noite nem manhã de branco nem tarde de verde, não seria tempo nenhum; não seria sequer a sexta-feira mais intensa que qualquer outro dia, por ser véspera de tudo, embora o tudo resulte em nada, na segunda; não seria nem véspera de sábado, não seria sequer o sábado. Eu te falo: seria uma névoa cinzenta e o edifício deserto erguido às margens do rio sujo. Fantasmas lentos, nós entraríamos no edifício, o rio estaria dentro de nós, e eu não seria mais eu, seria o rio, e você não seria mais você, seria o rio. O rio riscado de encontro.
O telefone continuava chamando no momento em que ele riscou a parede com a mão aberta. Perfurava a carne de madeira, fazendo nascer espantos dissolvidos na fumaça do cigarro que subia para o teto esbranquiçado, cheio de furinhos de onde um dia talvez começasse a brotar um fino gás que asfixiaria a todos. Por dentro, aquele gosto ardido de areia, aquele gosto seco de poeira, de bolo antigo, dissolvia-se de grão em grão, escorregando pela boca em palavras que já não eram forjadas, escorregando pelas mãos em gesto não mais endurecidos, escorregando pelos olhos que novamente olhavam como se vissem. Mas eu resistia ainda em usar a palavra. Espantou-se com o intervalo inesperado, ponto branco no meio de pensamento. E a leveza que descia feito o gás que desceria do teto: vestido de leveza, os olhos antigos de ternura, a morte implícita. Já era tarde, começava a chover, os pingos batiam fortes no vidro onde ninguém mais desenhava figuras ou escrevia nomes vadios. Na terra agora molhada não havia mais cirandas, do não caíam mais balões, na sala ao lado o samba antigo morrera no fundo da garganta. Só as máquinas a bater bater bater e o telefone gritando sem que ninguém atendesse. Ele continuava sentado na mesa, os olhos claros, a camisa verde, as mãos brancas. Pouco a pouco, como se experimentasse um vôo, curvou-se para a mesa, as asas cortadas. E o medo. Depois de limpar bem toda a terra, a gente coloca eles na panela e eles vão cozinhando devagar. Vivos? Claros, vivos. Tem uns que ainda tentam se segurar nas bordas, escapar, mas morrem todos. Todos acabam morrendo. Muito devagar. Os círculos de tédio desciam concêntricos da lâmpada, estendia o braço e sentia a carne inerte, os sentidos adormecidos, pouco mais que um objeto, eu. O mesmo bar, a mesma lâmpada, a mesma carne, mas todos em vibração, os sentidos multiplicados, intensos, elétricos, o coração quase parando de espanto, o espanto de ter encontrado no meio do deserto uma palmeira, uma palmeira de olhos claros, camisa verde, mãos brancas. Ter encontrado um cravo branco entre os caixotes de lixo atapetando a rua. Ter encontrado o espaço de silêncio dentro de um grito. Ter encontrado um ponto de apoio para o cansaço. Você não me vê, eu não te vejo, mas tenho o coração pálido, as mãos suspensas no meio de um gesto, a voz contida no meio de uma palavra, e você não vê o meu silêncio nem meu movimento dentro dele. A primavera se quebrava brusca em espinho, ferro. Já não sei desde quando estamos aqui, desde quando falamos de caracóis, desde quando invento teu silêncio igual ao meu. Por que estranha alquimia passavam as palavras dele para vara-lo assim, nessa tão remota dimensão do ser? A visão tardia de encontrar a chave depois da porta ter-se tornado inexistente. A chave inútil pesando em fogo nas mãos e o gesto há muito tempo preparado transformado subitamente em cansaço e desencanto de não ter visto antes. Os dois sentados um frente ao outro, pela tarde a transformar-se lenta em noite, em madrugada, em cinza. Não virá nunca.
Véspera de sábado, na sala ao lado o telefone grita para ouvidos distraídos. Sua mão esfaqueia a parede, as palavras caem como frutos podres, como flores colhidas, como crianças mortas. Nas mãos, a chave achada muito tarde, muito tarde. Tarde demais.
Era um silêncio muito grande e os dois falavam de caracóis. Súbito, sentia uma alegria interna quase como uma primavera. E a alegria crescia, expandindo-se em muitas direções, tomando conta das mãos, dos olhos, já transcendia o pensamento para se apossar do corpo inteiro. Mas de repente tudo já não cabia mais só dentro dele; precisava de um acontecimento externo que justificasse toda aquela largueza de dentro. A coisa externa não acontecia. E, se acontecia, não justificava. Por que não se render ao avanço natural das coisas, sem procurar definições? Como uma primavera, em mim. Mas se não havia justificativa, a queda era lenta e longa. No fundo do poço: baixou a cabeça, espiou-o por baixo das sobrancelhas. Tinha os olhos claros. Falava de caracóis.
Subi em cima da mesa e comecei a acenar para as aves de rapina que inventavam podridões no cimento. Pois se em breve todas as estátuas cairiam sobre a sombra desdobrada do casarão antigo, e como num medo muito grande eu subiria em cima da mesa, gritando sem ninguém ouvir, acenando com mãos que não se desprenderiam dos ombros. Protegia a si mesmo daquela primavera surgida brusca no meio do dia revestido de luz. Na sala ao lado, alguém cantava uma música antiga enquanto um telefone chamava sem que ninguém atendesse, sem que ninguém entendesse. Um estranho e triste apelo sem resposta partido no ar em fatias de aço. Que bom se fossemos cavalos e corrêssemos por um campo de trigo, com papoulas nas margens.
Encarou-o tenso, colocando no olhar o desafio: eu te vejo mais fundo do que você me vê, porque eu te invento nesse olhar, porque você se torna o meu invento, porque depois de olhar muito dentro eu prescindo da imagem e o meu olhar repleto se basta, como se eu fosse cego, mas tivesse guardado todas as imagens: um cego vê mais que um homem comum porque não precisa olhar para fora de si, porque o que ele deseja ver está completamente dentro e é inteiramente seu. Mas os olhos claros barravam o inventário. Não ia além da cor, não ia além das pupilas contraídas pela luz. O máximo que distinguia era um rosto perto do seu. Um rosto muito perto do seu falando de caracóis. Suspirou, num reconhecimento de fraqueza. Se meu olhar não te desvenda é porque você me vê mais fundo, mas você não pode ver mais fundo porque o meu fundo está cheio de musgo, porque o meu fundo é verde como um muro antigo, roído como mármore de cemitério, denso como uma floresta onde eu ando lento, as árvores barrando meus passos e a transparência de seus olhos barrando os meus.
Você já tomou gim com mariscos? Não, porque eu tenho nojo e medo: eu não conseguiria provar a carne mais íntima de um objeto ou de um animal. Tome logo, você não sabe o que está perdendo. Não, não seria madrugada, não seria noite vestida de noite nem manhã de branco nem tarde de verde, não seria tempo nenhum; não seria sequer a sexta-feira mais intensa que qualquer outro dia, por ser véspera de tudo, embora o tudo resulte em nada, na segunda; não seria nem véspera de sábado, não seria sequer o sábado. Eu te falo: seria uma névoa cinzenta e o edifício deserto erguido às margens do rio sujo. Fantasmas lentos, nós entraríamos no edifício, o rio estaria dentro de nós, e eu não seria mais eu, seria o rio, e você não seria mais você, seria o rio. O rio riscado de encontro.
O telefone continuava chamando no momento em que ele riscou a parede com a mão aberta. Perfurava a carne de madeira, fazendo nascer espantos dissolvidos na fumaça do cigarro que subia para o teto esbranquiçado, cheio de furinhos de onde um dia talvez começasse a brotar um fino gás que asfixiaria a todos. Por dentro, aquele gosto ardido de areia, aquele gosto seco de poeira, de bolo antigo, dissolvia-se de grão em grão, escorregando pela boca em palavras que já não eram forjadas, escorregando pelas mãos em gesto não mais endurecidos, escorregando pelos olhos que novamente olhavam como se vissem. Mas eu resistia ainda em usar a palavra. Espantou-se com o intervalo inesperado, ponto branco no meio de pensamento. E a leveza que descia feito o gás que desceria do teto: vestido de leveza, os olhos antigos de ternura, a morte implícita. Já era tarde, começava a chover, os pingos batiam fortes no vidro onde ninguém mais desenhava figuras ou escrevia nomes vadios. Na terra agora molhada não havia mais cirandas, do não caíam mais balões, na sala ao lado o samba antigo morrera no fundo da garganta. Só as máquinas a bater bater bater e o telefone gritando sem que ninguém atendesse. Ele continuava sentado na mesa, os olhos claros, a camisa verde, as mãos brancas. Pouco a pouco, como se experimentasse um vôo, curvou-se para a mesa, as asas cortadas. E o medo. Depois de limpar bem toda a terra, a gente coloca eles na panela e eles vão cozinhando devagar. Vivos? Claros, vivos. Tem uns que ainda tentam se segurar nas bordas, escapar, mas morrem todos. Todos acabam morrendo. Muito devagar. Os círculos de tédio desciam concêntricos da lâmpada, estendia o braço e sentia a carne inerte, os sentidos adormecidos, pouco mais que um objeto, eu. O mesmo bar, a mesma lâmpada, a mesma carne, mas todos em vibração, os sentidos multiplicados, intensos, elétricos, o coração quase parando de espanto, o espanto de ter encontrado no meio do deserto uma palmeira, uma palmeira de olhos claros, camisa verde, mãos brancas. Ter encontrado um cravo branco entre os caixotes de lixo atapetando a rua. Ter encontrado o espaço de silêncio dentro de um grito. Ter encontrado um ponto de apoio para o cansaço. Você não me vê, eu não te vejo, mas tenho o coração pálido, as mãos suspensas no meio de um gesto, a voz contida no meio de uma palavra, e você não vê o meu silêncio nem meu movimento dentro dele. A primavera se quebrava brusca em espinho, ferro. Já não sei desde quando estamos aqui, desde quando falamos de caracóis, desde quando invento teu silêncio igual ao meu. Por que estranha alquimia passavam as palavras dele para vara-lo assim, nessa tão remota dimensão do ser? A visão tardia de encontrar a chave depois da porta ter-se tornado inexistente. A chave inútil pesando em fogo nas mãos e o gesto há muito tempo preparado transformado subitamente em cansaço e desencanto de não ter visto antes. Os dois sentados um frente ao outro, pela tarde a transformar-se lenta em noite, em madrugada, em cinza. Não virá nunca.
Véspera de sábado, na sala ao lado o telefone grita para ouvidos distraídos. Sua mão esfaqueia a parede, as palavras caem como frutos podres, como flores colhidas, como crianças mortas. Nas mãos, a chave achada muito tarde, muito tarde. Tarde demais.
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Assim: do lado direito, um casal de velhos; do lado esquerdo, uma mulher com duas crianças atrás, dois rapazes de ar indefinido à frente, a toalha vermelha da mesa ampliando-se em perspectiva até a janela aberta para a noite. O ar ressecado estrangula os movimentos, depositado como poeira sobre as faces desfeitas de feições, expressões escorrendo em suor ao calor inesperado sobrevindo depois da chuva. Um rato caminha pobre uma das vigas de sustentação. Ele olha o rato, e o -ato não o vê. Olha o rato, mas as outras pessoas não cabem que seu olhar olha o rato. Sozinho naquele bar, naquela rua, em todos os bares em todas as ruas do mundo, no mundo inteiro -sozinho: ele e o rato, natureza cinza equilibrada sobre quatro patas.
-Você prefere lasanha ou ravióli?
-O meu dia só existe porque você existe dentro dele.
-Garçom, por favor .
-Vou-me embora, não suporto mais este bar, este calor, esta mesa. Não suporto mais você.
-Eu quero batatinha frita.
-Hoje existir me dói feito uma bofetada.
-Sem cebola, por favor.
Quando partiu, levava as mãos no bolso, a cabeça erguida. Não olhava para trás, porque olhar para trás era uma maneira de ficar num pedaço qualquer para partir incompleto, ficado em meio para trás. Não olhava, pois, e, pois não ficava. Completo, partiu. Não vê, mas pode sentir o toque áspero da pele recoberta de pêlos em suas mãos que seguram o garfo e a faca, e o toque é quase uma carícia -uma nauseante carícia de bicho à procura de qualquer coisa. Mas o rato está em cima; ele estava em baixo, o sexo enrijecido, a mulher se movimentando sobre ele. Uma lassidão de coisa cujo destino é possuir, mas submetida à posse, quem sabe ampliada no escuro. Expandia-se dentro de si num movimento de revolta e nojo. Muito próximo do seu, o rosto da mulher aberto numa quase careta de gozo, os dentes manchados de cigarro espiando por entre os beiços cobertos de batom que as gotas de suor faziam escorrer. Apertou-a contra si, as mãos comprimidas na bunda áspera. O sexo explodiu numa chuva densa, enquanto olhava estupidamente para o fio de luz coado pela janela.
-Não posso comer massa, meu bem, engordo horrores.
-Porque se você não vem é como se o tempo fosse passado em branco, como se as coisas não chegassem a se cumprir porque você não soube delas.
-Infelizmente o camarão acabou.
-Estou completamente cheio.
-Bem molezinha, com bastante sal.
-Mas este prato está sujo, que absurdo!!!
-Tudo dói, e eu já nem sei mais para onde ir nem o que fazer, se ao menos - você me amasse um pouco, não estaria aqui e agora. neste bar. sozinho. longe de você e de mim.
O rato, agora, em passos hesitantes, a cauda enroscando-se em madeiras. Esfarela devagar um pedaço de pão, o miolo escorre por entre os dedos, feito água, feito vento, feitos todas as coisas que passam e não marcam em nada, em nenhum recanto do corpo físico além de memória. Aqui e agora, pedindo mais uma cerveja ao garçom vestido de branco, bigodes retorcidos para baixo. Cercou-o devagar: um cuidadoso exame de comprador investigando a mercadoria, a medir de cima abaixo, da cabeça aos pés, a largura do tórax, a grossura das coxas, as mãos de dedos grossos nas juntas, os olhos escondidos debaixo das sobrancelhas, a barba forte azulando o rosto -como se conseguisse ir além da calça azul e da camisa branca limitando a carne. O sexo: ponto de chama entre as pernas. Estende a mão, mas o rato foge num movimento brusco.
-Prefiro carne, ao menos não engorda tanto.
-E se você vem, fica tudo maior, mais amplo, sei.
lá mas é como se eu existisse dum jeito mais completo, compreende?
-Temos peixe. Filé de peixe, serve?
-De repente parece que todo mundo vai começar a morder agente.
-Feijão não, eu odeio feijão.
-Uma merda, tudo. Uma grande merda.
Súbito escorrega para uma região desconhecida, onde tudo se dilui em sombra, em silêncio. Na sombra e no silêncio, o rato desliza manso, subindo a parede até alcançar novamente a viga que o sustenta. A mulher o encarou ofendida: se você gosta de homem, o problema é seu, meu filho, não tenho nada com isso. Insistiu. O guarda o soltou e ele saiu caminhando de cabeça baixa, depois de ter jogado o cartaz na sarjeta: "O povo passa fome". Jamais olhava para trás, jamais: o que estava feito, estava feito, estava consumado, estava para sempre imutável, inamoldável, fechado em si mesmo, estanque: o tempo. Ela sorriu de lado, a língua metida na falha entre os dois dentes. Concordou. Meteu a mão no bolso, procurando a carteira, e sentou o quase toque nos seus sapatos. Cerrou os dentes, o sexo latejava, estendeu a mão e tocou. Imóvel -o homem. 0 indecifrável dos olhos, do vinco marcando a boca, espreitando o, tenso. Eu pago, disse. Mas o rato voltou, sem que ninguém o veja.
-Tudo bem, um bife, mas bem pequenininho, bem passado e sem molho, hein?
-Ninguém toma de ninguém esse tipo de coisa, ninguém.
-Temos sopas, também. Madame é quem sabe.
-Me deixa ir embora. Eu não quero mais te ver. Nunca mais.
-Arroz? Mas eu só queria batatinha.
-E a faca? Será que é preciso comer com as mãos?
-Se ao menos dessa revolta, dessa angústia, saísse alguma coisa que prestasse.
Qualquer coisa: eu teria ao menos algo em que me segurar, qualquer coisa. O extremo da revolta seria a coisa feita, pronta para que segurassem nela. Eram vermelhos? Ou seriam azuis? Nunca vira os olhos de um rato bem de perto. Só a cauda, estendendo-se de elo em elo, até o final pontudo, como uma serpente. Não suportaria encarar um animal, qualquer que fosse. Aquela inconsciência de si mesmo, a ausência de indagações, de marcas- a isenção o deixava paralisado, como u~ ferocidade inesperada: um animal, o homem nu, estendido sobre a cama. Tocava o sexo, e o sexo vibrava. A cama vibrava. A noite vibrava. O mundo vibrava. Alinhou um a um os farelos na esquina, formando um nome com o líquido da urina. A mão machucada de sustentar o grito do cartaz, os pés sob a revolta, os ombros doídos embaixo da contestação. Foi de repente que começou acorrer para longe daquilo, esmagado pela exigência, pelo espanto de estar pedindo alguma coisa que nem para si era. Pedir exigia uma participação íntima que ele não tinha, e seus gritos ressoariam falsos por todas as esquinas, seus ombros curvariam ao peso acumulado, a cabeça baixa, rabo entre as pernas. O susto do rato com a bolinha de pão jogada sobre a cabeça.
-Imagine, ele falou que tinha achado o chapéu detestável.
-Só eu sei que cheguei à humildade máxima que um ser humano pode atingir: confessar a outro ser humano que precisa dele para existir.
-Quem sabe uma feijoada?
-Daqui a pouco vai começar a chover de novo.
-Tá bem, mas só se vier um sorvete depois.
-Quer fazer o favor de me alcançar o copo?
-Mas não sai nada. Nada. Nem uma lágrima.
Aproxima-se. Os olhos agrandaram na procura consumada em encontro, as patas avançaram para o objeto -o cinzento arrastando-se sobre o amarelo dos tapetes.
-Inveja, pura inveja, conheço demais essa gente.
-E no momento em que se confessa a precisão, perde-se tudo, eu sei.
-Não? Quem sabe então um... um... um...
-Não adianta insistir. Agora eu vou.
-De creme, não. Quero de morango.
-E essa coca-cola que não vem?
-Sei lá, vou dormir que é melhor.
Agrandava-se. Senhora dona Cândida, coberta de ouro e prata, descubra o seu rosto, quero ver a sua graça. Descobria-se. Afastava o ouro, a prata, as mãos que escondiam o rosto e dentro -o que havia? Contém-se e começa a contar-se baixinho: Era uma vez: assim: do lado direito, um casal de velhos; do lado esquerdo, uma mulher com duas crianças; atrás, dois rapazes de ar indefinido; à frente, a toalha vermelha da mesa ampliando-se em perspectiva até a janela aberta para a noite". E o rato. Quis gritar, mas era tão tarde, era muito tarde, era sempre tarde. Viu o garçom arrumando os pratos sobre a mesa, a fumaça elevando-se da comida quente. Mas a vidraça ainda não refletia a cor exata dos olhos. Baixou a cabeça para o prato, apoiado nas quatro patas cinzentas, o focinho fino, as pessoas esfarelando pães e jogando-lhe pedaços, espantou-se da delicadeza de sua próprias garras, da leveza de seu próprio corpo, agora apertam sua cauda entre os pés, e ele foge, tenta fugir, mas alguém sopra em seus ouvidos algo parecido com uma canção de ninar. Ou uma canção de guerra, de ódio, de nojo, de sangue, uma cantiga de roda, ou simplesmente um grito estridente, agudo, trêmulo, incompreensível. Um grito humano.
-Você prefere lasanha ou ravióli?
-O meu dia só existe porque você existe dentro dele.
-Garçom, por favor .
-Vou-me embora, não suporto mais este bar, este calor, esta mesa. Não suporto mais você.
-Eu quero batatinha frita.
-Hoje existir me dói feito uma bofetada.
-Sem cebola, por favor.
Quando partiu, levava as mãos no bolso, a cabeça erguida. Não olhava para trás, porque olhar para trás era uma maneira de ficar num pedaço qualquer para partir incompleto, ficado em meio para trás. Não olhava, pois, e, pois não ficava. Completo, partiu. Não vê, mas pode sentir o toque áspero da pele recoberta de pêlos em suas mãos que seguram o garfo e a faca, e o toque é quase uma carícia -uma nauseante carícia de bicho à procura de qualquer coisa. Mas o rato está em cima; ele estava em baixo, o sexo enrijecido, a mulher se movimentando sobre ele. Uma lassidão de coisa cujo destino é possuir, mas submetida à posse, quem sabe ampliada no escuro. Expandia-se dentro de si num movimento de revolta e nojo. Muito próximo do seu, o rosto da mulher aberto numa quase careta de gozo, os dentes manchados de cigarro espiando por entre os beiços cobertos de batom que as gotas de suor faziam escorrer. Apertou-a contra si, as mãos comprimidas na bunda áspera. O sexo explodiu numa chuva densa, enquanto olhava estupidamente para o fio de luz coado pela janela.
-Não posso comer massa, meu bem, engordo horrores.
-Porque se você não vem é como se o tempo fosse passado em branco, como se as coisas não chegassem a se cumprir porque você não soube delas.
-Infelizmente o camarão acabou.
-Estou completamente cheio.
-Bem molezinha, com bastante sal.
-Mas este prato está sujo, que absurdo!!!
-Tudo dói, e eu já nem sei mais para onde ir nem o que fazer, se ao menos - você me amasse um pouco, não estaria aqui e agora. neste bar. sozinho. longe de você e de mim.
O rato, agora, em passos hesitantes, a cauda enroscando-se em madeiras. Esfarela devagar um pedaço de pão, o miolo escorre por entre os dedos, feito água, feito vento, feitos todas as coisas que passam e não marcam em nada, em nenhum recanto do corpo físico além de memória. Aqui e agora, pedindo mais uma cerveja ao garçom vestido de branco, bigodes retorcidos para baixo. Cercou-o devagar: um cuidadoso exame de comprador investigando a mercadoria, a medir de cima abaixo, da cabeça aos pés, a largura do tórax, a grossura das coxas, as mãos de dedos grossos nas juntas, os olhos escondidos debaixo das sobrancelhas, a barba forte azulando o rosto -como se conseguisse ir além da calça azul e da camisa branca limitando a carne. O sexo: ponto de chama entre as pernas. Estende a mão, mas o rato foge num movimento brusco.
-Prefiro carne, ao menos não engorda tanto.
-E se você vem, fica tudo maior, mais amplo, sei.
lá mas é como se eu existisse dum jeito mais completo, compreende?
-Temos peixe. Filé de peixe, serve?
-De repente parece que todo mundo vai começar a morder agente.
-Feijão não, eu odeio feijão.
-Uma merda, tudo. Uma grande merda.
Súbito escorrega para uma região desconhecida, onde tudo se dilui em sombra, em silêncio. Na sombra e no silêncio, o rato desliza manso, subindo a parede até alcançar novamente a viga que o sustenta. A mulher o encarou ofendida: se você gosta de homem, o problema é seu, meu filho, não tenho nada com isso. Insistiu. O guarda o soltou e ele saiu caminhando de cabeça baixa, depois de ter jogado o cartaz na sarjeta: "O povo passa fome". Jamais olhava para trás, jamais: o que estava feito, estava feito, estava consumado, estava para sempre imutável, inamoldável, fechado em si mesmo, estanque: o tempo. Ela sorriu de lado, a língua metida na falha entre os dois dentes. Concordou. Meteu a mão no bolso, procurando a carteira, e sentou o quase toque nos seus sapatos. Cerrou os dentes, o sexo latejava, estendeu a mão e tocou. Imóvel -o homem. 0 indecifrável dos olhos, do vinco marcando a boca, espreitando o, tenso. Eu pago, disse. Mas o rato voltou, sem que ninguém o veja.
-Tudo bem, um bife, mas bem pequenininho, bem passado e sem molho, hein?
-Ninguém toma de ninguém esse tipo de coisa, ninguém.
-Temos sopas, também. Madame é quem sabe.
-Me deixa ir embora. Eu não quero mais te ver. Nunca mais.
-Arroz? Mas eu só queria batatinha.
-E a faca? Será que é preciso comer com as mãos?
-Se ao menos dessa revolta, dessa angústia, saísse alguma coisa que prestasse.
Qualquer coisa: eu teria ao menos algo em que me segurar, qualquer coisa. O extremo da revolta seria a coisa feita, pronta para que segurassem nela. Eram vermelhos? Ou seriam azuis? Nunca vira os olhos de um rato bem de perto. Só a cauda, estendendo-se de elo em elo, até o final pontudo, como uma serpente. Não suportaria encarar um animal, qualquer que fosse. Aquela inconsciência de si mesmo, a ausência de indagações, de marcas- a isenção o deixava paralisado, como u~ ferocidade inesperada: um animal, o homem nu, estendido sobre a cama. Tocava o sexo, e o sexo vibrava. A cama vibrava. A noite vibrava. O mundo vibrava. Alinhou um a um os farelos na esquina, formando um nome com o líquido da urina. A mão machucada de sustentar o grito do cartaz, os pés sob a revolta, os ombros doídos embaixo da contestação. Foi de repente que começou acorrer para longe daquilo, esmagado pela exigência, pelo espanto de estar pedindo alguma coisa que nem para si era. Pedir exigia uma participação íntima que ele não tinha, e seus gritos ressoariam falsos por todas as esquinas, seus ombros curvariam ao peso acumulado, a cabeça baixa, rabo entre as pernas. O susto do rato com a bolinha de pão jogada sobre a cabeça.
-Imagine, ele falou que tinha achado o chapéu detestável.
-Só eu sei que cheguei à humildade máxima que um ser humano pode atingir: confessar a outro ser humano que precisa dele para existir.
-Quem sabe uma feijoada?
-Daqui a pouco vai começar a chover de novo.
-Tá bem, mas só se vier um sorvete depois.
-Quer fazer o favor de me alcançar o copo?
-Mas não sai nada. Nada. Nem uma lágrima.
Aproxima-se. Os olhos agrandaram na procura consumada em encontro, as patas avançaram para o objeto -o cinzento arrastando-se sobre o amarelo dos tapetes.
-Inveja, pura inveja, conheço demais essa gente.
-E no momento em que se confessa a precisão, perde-se tudo, eu sei.
-Não? Quem sabe então um... um... um...
-Não adianta insistir. Agora eu vou.
-De creme, não. Quero de morango.
-E essa coca-cola que não vem?
-Sei lá, vou dormir que é melhor.
Agrandava-se. Senhora dona Cândida, coberta de ouro e prata, descubra o seu rosto, quero ver a sua graça. Descobria-se. Afastava o ouro, a prata, as mãos que escondiam o rosto e dentro -o que havia? Contém-se e começa a contar-se baixinho: Era uma vez: assim: do lado direito, um casal de velhos; do lado esquerdo, uma mulher com duas crianças; atrás, dois rapazes de ar indefinido; à frente, a toalha vermelha da mesa ampliando-se em perspectiva até a janela aberta para a noite". E o rato. Quis gritar, mas era tão tarde, era muito tarde, era sempre tarde. Viu o garçom arrumando os pratos sobre a mesa, a fumaça elevando-se da comida quente. Mas a vidraça ainda não refletia a cor exata dos olhos. Baixou a cabeça para o prato, apoiado nas quatro patas cinzentas, o focinho fino, as pessoas esfarelando pães e jogando-lhe pedaços, espantou-se da delicadeza de sua próprias garras, da leveza de seu próprio corpo, agora apertam sua cauda entre os pés, e ele foge, tenta fugir, mas alguém sopra em seus ouvidos algo parecido com uma canção de ninar. Ou uma canção de guerra, de ódio, de nojo, de sangue, uma cantiga de roda, ou simplesmente um grito estridente, agudo, trêmulo, incompreensível. Um grito humano.
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Para Graça Nunes
A princípio os cavalos eram mansos. Inofensivos como moças antigas fazendo seu footing na tarde de domingo. Foi só depois de certa convivência, ganhando intimidade, que começaram a tornar-se perigosos, passando da mansidão à secura e da secura à agressividade. Quando isso aconteceu, já tudo estava perdido. Na verdade talvez estivesse desde sempre, pois convenhamos, ver cavalos, e ainda por cima brancos -não é muito normal. E quem sabe a doçura do início fosse apenas um estratagema: se de imediato os cavalos tivessem se mostrado como realmente eram, é provável que Napoleão não os recebesse. E onde eles, pobres cavalos brancos rejeitados, encontrariam outro alguém para seduzir e atormentar? Outra hipótese é que não teriam sido propriamente um mal: Napoleão os teria trazido consigo, latentes, desde o útero materno, e só de repente vieram à tona. Como se aguardassem circunstâncias mais propícias para atacar. Pois eram inteligentes. E prudentes, também.
Antes, antes de tudo, Napoleão era advogado. Carregava consigo um sobrenome tradicional e as demais condições não menos essenciais para ser um bom profissional. Sua vida se arrastava juridicamente, como se estivesse destinado à advocacia. Em sua própria casa, à hora das refeições, todos dias sempre se desenrolavam movimentadíssimos julgamentos. Dos quais ele era o réu. Acusado de não dar um anel de brilhantes para a esposa nem um fusca para o filho nem uma saia maryquantiana para a filha. Eventuais visitas faziam corpo de jurados, onde às vezes colaboravam criados mais. Íntimos, sempre concordando com a esposa, promotora tenaz e capciosa. Treinado desse jeito, diariamente e com a vantagem de estar na doce intimidade do dulcíssimo lar, não era de admirar que fosse advogado competente. Sobretudo, experiente. Entre papéis de defensor e acusado, dividia-se em paciência. Nome nos jornais, causas vitoriosas, vezenquando faziam-no sorrir gratificado, pensando que, enfim, nem tudo estava perdido, ora. Mas estava. Embora ele não soubesse. Ou quem sabe estava tudo achado e não perdido, de tal maneira estão bem e mal interligados? O fato é que ele não sabia. Não sabendo, não podia lutar. Não podendo lutar, não podia vencer. Não podendo vencer, estava derrotado. Um derrotado em potencial, pois ele viu pela primeira vez.
Deu-se nas férias, na praia, quando olhou para as nuvens. E o fato de ter visto exatamente cavalos ainda mais exatamente, brancos -talvez tivesse mesmo a ver com seu nome, como mais tarde insinuaram os psiquiatras. Se se chamasse Ali ou Mustafá, provavelmente teria visto camelos? ou touros, se seu nome fosse Juan ou Pablo? Mas na primeira visão isso não teve importância. Simplesmente viu, com a simplicidade máxima que há no primeiro movimento do ato de ver. Tão natural achou que cutucou a esposa deitada ao lado, apontando, olha só, Marta, cavalos brancos nas nuvens. Não havia espanto nem temor nas suas palavras. Apenas a reação espontânea de quem vê o belo: mostrar. Marta disse não enche, Napoleão, coisa chata cutucar com este calor.
Como ele insistisse, afastou os raybans e deu urna espiada. Achou que as nuvens tinham mesmo certo jeito de cavalos. Tranqüilizada, passou um pouco mais de bronzeador argentino nas coxas. O que ela não percebia é que os animais estavam além (ou aquém) das nuvens. E entre elas passavam, ora galopantes, ora trotando, uma brancura, uma pureza tão grande equinidade absoluta nos movimentos. Tanta que Napoleão piscou, comovido. E começou a afundar. Porque ver é permitido, mas sentir já é perigoso. Sentir aos poucos vai exigindo uma série de coisas outras, até o momento em que não se pode mais prescindir do que foi simples constatação. Em breve os cavalos se diluíram no azul. Napoleão voltou à sua Agatha Christie.
Nesse dia, nuvens dissipadas, no céu de um azul sem mágoa não havia mais espaço para os cavalos. Só no nublado da manhã seguinte eles voltaram a aparecer. Desta vez, já com o egoísmo de quem intui que a coisa começa a significar, Napoleão não quis dividi-los com ninguém. Afundou neles, corpo despregado i da areia, levíssima levitação, confundindo-se com as nuvens, tão macias as carnes reluzentes, as crinas sedosas, os cascos marmóreos, relinchos bachianos brotando das modiglianescas gargantas, ricos como acordes barrocos. Estendeu as mãos para tocá-los, mas eles se esquivaram pudicos e desapareceram. De volta à areia, Napoleão olhou com certa superioridade para a esposa, achando-a vulgar naquela falsa moreneza tão oposta à brancura dos cavalos.
Começou a cultivá-los. Percebendo-os tímidos, passou a fazer longas caminhadas solitárias pela praia. Percebendo-os líricos, escolheu a hora do pôr-do-sol para seus furtivos encontros. E eles vinham. Agora se deixavam afagar, focinhos abaixados com sestro e brejeirice. Variavam em quantidade, nunca de cor. Como moças-de-respeito, jamais o encontravam sozinhos, embora, imaculadamente brancos. Brancos ou brancas? Éguas ou garanhões? Na verdade Napoleão jamais saberia especificar-Ihes o sexo. E que importância tinha? Embora apaixonado, não pretendia dormir com eles(as), portanto era indiferente sua sexualidade. Afagava-os como afagaria uma rosa, vivesse metido em jardins ao invés de tribunais. Como antigos vasos de porcelana, tapetes persas, preciosidades às quais apenas se ama, na tranqüilidade de nada exigir em troca. Tranqüilo, então, ele os(as) amava. Voltava banhado em paz, rosto descontraído, sorrindo para os animais alojados no fundo de suas próprias pupilas. Mulher, filhos, criados, visitas, vizinhos surpreendiam-se ao vê-lo crescer dia a dia em segurança e força. Os habituais júris não mais o perturbavam. Pairava agora infinitamente acima de qualquer penalidade ou multa. Tanto que a esposa chegou a pensar seriamente em perguntar-Ihe: o que é a Verdade? pois dessa nem Cristo escapara ileso. Calou -um pouco por ser demasiado católica, medrosa do sacrilégio, mas principalmente por senti-lo ainda além daquela pergunta, embora, orgulhosa, não o confessasse a si mesma.
Voltando à cidade, fim de férias, ele temeu que os cavalos o tivessem abandonado. Realmente, durante dois dias eles desapareceram. Napoleão esqueceu júris, processos, representações, dedicado somente à ausência dos amigos, ponto branco dolorido no seu taquicárdico coração. Fez então o primeiro reconhecimento: eles haviam assumido vital importância. Não podia mais viver sem os cavalos. Dessa certeza, partiu para uma segunda: eram a única coisa realmente sua que jamais tivera em toda a vida.
Mas eles voltaram. Entraram pela janela aberta do tribunal num dia em que ele estava especialmente inflamado na defesa de um matricida. A princípio ainda tentou prosseguir, fingiu não os ver, traição, opção terrível, entre o amor e a justiça, como na telenovela a que sua mulher assistia. Eles não estavam doces. Depois de entrarem pela janela, instalaram-se ríspidos entre os jurados. De onde observavam, secos, inquisidores. Sem sentir, Napoleão começou a falar cada vez mais baixo, mais lento, até a voz esfarelar-se num murmúrio de desculpas, em choque como murmúrio de revolta crescendo dos parentes do réu. Napoleão olhou ansioso para os cavalos, que não fizeram nenhum gesto de aprovação ou ternura. Rígidos, álgidos: esperavam.
O quê? foi a pergunta que ele se fez em pânico escavando o cérebro. Sem resposta, manteve-se encolhido e quieto até o final do julgamento. Estariam zangados?
Por que oh meu Deus, por quê? Mesmo assim acompanharam-no até a porta de casa instalados no banco traseiro do automóvel. Mudos. Napoleão entrou devagar na sala quase escura, criados indecisos entre aproveitar a luz mortiça do entardecer ou acender a luz elétrica. Confuso, enterrou a cabeça nas mãos. Nesse instante, a luz acendeu e um amigo, também advogado, entrou acompanhado de Marta.
AMIGO (carinhoso e complacente) -Não há de ser nada, Napoleão. Isso acontece até com os melhores. Você não deve se desesperar. As coisas voltam a ser como antes.
MART A (pousando a mão no ombro de Napoleão) -Afinal, foi a primeira vez, meu bem.
NAPOLEÃO (encarando-os, agradecido) –Vocês viram, então? Viram? Ah, eu não sei como explicar Parecia tudo tão bem, tão completo. Eu não entendo o que houve.
AMIGO -Isso acontece, Napoleão.
MARTA- Não se desespere, querido.
AMIGO -Você não teve culpa.
MARTA -Você estava nervoso.
NAPOLEÃO (obsessivo) -Mas vocês repararam na atitude deles? Repararam mesmo?
AMIGO (conciliador) -Natural que ficassem revoltados, Napoleão. Afinal, são parentes, clientes, pagaram os tubos. Queriam um serviço bem feito.
MARTA- Claaaaaro. E, enfim, o cara pegou só sete anos. Não é tanto assim, você pode apelar, pedir o tal de habeas-corpus.
NAPOLEÃO (erguendo-se brusco da poltrona) - Parentes? Clientes? Réu? Habeas-corpus? Mas eu estou falando é dos cavalos, entendem? Dos cavalos, caralho! Os parentes, os réus, os jurados, que se fodam, entendem? Que se fodam. Sem vaselina! O que me interessa são os cavalos!
Marta e o amigo se surpreenderam. E revezaram-se em desculpas, a cólera de Napoleão crescendo, meu Deus, ficou perturbado com o fracasso, Maria, traz um copo d'água, o coração, Napoleão, olha o infarto, uma aspirina, minha filha, calma, Napoleão, pelo amor de Deus, criatura!
Acalmou-se. Pelo menos até os cavalos voltarem, no dia seguinte. Ainda indiferentes remotos. A ira cresceu de novo, medo de perder seu único motivo, seu único apoio. Chamaram o médico. Deu-lhe injeções, calmantes, barbitúricos. Entre períodos de inércia e desespero, Napoleão se dividia. Veio psiquiatra. Devassou a sua vida, fazendo-o corar de vergonha e raiva e indignação. Nunca pensou em dormir com sua mãe? Já teve relações homossexuais? Em caso afirmativo, ativas ou passivas? Já pensou em estrangular a sua esposa? E em dormir com sua filha? Que sensação experimenta quando está defecando? Gosta de sentir dor? Em caso afirmativo, provocada por homem ou mulher?
Complexos de Édipo, Orestes, Agamemnon, Jocasta, Hipólito, Ifigênia, Prometeu, Clitemnestra -toda a mitologia grega foi colocada em função de sua doença.Em apenas dois dias, foi obrigado a ler toda a obra de Ésquilo, Sófocles e Eurípedes para descobrir quando devia ou não se ofender. Rótulos como sadomasoquista, pederasta, esquizofrênico, paranóico, comunista, ateu, hippie, narcisista, psicodélico, maconheiro, anarquista, catatônico, traficante de brancas (ou brancos?) foram-lhe impostos sucessivamente pelos psicanalistas.
Paciente, passivo, aceitava tudo sem sequer tentar compreender. Da psicoterapia individual passou à de grupo, e desta ao psicodrama, sonoterapia, eletrochoques -submetendo-se inclusive a um novíssimo método: a cavaloterapia, criado especialmente para ele.
Consistia em permanecer durante duas horas diárias no meio de cavalos reais. Exclusivamente pretos, e os mais cavalares possíveis, isto é, malcheirosos, despudorados, arrogantes, etc. Nada conseguia curá-lo. Passava de psicólogo a psiquiatra, a psicanalista; de sanatório a casa de saúde, a hospício. E nada. Enquanto isso, os cavalos mostravam-se cada vez mais agressivos, chegando mesmo à ousadia de investir contra ele. Melancólico, chorava noites inteiras, buscando explicações para a atitude cada vez mais inexplicável de seus antigos companheiros. Os psiquiatras, a esposa, os filhos, os criados, os colegas -todos cresciam em exigências, magoando-o com dúvidas e perguntas suspeitas. Napoleão diminuía em ânimo e saúde. Nervos à flor da pele, recusava-se a comer ou beber e, nos últimos tempos, inclusive em responder às perguntas dos analistas.
Numa noite, deu-se o desfecho. Que, aliás, se armara inevitável desde o princípio. Mais arde, os enfermeiros comentaram terem ouvido risos, segundo alguns, ou lágrimas, segundo outros. Mas ao certo mesmo, ninguém ficou sabendo como Napoleão morreu. Quando o médico entrou no quarto pela manhã, deparou com o corpo dele rígido sobre a cama. Parada-cardíaca-provocada-por-inanição, atestou logo entre alívio e piedade. Mandou chamar a esposa, filhos, colegas, criados, que vieram em tardias lágrimas inÚteis. Sobre a mesinha de cabeceira, em tinta azul, ficava sua última (ou talvez primeira) exigência. Queria ser conduzido para o cemitério num coche puxado por sete cavalos. Brancos, naturalmente. Foi. Culpada, a esposa gastou no enterro quase todo o seguro prévia e prudentemente feito. Sete palmos, Napoleão foi enterrado. Tivessem aberto o caixão, talvez notassem qualquer coisa como um vago sorriso transcendendo a dureza dos maxilares para sempre cerrados. Ninguém abriu. Tempos depois o zelador espalhou pelas redondezas que vira um homem estranho, nu em pêlo, cabelos ao vento, galopando em direção ao Crepúsculo montado em amáveis cavalos. Brancos, naturalmente.
A princípio os cavalos eram mansos. Inofensivos como moças antigas fazendo seu footing na tarde de domingo. Foi só depois de certa convivência, ganhando intimidade, que começaram a tornar-se perigosos, passando da mansidão à secura e da secura à agressividade. Quando isso aconteceu, já tudo estava perdido. Na verdade talvez estivesse desde sempre, pois convenhamos, ver cavalos, e ainda por cima brancos -não é muito normal. E quem sabe a doçura do início fosse apenas um estratagema: se de imediato os cavalos tivessem se mostrado como realmente eram, é provável que Napoleão não os recebesse. E onde eles, pobres cavalos brancos rejeitados, encontrariam outro alguém para seduzir e atormentar? Outra hipótese é que não teriam sido propriamente um mal: Napoleão os teria trazido consigo, latentes, desde o útero materno, e só de repente vieram à tona. Como se aguardassem circunstâncias mais propícias para atacar. Pois eram inteligentes. E prudentes, também.
Antes, antes de tudo, Napoleão era advogado. Carregava consigo um sobrenome tradicional e as demais condições não menos essenciais para ser um bom profissional. Sua vida se arrastava juridicamente, como se estivesse destinado à advocacia. Em sua própria casa, à hora das refeições, todos dias sempre se desenrolavam movimentadíssimos julgamentos. Dos quais ele era o réu. Acusado de não dar um anel de brilhantes para a esposa nem um fusca para o filho nem uma saia maryquantiana para a filha. Eventuais visitas faziam corpo de jurados, onde às vezes colaboravam criados mais. Íntimos, sempre concordando com a esposa, promotora tenaz e capciosa. Treinado desse jeito, diariamente e com a vantagem de estar na doce intimidade do dulcíssimo lar, não era de admirar que fosse advogado competente. Sobretudo, experiente. Entre papéis de defensor e acusado, dividia-se em paciência. Nome nos jornais, causas vitoriosas, vezenquando faziam-no sorrir gratificado, pensando que, enfim, nem tudo estava perdido, ora. Mas estava. Embora ele não soubesse. Ou quem sabe estava tudo achado e não perdido, de tal maneira estão bem e mal interligados? O fato é que ele não sabia. Não sabendo, não podia lutar. Não podendo lutar, não podia vencer. Não podendo vencer, estava derrotado. Um derrotado em potencial, pois ele viu pela primeira vez.
Deu-se nas férias, na praia, quando olhou para as nuvens. E o fato de ter visto exatamente cavalos ainda mais exatamente, brancos -talvez tivesse mesmo a ver com seu nome, como mais tarde insinuaram os psiquiatras. Se se chamasse Ali ou Mustafá, provavelmente teria visto camelos? ou touros, se seu nome fosse Juan ou Pablo? Mas na primeira visão isso não teve importância. Simplesmente viu, com a simplicidade máxima que há no primeiro movimento do ato de ver. Tão natural achou que cutucou a esposa deitada ao lado, apontando, olha só, Marta, cavalos brancos nas nuvens. Não havia espanto nem temor nas suas palavras. Apenas a reação espontânea de quem vê o belo: mostrar. Marta disse não enche, Napoleão, coisa chata cutucar com este calor.
Como ele insistisse, afastou os raybans e deu urna espiada. Achou que as nuvens tinham mesmo certo jeito de cavalos. Tranqüilizada, passou um pouco mais de bronzeador argentino nas coxas. O que ela não percebia é que os animais estavam além (ou aquém) das nuvens. E entre elas passavam, ora galopantes, ora trotando, uma brancura, uma pureza tão grande equinidade absoluta nos movimentos. Tanta que Napoleão piscou, comovido. E começou a afundar. Porque ver é permitido, mas sentir já é perigoso. Sentir aos poucos vai exigindo uma série de coisas outras, até o momento em que não se pode mais prescindir do que foi simples constatação. Em breve os cavalos se diluíram no azul. Napoleão voltou à sua Agatha Christie.
Nesse dia, nuvens dissipadas, no céu de um azul sem mágoa não havia mais espaço para os cavalos. Só no nublado da manhã seguinte eles voltaram a aparecer. Desta vez, já com o egoísmo de quem intui que a coisa começa a significar, Napoleão não quis dividi-los com ninguém. Afundou neles, corpo despregado i da areia, levíssima levitação, confundindo-se com as nuvens, tão macias as carnes reluzentes, as crinas sedosas, os cascos marmóreos, relinchos bachianos brotando das modiglianescas gargantas, ricos como acordes barrocos. Estendeu as mãos para tocá-los, mas eles se esquivaram pudicos e desapareceram. De volta à areia, Napoleão olhou com certa superioridade para a esposa, achando-a vulgar naquela falsa moreneza tão oposta à brancura dos cavalos.
Começou a cultivá-los. Percebendo-os tímidos, passou a fazer longas caminhadas solitárias pela praia. Percebendo-os líricos, escolheu a hora do pôr-do-sol para seus furtivos encontros. E eles vinham. Agora se deixavam afagar, focinhos abaixados com sestro e brejeirice. Variavam em quantidade, nunca de cor. Como moças-de-respeito, jamais o encontravam sozinhos, embora, imaculadamente brancos. Brancos ou brancas? Éguas ou garanhões? Na verdade Napoleão jamais saberia especificar-Ihes o sexo. E que importância tinha? Embora apaixonado, não pretendia dormir com eles(as), portanto era indiferente sua sexualidade. Afagava-os como afagaria uma rosa, vivesse metido em jardins ao invés de tribunais. Como antigos vasos de porcelana, tapetes persas, preciosidades às quais apenas se ama, na tranqüilidade de nada exigir em troca. Tranqüilo, então, ele os(as) amava. Voltava banhado em paz, rosto descontraído, sorrindo para os animais alojados no fundo de suas próprias pupilas. Mulher, filhos, criados, visitas, vizinhos surpreendiam-se ao vê-lo crescer dia a dia em segurança e força. Os habituais júris não mais o perturbavam. Pairava agora infinitamente acima de qualquer penalidade ou multa. Tanto que a esposa chegou a pensar seriamente em perguntar-Ihe: o que é a Verdade? pois dessa nem Cristo escapara ileso. Calou -um pouco por ser demasiado católica, medrosa do sacrilégio, mas principalmente por senti-lo ainda além daquela pergunta, embora, orgulhosa, não o confessasse a si mesma.
Voltando à cidade, fim de férias, ele temeu que os cavalos o tivessem abandonado. Realmente, durante dois dias eles desapareceram. Napoleão esqueceu júris, processos, representações, dedicado somente à ausência dos amigos, ponto branco dolorido no seu taquicárdico coração. Fez então o primeiro reconhecimento: eles haviam assumido vital importância. Não podia mais viver sem os cavalos. Dessa certeza, partiu para uma segunda: eram a única coisa realmente sua que jamais tivera em toda a vida.
Mas eles voltaram. Entraram pela janela aberta do tribunal num dia em que ele estava especialmente inflamado na defesa de um matricida. A princípio ainda tentou prosseguir, fingiu não os ver, traição, opção terrível, entre o amor e a justiça, como na telenovela a que sua mulher assistia. Eles não estavam doces. Depois de entrarem pela janela, instalaram-se ríspidos entre os jurados. De onde observavam, secos, inquisidores. Sem sentir, Napoleão começou a falar cada vez mais baixo, mais lento, até a voz esfarelar-se num murmúrio de desculpas, em choque como murmúrio de revolta crescendo dos parentes do réu. Napoleão olhou ansioso para os cavalos, que não fizeram nenhum gesto de aprovação ou ternura. Rígidos, álgidos: esperavam.
O quê? foi a pergunta que ele se fez em pânico escavando o cérebro. Sem resposta, manteve-se encolhido e quieto até o final do julgamento. Estariam zangados?
Por que oh meu Deus, por quê? Mesmo assim acompanharam-no até a porta de casa instalados no banco traseiro do automóvel. Mudos. Napoleão entrou devagar na sala quase escura, criados indecisos entre aproveitar a luz mortiça do entardecer ou acender a luz elétrica. Confuso, enterrou a cabeça nas mãos. Nesse instante, a luz acendeu e um amigo, também advogado, entrou acompanhado de Marta.
AMIGO (carinhoso e complacente) -Não há de ser nada, Napoleão. Isso acontece até com os melhores. Você não deve se desesperar. As coisas voltam a ser como antes.
MART A (pousando a mão no ombro de Napoleão) -Afinal, foi a primeira vez, meu bem.
NAPOLEÃO (encarando-os, agradecido) –Vocês viram, então? Viram? Ah, eu não sei como explicar Parecia tudo tão bem, tão completo. Eu não entendo o que houve.
AMIGO -Isso acontece, Napoleão.
MARTA- Não se desespere, querido.
AMIGO -Você não teve culpa.
MARTA -Você estava nervoso.
NAPOLEÃO (obsessivo) -Mas vocês repararam na atitude deles? Repararam mesmo?
AMIGO (conciliador) -Natural que ficassem revoltados, Napoleão. Afinal, são parentes, clientes, pagaram os tubos. Queriam um serviço bem feito.
MARTA- Claaaaaro. E, enfim, o cara pegou só sete anos. Não é tanto assim, você pode apelar, pedir o tal de habeas-corpus.
NAPOLEÃO (erguendo-se brusco da poltrona) - Parentes? Clientes? Réu? Habeas-corpus? Mas eu estou falando é dos cavalos, entendem? Dos cavalos, caralho! Os parentes, os réus, os jurados, que se fodam, entendem? Que se fodam. Sem vaselina! O que me interessa são os cavalos!
Marta e o amigo se surpreenderam. E revezaram-se em desculpas, a cólera de Napoleão crescendo, meu Deus, ficou perturbado com o fracasso, Maria, traz um copo d'água, o coração, Napoleão, olha o infarto, uma aspirina, minha filha, calma, Napoleão, pelo amor de Deus, criatura!
Acalmou-se. Pelo menos até os cavalos voltarem, no dia seguinte. Ainda indiferentes remotos. A ira cresceu de novo, medo de perder seu único motivo, seu único apoio. Chamaram o médico. Deu-lhe injeções, calmantes, barbitúricos. Entre períodos de inércia e desespero, Napoleão se dividia. Veio psiquiatra. Devassou a sua vida, fazendo-o corar de vergonha e raiva e indignação. Nunca pensou em dormir com sua mãe? Já teve relações homossexuais? Em caso afirmativo, ativas ou passivas? Já pensou em estrangular a sua esposa? E em dormir com sua filha? Que sensação experimenta quando está defecando? Gosta de sentir dor? Em caso afirmativo, provocada por homem ou mulher?
Complexos de Édipo, Orestes, Agamemnon, Jocasta, Hipólito, Ifigênia, Prometeu, Clitemnestra -toda a mitologia grega foi colocada em função de sua doença.Em apenas dois dias, foi obrigado a ler toda a obra de Ésquilo, Sófocles e Eurípedes para descobrir quando devia ou não se ofender. Rótulos como sadomasoquista, pederasta, esquizofrênico, paranóico, comunista, ateu, hippie, narcisista, psicodélico, maconheiro, anarquista, catatônico, traficante de brancas (ou brancos?) foram-lhe impostos sucessivamente pelos psicanalistas.
Paciente, passivo, aceitava tudo sem sequer tentar compreender. Da psicoterapia individual passou à de grupo, e desta ao psicodrama, sonoterapia, eletrochoques -submetendo-se inclusive a um novíssimo método: a cavaloterapia, criado especialmente para ele.
Consistia em permanecer durante duas horas diárias no meio de cavalos reais. Exclusivamente pretos, e os mais cavalares possíveis, isto é, malcheirosos, despudorados, arrogantes, etc. Nada conseguia curá-lo. Passava de psicólogo a psiquiatra, a psicanalista; de sanatório a casa de saúde, a hospício. E nada. Enquanto isso, os cavalos mostravam-se cada vez mais agressivos, chegando mesmo à ousadia de investir contra ele. Melancólico, chorava noites inteiras, buscando explicações para a atitude cada vez mais inexplicável de seus antigos companheiros. Os psiquiatras, a esposa, os filhos, os criados, os colegas -todos cresciam em exigências, magoando-o com dúvidas e perguntas suspeitas. Napoleão diminuía em ânimo e saúde. Nervos à flor da pele, recusava-se a comer ou beber e, nos últimos tempos, inclusive em responder às perguntas dos analistas.
Numa noite, deu-se o desfecho. Que, aliás, se armara inevitável desde o princípio. Mais arde, os enfermeiros comentaram terem ouvido risos, segundo alguns, ou lágrimas, segundo outros. Mas ao certo mesmo, ninguém ficou sabendo como Napoleão morreu. Quando o médico entrou no quarto pela manhã, deparou com o corpo dele rígido sobre a cama. Parada-cardíaca-provocada-por-inanição, atestou logo entre alívio e piedade. Mandou chamar a esposa, filhos, colegas, criados, que vieram em tardias lágrimas inÚteis. Sobre a mesinha de cabeceira, em tinta azul, ficava sua última (ou talvez primeira) exigência. Queria ser conduzido para o cemitério num coche puxado por sete cavalos. Brancos, naturalmente. Foi. Culpada, a esposa gastou no enterro quase todo o seguro prévia e prudentemente feito. Sete palmos, Napoleão foi enterrado. Tivessem aberto o caixão, talvez notassem qualquer coisa como um vago sorriso transcendendo a dureza dos maxilares para sempre cerrados. Ninguém abriu. Tempos depois o zelador espalhou pelas redondezas que vira um homem estranho, nu em pêlo, cabelos ao vento, galopando em direção ao Crepúsculo montado em amáveis cavalos. Brancos, naturalmente.
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