Para Dante Casarini
Este é meu tributo à moda do realismo-mágico latino-americano. Escrita em 1969, na Casa do Sol de Hilda Hilst, entre Campinas eJaú, onde eu estava escondido do DOPS, A visita nasceu das leituras que fazíamos de Carlos Fuentes, Juan Rulfo e principalmente García Márquez. Foi publicada duas vezes: primeiro no Suplemento Literário de O Estado de S. Pauio, por artes e prestígio de Hilda; depois no Caderno de Sábado do Correio do Povo.
Irreconhecível
Me procuro lenta
Nos teus escuros.
Como te chamas, breu?
Tempo.
(Hilda Hilst: Da Morte, Odes Mínimas)
Ele chegou devagar e sentou-se na varanda coberta de begônias empoeiradas, sem uma palavra. Ninguém perguntou de onde vinha. Naquela casa cheia de gentes e barulhos cotidianos, um inesperado silêncio respeitou sua chegada. As crianças o olharam com curiosidade — a mesma curiosidade que os adultos continham brotava nelas, espontânea, e cercavam o homem sem medo, achando apenas estranha aquela figura esfarrapada, mas muito limpa, de pés descalços semelhantes a raízes. O homem parecia não reparar nelas, nem nos outros. Olhava para longe sem se mover, olhava para longe com alguma coisa determinada e fatal guardada nos olhos. Alguns suspeitaram nesse olhar sabedorias trazidas dos lugares por onde andara, compreensões maiores, aprendizados tão amplos que voz nem gesto expressariam. “O que mais sabe é o que mais cala”, sussurravam numa aceitação de seu silêncio. E passavam como se não o vissem, sequer comentando entre si a chegada dele, estabelecendo tácitos que ele ali estava, e nada modificaria essa situação. Os mais antigos olhavam o retrato pendurado na sala, investigando semelhanças: o retrato amarelado pelo tempo, o homem amarelado pela vida. Mas embora os traços fossem os mesmos — a curva no nariz adunco, o vinco duro e fundo no canto da boca, o rosto encovado e longo —, embora mais castigados pelos anos, havia no homem da varanda uma claridade que o retrato não tinha. Havia no homem como uma aura quase insuportável de lucidez e ausência. Então eles todos, menos as crianças, sentiam- se toscos e evitavam passar perto. Sabiam que não se atreveriam jamais a chegar perto daquele homem.
Aceitaram-no pelo dia afora, a casa aos poucos se enchendo de tensões pelos cantos. Elas se amavam, as pessoas daquela grande família, embora fosse um amor cotidiano, distraído, não de palavras e gestos mas de lençóis trocados em dias certos, refeições nas horas exatas, roupa lavada, delicadezas um pouco mecânicas. Mas com o dia avançando, as sombras ampliavam a presença do homem pela casa inteira. Essa sombra se infiltrando devagar em cada quarto jogava no rosto de cada um tudo aquilo que não haviam sido, que não haviam feito, tudo aquilo que tinham apenas ameaçado ser, intensos e cheios de sangue, para depois se amoldarem num dia-a-dia feito de automatismos. Quieta, remota, a presença do homem era uma afronta.
A hora do jantar, comeram em silêncio, trocando os pratos sem gentileza, os tinidos do metal na louça substituindo o afeto entre as paredes caiadas. E pela primeira vez, Valentina não riu. Distribuía os pratos rápida, ordenada, a boca endurecida depois de anos de riso aberto.
II
As crianças foram postas mais cedo na cama, conscientes apenas de que havia um desconhecido sentado na varanda. Os outros permaneceram na sala. Valentina tricotava enquanto as mulheres remexiam na cozinha e os homens fumavam cigarro após cigarro, todos em silêncio. Não se atreviam a formular as perguntas soltas no ar — viera para ficar, o homem? seria preciso arrumar uma cama para ele? e no quarto de quem? o que queria, depois de tanto tempo? Esqueceram de levar o chá para a avó inválida, esquecida na cama. E às dez horas, respeitando as batidas do velho relógio, recolheram-se a seus quartos em passos medidos e boas-noites medrosos.
Apenas Valentina ficou na sala, as agulhas trabalhando numa enorme trama azul-marinho, quase negra, que já escorregava de seus joelhos para atingir o chão, encaminhando-se como uma serpente lenta para a porta da varanda. Por duas horas ainda trabalhou, até que toda a sala estivesse coberta por aquele tapete, ou rede, ninguém saberia dar nome. À meia-noite levantou-se e espiou.
O homem continuava lá, na mesma posição desde que chegara. Como um faraó na cadeira dura, as duas mãos pousadas sobre as coxas, as palmas voltadas para baixo, os olhos fixos além de tudo. Escondida atrás das cortinas, Valentina viu que seus pés descalços pareciam raízes grossas ameaçando entrar pelo chão de tijolos, viu que suas unhas eram longas, ovaladas e quase verdes, feito folhas, e que seu rosto pétreo parecia um fruto sendo aos poucos esculpido, ainda verde, mas cheio de sementes que transpareciam no olhar. Desejou aproximar-se, tocálo, saber até que ponto aquela carne que tinha sido sua e lhe plantara filhos de carne também dentro de sua própria carne continuaria quente ao toque. Até que ponto continuavam mornas aquelas mãos que haviam despertado regiões desconhecidas de seu corpo, até que ponto continuava vivo aquele membro que fizera germinar cinco filhos em seu ventre. Não se atreveu. Chegou a ensaiar alguns passos na fronteira da varanda, pensando em ternuras, solidões há muitos anos caladas. Mas em tcomo do homem, como um ímã às avessas, alguma coisa repelia qualquer tentativa de aproximação.
Lenta, então, Valentina voltou para o próprio quarto e, embora não fosse o dia, escolheu os lençóis mais brancos e os travesseiros mais macios para fazer cama nova. Sacudindo panos, a janela aberta, fez com que o cheiro de alfazema se desprendesse para avançar até a varanda de begônias empoeiradas. Abriu a porta do quarto para que o homem percebesse o convite, trouxe da cozinha um caldo quente e colocou-o sobre a cômoda, dobrou uma toalha limpa e colocou-a dobrada sobre a cama com um sabonete de benjoim. Depois de tudo pronto, abriu leve a porta dos quartos dos filhos e noras, dos netos, da mãe, viu que dormiam em paz e voltou para o próprio quarto. Então olhou sua própria sombra projetada na parede:
um pouco curva, os seios murchos, caídos, as mãos cheias de rugas, as articulações nodosas, e aquele riso permanente durante os quase trinta anos que ele se fora, aquele riso que de mero dissímulo passara a ser verdade, aquele riso agora pesava, pesava, pesava.
III
No dia seguinte, os filhos no trabalho, as noras espalhadas, os netos na escola, espreitou o quarto, a cama, o caldo, a toalha, o sabonete. Permaneciam intocados, e o homem na varanda na mesma posição do dia anterior. Estaria morto? perguntou-se sem susto, quase tranqüilizada. Morto o homem, a casa voltaria a ser como antes e ela teria seu riso de volta. Mas, mesmo visto de longe, embora imóvel, o homem transpirava e pulsava na manhã escaldante de janeiro. Procurou então a mãe, no quarto. Abriu as cortinas enquanto um cheiro de mofo e dois olhos brilhantes saltavam do fundo da cama.
— Mãe, ele voltou.
— É tempo — disse a velha.
— Mãe, o que faço?
— Você está velha.
— Mãe, o que faço?
— Você está feia, Valentina.
— Mas o que faço, mãe? Ele está lá fora, na varanda. Ele está lá, no meio das begônias. Desde ontem, ele está lá, mãe.
A velha levantou o braço e mostrou o espelho amplo, de parede inteira. E num susto Valentina viu sua própria pele cor de terra, seu vestido desbotado, sua boca de riso morto parecendo costurada, as mãos como dois pergaminhos crispados, uma teia de rugas espalhada por toda a pele. Naquele dia, esqueceu do almoço, da limpeza da casa, do pó sobre os móveis, de tudo que fazia todas as manhãs. Debruçada na janela olhava com olhos parados a rua enchendo-se de cores e movimento, sem responder aos cumprimentos dos vizinhos. Quando os outros voltaram de suas ocupações, jogou um pedaço de came sangrenta numa panela com água e não arrumou a mesa nua. Sentada à cabeceira, olhava e agradecia. Os filhos eram bons. Mesmo o filho viúvo era alegre e bom e trabalhador, nunca o vira lidar com mulheres, bebida, jogatina. Quis sorrir para todos eles e para suas mulheres e para suas crianças, mas a boca costurada não obedecia. Então Valentina chorou. Todos compreenderam seu choro, e não perguntaram nada, nem tentaram consolá-la. Os traços de seu rosto pareciam desfazer-se com as lágrimas, caindo líquidos na madeira marcada. Mas os ombros não tremiam, e não havia nenhuma contração em sua boca, nenhum som em sua garganta. Sem revolta, ela aceitava. E chorava pela perdição de aceitar o que não pode ser modificado.
IV
Na varanda, o homem continuava. Dois dias se passaram, uma semana, um mês, muitos meses. E o homem lá, em meio às begônias cada vez mais emaranhadas, sem comer nem falar. O homem já esquecido pelas crianças, indiferente a todos os chamados que Valentina inventava. O tricô azul, quase negro, agora cobria a casa inteira — tapete, cortina, toalha de fios grossos onde todos se enredavam sem compreender, sem perguntar.
Certa noite Valentina ouviu risos no quarto do filho viúvo. Suspendeu o trabalho das agulhas e, pelo buraco da fechadura, espiou. Estavam lá, todos os filhos, mais duas mulheres e dois homens desconhecidos, todos nus, entre garrafas vazias, cartas de baralho manchadas de vinho, camas desfeitas. Alguns dos homens abraçavam as mulheres, outros abraçavam os homens, e todos juntos se abraçavam e beijavam e rolavam e gemiam feito animais. A madrugada vinha chegando. Ela saiu para o pátio e embaixo do umbu de tronco apodrecido observou a casa. O reboco caía em placas, a pintura das janelas descascava, teias de aranha pendiam do teto, morcegos esvoaçavam, ervas daninhas tramavam-se na terra. Num dos quartos, a velha mãe apodrecia morta e esquecida sobre a cama, as cinzas transbordavam do fogão até a porta da cozinha, as crianças comiam terra junto com os porcos. Olhou para si mesma, e sentiu o cheiro de suor antigo de seu próprio corpo, viu o vestido sem cor, as unhas enormes, os cabelos soltos despencando duros e sujos ao lado do rosto. O sol recém-nascido agora crestava as plantas, a terra se abria em rachas secas, um vapor fétido se evolava das coisas e milhares de moscas voavam tontas sobre os montes de lixo.
Valentina cruzou os braços sobre o peito, procurando dentro de si algum recanto úmido capaz de amenizar aquela secura das coisas. Mas dentro dela havia o mesmo deserto, as mesmas gretas, os mesmos vapores e moscas. Espiou a rua por entre os cacos de vidro do muro, e além dos portões de ferro o mundo inteiro era também vazio, árido, seco. Nos quartos os homens riam cada vez mais alto, mulheres nuas pintavam unhas de vermelho na cozinha, os pés apoiados sobre a mesa, e passeavam todos nus pela casa sem se importar que ela os visse com as mulheres, com os outros homens, com os animais, com as crianças, com eles mesmos, enredando-se bêbados nas tramas azuis muito escuras do tricô que cobria tudo.
Endurecida, Valentina olhava sem choque nem nojo. E de repente, como uma salvação possível, lembrou-se do homem que permanecia esquecido na varanda de begônias empoeiradas. No homem havia umidade quando estava seco, havia calor quando estava frio, no homem havia tudo o que precisava e um dia tivera e o que se fora para sempre e o que não voltaria nunca mais a ser. Correu para a varanda, atravessando seu próprio quarto onde o cheiro forte da alfazema antiga dava tonturas, tropeçando nos pratos espalhados pelo chão, enredando-se nas malhas que ela mesma tecera. Falaria, falaria agora, falaria enfim
— dizia para si mesma, rindo outra vez, os lábios descosturados outra vez.
Ao atingir a soleira da porta, percebeu que o círculo de repulsão em tomo do homem já não existia. Avançou, estendeu a mão. Tocou de leve no tronco da figueira que crescera arrebentando os tijolos do chão, esmagou entre os dedos um dos frutos verdes que deixou na sua pele um sumo pegajoso, adocicado, ardido. Bebeu daquele líquido, água, esperma, leite. Depois deixou a cabeça pender entre as samambaias e avencas tramadas nas begônias, os cabelos confundiram-se na poeira das plantas, o corpo foi rodando lento e oscilou precário até encontrar o frescor do chão de tijolos. Deixou que tudo acontecesse sem um grito, sem espanto. E quando finalmente sentiu-se protegida e úmida, e limpa e sorridente outra vez, e confortável e em paz, deixou que seus movimentos se espaçassem, suspirou e morreu.
Este é meu tributo à moda do realismo-mágico latino-americano. Escrita em 1969, na Casa do Sol de Hilda Hilst, entre Campinas eJaú, onde eu estava escondido do DOPS, A visita nasceu das leituras que fazíamos de Carlos Fuentes, Juan Rulfo e principalmente García Márquez. Foi publicada duas vezes: primeiro no Suplemento Literário de O Estado de S. Pauio, por artes e prestígio de Hilda; depois no Caderno de Sábado do Correio do Povo.
Irreconhecível
Me procuro lenta
Nos teus escuros.
Como te chamas, breu?
Tempo.
(Hilda Hilst: Da Morte, Odes Mínimas)
Ele chegou devagar e sentou-se na varanda coberta de begônias empoeiradas, sem uma palavra. Ninguém perguntou de onde vinha. Naquela casa cheia de gentes e barulhos cotidianos, um inesperado silêncio respeitou sua chegada. As crianças o olharam com curiosidade — a mesma curiosidade que os adultos continham brotava nelas, espontânea, e cercavam o homem sem medo, achando apenas estranha aquela figura esfarrapada, mas muito limpa, de pés descalços semelhantes a raízes. O homem parecia não reparar nelas, nem nos outros. Olhava para longe sem se mover, olhava para longe com alguma coisa determinada e fatal guardada nos olhos. Alguns suspeitaram nesse olhar sabedorias trazidas dos lugares por onde andara, compreensões maiores, aprendizados tão amplos que voz nem gesto expressariam. “O que mais sabe é o que mais cala”, sussurravam numa aceitação de seu silêncio. E passavam como se não o vissem, sequer comentando entre si a chegada dele, estabelecendo tácitos que ele ali estava, e nada modificaria essa situação. Os mais antigos olhavam o retrato pendurado na sala, investigando semelhanças: o retrato amarelado pelo tempo, o homem amarelado pela vida. Mas embora os traços fossem os mesmos — a curva no nariz adunco, o vinco duro e fundo no canto da boca, o rosto encovado e longo —, embora mais castigados pelos anos, havia no homem da varanda uma claridade que o retrato não tinha. Havia no homem como uma aura quase insuportável de lucidez e ausência. Então eles todos, menos as crianças, sentiam- se toscos e evitavam passar perto. Sabiam que não se atreveriam jamais a chegar perto daquele homem.
Aceitaram-no pelo dia afora, a casa aos poucos se enchendo de tensões pelos cantos. Elas se amavam, as pessoas daquela grande família, embora fosse um amor cotidiano, distraído, não de palavras e gestos mas de lençóis trocados em dias certos, refeições nas horas exatas, roupa lavada, delicadezas um pouco mecânicas. Mas com o dia avançando, as sombras ampliavam a presença do homem pela casa inteira. Essa sombra se infiltrando devagar em cada quarto jogava no rosto de cada um tudo aquilo que não haviam sido, que não haviam feito, tudo aquilo que tinham apenas ameaçado ser, intensos e cheios de sangue, para depois se amoldarem num dia-a-dia feito de automatismos. Quieta, remota, a presença do homem era uma afronta.
A hora do jantar, comeram em silêncio, trocando os pratos sem gentileza, os tinidos do metal na louça substituindo o afeto entre as paredes caiadas. E pela primeira vez, Valentina não riu. Distribuía os pratos rápida, ordenada, a boca endurecida depois de anos de riso aberto.
II
As crianças foram postas mais cedo na cama, conscientes apenas de que havia um desconhecido sentado na varanda. Os outros permaneceram na sala. Valentina tricotava enquanto as mulheres remexiam na cozinha e os homens fumavam cigarro após cigarro, todos em silêncio. Não se atreviam a formular as perguntas soltas no ar — viera para ficar, o homem? seria preciso arrumar uma cama para ele? e no quarto de quem? o que queria, depois de tanto tempo? Esqueceram de levar o chá para a avó inválida, esquecida na cama. E às dez horas, respeitando as batidas do velho relógio, recolheram-se a seus quartos em passos medidos e boas-noites medrosos.
Apenas Valentina ficou na sala, as agulhas trabalhando numa enorme trama azul-marinho, quase negra, que já escorregava de seus joelhos para atingir o chão, encaminhando-se como uma serpente lenta para a porta da varanda. Por duas horas ainda trabalhou, até que toda a sala estivesse coberta por aquele tapete, ou rede, ninguém saberia dar nome. À meia-noite levantou-se e espiou.
O homem continuava lá, na mesma posição desde que chegara. Como um faraó na cadeira dura, as duas mãos pousadas sobre as coxas, as palmas voltadas para baixo, os olhos fixos além de tudo. Escondida atrás das cortinas, Valentina viu que seus pés descalços pareciam raízes grossas ameaçando entrar pelo chão de tijolos, viu que suas unhas eram longas, ovaladas e quase verdes, feito folhas, e que seu rosto pétreo parecia um fruto sendo aos poucos esculpido, ainda verde, mas cheio de sementes que transpareciam no olhar. Desejou aproximar-se, tocálo, saber até que ponto aquela carne que tinha sido sua e lhe plantara filhos de carne também dentro de sua própria carne continuaria quente ao toque. Até que ponto continuavam mornas aquelas mãos que haviam despertado regiões desconhecidas de seu corpo, até que ponto continuava vivo aquele membro que fizera germinar cinco filhos em seu ventre. Não se atreveu. Chegou a ensaiar alguns passos na fronteira da varanda, pensando em ternuras, solidões há muitos anos caladas. Mas em tcomo do homem, como um ímã às avessas, alguma coisa repelia qualquer tentativa de aproximação.
Lenta, então, Valentina voltou para o próprio quarto e, embora não fosse o dia, escolheu os lençóis mais brancos e os travesseiros mais macios para fazer cama nova. Sacudindo panos, a janela aberta, fez com que o cheiro de alfazema se desprendesse para avançar até a varanda de begônias empoeiradas. Abriu a porta do quarto para que o homem percebesse o convite, trouxe da cozinha um caldo quente e colocou-o sobre a cômoda, dobrou uma toalha limpa e colocou-a dobrada sobre a cama com um sabonete de benjoim. Depois de tudo pronto, abriu leve a porta dos quartos dos filhos e noras, dos netos, da mãe, viu que dormiam em paz e voltou para o próprio quarto. Então olhou sua própria sombra projetada na parede:
um pouco curva, os seios murchos, caídos, as mãos cheias de rugas, as articulações nodosas, e aquele riso permanente durante os quase trinta anos que ele se fora, aquele riso que de mero dissímulo passara a ser verdade, aquele riso agora pesava, pesava, pesava.
III
No dia seguinte, os filhos no trabalho, as noras espalhadas, os netos na escola, espreitou o quarto, a cama, o caldo, a toalha, o sabonete. Permaneciam intocados, e o homem na varanda na mesma posição do dia anterior. Estaria morto? perguntou-se sem susto, quase tranqüilizada. Morto o homem, a casa voltaria a ser como antes e ela teria seu riso de volta. Mas, mesmo visto de longe, embora imóvel, o homem transpirava e pulsava na manhã escaldante de janeiro. Procurou então a mãe, no quarto. Abriu as cortinas enquanto um cheiro de mofo e dois olhos brilhantes saltavam do fundo da cama.
— Mãe, ele voltou.
— É tempo — disse a velha.
— Mãe, o que faço?
— Você está velha.
— Mãe, o que faço?
— Você está feia, Valentina.
— Mas o que faço, mãe? Ele está lá fora, na varanda. Ele está lá, no meio das begônias. Desde ontem, ele está lá, mãe.
A velha levantou o braço e mostrou o espelho amplo, de parede inteira. E num susto Valentina viu sua própria pele cor de terra, seu vestido desbotado, sua boca de riso morto parecendo costurada, as mãos como dois pergaminhos crispados, uma teia de rugas espalhada por toda a pele. Naquele dia, esqueceu do almoço, da limpeza da casa, do pó sobre os móveis, de tudo que fazia todas as manhãs. Debruçada na janela olhava com olhos parados a rua enchendo-se de cores e movimento, sem responder aos cumprimentos dos vizinhos. Quando os outros voltaram de suas ocupações, jogou um pedaço de came sangrenta numa panela com água e não arrumou a mesa nua. Sentada à cabeceira, olhava e agradecia. Os filhos eram bons. Mesmo o filho viúvo era alegre e bom e trabalhador, nunca o vira lidar com mulheres, bebida, jogatina. Quis sorrir para todos eles e para suas mulheres e para suas crianças, mas a boca costurada não obedecia. Então Valentina chorou. Todos compreenderam seu choro, e não perguntaram nada, nem tentaram consolá-la. Os traços de seu rosto pareciam desfazer-se com as lágrimas, caindo líquidos na madeira marcada. Mas os ombros não tremiam, e não havia nenhuma contração em sua boca, nenhum som em sua garganta. Sem revolta, ela aceitava. E chorava pela perdição de aceitar o que não pode ser modificado.
IV
Na varanda, o homem continuava. Dois dias se passaram, uma semana, um mês, muitos meses. E o homem lá, em meio às begônias cada vez mais emaranhadas, sem comer nem falar. O homem já esquecido pelas crianças, indiferente a todos os chamados que Valentina inventava. O tricô azul, quase negro, agora cobria a casa inteira — tapete, cortina, toalha de fios grossos onde todos se enredavam sem compreender, sem perguntar.
Certa noite Valentina ouviu risos no quarto do filho viúvo. Suspendeu o trabalho das agulhas e, pelo buraco da fechadura, espiou. Estavam lá, todos os filhos, mais duas mulheres e dois homens desconhecidos, todos nus, entre garrafas vazias, cartas de baralho manchadas de vinho, camas desfeitas. Alguns dos homens abraçavam as mulheres, outros abraçavam os homens, e todos juntos se abraçavam e beijavam e rolavam e gemiam feito animais. A madrugada vinha chegando. Ela saiu para o pátio e embaixo do umbu de tronco apodrecido observou a casa. O reboco caía em placas, a pintura das janelas descascava, teias de aranha pendiam do teto, morcegos esvoaçavam, ervas daninhas tramavam-se na terra. Num dos quartos, a velha mãe apodrecia morta e esquecida sobre a cama, as cinzas transbordavam do fogão até a porta da cozinha, as crianças comiam terra junto com os porcos. Olhou para si mesma, e sentiu o cheiro de suor antigo de seu próprio corpo, viu o vestido sem cor, as unhas enormes, os cabelos soltos despencando duros e sujos ao lado do rosto. O sol recém-nascido agora crestava as plantas, a terra se abria em rachas secas, um vapor fétido se evolava das coisas e milhares de moscas voavam tontas sobre os montes de lixo.
Valentina cruzou os braços sobre o peito, procurando dentro de si algum recanto úmido capaz de amenizar aquela secura das coisas. Mas dentro dela havia o mesmo deserto, as mesmas gretas, os mesmos vapores e moscas. Espiou a rua por entre os cacos de vidro do muro, e além dos portões de ferro o mundo inteiro era também vazio, árido, seco. Nos quartos os homens riam cada vez mais alto, mulheres nuas pintavam unhas de vermelho na cozinha, os pés apoiados sobre a mesa, e passeavam todos nus pela casa sem se importar que ela os visse com as mulheres, com os outros homens, com os animais, com as crianças, com eles mesmos, enredando-se bêbados nas tramas azuis muito escuras do tricô que cobria tudo.
Endurecida, Valentina olhava sem choque nem nojo. E de repente, como uma salvação possível, lembrou-se do homem que permanecia esquecido na varanda de begônias empoeiradas. No homem havia umidade quando estava seco, havia calor quando estava frio, no homem havia tudo o que precisava e um dia tivera e o que se fora para sempre e o que não voltaria nunca mais a ser. Correu para a varanda, atravessando seu próprio quarto onde o cheiro forte da alfazema antiga dava tonturas, tropeçando nos pratos espalhados pelo chão, enredando-se nas malhas que ela mesma tecera. Falaria, falaria agora, falaria enfim
— dizia para si mesma, rindo outra vez, os lábios descosturados outra vez.
Ao atingir a soleira da porta, percebeu que o círculo de repulsão em tomo do homem já não existia. Avançou, estendeu a mão. Tocou de leve no tronco da figueira que crescera arrebentando os tijolos do chão, esmagou entre os dedos um dos frutos verdes que deixou na sua pele um sumo pegajoso, adocicado, ardido. Bebeu daquele líquido, água, esperma, leite. Depois deixou a cabeça pender entre as samambaias e avencas tramadas nas begônias, os cabelos confundiram-se na poeira das plantas, o corpo foi rodando lento e oscilou precário até encontrar o frescor do chão de tijolos. Deixou que tudo acontecesse sem um grito, sem espanto. E quando finalmente sentiu-se protegida e úmida, e limpa e sorridente outra vez, e confortável e em paz, deixou que seus movimentos se espaçassem, suspirou e morreu.
Marcadores: Ovelhas Negras
“Era perfectamente natural que te acordaras de él
a la hora de las nostalgias, cuando uno se deja cor-romper por esas ausencias que llamamos recuerdos
y hay que remendar con palabras y con imágenes
tanto hueco insaciable.”
(Julio Cortázar: Final dei juego)
Eu gostaria de ficar para sempre ali, parado naqueles degraus gastos, sentindo as sombras se adensarem nojardim que ficava logo após aqueles degraus onde eu pisava agora, estendidos até o portãozinho enferrujado que há pouco eu abrira, ouvindo os rumores da rua coados pela espessa folhagem, olhando seu rosto envelhecido e doce, com os cabelos presos na nuca e um velho camafeu sobre a gola de renda, tudo um pouco antigo, como se ela gostasse de tocar piano quando entardecia, bebericando qualquer coisa leve como um chá de jasmins, enquanto as sombras na escada ficavam mais e mais densas, até que os ruídos das crianças fossem amortecendo nas calçadas e de repente ela percebesse ter ficado completamente no escuro, apesar das luzes da rua refletidas com um brilho frio nos cristais empoeirados do armário, e então.
Então ela me olhava com seus olhos gentis acostumados à sombra e talvez não distinguisse bem meus contornos contra a rua ainda batida de sol, mas não fiz um movimento antes de perceber que seus lábios abriam-se amáveis, como num sorriso, um sorriso antigo, desses dirigidos a um fotógrafo de aniversário, e para não perturbá-la disse apenas que queria ver o quarto dele, e achei difícil dizer qualquer coisa, e não consigo lembrar se realmente disse ou apenas meti a mão no bolso para mostrar um amassado recorte de jornal, sem dizer nada, e então o seu sorriso se alargasse mais, compreendendo, mas ainda assim discreto, e ela afastasse lentamente o corpo como dizendo que estava às ordens e depois me conduzisse pelo corredor silencioso e atapetado e eu visse os retratos dos velhos parentes mortos dispostos pela parede e juntando ao acaso os olhos claros de um, o vinco no canto da boca de outro, a mecha rebelde no cabelo de um terceiro, o ar solitário de um quarto — e antes que ela se detivesse aos pés da escada, os dedos da mão esquerda postos sobre o corrimão branco, um pouco espantada com a minha demora —, mas antes disso eu já tivesse tido tempo suficiente para recompor o rosto dele, traço por traço de seus velhos parentes mortos, e como uma garra áspera me apertasse então a memória e para não sufocar eu olhasse rapidamente a salinha com móveis de madeira e palha e visse a um canto o piano entreaberto com a xícara de chá de jasmins e um fino fio de fumaça ainda subindo e depois.
E depois sorrisse para ela, também amavelmente, e subisse devagar a escada, acompanhando o ritmo de seus passos, e visse seus sapatos de saltos grossos, e desviasse o olhar para minha própria mão, tão branca quanto o corrimão da escada, e voltasse a mesma garra áspera na minha garganta e pensasse, então, pensei nos dedos dele, todos os dias, fazia tanto tempo, desbravando o mesmo caminho pelo corrimão empoeirado, sentindo o vago cheiro de mofo se desprender de todos os cantos e novamente parasse, opresso, e novamente ela me acudisse, à porta do quarto, dizendo em voz baixa, tão baixa que tento lembrar se ela realmente chegou a dizer alguma coisa como: era aqui que ele morava: e abrisse a porta com seus gestos lentos e acendesse a luz e então.
Então julguei ver nos olhos dela um brilho fugitivo de lágrima muitas vezes contida, e antes de entrar pensei ainda, quase ferozmente, que bastava voltar as costas e descer correndo as mesmas escadas, sem tocar no corrimão, passar pela porta entreaberta da sala sem olhar para o piano, atravessar o corredor sem erguer os olhos para a galeria de retratos e alcançar a porta carcomida e novamente o jardim e novamente abrir o portãozinho enferrujado e sair para a rua quente de sol e de vida, mas.
Mas sem fazer nenhuma dessas coisas, desviar-me de seu corpo frágil e penetrar no quarto e saber, então, que já não poderei dar meia-volta para ir embora e.
E dentro do quarto, olhar para os livros desarrumados nas prateleiras, a cama com os lençóis ainda fora do lugar, como se há pouco alguém tivesse se erguido dali, e uma reprodução qualquer na parede, talvez uma figura disforme de Bosch que mais tarde eu olharia com atenção, tocando talvez, talvez tocasse no papel amarelado e sorrisse pensando em todos os monstros que ele carregava consigo sem jamais mostrá-los a ela, que dizia não ter tocado em nada, toda de preto, apenas aquele camafeu de marfim no pescoço, e eu pensasse em prendê-la um momento mais até que ela tocasse com os dedos da cor do camafeu nos veios duros da porta e não dissesse nada, como se tudo em volta se obscurecesse e de repente apenas aquele movimento dos dedos sobre os veios duros da madeira da porta tivesse vida, embora fosse morte, e também essa coisa que chamamos saudade e que é preciso alimentar com pequenos rituais para que a memória não se desfaça como uma velha tapeçaria exposta ao vento. Ela já não sorri. Apenas diz que é melhor que eu fique sozinho, e fecha a porta, e se vai, depois, deixando-me enredado num movimento que preciso escolher, porque não é possível permanecer para sempre estático no meio do quarto, atento apenas ao rápido e confuso desenrolar da memória. Mas nada faço. Permaneço em pé no meio do quarto e a porta se fecha sobre mim. E vejo os telhados onde jogávamos migalhas de pão para os passarinhos, escondidos para não assustá-los, até que eles viessem, mas não vinham nunca, era difícil seduzir os que têm asas, já sabíamos, mas ainda assim continuávamos jogando migalhas que a chuva dissolvia, intocadas. Não era difícil vê-lo ali, e ouvir seus passos longos subindo de dois em dois os degraus para abrir a porta e ficar me olhando sem dizer nada, até que nos abraçássemos e eu sentisse, como antigamente, a mecha rebelde de seu cabelo roçar-me a face como uma garra áspera e então soubesse nada ver, nada ouvir, e movimentasse meu corpo parado no meio do quarto para a cama sob a janela e mergulhando a cabeça nos lençóis desarrumados procurasse uma espécie de calor, imune ao tempo, às traças e à poeira, e procurasse o cheiro dele pelos cantos do quarto, e o chamasse com dor pelo nome, o nome que teve, antigamente, e nada encontrasse, porque tudo se perde e os ventos sopram levando as folhas de papel para longe, para além das janelas entreabertas sobre o telhado onde não restam mais migalhas para os pássaros que não vieram nunca. Mas não choro, mesmo que de repente me perceba no chão, buscando uma marca de sapato, um fio de linha ou de cabelo, os cabelos dele caíam sempre, ele os jogava sobre os telhados pelas tardes, repetindo nunca mais, nunca mais, e acreditávamos que um dia seríamos grandes, embora aos poucos fossem nos bastando miádas alegrias cotidianas que não repartíamos, medrosos que um ridicularizasse a modéstia do outro, pois queríamos ser épicos heróicos românticos descabelados suicidas, porque era duro lá fora fingir que éramos pessoas como as outras, mas nos cantos daquele quarto tínhamos força sangue esperma, talvez febre, feito tivéssemos malária e delirássemos juntos navegando na mesma alucinação que a matéria fria da guarda da cama não traz de volta, porque tudo passou e é inútil continuar aqui, procurando o que não vou achar, entre livros que não me atrevo a abrir para não encontrar seu nome, o nome que teve, e certificar-me de que a vida é exatamente esta, a minha, e que não a troquei por nenhuma outra, de sonho, de invento, de fantasia, embora ainda o escute a dizer que compreende que alguns outros devem ter sentido a mesma dor, e a suportaram, mas que esta dor é a dele, e não a suportaria, e saber que tudo isso se perdeu como o calor do chá de jasmins esquecido sobre o piano, e então.
E então tornar-me duro e pensar que tudo não passou de uma vertigem, e recusar o testemunho dolorido da memória e a mesma luz roxa de entardecer atravessando os verdes e os vidros para projetar sombras disformes na parede branca, e sacudir os ombros como se fosse real toda a poeira que existe sobre eles, e quase poder ver os pequenos átomos brilhantes dançando um pouco no ar antes de se depositarem sobre o tapete, os livros, a cama desfeita, e depois.
Depois apagar a luz e descer outra vez pelos degraus, mas não olhar para os dedos quase confundidos com o branco da escada, e passar pela sala e falar com ela sem que me veja e atravessar o corredor e vê-la junto ao piano e atravessar a porta e sair para os degraus e ultrapassar o jardim como se pudesse esquecer tudo que não vi, mas um momento antes de abrir o portão olhar para trás e fosse, então, como se a visse tão diluída que não soubesse se está realmente ali e perguntasse a ela qualquer coisa, em voz tão alta que as pessoas na rua parassem para olhar e eu tivesse certeza de que ela me escuta, que não está sentada junto ao piano, com o chá esfriando na sala escura e roxa, tão alto que a obrigue a voltar-se e encarar-me e dizer duramente que sim, que não, que tudo isso não é verdade, que todos nós, eu, ela, ele, todos os degraus e todas as sombras e todos os retratos fazemos parte de um sonho sonhado por qualquer outra pessoa que não ela, que não ele, que não eu.
a la hora de las nostalgias, cuando uno se deja cor-romper por esas ausencias que llamamos recuerdos
y hay que remendar con palabras y con imágenes
tanto hueco insaciable.”
(Julio Cortázar: Final dei juego)
Eu gostaria de ficar para sempre ali, parado naqueles degraus gastos, sentindo as sombras se adensarem nojardim que ficava logo após aqueles degraus onde eu pisava agora, estendidos até o portãozinho enferrujado que há pouco eu abrira, ouvindo os rumores da rua coados pela espessa folhagem, olhando seu rosto envelhecido e doce, com os cabelos presos na nuca e um velho camafeu sobre a gola de renda, tudo um pouco antigo, como se ela gostasse de tocar piano quando entardecia, bebericando qualquer coisa leve como um chá de jasmins, enquanto as sombras na escada ficavam mais e mais densas, até que os ruídos das crianças fossem amortecendo nas calçadas e de repente ela percebesse ter ficado completamente no escuro, apesar das luzes da rua refletidas com um brilho frio nos cristais empoeirados do armário, e então.
Então ela me olhava com seus olhos gentis acostumados à sombra e talvez não distinguisse bem meus contornos contra a rua ainda batida de sol, mas não fiz um movimento antes de perceber que seus lábios abriam-se amáveis, como num sorriso, um sorriso antigo, desses dirigidos a um fotógrafo de aniversário, e para não perturbá-la disse apenas que queria ver o quarto dele, e achei difícil dizer qualquer coisa, e não consigo lembrar se realmente disse ou apenas meti a mão no bolso para mostrar um amassado recorte de jornal, sem dizer nada, e então o seu sorriso se alargasse mais, compreendendo, mas ainda assim discreto, e ela afastasse lentamente o corpo como dizendo que estava às ordens e depois me conduzisse pelo corredor silencioso e atapetado e eu visse os retratos dos velhos parentes mortos dispostos pela parede e juntando ao acaso os olhos claros de um, o vinco no canto da boca de outro, a mecha rebelde no cabelo de um terceiro, o ar solitário de um quarto — e antes que ela se detivesse aos pés da escada, os dedos da mão esquerda postos sobre o corrimão branco, um pouco espantada com a minha demora —, mas antes disso eu já tivesse tido tempo suficiente para recompor o rosto dele, traço por traço de seus velhos parentes mortos, e como uma garra áspera me apertasse então a memória e para não sufocar eu olhasse rapidamente a salinha com móveis de madeira e palha e visse a um canto o piano entreaberto com a xícara de chá de jasmins e um fino fio de fumaça ainda subindo e depois.
E depois sorrisse para ela, também amavelmente, e subisse devagar a escada, acompanhando o ritmo de seus passos, e visse seus sapatos de saltos grossos, e desviasse o olhar para minha própria mão, tão branca quanto o corrimão da escada, e voltasse a mesma garra áspera na minha garganta e pensasse, então, pensei nos dedos dele, todos os dias, fazia tanto tempo, desbravando o mesmo caminho pelo corrimão empoeirado, sentindo o vago cheiro de mofo se desprender de todos os cantos e novamente parasse, opresso, e novamente ela me acudisse, à porta do quarto, dizendo em voz baixa, tão baixa que tento lembrar se ela realmente chegou a dizer alguma coisa como: era aqui que ele morava: e abrisse a porta com seus gestos lentos e acendesse a luz e então.
Então julguei ver nos olhos dela um brilho fugitivo de lágrima muitas vezes contida, e antes de entrar pensei ainda, quase ferozmente, que bastava voltar as costas e descer correndo as mesmas escadas, sem tocar no corrimão, passar pela porta entreaberta da sala sem olhar para o piano, atravessar o corredor sem erguer os olhos para a galeria de retratos e alcançar a porta carcomida e novamente o jardim e novamente abrir o portãozinho enferrujado e sair para a rua quente de sol e de vida, mas.
Mas sem fazer nenhuma dessas coisas, desviar-me de seu corpo frágil e penetrar no quarto e saber, então, que já não poderei dar meia-volta para ir embora e.
E dentro do quarto, olhar para os livros desarrumados nas prateleiras, a cama com os lençóis ainda fora do lugar, como se há pouco alguém tivesse se erguido dali, e uma reprodução qualquer na parede, talvez uma figura disforme de Bosch que mais tarde eu olharia com atenção, tocando talvez, talvez tocasse no papel amarelado e sorrisse pensando em todos os monstros que ele carregava consigo sem jamais mostrá-los a ela, que dizia não ter tocado em nada, toda de preto, apenas aquele camafeu de marfim no pescoço, e eu pensasse em prendê-la um momento mais até que ela tocasse com os dedos da cor do camafeu nos veios duros da porta e não dissesse nada, como se tudo em volta se obscurecesse e de repente apenas aquele movimento dos dedos sobre os veios duros da madeira da porta tivesse vida, embora fosse morte, e também essa coisa que chamamos saudade e que é preciso alimentar com pequenos rituais para que a memória não se desfaça como uma velha tapeçaria exposta ao vento. Ela já não sorri. Apenas diz que é melhor que eu fique sozinho, e fecha a porta, e se vai, depois, deixando-me enredado num movimento que preciso escolher, porque não é possível permanecer para sempre estático no meio do quarto, atento apenas ao rápido e confuso desenrolar da memória. Mas nada faço. Permaneço em pé no meio do quarto e a porta se fecha sobre mim. E vejo os telhados onde jogávamos migalhas de pão para os passarinhos, escondidos para não assustá-los, até que eles viessem, mas não vinham nunca, era difícil seduzir os que têm asas, já sabíamos, mas ainda assim continuávamos jogando migalhas que a chuva dissolvia, intocadas. Não era difícil vê-lo ali, e ouvir seus passos longos subindo de dois em dois os degraus para abrir a porta e ficar me olhando sem dizer nada, até que nos abraçássemos e eu sentisse, como antigamente, a mecha rebelde de seu cabelo roçar-me a face como uma garra áspera e então soubesse nada ver, nada ouvir, e movimentasse meu corpo parado no meio do quarto para a cama sob a janela e mergulhando a cabeça nos lençóis desarrumados procurasse uma espécie de calor, imune ao tempo, às traças e à poeira, e procurasse o cheiro dele pelos cantos do quarto, e o chamasse com dor pelo nome, o nome que teve, antigamente, e nada encontrasse, porque tudo se perde e os ventos sopram levando as folhas de papel para longe, para além das janelas entreabertas sobre o telhado onde não restam mais migalhas para os pássaros que não vieram nunca. Mas não choro, mesmo que de repente me perceba no chão, buscando uma marca de sapato, um fio de linha ou de cabelo, os cabelos dele caíam sempre, ele os jogava sobre os telhados pelas tardes, repetindo nunca mais, nunca mais, e acreditávamos que um dia seríamos grandes, embora aos poucos fossem nos bastando miádas alegrias cotidianas que não repartíamos, medrosos que um ridicularizasse a modéstia do outro, pois queríamos ser épicos heróicos românticos descabelados suicidas, porque era duro lá fora fingir que éramos pessoas como as outras, mas nos cantos daquele quarto tínhamos força sangue esperma, talvez febre, feito tivéssemos malária e delirássemos juntos navegando na mesma alucinação que a matéria fria da guarda da cama não traz de volta, porque tudo passou e é inútil continuar aqui, procurando o que não vou achar, entre livros que não me atrevo a abrir para não encontrar seu nome, o nome que teve, e certificar-me de que a vida é exatamente esta, a minha, e que não a troquei por nenhuma outra, de sonho, de invento, de fantasia, embora ainda o escute a dizer que compreende que alguns outros devem ter sentido a mesma dor, e a suportaram, mas que esta dor é a dele, e não a suportaria, e saber que tudo isso se perdeu como o calor do chá de jasmins esquecido sobre o piano, e então.
E então tornar-me duro e pensar que tudo não passou de uma vertigem, e recusar o testemunho dolorido da memória e a mesma luz roxa de entardecer atravessando os verdes e os vidros para projetar sombras disformes na parede branca, e sacudir os ombros como se fosse real toda a poeira que existe sobre eles, e quase poder ver os pequenos átomos brilhantes dançando um pouco no ar antes de se depositarem sobre o tapete, os livros, a cama desfeita, e depois.
Depois apagar a luz e descer outra vez pelos degraus, mas não olhar para os dedos quase confundidos com o branco da escada, e passar pela sala e falar com ela sem que me veja e atravessar o corredor e vê-la junto ao piano e atravessar a porta e sair para os degraus e ultrapassar o jardim como se pudesse esquecer tudo que não vi, mas um momento antes de abrir o portão olhar para trás e fosse, então, como se a visse tão diluída que não soubesse se está realmente ali e perguntasse a ela qualquer coisa, em voz tão alta que as pessoas na rua parassem para olhar e eu tivesse certeza de que ela me escuta, que não está sentada junto ao piano, com o chá esfriando na sala escura e roxa, tão alto que a obrigue a voltar-se e encarar-me e dizer duramente que sim, que não, que tudo isso não é verdade, que todos nós, eu, ela, ele, todos os degraus e todas as sombras e todos os retratos fazemos parte de um sonho sonhado por qualquer outra pessoa que não ela, que não ele, que não eu.
Marcadores: O Ovo Apunhalado
Pertence a uma fase furiosamente experimental, em que o que se tentava contar era quase sufocado pela metalinguagem. O resultado era um hermetismo pedante, quase incompreensível. Foi escrito em 1976 em Porto Alegre, e publicado no ano seguinte pela extinta revista gaúcha Cultura Contemporânea.
— Era preciso que fosse um momento absolutamente perfeito — ele foi dizendo, uma tarde afinal de junho, e o que se poderia dizer afinal sobre tardes afinal de junho senão coisas majestosas como um allegro barroco, ele sorvia o conhaque e vezenquando atiçava as brasas da lareira com o atiçador de bronze? cobre? ferro? prata? com muito cuidado para que o que chovia lá fora miúdo e o crepitar das brasas e o estalar da madeira e os movimentos que fazia distendendo, contraindo a coluna para atiçar o fogo e o crepitar e o estalar e o miúdo e ainda o que ia dizendo, com cuidado para que o ritmo não sofresse alterações, imperfeições, tempo sem jaça, que fosse, agitando de leve no ar o líquido dourado no cálice aquecido:
— Eu, fazia tanto tempo que — um tanto brutal hesitar agora, mancha de vinho na renda, mas reformulava, pequenas interrupções, ai pequenas interrupções, a luz dourando o cabelo dela sentada à sua frente, mas reformulava tentando de outro jeito:
— Já não era mais possível continuar ocultando? fingindo? negando? mentindo? que — optou pelos quatro, sem interrogações, ficava bem esse tom hesitante, mas uma porta batia ao longe, na rua um carro tentava inutilmente dar a partida, o motor raspava areia, zinco, se fosse possível um silêncio absoluto para finalmente dizer:
— Eu tenho feito fantasias loucas com você — ela tão irreal no sofá antigo, as samambaias caindo por trás, tropical, oriental, colonial, tudo ao mesmo tempo, um rubi na testa e também uma tiara de pitangas (bonito isso, aprovou contente), mais uma touca rendada de sinhazinha, os três simultâneos, e retomando de outro jeito:
— Tanto medo, você me entende? — como passos furtivos, cascalho pisado de madrugada, a descarga da privada literalmente cagando no entremeio do retinir de cristais (aprovou outra vez: sonoro), mas ela não sorria nem movia músculo algum no rosto, de certa forma era como se fizesse uma ginástica de relaxamento facial, mas tão-tão-dizer-isso-assim, malares pétreos, talvez melhor, um abscôndito langor. melhor ainda, entusiasmou-se levemente ansioso, apenas o tempo da cinza cair? pingar? gotejar? poluir quem sabe? a calça de veludo? alpaca? flanela? casimira? continuando pois:
— Quase três anos, é muito tempo calado. Hoje finalmente eu — passou a língua contra os dentes por dentro, algumas superfícies ásperas, senzalas? sibérias? sertões? saaras? e foi então que sentiu e chegou a pensar num parágrafo especial, mas contra todas as expectativas não havia drama, um primeiro pré-molar superior esquerdo, seria exatamente isso? como um chiclete, não, mais consistente, um amendoim duro, um milho de pipoca desses que não arrebentam, uma bala de hortelã, envolveu-o com a língua para trazê-lo até bem perto dos incisivos e disfarçado levou a mão à boca, como se tossisse suave? contido? discreto? melancólico? fatigado? os dedos seguraram confirmando: sim, um primeiro pré-molar superior esquerdo, inteiro, irregular, sofrido de muitas meias-solas, rodou-o entre o indicador e o polegar, abstraído, até os óculos de aro frouxo escorregarem para a ponta do nariz recolocou-o na boca, ela esperava, ele ajeitou os óculos, ele esfregou as mãos para gerar energia, ela esperava, ele respirou sete vezes, profundamente, alargando primeiro o ventre, depois afastando as costelas e finalmente elevando os omoplatas, pulmões estufados, e assoprou de uma só vez, num tranco, ela esperava, ai como ela esperava, a coisa escura plantada súbita na sala fez com que, como quem vira a página, ele decidisse assim como redizer o que não tinha dito:
— Escuta, foi um engano. Eu não estava absolutamente levando a sério o que dizia — o sofá tinha molas arrebentadas, as samambaias eram algumas de plástico, outras raqufticas, amareladas, olhar pela janela então e nada nem ninguém para ajudar, contou para si mesmo devagarmente punitivo: Era uma vez um homem sentado numa cadeira dura rodando dentro da boca um primeiro pré-molar superior esquerdo recém perdido, numa sala vazia. Atrás da janela de vidros baços de umidade e sujeira podia-se ver uma tarde molhada talvez de junho ao fundo de árvores secas de galhos-garras eriçados contra um céu de estopa — fora uma vez, e ela não esperava mais, restara uma pitanga madura sobre a mancha de porra envelhecida de alguma punheta no assento do sofá, ou nem ao menos isso, aceitou concluindo:
— Eu não consigo entender nada do que se passa
— meu amor secreto, meu amor calado, não acrescentou, talvez agora desse um suspiro mas não morresse, ou engolisse o dente para rasgar as tripas ou quem sabe cuspi-lo longe convulsivo como numa hemoptise, e sobre o chão vomitar a tarde? a história? a perda? a morte? o medo? a solidão? quem sabe o nojo antigo sedimentado e sem remédio. E acabava assim, de repente, ainda que não fosse absolutamente perfeito nem redondo, chovera demais nos últimos dias e havia tantos sapos pelos quintais semi-abandonados, os charcos, os poços, as minhocas retorcidas nas lamas, os plurais e a língua singular apertando tão violenta o dente contra o lábio que talvez escorresse um filete de sangue maduro sobre o branco da camisa, mas antes disso, sem efeitos, secamente, acabava assim, era uma pena, todos sentimos muitíssimo, mas que se há de fazer se acaba mesmo assim?
— Era preciso que fosse um momento absolutamente perfeito — ele foi dizendo, uma tarde afinal de junho, e o que se poderia dizer afinal sobre tardes afinal de junho senão coisas majestosas como um allegro barroco, ele sorvia o conhaque e vezenquando atiçava as brasas da lareira com o atiçador de bronze? cobre? ferro? prata? com muito cuidado para que o que chovia lá fora miúdo e o crepitar das brasas e o estalar da madeira e os movimentos que fazia distendendo, contraindo a coluna para atiçar o fogo e o crepitar e o estalar e o miúdo e ainda o que ia dizendo, com cuidado para que o ritmo não sofresse alterações, imperfeições, tempo sem jaça, que fosse, agitando de leve no ar o líquido dourado no cálice aquecido:
— Eu, fazia tanto tempo que — um tanto brutal hesitar agora, mancha de vinho na renda, mas reformulava, pequenas interrupções, ai pequenas interrupções, a luz dourando o cabelo dela sentada à sua frente, mas reformulava tentando de outro jeito:
— Já não era mais possível continuar ocultando? fingindo? negando? mentindo? que — optou pelos quatro, sem interrogações, ficava bem esse tom hesitante, mas uma porta batia ao longe, na rua um carro tentava inutilmente dar a partida, o motor raspava areia, zinco, se fosse possível um silêncio absoluto para finalmente dizer:
— Eu tenho feito fantasias loucas com você — ela tão irreal no sofá antigo, as samambaias caindo por trás, tropical, oriental, colonial, tudo ao mesmo tempo, um rubi na testa e também uma tiara de pitangas (bonito isso, aprovou contente), mais uma touca rendada de sinhazinha, os três simultâneos, e retomando de outro jeito:
— Tanto medo, você me entende? — como passos furtivos, cascalho pisado de madrugada, a descarga da privada literalmente cagando no entremeio do retinir de cristais (aprovou outra vez: sonoro), mas ela não sorria nem movia músculo algum no rosto, de certa forma era como se fizesse uma ginástica de relaxamento facial, mas tão-tão-dizer-isso-assim, malares pétreos, talvez melhor, um abscôndito langor. melhor ainda, entusiasmou-se levemente ansioso, apenas o tempo da cinza cair? pingar? gotejar? poluir quem sabe? a calça de veludo? alpaca? flanela? casimira? continuando pois:
— Quase três anos, é muito tempo calado. Hoje finalmente eu — passou a língua contra os dentes por dentro, algumas superfícies ásperas, senzalas? sibérias? sertões? saaras? e foi então que sentiu e chegou a pensar num parágrafo especial, mas contra todas as expectativas não havia drama, um primeiro pré-molar superior esquerdo, seria exatamente isso? como um chiclete, não, mais consistente, um amendoim duro, um milho de pipoca desses que não arrebentam, uma bala de hortelã, envolveu-o com a língua para trazê-lo até bem perto dos incisivos e disfarçado levou a mão à boca, como se tossisse suave? contido? discreto? melancólico? fatigado? os dedos seguraram confirmando: sim, um primeiro pré-molar superior esquerdo, inteiro, irregular, sofrido de muitas meias-solas, rodou-o entre o indicador e o polegar, abstraído, até os óculos de aro frouxo escorregarem para a ponta do nariz recolocou-o na boca, ela esperava, ele ajeitou os óculos, ele esfregou as mãos para gerar energia, ela esperava, ele respirou sete vezes, profundamente, alargando primeiro o ventre, depois afastando as costelas e finalmente elevando os omoplatas, pulmões estufados, e assoprou de uma só vez, num tranco, ela esperava, ai como ela esperava, a coisa escura plantada súbita na sala fez com que, como quem vira a página, ele decidisse assim como redizer o que não tinha dito:
— Escuta, foi um engano. Eu não estava absolutamente levando a sério o que dizia — o sofá tinha molas arrebentadas, as samambaias eram algumas de plástico, outras raqufticas, amareladas, olhar pela janela então e nada nem ninguém para ajudar, contou para si mesmo devagarmente punitivo: Era uma vez um homem sentado numa cadeira dura rodando dentro da boca um primeiro pré-molar superior esquerdo recém perdido, numa sala vazia. Atrás da janela de vidros baços de umidade e sujeira podia-se ver uma tarde molhada talvez de junho ao fundo de árvores secas de galhos-garras eriçados contra um céu de estopa — fora uma vez, e ela não esperava mais, restara uma pitanga madura sobre a mancha de porra envelhecida de alguma punheta no assento do sofá, ou nem ao menos isso, aceitou concluindo:
— Eu não consigo entender nada do que se passa
— meu amor secreto, meu amor calado, não acrescentou, talvez agora desse um suspiro mas não morresse, ou engolisse o dente para rasgar as tripas ou quem sabe cuspi-lo longe convulsivo como numa hemoptise, e sobre o chão vomitar a tarde? a história? a perda? a morte? o medo? a solidão? quem sabe o nojo antigo sedimentado e sem remédio. E acabava assim, de repente, ainda que não fosse absolutamente perfeito nem redondo, chovera demais nos últimos dias e havia tantos sapos pelos quintais semi-abandonados, os charcos, os poços, as minhocas retorcidas nas lamas, os plurais e a língua singular apertando tão violenta o dente contra o lábio que talvez escorresse um filete de sangue maduro sobre o branco da camisa, mas antes disso, sem efeitos, secamente, acabava assim, era uma pena, todos sentimos muitíssimo, mas que se há de fazer se acaba mesmo assim?
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É um texto escrito no Rio de Janeiro em 1984. Deveria ter sido incluído em Os dragões não conhecem o paraíso, mas acabou não havendo lugar para ele. Gosto de seu jeito de pincelada, ou de foto Polaroid, mas até hoje não sei se não será breve demais e portanto. de certa forma, incompleto.
Pontada fina no peito. Como um vampiro que abrisse os olhos raiados de sangue no segundo exato em que alguém desfere o golpe enterrando no fundo do coração a ponta mais aguda da estaca de carvalho bento. Ou seria bétula? Carvalho ou bétula, embora o sangue não jorrasse do buraco no peito, ele morria num estertor de porco para depois envelhecer séculos e séculos, todos os séculos de treva que atravessara até o cabelo embranquecer e cair fio por fio, a pele vincar-se em teia emaranhada de rugas, os músculos apodrecerem descolados dos ossos finalmente luzidios e nus e o vento então soprasse o pó que restaria de sua carne por todas as possibilidades dos quatro pontos cardeais, retroativa agonia.
Dentro do corpo contudo vivo, o sangue latejava nas veias das têmporas do homem, suor gelado viscoso escorrendo da testa pelo pescoço e braços até as palmas das mãos apertadas no volante, pelas costas da camisa fresca de verão grudadas no plástico do assento do automóvel. E porque escolhia ainda mais fundo a dor daquela madeira santa mortal cravada no peito, levantou os olhos e tomou a ver.
Na porta do hotel, a mulher beijava suave a boca do outro homem, sem se importar com as pessoas nas calçadas atravancadas de entardecer. Todos se desviavam baixando discretos o olhar, escândalo nenhum. Pois o terrível, o mais terrível daquilo, repetiu o homem sozinho dentro do carro parado, e ainda uma terceira vez enquanto procurava a palavra exata, mesmo em desespero ele era meticuloso, e encontrou então e formulou em frangalhos dentro do automóvel, impotentes os dois no engarrafamento de sexta- feira — o mais terrível daquela mulher e daquele outro homem beij ando-se à frente do hotel dentro daquela espécie de campânula de vidro ao redor de sua intimidade o mais terrível, gemeu, era que pareciam perfeitamente lícitos. Um homem e uma mulher desses que há tempos escolheram ficar juntos e sentem certa dificuldade ao separar-se, mesmo por pouco tempo, quase noite à frente de um hotel cinco estrelas no centro da cidade. Talvez viajantes, pensariam as pessoas passando, pensou, e certamente amantes.
Mas ela, a imoral, ela deveria usar vestido vermelho justo, continuou pensando, ele gostava de ler histórias policiais baratas, e negros raybans apesar do crepúsculo, saltos altíssimos, lenço na cabeça amarrado sob o queixo. Pecado, ação escondida, vileza. Tra-i-çã-o, soletrou enquanto os carros atrás buzinavam para que andasse, porra, e acelerou lento para olhar mais atento o outro homem. Oh, deus gemeu sem maiúscula nem exclamação, o outro homem sequer parecia um cafajeste em seu sóbrio biazer azul- marinho, certa barriga, gravata cinza, vagamente calvo. Nem suíças ciganas, bigode latino, brinco na orelha, camisa aberta ao peito, corrente ou dente de ouro rebrilhando ao último sol da sexta-feira. Respeitabilíssimos, os dois canalhas, ela parada na esquina, via pelo espelho retrovisor, acenando mais uma vez para o outro homem como se procurasse memorizar-lhe os traços antes da separação. Antes da separação, repetiu incrédulo.
Os dois mais ele, ele como se fosse ele o ilícito, espiando sem ser visto pelo espelho retrovisor à sorrelfa, à socapa, gostava dessas palavras que dormem esquecidas pelos dicionários, nos vértices das palavras-cruzadas, e o outro homem sereno agora girando no vidro da porta-giratória do hotel, e a mulher com seu tailleur pérola e pérolas no pescoço, o sol oblíquo do entardecer atravessando os cabelos caídos em duas pontas lisas escovadas sobre os maxilares. Tão duros, ele notou, o dourado dos raios de sol, o dourado dos fios de cabelo, o dourado da superfície do rio no fim da transversal lá embaixo. A bolsa quadrada de verniz que ela agora erguia decidida no ar para chamar um táxi e ir para casa. A casa dele, do homem ilícito ao volante do carro parado no trânsito infernal, e dela, a lícita mulher das pérolas: cinco anos em maio próximo, já planejados jantar japonês, depois dançar cheek to cheek. Champanhe, caviar, veneno, buzinou frenético sem fôlego nem ordem: cinco meu deus puta anos escrota.
Bodas de papel? tentou lembrar enquanto o sinal abria, ou seriam de ametista? rubi talvez? esmeralda, jaspe quem sabe? cristal ou nácar? continuou pensando ao dobrar a esquina, oh, deus topázio? como era mesmo aquela lista dos almanaques que os noivos folheavam juntos no sofá das salas de antigamente? ágata? lápis-lazúli? água-marinha?
Cascalho, repetiu sem ponto de interrogação, acelerando mais: puro cascalho sujo. E como não tinha um revólver no porta-luvas, ligou o toca-fitas com um click seco assim pá-pum! pronto, acabou.
Pontada fina no peito. Como um vampiro que abrisse os olhos raiados de sangue no segundo exato em que alguém desfere o golpe enterrando no fundo do coração a ponta mais aguda da estaca de carvalho bento. Ou seria bétula? Carvalho ou bétula, embora o sangue não jorrasse do buraco no peito, ele morria num estertor de porco para depois envelhecer séculos e séculos, todos os séculos de treva que atravessara até o cabelo embranquecer e cair fio por fio, a pele vincar-se em teia emaranhada de rugas, os músculos apodrecerem descolados dos ossos finalmente luzidios e nus e o vento então soprasse o pó que restaria de sua carne por todas as possibilidades dos quatro pontos cardeais, retroativa agonia.
Dentro do corpo contudo vivo, o sangue latejava nas veias das têmporas do homem, suor gelado viscoso escorrendo da testa pelo pescoço e braços até as palmas das mãos apertadas no volante, pelas costas da camisa fresca de verão grudadas no plástico do assento do automóvel. E porque escolhia ainda mais fundo a dor daquela madeira santa mortal cravada no peito, levantou os olhos e tomou a ver.
Na porta do hotel, a mulher beijava suave a boca do outro homem, sem se importar com as pessoas nas calçadas atravancadas de entardecer. Todos se desviavam baixando discretos o olhar, escândalo nenhum. Pois o terrível, o mais terrível daquilo, repetiu o homem sozinho dentro do carro parado, e ainda uma terceira vez enquanto procurava a palavra exata, mesmo em desespero ele era meticuloso, e encontrou então e formulou em frangalhos dentro do automóvel, impotentes os dois no engarrafamento de sexta- feira — o mais terrível daquela mulher e daquele outro homem beij ando-se à frente do hotel dentro daquela espécie de campânula de vidro ao redor de sua intimidade o mais terrível, gemeu, era que pareciam perfeitamente lícitos. Um homem e uma mulher desses que há tempos escolheram ficar juntos e sentem certa dificuldade ao separar-se, mesmo por pouco tempo, quase noite à frente de um hotel cinco estrelas no centro da cidade. Talvez viajantes, pensariam as pessoas passando, pensou, e certamente amantes.
Mas ela, a imoral, ela deveria usar vestido vermelho justo, continuou pensando, ele gostava de ler histórias policiais baratas, e negros raybans apesar do crepúsculo, saltos altíssimos, lenço na cabeça amarrado sob o queixo. Pecado, ação escondida, vileza. Tra-i-çã-o, soletrou enquanto os carros atrás buzinavam para que andasse, porra, e acelerou lento para olhar mais atento o outro homem. Oh, deus gemeu sem maiúscula nem exclamação, o outro homem sequer parecia um cafajeste em seu sóbrio biazer azul- marinho, certa barriga, gravata cinza, vagamente calvo. Nem suíças ciganas, bigode latino, brinco na orelha, camisa aberta ao peito, corrente ou dente de ouro rebrilhando ao último sol da sexta-feira. Respeitabilíssimos, os dois canalhas, ela parada na esquina, via pelo espelho retrovisor, acenando mais uma vez para o outro homem como se procurasse memorizar-lhe os traços antes da separação. Antes da separação, repetiu incrédulo.
Os dois mais ele, ele como se fosse ele o ilícito, espiando sem ser visto pelo espelho retrovisor à sorrelfa, à socapa, gostava dessas palavras que dormem esquecidas pelos dicionários, nos vértices das palavras-cruzadas, e o outro homem sereno agora girando no vidro da porta-giratória do hotel, e a mulher com seu tailleur pérola e pérolas no pescoço, o sol oblíquo do entardecer atravessando os cabelos caídos em duas pontas lisas escovadas sobre os maxilares. Tão duros, ele notou, o dourado dos raios de sol, o dourado dos fios de cabelo, o dourado da superfície do rio no fim da transversal lá embaixo. A bolsa quadrada de verniz que ela agora erguia decidida no ar para chamar um táxi e ir para casa. A casa dele, do homem ilícito ao volante do carro parado no trânsito infernal, e dela, a lícita mulher das pérolas: cinco anos em maio próximo, já planejados jantar japonês, depois dançar cheek to cheek. Champanhe, caviar, veneno, buzinou frenético sem fôlego nem ordem: cinco meu deus puta anos escrota.
Bodas de papel? tentou lembrar enquanto o sinal abria, ou seriam de ametista? rubi talvez? esmeralda, jaspe quem sabe? cristal ou nácar? continuou pensando ao dobrar a esquina, oh, deus topázio? como era mesmo aquela lista dos almanaques que os noivos folheavam juntos no sofá das salas de antigamente? ágata? lápis-lazúli? água-marinha?
Cascalho, repetiu sem ponto de interrogação, acelerando mais: puro cascalho sujo. E como não tinha um revólver no porta-luvas, ligou o toca-fitas com um click seco assim pá-pum! pronto, acabou.
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Para Leonildo Torres (Leo de Oxalá)
Escrito em 1975, pouco depois da publicação de O ovo apunhalado, este texto marca com decisão a ruptura com o sonho hippie. Poderia ter entrado em algum outro livro (tem algo a ver com Os sobreviventes, de Morangos mofados), mas acho que isso não aconteceu porque, embora goste da sua estrutura, simulacro de roteiro cinematografico, antzpatizo com o personagem. E a forma mais eficiente de punir um personagem non grato é sem dúvida condená-lo à gaveta.
INTERIOR/DIA
Seqüência 1
Estende a mão para o relógio, já ouviu o barulho do aspirador, a campainha duas vezes, pratos e talheres lá embaixo, o vento, freadas, criança gritando ao longe, porta batendo, a última vez que olhou eram onze, pouco mais, só um pouco mais e de qualquer jeito não tem mesmo nada para fazer o dia inteiro, baixar as cuecas até os joelhos, ficar sentindo o pau inchar apertado entre os pêlos da barriga e os lençóis que a velha trocou ontem. Traz o metal frio da pulseira do relógio até perto dos olhos, espia, duas e vinte. Em pé na cama empurra as persianas sem ver a cor do dia, a luz crua revelando a poeira sobre os móveis, vestir os jeans, os tênis, a camiseta, repetir merda bem alto três vezes, como uma espécie de bom-dia.
Seqüência 2
Olhar a cara branca no espelho do banheiro sem sentir nada, olhos inchados de tanto dormir um terço de sono, outro de álcool e maconha, outro de entressono, cataléptico na cama, o pau quente, coceiras, sombras passando na cabeça, esse porão mofado onde caminha sem bússola no escuro, os cabelos continuam caindo, cravos na ponta do nariz, escovar os dentes, comprar uma escova nova, tek dura, manchas de cigarro, ir ao dentista, como se chama mesmo? coroa, me bota aí uma coroa no primeiro prémolar superior direito, a velha disse que paga, quebrei naquela trip de anfeta já faz tempo, o dentista fez uma arrumação porca e perguntou assim e-aí-continua- muito-louco-bicho? ele faz o enturmado, o puto, vezenquando tem essas intimidades, o diabo é que ninguém mais usa essas gírias, todos, todos caretas. Mija, sempre antes do mijo sai uma gotinha de porra ou pus, não tem certeza, provavelmente porra, nunca teve gonorréia e gonorréia dói, dizem, lava a cara, o sabonete estica a pele branca, fazer-não-fazer a barba? não fazer, decide. Tosse, cospe as bolinhas pretas viscosas de nicotina no meio da saliva e da pasta de dentes, depois fica olhando o fundo da pia cor-derosa como se fosse um poço.
Seqüência 3
Desce escadas devagar, sempre um pouco tonto, fecha os olhos, uma porção de faíscas dando voltas pela cabeça, gostaria de cair mas não cai, e continua descendo, o cachorro vem fazer festa tentando balançar o rabo cortado, cão eles reprimem no rabo, controle suas emoções, querido, o cachorro olha para ele com doces olhinhos remelentos, o único nesta casa que me olha. Limpa a remela do cão com a barra da camiseta, atravessa a sala vazia, pega o jornal, pratos e talheres na mesa da cozinha, toalha azul de plástico, abre a geladeira, o fcomo, pedaços de carne, milho, mandioca boiando em fria gordura branca, o estômago se contrai, quase um soco, espia o bule de café, requenta e bebe, meia xícara preta muito forte sem açúcar. Acende o primeiro cigarro, traga fundo, a fumaça arranha a garganta, tosse seco, uma tuberculose, um edema, uma pneumonia, um enfisema, o cachorro se enrola em suas pernas enquanto o pai abre a porta e passa reto sem olhar nem cumprimentar. El também não olha nem diz nada, daqui a pouco chegam mãe irmãos irmãs e também não dirão nada, nem olharão, assim é, foi, será, dói aqui nas costas de tanto dormir e noutro lugar também, mais forte ainda, nem sei bem onde.
EXTERIOR/DIA
Seqüência única
Apanhar o jornal, atravessar outra vez a sala vazia, abrir a porta da rua, sentar nos degraus do jardim grama crescida, merda de cachorro, gatos noturnos, matagal de marias-sem-vergonha, muro branco, portão de ferro, rua, mormaço frio. Abre o jornal, o de sempre, o Líbano, cessar-fogo, quinze mortos na Argentina, seqüestro da atriz pornô, o leite, a gasolina, o rio podre, Marte, sondas — nenhum conhecido hoje na crônica policial, todo mundo dançando, tudo bem. Acende outro cigarro e tosse e cospe, bolinhas pretas viscosas na palma da mão, sem cheiro, 0K os pulmões resistem, eu resisto, o planeta resiste, tudo resiste. O pai passa até o portão, olha em volta sem dizer nada, não existimos, duas realidades para- lelas, dois ectoplasmas de sessões diferentes, fuma fuma fuma, joga a ponta acesa no canteiro, a brasa cai sobre uma folha, imagina que a planta sente dor, A Vida Secreta das Plantas, essas coisas, diz que pois é, os vegetais, vai saber. Olhar a brasa acesa incendiando a folha até o rombo, depois o sol, uma nuvem se afasta e o sol bate claro, duro na sua cara branca, nos seus cabelos caindo, nos seus olhos inchados. Tira os tênis, as meias, estende os pés para o sol, as coceiras no corpo, a pele seca, o frio, este inverno que não termina nunca, ninguém passa cantando na rua, a velha do outro lado espia, o carteiro passa sem deixar nada e o cachorro late para o carteiro negro, racista esse cão, o retratinho do dono, pensa olhando o pai, não, nenhuma carta, mas de quem, se todos foram embora para Londres, Paris, Nova York, Salvador ou Machu-Picchu. Fechar o jornal, acender o cigarro, tossir, abrir o jornal, cuspir, apagar o cigarro. O sol bate direto na sua cara branca e ele nem pisca.
INTERIOR/NOITE
Seqüência 1
Chama o cara aí, outra brahma, meu, teve um tempo que não era assim, brahma, vishnu & shiva, sente só o desrespeito ocidental, mais uma shiva, moço, mas não, não era assim, em casa um bode mas você saía e via as pessoas e daí esquecia, todo mundo numa boa, agora em casa é um bode, na rua é outro bode, na casa do teu amigo é mais um bode, um pirou, outro morreu de overdose, outro em cana, não é nada disso, olha só quem acaba de entrar, porra, essa mina já deu pra todo o bar, um túnel, como atravessar um túnel sem saber se tem fim, deixou a porta aberta, a piranha, como é que é? vai fechar ou não? te toca, friend, tu tás é de porre, Virgem ascendente Peixes, que bode, um o oposto do outro, tu entende disso é? conflitos terríveis, the dream is really over não me vem com esses papos de depois das duas da matina, porra, um dia alguém devia quebrar a bosta deste bar em vez de só pedir outra brahma (ou vishnu, ou shiva), me dá um câncer aí, mas era mesmo diferente no duro ou a gente é que tá envelhecendo, cara? puta, essa mina só sabe filar cigarro, quanto tempo, é, por aí, você sabe, julho, agosto, quem, a Beth? ah, tá legal, vai ficar mesmo em Floripa com aquele surfista debilóide, diz que mudou tudo, com quem que tá o brilho? a classe média, cara, eles querem é foder a classe média, semana passada os ratos baixaram e levaram todo mundo sem nem ver documento, tu acha mesmo que ela tá fim? tô te falando, olha só a cara dela, já deve estar toda molhadinha, já se foi essa brahma, uma saideira? vamos nessa, fiquei chapado o dia inteiro, dá uma sede, a casa de quem? pode ser, maior barato, mas nem conheço o cara, ah, vem todo mundo, olha não tô nessa de túnel, onde foi mesmo que eu li uma coisa que começava assim “metade do meu cérebro já foi destruído pelo álcool”, mas nunca acontece nada aos sábados na bosta desta cidade?
Seqüência 2
A mão dele roça lenta o seio dela. Ela ri, faz que não vê, tem bons dentes a piranha, fazendo gênero Sonia Braga com o cabelão desgrenhado. Black Sabbath? ah, não, tô entupido de rock, pega um jazz, até uma MPB serve, escolhe aí, porra. Fica quente assim, um grudado no outro, e por que não, cadê o Gilson? no banheiro, cara, deve estar chupando o peru do loiro ou cheirando pó, nem apresenta, ninguém apresenta mais nada, se quiser tem que ir à luta, ah, esquece, dá muito trabalho, apagando a luz, distribuindo cobertores, fechar mais uma, a saideira, não tô mais a fim, fumo anda me deixando paranóico, sabe como é, a paranóia só vem à tona se já existe dentro de você, cara, chega mais, isso aí, a boca, as línguas, a mão entre as coxas. Leva a mão dela até o fecho das calças dele, levanta a blusa devagar, acabou o som, mas logo agora? põe uma pilha aí, tango, valsa, fox, qualquer coisa. Mole, úmido, mcomo, os dedos afundam, parece sempre uma ostra, geme no meu ouvido, ajuda um pouco, pô, lambe os peitos, bicos duros, meio reta, pouco peito, gosto mais quando tem onde pegar, sabe como é, agora con-cen-tra-ção, apoiar as palmas das mãos contra o cobertor, cheiro de porra velha, deixar só a cabecinha roçando, dentro mas quase saindo, assim-as-sim-ah-sim, porra, lá vem o Gilson de novo com a mão na minha bunda, se facilito me enraba, dá o fora, bichona. E ela geme, e você geme também — imaginar, imaginar, que nem a Sonia Braga — e os seus olhos deslizam pelo tapete até uma peça qualquer de roupa jogada, depois para uma das pernas da mesa e mais adiante, subindo sempre, para o jornal aberto e a garrafa virada pingando, pingando sobre essa peça qualquer de roupa branca. A mão procura o cigarro no escuro e não encontra, claridade cinza entre as frestas da persiana metálica abaixada. Levanta-se, começa a remexer sobre a mesa, entre os discos, as roupas, os copos, os corpos. Seus dedos só encontram quinas, seus olhos só vêem a claridade cinza da madrugada por trás das persianas. Olha em volta, e para baixo, e verifica primeiro que está completamente nu, depois que há uma mulher morena também nua e adormecida, os cabelos desgrenhados espalhados sobre as almofadas indianas embaixo dajanela.
Seqüência 3
Abrir a porta sem ruído, cuidado para que o metal da chave no metal da fechadura não grite agudo acordando os outros. Tira os sapatos, o corpo vacila, arrota, a mão vai roçando pela parede fria até o corrimão: dezenove degraus, anos de aprendizagem. Dentro do escuro, o retângulo mais claro da porta do banheiro. Acende a luz, mas não é necessário, luz cinza forte que vara as frestas. No espelho cabelos caindo, olhos inchados na cara branca, a culpa é deles que deixaram tudo torto assim ou é a gente mesmo que está envelhecendo sem achar outra coisa, hein, cara? Abrir o chuveiro, a água pinga gotas geladas contra os mosaicos do piso, harmonizando primeiro com as batidas do coração, depois com as contrações do estômago. Levanta a tampa cor-de-rosa da privada, num salto o estômago sobe até a garganta escura ardida de cigarros, de palavras, de cervejas. Apenas curva a parte superior do corpo, e vai caindo devagar, os braços enlaçando a louça colorida como se fosse o corpo de Sonia Braga, cabeça enfiada no vaso, dedo na garganta. Bem fundo — imaginar, imaginar—, bem fundo. Então vomita vomita vomita vomita vomita vomita vomita. Sete vezes, feito um ritual.
Amanhã tem mais.
Escrito em 1975, pouco depois da publicação de O ovo apunhalado, este texto marca com decisão a ruptura com o sonho hippie. Poderia ter entrado em algum outro livro (tem algo a ver com Os sobreviventes, de Morangos mofados), mas acho que isso não aconteceu porque, embora goste da sua estrutura, simulacro de roteiro cinematografico, antzpatizo com o personagem. E a forma mais eficiente de punir um personagem non grato é sem dúvida condená-lo à gaveta.
INTERIOR/DIA
Seqüência 1
Estende a mão para o relógio, já ouviu o barulho do aspirador, a campainha duas vezes, pratos e talheres lá embaixo, o vento, freadas, criança gritando ao longe, porta batendo, a última vez que olhou eram onze, pouco mais, só um pouco mais e de qualquer jeito não tem mesmo nada para fazer o dia inteiro, baixar as cuecas até os joelhos, ficar sentindo o pau inchar apertado entre os pêlos da barriga e os lençóis que a velha trocou ontem. Traz o metal frio da pulseira do relógio até perto dos olhos, espia, duas e vinte. Em pé na cama empurra as persianas sem ver a cor do dia, a luz crua revelando a poeira sobre os móveis, vestir os jeans, os tênis, a camiseta, repetir merda bem alto três vezes, como uma espécie de bom-dia.
Seqüência 2
Olhar a cara branca no espelho do banheiro sem sentir nada, olhos inchados de tanto dormir um terço de sono, outro de álcool e maconha, outro de entressono, cataléptico na cama, o pau quente, coceiras, sombras passando na cabeça, esse porão mofado onde caminha sem bússola no escuro, os cabelos continuam caindo, cravos na ponta do nariz, escovar os dentes, comprar uma escova nova, tek dura, manchas de cigarro, ir ao dentista, como se chama mesmo? coroa, me bota aí uma coroa no primeiro prémolar superior direito, a velha disse que paga, quebrei naquela trip de anfeta já faz tempo, o dentista fez uma arrumação porca e perguntou assim e-aí-continua- muito-louco-bicho? ele faz o enturmado, o puto, vezenquando tem essas intimidades, o diabo é que ninguém mais usa essas gírias, todos, todos caretas. Mija, sempre antes do mijo sai uma gotinha de porra ou pus, não tem certeza, provavelmente porra, nunca teve gonorréia e gonorréia dói, dizem, lava a cara, o sabonete estica a pele branca, fazer-não-fazer a barba? não fazer, decide. Tosse, cospe as bolinhas pretas viscosas de nicotina no meio da saliva e da pasta de dentes, depois fica olhando o fundo da pia cor-derosa como se fosse um poço.
Seqüência 3
Desce escadas devagar, sempre um pouco tonto, fecha os olhos, uma porção de faíscas dando voltas pela cabeça, gostaria de cair mas não cai, e continua descendo, o cachorro vem fazer festa tentando balançar o rabo cortado, cão eles reprimem no rabo, controle suas emoções, querido, o cachorro olha para ele com doces olhinhos remelentos, o único nesta casa que me olha. Limpa a remela do cão com a barra da camiseta, atravessa a sala vazia, pega o jornal, pratos e talheres na mesa da cozinha, toalha azul de plástico, abre a geladeira, o fcomo, pedaços de carne, milho, mandioca boiando em fria gordura branca, o estômago se contrai, quase um soco, espia o bule de café, requenta e bebe, meia xícara preta muito forte sem açúcar. Acende o primeiro cigarro, traga fundo, a fumaça arranha a garganta, tosse seco, uma tuberculose, um edema, uma pneumonia, um enfisema, o cachorro se enrola em suas pernas enquanto o pai abre a porta e passa reto sem olhar nem cumprimentar. El também não olha nem diz nada, daqui a pouco chegam mãe irmãos irmãs e também não dirão nada, nem olharão, assim é, foi, será, dói aqui nas costas de tanto dormir e noutro lugar também, mais forte ainda, nem sei bem onde.
EXTERIOR/DIA
Seqüência única
Apanhar o jornal, atravessar outra vez a sala vazia, abrir a porta da rua, sentar nos degraus do jardim grama crescida, merda de cachorro, gatos noturnos, matagal de marias-sem-vergonha, muro branco, portão de ferro, rua, mormaço frio. Abre o jornal, o de sempre, o Líbano, cessar-fogo, quinze mortos na Argentina, seqüestro da atriz pornô, o leite, a gasolina, o rio podre, Marte, sondas — nenhum conhecido hoje na crônica policial, todo mundo dançando, tudo bem. Acende outro cigarro e tosse e cospe, bolinhas pretas viscosas na palma da mão, sem cheiro, 0K os pulmões resistem, eu resisto, o planeta resiste, tudo resiste. O pai passa até o portão, olha em volta sem dizer nada, não existimos, duas realidades para- lelas, dois ectoplasmas de sessões diferentes, fuma fuma fuma, joga a ponta acesa no canteiro, a brasa cai sobre uma folha, imagina que a planta sente dor, A Vida Secreta das Plantas, essas coisas, diz que pois é, os vegetais, vai saber. Olhar a brasa acesa incendiando a folha até o rombo, depois o sol, uma nuvem se afasta e o sol bate claro, duro na sua cara branca, nos seus cabelos caindo, nos seus olhos inchados. Tira os tênis, as meias, estende os pés para o sol, as coceiras no corpo, a pele seca, o frio, este inverno que não termina nunca, ninguém passa cantando na rua, a velha do outro lado espia, o carteiro passa sem deixar nada e o cachorro late para o carteiro negro, racista esse cão, o retratinho do dono, pensa olhando o pai, não, nenhuma carta, mas de quem, se todos foram embora para Londres, Paris, Nova York, Salvador ou Machu-Picchu. Fechar o jornal, acender o cigarro, tossir, abrir o jornal, cuspir, apagar o cigarro. O sol bate direto na sua cara branca e ele nem pisca.
INTERIOR/NOITE
Seqüência 1
Chama o cara aí, outra brahma, meu, teve um tempo que não era assim, brahma, vishnu & shiva, sente só o desrespeito ocidental, mais uma shiva, moço, mas não, não era assim, em casa um bode mas você saía e via as pessoas e daí esquecia, todo mundo numa boa, agora em casa é um bode, na rua é outro bode, na casa do teu amigo é mais um bode, um pirou, outro morreu de overdose, outro em cana, não é nada disso, olha só quem acaba de entrar, porra, essa mina já deu pra todo o bar, um túnel, como atravessar um túnel sem saber se tem fim, deixou a porta aberta, a piranha, como é que é? vai fechar ou não? te toca, friend, tu tás é de porre, Virgem ascendente Peixes, que bode, um o oposto do outro, tu entende disso é? conflitos terríveis, the dream is really over não me vem com esses papos de depois das duas da matina, porra, um dia alguém devia quebrar a bosta deste bar em vez de só pedir outra brahma (ou vishnu, ou shiva), me dá um câncer aí, mas era mesmo diferente no duro ou a gente é que tá envelhecendo, cara? puta, essa mina só sabe filar cigarro, quanto tempo, é, por aí, você sabe, julho, agosto, quem, a Beth? ah, tá legal, vai ficar mesmo em Floripa com aquele surfista debilóide, diz que mudou tudo, com quem que tá o brilho? a classe média, cara, eles querem é foder a classe média, semana passada os ratos baixaram e levaram todo mundo sem nem ver documento, tu acha mesmo que ela tá fim? tô te falando, olha só a cara dela, já deve estar toda molhadinha, já se foi essa brahma, uma saideira? vamos nessa, fiquei chapado o dia inteiro, dá uma sede, a casa de quem? pode ser, maior barato, mas nem conheço o cara, ah, vem todo mundo, olha não tô nessa de túnel, onde foi mesmo que eu li uma coisa que começava assim “metade do meu cérebro já foi destruído pelo álcool”, mas nunca acontece nada aos sábados na bosta desta cidade?
Seqüência 2
A mão dele roça lenta o seio dela. Ela ri, faz que não vê, tem bons dentes a piranha, fazendo gênero Sonia Braga com o cabelão desgrenhado. Black Sabbath? ah, não, tô entupido de rock, pega um jazz, até uma MPB serve, escolhe aí, porra. Fica quente assim, um grudado no outro, e por que não, cadê o Gilson? no banheiro, cara, deve estar chupando o peru do loiro ou cheirando pó, nem apresenta, ninguém apresenta mais nada, se quiser tem que ir à luta, ah, esquece, dá muito trabalho, apagando a luz, distribuindo cobertores, fechar mais uma, a saideira, não tô mais a fim, fumo anda me deixando paranóico, sabe como é, a paranóia só vem à tona se já existe dentro de você, cara, chega mais, isso aí, a boca, as línguas, a mão entre as coxas. Leva a mão dela até o fecho das calças dele, levanta a blusa devagar, acabou o som, mas logo agora? põe uma pilha aí, tango, valsa, fox, qualquer coisa. Mole, úmido, mcomo, os dedos afundam, parece sempre uma ostra, geme no meu ouvido, ajuda um pouco, pô, lambe os peitos, bicos duros, meio reta, pouco peito, gosto mais quando tem onde pegar, sabe como é, agora con-cen-tra-ção, apoiar as palmas das mãos contra o cobertor, cheiro de porra velha, deixar só a cabecinha roçando, dentro mas quase saindo, assim-as-sim-ah-sim, porra, lá vem o Gilson de novo com a mão na minha bunda, se facilito me enraba, dá o fora, bichona. E ela geme, e você geme também — imaginar, imaginar, que nem a Sonia Braga — e os seus olhos deslizam pelo tapete até uma peça qualquer de roupa jogada, depois para uma das pernas da mesa e mais adiante, subindo sempre, para o jornal aberto e a garrafa virada pingando, pingando sobre essa peça qualquer de roupa branca. A mão procura o cigarro no escuro e não encontra, claridade cinza entre as frestas da persiana metálica abaixada. Levanta-se, começa a remexer sobre a mesa, entre os discos, as roupas, os copos, os corpos. Seus dedos só encontram quinas, seus olhos só vêem a claridade cinza da madrugada por trás das persianas. Olha em volta, e para baixo, e verifica primeiro que está completamente nu, depois que há uma mulher morena também nua e adormecida, os cabelos desgrenhados espalhados sobre as almofadas indianas embaixo dajanela.
Seqüência 3
Abrir a porta sem ruído, cuidado para que o metal da chave no metal da fechadura não grite agudo acordando os outros. Tira os sapatos, o corpo vacila, arrota, a mão vai roçando pela parede fria até o corrimão: dezenove degraus, anos de aprendizagem. Dentro do escuro, o retângulo mais claro da porta do banheiro. Acende a luz, mas não é necessário, luz cinza forte que vara as frestas. No espelho cabelos caindo, olhos inchados na cara branca, a culpa é deles que deixaram tudo torto assim ou é a gente mesmo que está envelhecendo sem achar outra coisa, hein, cara? Abrir o chuveiro, a água pinga gotas geladas contra os mosaicos do piso, harmonizando primeiro com as batidas do coração, depois com as contrações do estômago. Levanta a tampa cor-de-rosa da privada, num salto o estômago sobe até a garganta escura ardida de cigarros, de palavras, de cervejas. Apenas curva a parte superior do corpo, e vai caindo devagar, os braços enlaçando a louça colorida como se fosse o corpo de Sonia Braga, cabeça enfiada no vaso, dedo na garganta. Bem fundo — imaginar, imaginar—, bem fundo. Então vomita vomita vomita vomita vomita vomita vomita. Sete vezes, feito um ritual.
Amanhã tem mais.
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(Uma história positiva, para ser lida ao som de Contigo en la Distancia)
Foi escrita em fevereiro de 1995, entre Rio de Janeiro, Fortaleza e Porto Alegre. Há pouco a dizer sobre ela, ainda está muito próxima para eu tratá-la com frieza e distanciamento. Talvez seja um tanto cífrada, mas para um bom leitor certo mistério nunca impede a compreensão.
Porque o Eterno, teu Deus, te há abençoado em toda a obra das tuas mãos; soube da tua longa caminhada por este grande deserto; há já quarenta anos que o Eterno, teu Deus, está contigo e nada te tem faltado. (Deuteronômio, II, 7)
Naquela manhã de agosto, era tarde demais. Foi a primeira coisa que ele pensou ao cruzar os portões do hospital apoiado náufrago nos ombros dos dois amigos. Anjos da guarda, um de cada lado. Enumerou: tarde demais para a alegria, tarde demais para o amor, para a saúde, para a própria vida, repetia e repetia para dentro sem dizer nada, tentando não olhar os reflexos do sol cinza nos túmulos do outro lado da avenida Dr. Arnaldo. Tentando não ver os túmulos, mas sim a vida louca dos túneis e viadutos desaguando na Paulista, experimentava um riso novo. Pé ante pé, um pouco para não assustar os amigos, um pouco porque não deixava de ser engraçado estar de volta à vertigem metálica daquela cidade à qual, há mais de mês, deixara de pertencer. Vamos comer sushi num japonês que você gosta, disse a moça do lado esquerdo. E ele riu. Depois vamos ao cinema ver o Tom Hanks que você adora, disse o rapaz do lado direito. E ele tcomou a rir. Riram os três, um tanto sem graça, porque a partir daquela manhã de agosto, embora os três e todos os outros que já sabiam ou viriam a saber, pois ele tinha o orgulho de nada esconder, tentassem suaves disfarçar, todos sabiam que ele sabia que tinha ficado tarde demais. Para a alegria, repetia, a saúde, a própria vida. Sobretudo para o amor, suspirava. Discreto, pudico, conformado. Nunca-mais O amor era o que mais doía, e de todas as tantas dores, essa a única que jamais confessaria.
PRIMAVERA
Mas quase nem doeu, meses seguintes. Pois veio a primavera e trouxe tantos roxos e amarelos para a copa dos jacarandás tantos reflexos azuis e prata e ouro na superfície das águas do rio, tanto movimento nas caras das pessoas do Outro Lado com suas deliciosas histórias de vivas desimportâncias, e formas pelas nuvens — um dia, um anjo —, nas sombras do jardim pela tardinha — outro dia, duas borboletas fazendo amor pousadas na sua coxa. Coxa’s Motel, ele riu. Nem sempre ria. Pois havia também horários rígidos, drogas pesadas, náuseas, vertigens, palavras fugindo, suspeitas no céu da boca, terror suado estrangulando as noites e olhos baixos no espelho a cada manhã, para não ver Caim estampado na própria cara. Mas havia ainda as doçuras alheias feito uma saudade prévia, pois todos sabiam que era tarde demais, e golpes de fé irracional em algum milagre de science fiction, por vezes avisos mágicos nas minúsculas plumas coloridas caídas pelos cantos da casa. E principalmente, manhãs. Que já não eram de agosto, mas de setembro e depois outubro e assim por diante até o janeiro do novo ano que, em agosto, nem se atrevera a supor.
Estou forte, descobriu certo dia, verão pleno na cidade ao sul para onde mudara, deserta e crestada pelo sol e branca e ardente como uma vila mediterrânea de Theos Angelopoulos. E decidiu: vou viajar. Porque não morri, porque é verão, porque é tarde demais e eu quero ver, rever, transver, milver tudo que não vi e ainda mais do que já vi, como um danado, quero ver feito Pessoa, que também morreu sem encontrar. Maldito e solitário, decidiu ousado: vou viajar.
JADE
Para a costa, perto do mar, onde as águas verdes pareciam jade cintilando no horizonte, como se fizesse parte de um cartão-postal kitch, à sombra de uma palmeira ele bebia água de coco sob o chapéu de palha ao sol das sete da manhã, catando conchas coloridas no debrum da espuma das ondas. Ao pôr-do- sol atrevia-se às vezes a uma cerveja, olhando rapazes para sempre inatingíveis jogando futebol na areia. Tarde demais, nunca esquecia. E respirava lento, medido, economizando sua quota kármica de prana ao estufar estômago-costelas-pulmões, nessa ordem, erguendo suave os ombros para depois expirar sorrindo, mini-samadhi. Devocional, búdico. Pois se ficara mesmo tarde demais para todas as coisas dos Viventes Inconscientes, como passara a chamar às Pessoas do Outro Lado — apenas para si mesmo, não queria parecer arrogante —, pois se ficara mesmo assim tragicamente tarde, acendia um cigarro culpado e, fodam-se, com toda a arrogância constatava: se era tarde demais, poderia também ser cedo demais, você não acha? perguntava sem fôlego para ninguém. Navios deslizavam na linha verde do horizonte. Ele filosofava: se tarde demais era depois da hora exata, cedo demais seria antes dessa mesma hora. Estava portanto cravado nessa hora, a exata, entre antes-depois, noite-dia, morte-vida e isso era tudo e em sendo tudo não era boa nem má aquela hora, mas exata e justa apenas tudo que tinha. Entre este lado e o outro, isto e aquilo, um coco na mão esquerda e um cigarro na direita, sorria. Apoiado em coisas fugazes e ferozes, anjos e cães de guarda. Nada mau para um ressuscitado, considerou. E logo depois, insensato: estou feliz. Era verdade. Ou quase, pois:
ANUNCIAÇÃO
Então chegou o outro. Primeiro por telefone, que era amigo-de-um-amigo-que-estava-viaj ando-e-recomendara-que-olhasse- por-ele. Se precisava de alguma coisa, se estava mesmo bem entre aspas. Tão irritante ser lembrado da própria fragilidade no ventre do janeiro tropical, quase expulso do Paraíso que a duras penas conquistara desde sua temporada particular no Inferno, teve o impulso bruto de ser farpado com o outro. A voz do outro. A invasão do outro. A gentil crueldade do outro, que certamente faria parte do outro Lado. Daquela falange dos Cúmplices Complacentes, vezenquando mais odiosa que os Sórdidos Preconceituosos, compreende? Mas havia algo — um matiz? — nessa voz desse outro que o fazia ter nostalgia boa de gargalhar rouco jogando conversa fora com outras pessoas de qualquer lado — que não havia lados, mas lagos, desconfiava vago —, como desde antes daquele agosto desaprendera de fazer. Ah, sentar na mesa de um bar para beber nem que fosse água brahma light cerpa sem álcool (e tão chegado fora aos conhaques) falando bem ou mal de qualquer filme, qualquer livro, qualquer ser, enquanto navios pespontavam a bainha verde do horizonte e rapazes morenos musculosos jogassem eternamente futebol na areia da praia com suas sungas coloridas protegendo crespos pentelhos suados, peludas bolas salgadas. Respirou fundo, lento, sete vezes perdoando o outro. E marcou um encontro.
ORIENTE
Soube no segundo em que o viu. Quem sabe a pele morena, talvez os olhos chineses? Curioso, certo ar cigano, seria esse nariz persa? Talvez tanta coisa quem sabe maybe peut-être magari enquanto rodavam de carro ouvindo fitas nervosas mas você tem esta eu não consigo acreditar que outra criatura além de mim na galáxia: você é louco, garoto, juro que nunca pensei. As janelas abertas para a brisa de quase fevereiro faziam esvoaçar os cabelos de um só, que os dele tinham ficado ralos desde agosto. Pêlos dos braços que se eriçavam — maresia, magnetismos — e pelas coxas nuas nas bermudas brancas músculos tremiam em câimbras arfantes aos toques ocasionais de um, de outro. Um tanto por acaso, assim as mãos tateando possíveis rejeições, depois mais seguras, cobras enleadas, choque de pupilas com duração de big boom em um suspiro — e de repente meu santo antônio um beijo de língua morna molhado na boca até o céu e quase a garganta alagados pelos joelhos na chuva tropical de Botafogo. Mas se o outro, cuernos, se o outro, como todos, sabia perfeitamente de sua situação: como se atrevia? por que te atreves, se não podemos ser amigos simplesmente, cantarolou distraído. Piedade, suicídio, sedução, hot voodoo, melodrama. Pois se desde agosto tornar-se o tão impuro que sequer os leprosos de Cartago ousariam tocá-lo, ele, o mais sarnento de todos os cães do beco mais sujo de Nova Délhi. Ay! gemeu sedento e andaluz no deserto rosso da cidade do centro.
SONETO
Acordou em estado de encantamento. Noutra cidade, ainda mais ao norte, para onde fugira depois daquele beijo. Só que quase não conseguia mais olhar para fora. Como antigamente, como quando fazia parte da roda, como quando estava realmente vivo — mas se porra ainda não morri caralho, quase gritava. E talvez não fosse tarde demais, afinal, pois começou desesperadamente outra vez a ter essa coisa sôfrega: a esperança. Como se não bastasse, veio também o desejo. Desejo sangrento de bicho vivo pela carne de Outro bicho vivo também. Sossega, dizia insone, abusando de lexotans, duchas mornas, shiatsus. Esquece, renuncia, baby: esses quindins já não para o teu bico, meu pimpolho... Meio fingindo que não, pela primeira vez desde agosto olhou-se disfarçado no espelho do hail do hotel. As marcas tinham desaparecido. Um tanto magro, bíên-sure, considerou, mas pas grave, mon chér. Twiggy, afinal, Iggy Pop, Verushka (onde andaria?), Tony Perkins — não, Tony Perkins melhor não — enumerou, ele era meio sixties. Enfim, quem não soubesse jamais diria, você não acha, meu bem? Mas o outro sabia. E por dentro do encantamento, da esperança e do desejo, entremeado começou a ter pena do outro, mas isso não era justo, e tentou o ódio. Ódio experimental, claro, pois embora do bem, ele tinha Ogum de lança em riste na frente. Aos berros no chuveiro: se você sabe seu veado o que pretende afinal com tanta sedução? Sai de mim, me deixa em paz, você arruinou a minha vida. Começou a cantar uma velha canção de Nara Leão que sempre o fazia chorar, desta vez mais que sempre, por que desceste ao meu porão sombrio, por que me descobriste no abandono, por que não me deixaste adormecido? Mas faltava água na cidade de lá, e ensaboado e seco ele parou de cantar.
FUGA
Porque não suportava mais todas aquelas coisas por dentro e ainda por cima o quase-amor e a confusão e o medo puro, ele voltou à cidade do centro. Marcou a passagem de volta para a sua cidade ao sul em uma semana. Continuava verão, quase não havia lugares e todo mundo se movia sem parar dos mares para as montanhas, do norte para o sul e o contrário o tempo todo. Fatídica, pois, a volta. Em sete dias. Só no terceiro, o das árvores que dão frutos, telefonou. O outro, outra vez. A voz do outro, a respiração do outro, a saudade do outro, o silêncio do outro. Por mais três dias então, cada um em uma ponta da cidade, arquitetaram fugas inverossímeis. O trânsito, a chuva, o calor, o sono, o cansaço. O medo, não. O medo não diziam. Deixavam-se recados truncados pelas máquinas, ao reconhecer a voz um do outro atendiam súbitos em pleno bip ou deixavam o telefone tocar e tocar sem atender, as vozes se perdendo nos primeiros graus de Aquário.
Sim, afligia muito querer e não ter. Ou não querer e ter. Ou não querer e não ter. Ou querer e ter. Ou qualquer outra enfim dessas combinações entre os quereres e os teres de cada um, afligia tanto.
ESPELHO
Teve um sonho, então. O primeiro que conseguia lembrar desde agosto. Chegava num bar com mesas na calçada. Ele morava num apartamento em cima daquele bar, no mesmo prédio. Estava aflito, esperava um recado, carta, bilhete ou qualquer presença urgente do outro. Sorrindo na porta do bar, um rapaz o cumprimentou. Não o conhecia, mas cumprimentou de volta, mais apressado que intrigado. Subia escadas correndo, ofegante abria a porta. Nenhum bilhete no chão. Na secretária, nenhum recado na fita. Olhou o relógio, tarde demais e não viera. Mas de repente lembrou que aquele rapaz que o cumprimentara sorrindo na porta do bar lá embaixo, que aquele rapaz moreno que ele não reconhecera — aquele rapaz era o outro. Não vejo o amor, descobriu acordando: desvio dele e caio de boca na rejeição.
Na sala clara e limpa, começou a falar sem parar sobre a outra cidade mais ao norte, o jade do mar de lá, e daquela outra mais ao sul, o túnel roxo dos jacarandás. De tudo que não estava ali na sala clara e limpa no centro da qual, parado, o outro o olhava, e de tudo que fora antes e o que seria depois daquele momento, ele falou. Mas em nenhum momento daquele momento, hora exata, em que ele e o outro se olhavam frente a frente.
— Amanhã é dia de lemanjá — ele disse por fim
O outro convidou:
— Senta aqui do meu lado.
Ele sentou. O outro perguntou:
— Nosso amigo te contou?
— O quê?
O outro pegou na mão dele. A fina, leve, fresca.
— Que eu também.
Ele não entendia.
— Que eu também — o outro repetiu.
O ruído dos carros nas curvas de Ipanema, a lua nova sobre a lagoa. E feito um choque elétrico, raio de Jansã, de repente entendeu. Tudo.
— Você também — disse, branco.
— Sim — o outro disse sim.
Como não era mais possível adiar, sob risco de parecerem no mínimo mal-educados — e eram, ambos, de fino trato —, na véspera da partida ele acendeu uma vela para Jung, outra para Oxum. E foi. Feito donzela, tremia ao descer do táxi, mas umas adrenalinas viris corriam nos músculos e umas endorfinas doidas no cérebro avisavam: voltara, o desejo que tanto latejara antes e tão loucamente que, por causa dele, ficara assim. Nosferatu, desde agosto, aquela espada suspensa, pescoço na guilhotina, um homem bomba cujo lacre ninguém se atrevia a quebrar.
VALSA
Seminus viraram noite espalhando histórias desde a infância sobre a cama, entre leques, cascas de amendoim, latas de gatorade, mapas astrais e arcanos do Tarot, ouvindo Ney Matogrosso gemer uma história fatigada e triste sobre um viajante por alguma casa, pássaros de asas renovadas, reis destronados da imensa covardia. Eu era gordo, contou um. Eu era feio, disse outro. Morei em Paris, contou um. Vivi em Nova York, disse outro. Adoro manga, odeio cebola. Coisas assim, eles falaram até as cinco.
Às vezes aconteciam coisas malucas, como a ponta do pé de um escorregar para tão dentro e fundo da manga da camiseta do outro que um dedo alerta roçava súbito um mamilo duro, ou a cabeça de um descansava suada por um segundo na curva do ombro do outro, farejando almíscar. Que o outro quase morrera, antes mesmo dele, num agosto anterior talvez de abril, e desde então pensava que: era tarde demais para a alegria, para a saúde, para a própria vida e, sobretudo, ai, para o amor. Dividia-se entre natações, vitaminas, trabalho, sono e punhetas loucas para não enlouquecer de tesão e de terror. Os pulmões, falaram, o coração. Retrovírus, Plutão em Sagitário, alcaçuz, zidovudina e Rá!
Quando safram para jantar juntos ao ar livre, não se importaram que os outros olhassem de vários pontos de vista, de vários lados de lá — para as suas quatro mãos por vezes dadas sobre a toalha xadrez azul e branco. Belos, inacessíveis como dois príncipes amaldiçoados e por isso mesmo ainda mais nobres.
FINAIS
Quase amanhecia quando trocaram um abraço demorado dentro do carro que só faltava ser Simca. Tão fifties, riram. Na manhã de lemanjá, ele jogou rosas brancas na sétima onda, depois partiu sozinho. Não fizeram planos. Talvez um voltasse, talvez o outro fosse. Talvez um viajasse, talvez outro fugisse. Talvez trocassem cartas, telefonemas noturnos, dominicais, cristais e contas por sedex, que ambos eram meio bruxos, meio ciganos, assim meio babalaôs. Talvez ficassem curados, ao mesmo tempo ou não. Talvez algum partisse, outro ficasse. Talvez um perdesse peso, o outro ficasse cego. Talvez não se vissem nunca mais, com olhos daqui pelo menos, talvez enlouquecessem de amor e mudassem um para a cidade do outro, ou viajassem juntos para Paris, por exemplo, Praga, Pittsburg ou Creta. Talvez um se matasse, o outro negativasse. Seqüestrados por um OVNI, mortos por bala perdida, quem sabe. Talvez tudo, talvez nada. Porque era cedo demais e nunca tarde. Era recém no início da não-morte dos dois.
BOLERO
Mas combinaram: Quatro noites antes, quatro depois do plenilúnio, cada um em sua cidade, em hora determinada, abrem as janelas de seus quartos de solteiros, apagam as luzes e abraçados em si mesmos, sozinhos no escuro, dançam boleros tão apertados que seus suores se misturam, seus cheiros se confundem, suas febres se somam em quase noventa graus, latejando duro entre as coxas um do outro. Lentos boleros que mais parecem mantras. Mais India do que Caribe. Pérsia, quem sabe, budismo hebraico em celta e yorubá. Ou meramente Acapulco, girando num embrujo de maraca y bongô. Desde então, mesmo quando chove ou o céu tem nuvens, sabem sempre quando a lua é cheia. E quando mingua e some, sabem que se renova e cresce e torna a ser cheia outra vez e assim por todos os séculos e séculos porque é assim que é e sempre foi e será, se Deus quiser e os anjos disserem Amém. E dizem, vão dizer, estão dizendo, já disseram.
Que importa restarem cinzas se a chama foi bela e alta? Em meio aos toros que desabam cantemos a canção das chamas!
(Mario Quintana)
Foi escrita em fevereiro de 1995, entre Rio de Janeiro, Fortaleza e Porto Alegre. Há pouco a dizer sobre ela, ainda está muito próxima para eu tratá-la com frieza e distanciamento. Talvez seja um tanto cífrada, mas para um bom leitor certo mistério nunca impede a compreensão.
Porque o Eterno, teu Deus, te há abençoado em toda a obra das tuas mãos; soube da tua longa caminhada por este grande deserto; há já quarenta anos que o Eterno, teu Deus, está contigo e nada te tem faltado. (Deuteronômio, II, 7)
Naquela manhã de agosto, era tarde demais. Foi a primeira coisa que ele pensou ao cruzar os portões do hospital apoiado náufrago nos ombros dos dois amigos. Anjos da guarda, um de cada lado. Enumerou: tarde demais para a alegria, tarde demais para o amor, para a saúde, para a própria vida, repetia e repetia para dentro sem dizer nada, tentando não olhar os reflexos do sol cinza nos túmulos do outro lado da avenida Dr. Arnaldo. Tentando não ver os túmulos, mas sim a vida louca dos túneis e viadutos desaguando na Paulista, experimentava um riso novo. Pé ante pé, um pouco para não assustar os amigos, um pouco porque não deixava de ser engraçado estar de volta à vertigem metálica daquela cidade à qual, há mais de mês, deixara de pertencer. Vamos comer sushi num japonês que você gosta, disse a moça do lado esquerdo. E ele riu. Depois vamos ao cinema ver o Tom Hanks que você adora, disse o rapaz do lado direito. E ele tcomou a rir. Riram os três, um tanto sem graça, porque a partir daquela manhã de agosto, embora os três e todos os outros que já sabiam ou viriam a saber, pois ele tinha o orgulho de nada esconder, tentassem suaves disfarçar, todos sabiam que ele sabia que tinha ficado tarde demais. Para a alegria, repetia, a saúde, a própria vida. Sobretudo para o amor, suspirava. Discreto, pudico, conformado. Nunca-mais O amor era o que mais doía, e de todas as tantas dores, essa a única que jamais confessaria.
PRIMAVERA
Mas quase nem doeu, meses seguintes. Pois veio a primavera e trouxe tantos roxos e amarelos para a copa dos jacarandás tantos reflexos azuis e prata e ouro na superfície das águas do rio, tanto movimento nas caras das pessoas do Outro Lado com suas deliciosas histórias de vivas desimportâncias, e formas pelas nuvens — um dia, um anjo —, nas sombras do jardim pela tardinha — outro dia, duas borboletas fazendo amor pousadas na sua coxa. Coxa’s Motel, ele riu. Nem sempre ria. Pois havia também horários rígidos, drogas pesadas, náuseas, vertigens, palavras fugindo, suspeitas no céu da boca, terror suado estrangulando as noites e olhos baixos no espelho a cada manhã, para não ver Caim estampado na própria cara. Mas havia ainda as doçuras alheias feito uma saudade prévia, pois todos sabiam que era tarde demais, e golpes de fé irracional em algum milagre de science fiction, por vezes avisos mágicos nas minúsculas plumas coloridas caídas pelos cantos da casa. E principalmente, manhãs. Que já não eram de agosto, mas de setembro e depois outubro e assim por diante até o janeiro do novo ano que, em agosto, nem se atrevera a supor.
Estou forte, descobriu certo dia, verão pleno na cidade ao sul para onde mudara, deserta e crestada pelo sol e branca e ardente como uma vila mediterrânea de Theos Angelopoulos. E decidiu: vou viajar. Porque não morri, porque é verão, porque é tarde demais e eu quero ver, rever, transver, milver tudo que não vi e ainda mais do que já vi, como um danado, quero ver feito Pessoa, que também morreu sem encontrar. Maldito e solitário, decidiu ousado: vou viajar.
JADE
Para a costa, perto do mar, onde as águas verdes pareciam jade cintilando no horizonte, como se fizesse parte de um cartão-postal kitch, à sombra de uma palmeira ele bebia água de coco sob o chapéu de palha ao sol das sete da manhã, catando conchas coloridas no debrum da espuma das ondas. Ao pôr-do- sol atrevia-se às vezes a uma cerveja, olhando rapazes para sempre inatingíveis jogando futebol na areia. Tarde demais, nunca esquecia. E respirava lento, medido, economizando sua quota kármica de prana ao estufar estômago-costelas-pulmões, nessa ordem, erguendo suave os ombros para depois expirar sorrindo, mini-samadhi. Devocional, búdico. Pois se ficara mesmo tarde demais para todas as coisas dos Viventes Inconscientes, como passara a chamar às Pessoas do Outro Lado — apenas para si mesmo, não queria parecer arrogante —, pois se ficara mesmo assim tragicamente tarde, acendia um cigarro culpado e, fodam-se, com toda a arrogância constatava: se era tarde demais, poderia também ser cedo demais, você não acha? perguntava sem fôlego para ninguém. Navios deslizavam na linha verde do horizonte. Ele filosofava: se tarde demais era depois da hora exata, cedo demais seria antes dessa mesma hora. Estava portanto cravado nessa hora, a exata, entre antes-depois, noite-dia, morte-vida e isso era tudo e em sendo tudo não era boa nem má aquela hora, mas exata e justa apenas tudo que tinha. Entre este lado e o outro, isto e aquilo, um coco na mão esquerda e um cigarro na direita, sorria. Apoiado em coisas fugazes e ferozes, anjos e cães de guarda. Nada mau para um ressuscitado, considerou. E logo depois, insensato: estou feliz. Era verdade. Ou quase, pois:
ANUNCIAÇÃO
Então chegou o outro. Primeiro por telefone, que era amigo-de-um-amigo-que-estava-viaj ando-e-recomendara-que-olhasse- por-ele. Se precisava de alguma coisa, se estava mesmo bem entre aspas. Tão irritante ser lembrado da própria fragilidade no ventre do janeiro tropical, quase expulso do Paraíso que a duras penas conquistara desde sua temporada particular no Inferno, teve o impulso bruto de ser farpado com o outro. A voz do outro. A invasão do outro. A gentil crueldade do outro, que certamente faria parte do outro Lado. Daquela falange dos Cúmplices Complacentes, vezenquando mais odiosa que os Sórdidos Preconceituosos, compreende? Mas havia algo — um matiz? — nessa voz desse outro que o fazia ter nostalgia boa de gargalhar rouco jogando conversa fora com outras pessoas de qualquer lado — que não havia lados, mas lagos, desconfiava vago —, como desde antes daquele agosto desaprendera de fazer. Ah, sentar na mesa de um bar para beber nem que fosse água brahma light cerpa sem álcool (e tão chegado fora aos conhaques) falando bem ou mal de qualquer filme, qualquer livro, qualquer ser, enquanto navios pespontavam a bainha verde do horizonte e rapazes morenos musculosos jogassem eternamente futebol na areia da praia com suas sungas coloridas protegendo crespos pentelhos suados, peludas bolas salgadas. Respirou fundo, lento, sete vezes perdoando o outro. E marcou um encontro.
ORIENTE
Soube no segundo em que o viu. Quem sabe a pele morena, talvez os olhos chineses? Curioso, certo ar cigano, seria esse nariz persa? Talvez tanta coisa quem sabe maybe peut-être magari enquanto rodavam de carro ouvindo fitas nervosas mas você tem esta eu não consigo acreditar que outra criatura além de mim na galáxia: você é louco, garoto, juro que nunca pensei. As janelas abertas para a brisa de quase fevereiro faziam esvoaçar os cabelos de um só, que os dele tinham ficado ralos desde agosto. Pêlos dos braços que se eriçavam — maresia, magnetismos — e pelas coxas nuas nas bermudas brancas músculos tremiam em câimbras arfantes aos toques ocasionais de um, de outro. Um tanto por acaso, assim as mãos tateando possíveis rejeições, depois mais seguras, cobras enleadas, choque de pupilas com duração de big boom em um suspiro — e de repente meu santo antônio um beijo de língua morna molhado na boca até o céu e quase a garganta alagados pelos joelhos na chuva tropical de Botafogo. Mas se o outro, cuernos, se o outro, como todos, sabia perfeitamente de sua situação: como se atrevia? por que te atreves, se não podemos ser amigos simplesmente, cantarolou distraído. Piedade, suicídio, sedução, hot voodoo, melodrama. Pois se desde agosto tornar-se o tão impuro que sequer os leprosos de Cartago ousariam tocá-lo, ele, o mais sarnento de todos os cães do beco mais sujo de Nova Délhi. Ay! gemeu sedento e andaluz no deserto rosso da cidade do centro.
SONETO
Acordou em estado de encantamento. Noutra cidade, ainda mais ao norte, para onde fugira depois daquele beijo. Só que quase não conseguia mais olhar para fora. Como antigamente, como quando fazia parte da roda, como quando estava realmente vivo — mas se porra ainda não morri caralho, quase gritava. E talvez não fosse tarde demais, afinal, pois começou desesperadamente outra vez a ter essa coisa sôfrega: a esperança. Como se não bastasse, veio também o desejo. Desejo sangrento de bicho vivo pela carne de Outro bicho vivo também. Sossega, dizia insone, abusando de lexotans, duchas mornas, shiatsus. Esquece, renuncia, baby: esses quindins já não para o teu bico, meu pimpolho... Meio fingindo que não, pela primeira vez desde agosto olhou-se disfarçado no espelho do hail do hotel. As marcas tinham desaparecido. Um tanto magro, bíên-sure, considerou, mas pas grave, mon chér. Twiggy, afinal, Iggy Pop, Verushka (onde andaria?), Tony Perkins — não, Tony Perkins melhor não — enumerou, ele era meio sixties. Enfim, quem não soubesse jamais diria, você não acha, meu bem? Mas o outro sabia. E por dentro do encantamento, da esperança e do desejo, entremeado começou a ter pena do outro, mas isso não era justo, e tentou o ódio. Ódio experimental, claro, pois embora do bem, ele tinha Ogum de lança em riste na frente. Aos berros no chuveiro: se você sabe seu veado o que pretende afinal com tanta sedução? Sai de mim, me deixa em paz, você arruinou a minha vida. Começou a cantar uma velha canção de Nara Leão que sempre o fazia chorar, desta vez mais que sempre, por que desceste ao meu porão sombrio, por que me descobriste no abandono, por que não me deixaste adormecido? Mas faltava água na cidade de lá, e ensaboado e seco ele parou de cantar.
FUGA
Porque não suportava mais todas aquelas coisas por dentro e ainda por cima o quase-amor e a confusão e o medo puro, ele voltou à cidade do centro. Marcou a passagem de volta para a sua cidade ao sul em uma semana. Continuava verão, quase não havia lugares e todo mundo se movia sem parar dos mares para as montanhas, do norte para o sul e o contrário o tempo todo. Fatídica, pois, a volta. Em sete dias. Só no terceiro, o das árvores que dão frutos, telefonou. O outro, outra vez. A voz do outro, a respiração do outro, a saudade do outro, o silêncio do outro. Por mais três dias então, cada um em uma ponta da cidade, arquitetaram fugas inverossímeis. O trânsito, a chuva, o calor, o sono, o cansaço. O medo, não. O medo não diziam. Deixavam-se recados truncados pelas máquinas, ao reconhecer a voz um do outro atendiam súbitos em pleno bip ou deixavam o telefone tocar e tocar sem atender, as vozes se perdendo nos primeiros graus de Aquário.
Sim, afligia muito querer e não ter. Ou não querer e ter. Ou não querer e não ter. Ou querer e ter. Ou qualquer outra enfim dessas combinações entre os quereres e os teres de cada um, afligia tanto.
ESPELHO
Teve um sonho, então. O primeiro que conseguia lembrar desde agosto. Chegava num bar com mesas na calçada. Ele morava num apartamento em cima daquele bar, no mesmo prédio. Estava aflito, esperava um recado, carta, bilhete ou qualquer presença urgente do outro. Sorrindo na porta do bar, um rapaz o cumprimentou. Não o conhecia, mas cumprimentou de volta, mais apressado que intrigado. Subia escadas correndo, ofegante abria a porta. Nenhum bilhete no chão. Na secretária, nenhum recado na fita. Olhou o relógio, tarde demais e não viera. Mas de repente lembrou que aquele rapaz que o cumprimentara sorrindo na porta do bar lá embaixo, que aquele rapaz moreno que ele não reconhecera — aquele rapaz era o outro. Não vejo o amor, descobriu acordando: desvio dele e caio de boca na rejeição.
Na sala clara e limpa, começou a falar sem parar sobre a outra cidade mais ao norte, o jade do mar de lá, e daquela outra mais ao sul, o túnel roxo dos jacarandás. De tudo que não estava ali na sala clara e limpa no centro da qual, parado, o outro o olhava, e de tudo que fora antes e o que seria depois daquele momento, ele falou. Mas em nenhum momento daquele momento, hora exata, em que ele e o outro se olhavam frente a frente.
— Amanhã é dia de lemanjá — ele disse por fim
O outro convidou:
— Senta aqui do meu lado.
Ele sentou. O outro perguntou:
— Nosso amigo te contou?
— O quê?
O outro pegou na mão dele. A fina, leve, fresca.
— Que eu também.
Ele não entendia.
— Que eu também — o outro repetiu.
O ruído dos carros nas curvas de Ipanema, a lua nova sobre a lagoa. E feito um choque elétrico, raio de Jansã, de repente entendeu. Tudo.
— Você também — disse, branco.
— Sim — o outro disse sim.
Como não era mais possível adiar, sob risco de parecerem no mínimo mal-educados — e eram, ambos, de fino trato —, na véspera da partida ele acendeu uma vela para Jung, outra para Oxum. E foi. Feito donzela, tremia ao descer do táxi, mas umas adrenalinas viris corriam nos músculos e umas endorfinas doidas no cérebro avisavam: voltara, o desejo que tanto latejara antes e tão loucamente que, por causa dele, ficara assim. Nosferatu, desde agosto, aquela espada suspensa, pescoço na guilhotina, um homem bomba cujo lacre ninguém se atrevia a quebrar.
VALSA
Seminus viraram noite espalhando histórias desde a infância sobre a cama, entre leques, cascas de amendoim, latas de gatorade, mapas astrais e arcanos do Tarot, ouvindo Ney Matogrosso gemer uma história fatigada e triste sobre um viajante por alguma casa, pássaros de asas renovadas, reis destronados da imensa covardia. Eu era gordo, contou um. Eu era feio, disse outro. Morei em Paris, contou um. Vivi em Nova York, disse outro. Adoro manga, odeio cebola. Coisas assim, eles falaram até as cinco.
Às vezes aconteciam coisas malucas, como a ponta do pé de um escorregar para tão dentro e fundo da manga da camiseta do outro que um dedo alerta roçava súbito um mamilo duro, ou a cabeça de um descansava suada por um segundo na curva do ombro do outro, farejando almíscar. Que o outro quase morrera, antes mesmo dele, num agosto anterior talvez de abril, e desde então pensava que: era tarde demais para a alegria, para a saúde, para a própria vida e, sobretudo, ai, para o amor. Dividia-se entre natações, vitaminas, trabalho, sono e punhetas loucas para não enlouquecer de tesão e de terror. Os pulmões, falaram, o coração. Retrovírus, Plutão em Sagitário, alcaçuz, zidovudina e Rá!
Quando safram para jantar juntos ao ar livre, não se importaram que os outros olhassem de vários pontos de vista, de vários lados de lá — para as suas quatro mãos por vezes dadas sobre a toalha xadrez azul e branco. Belos, inacessíveis como dois príncipes amaldiçoados e por isso mesmo ainda mais nobres.
FINAIS
Quase amanhecia quando trocaram um abraço demorado dentro do carro que só faltava ser Simca. Tão fifties, riram. Na manhã de lemanjá, ele jogou rosas brancas na sétima onda, depois partiu sozinho. Não fizeram planos. Talvez um voltasse, talvez o outro fosse. Talvez um viajasse, talvez outro fugisse. Talvez trocassem cartas, telefonemas noturnos, dominicais, cristais e contas por sedex, que ambos eram meio bruxos, meio ciganos, assim meio babalaôs. Talvez ficassem curados, ao mesmo tempo ou não. Talvez algum partisse, outro ficasse. Talvez um perdesse peso, o outro ficasse cego. Talvez não se vissem nunca mais, com olhos daqui pelo menos, talvez enlouquecessem de amor e mudassem um para a cidade do outro, ou viajassem juntos para Paris, por exemplo, Praga, Pittsburg ou Creta. Talvez um se matasse, o outro negativasse. Seqüestrados por um OVNI, mortos por bala perdida, quem sabe. Talvez tudo, talvez nada. Porque era cedo demais e nunca tarde. Era recém no início da não-morte dos dois.
BOLERO
Mas combinaram: Quatro noites antes, quatro depois do plenilúnio, cada um em sua cidade, em hora determinada, abrem as janelas de seus quartos de solteiros, apagam as luzes e abraçados em si mesmos, sozinhos no escuro, dançam boleros tão apertados que seus suores se misturam, seus cheiros se confundem, suas febres se somam em quase noventa graus, latejando duro entre as coxas um do outro. Lentos boleros que mais parecem mantras. Mais India do que Caribe. Pérsia, quem sabe, budismo hebraico em celta e yorubá. Ou meramente Acapulco, girando num embrujo de maraca y bongô. Desde então, mesmo quando chove ou o céu tem nuvens, sabem sempre quando a lua é cheia. E quando mingua e some, sabem que se renova e cresce e torna a ser cheia outra vez e assim por todos os séculos e séculos porque é assim que é e sempre foi e será, se Deus quiser e os anjos disserem Amém. E dizem, vão dizer, estão dizendo, já disseram.
Que importa restarem cinzas se a chama foi bela e alta? Em meio aos toros que desabam cantemos a canção das chamas!
(Mario Quintana)
Marcadores: Ovelhas Negras
Para Déa Martins
Desde que li em algum livro de biologia que «metâmero é cada um dos anéis do corpo de um verme, e que cada um desses metâmeros pode formar um verme novo’ fiquei fascinado pela idéia de textos que seriam assim como embriões de si mesmos. Se desenvolvidos, poderiam resultar em contos ou até mesmo novelas ou romances. Das dezenas que escrevi, estes dois me parecem os melhores.
1. A PERDA
Quando passo às vezes por aquela esquina, espio sempre a outra rua por trás da igreja. E mesmo sem querer, sem perceber claro o que sinto, lembro daquela tarde em que fui visitá-lo pela última vez, depois voltei caminhando pela rua cheia de árvores tão altas que suas copas se encontram e se misturam no alto, como num túnel redondo, irregular, a pensar coisas que nem lembro mais.
Quando passo por lá assim rapidamente, numa tarde como a de ontem ou outras iguais destes tantos meses passados, penso se não deveria retomá-la — essa rua, essa caminhada, mas sem ele agora — uma tarde, noite ou manhã quaisquer para refazer o percurso inverso até a casa dele, onde nem mora mais. E parado naquela esquina feito espião, contemplar a sacada daquele décimo andar onde costumávamos nos debruçar abraçados para olhar aquela rua lá embaixo sendo aos poucos coberta pelas sombras da tarde furando a copa-túnel das árvores. As sombras que crescem devagar sobre o asfalto quente do verão passado. As sombras, enfim.
II. SOBRE O VULCÃO
No se puede vivir sin amor
(Malcoim Lowry.. Under the Volcano)
(1985)
Naquele tempo, minha única ocupação diária era tentar não morrer. Talvez pareça excessivamente dramático dito assim, mas assim era. Nem sinistra ou espantosa, apenas cotidiana feito xícara de café, janela aberta ou fechada sobre esse espaço vago que chamam de o depois, dentro e fora de mim, a morte estava sempre presente.
Naqueles dias uterinos, gordurosos, naqueles dias amnióticos quando eu não conseguia sequer sair da cama, trinta horas em posição fetal sem dormir nem viver, numa espécie de ensaio geral da treva definitiva deflagrada pela hospitalização de Daniel, pouco mais de quarenta quilos e nódulos púrpuras espalhados pelo corpo quase de criança onde, do antigo, resta%‘am apenas os enormes olhos verdes, e também pelo suicídio de Julia, pulsos cortados e a cabeça enfiada no forno do fogão a gás, vestida de bailarina com tutu
de gaze azul e sapatilhas, depois de ter grafitado em spray rosa-choque no lado de fora da porta da cozinha alguma coisa em espanhol, alguma coisa amarga, alguma coisa assim: no se puede vivir sin amor. Daquele tempo nem tão distante, daqueles dias que até hoje duram às vezes duas, às vezes duzentas horas, restou esta sensação de que, como eles, também me vou tombando rápido dentro da boca de um vulcão aberto sem fôlego nem tempo para repetir como numa justificativa, ou oração, ou mantra, enquanto caio sem salvação no fogo que é verdade, que si, que no, que nadie puede mismo vivir sin amor.
| Por ludelfuego
| | 20:23.
Desde que li em algum livro de biologia que «metâmero é cada um dos anéis do corpo de um verme, e que cada um desses metâmeros pode formar um verme novo’ fiquei fascinado pela idéia de textos que seriam assim como embriões de si mesmos. Se desenvolvidos, poderiam resultar em contos ou até mesmo novelas ou romances. Das dezenas que escrevi, estes dois me parecem os melhores.
1. A PERDA
Quando passo às vezes por aquela esquina, espio sempre a outra rua por trás da igreja. E mesmo sem querer, sem perceber claro o que sinto, lembro daquela tarde em que fui visitá-lo pela última vez, depois voltei caminhando pela rua cheia de árvores tão altas que suas copas se encontram e se misturam no alto, como num túnel redondo, irregular, a pensar coisas que nem lembro mais.
Quando passo por lá assim rapidamente, numa tarde como a de ontem ou outras iguais destes tantos meses passados, penso se não deveria retomá-la — essa rua, essa caminhada, mas sem ele agora — uma tarde, noite ou manhã quaisquer para refazer o percurso inverso até a casa dele, onde nem mora mais. E parado naquela esquina feito espião, contemplar a sacada daquele décimo andar onde costumávamos nos debruçar abraçados para olhar aquela rua lá embaixo sendo aos poucos coberta pelas sombras da tarde furando a copa-túnel das árvores. As sombras que crescem devagar sobre o asfalto quente do verão passado. As sombras, enfim.
II. SOBRE O VULCÃO
No se puede vivir sin amor
(Malcoim Lowry.. Under the Volcano)
(1985)
Naquele tempo, minha única ocupação diária era tentar não morrer. Talvez pareça excessivamente dramático dito assim, mas assim era. Nem sinistra ou espantosa, apenas cotidiana feito xícara de café, janela aberta ou fechada sobre esse espaço vago que chamam de o depois, dentro e fora de mim, a morte estava sempre presente.
Naqueles dias uterinos, gordurosos, naqueles dias amnióticos quando eu não conseguia sequer sair da cama, trinta horas em posição fetal sem dormir nem viver, numa espécie de ensaio geral da treva definitiva deflagrada pela hospitalização de Daniel, pouco mais de quarenta quilos e nódulos púrpuras espalhados pelo corpo quase de criança onde, do antigo, resta%‘am apenas os enormes olhos verdes, e também pelo suicídio de Julia, pulsos cortados e a cabeça enfiada no forno do fogão a gás, vestida de bailarina com tutu
de gaze azul e sapatilhas, depois de ter grafitado em spray rosa-choque no lado de fora da porta da cozinha alguma coisa em espanhol, alguma coisa amarga, alguma coisa assim: no se puede vivir sin amor. Daquele tempo nem tão distante, daqueles dias que até hoje duram às vezes duas, às vezes duzentas horas, restou esta sensação de que, como eles, também me vou tombando rápido dentro da boca de um vulcão aberto sem fôlego nem tempo para repetir como numa justificativa, ou oração, ou mantra, enquanto caio sem salvação no fogo que é verdade, que si, que no, que nadie puede mismo vivir sin amor.
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Escrito em 1991, este conto orginalmentepre_ tendia ser uma reescritura de A Pequena Sereia, de Andersen. Com Os sapatinhos vermelhos (de Os dragões não conhecem o paraíso), mais outras histórias até agora apenas em projeto, formaria um livro chamado Malditas fadas, só com versões de Andersen para adultos”: Com este mesmo título e pequenas modificações, foi publicado no jornal Nicolau.
Viu os frutos do pomar amadurecerem e serem colhidos, viu a neve derreter-se nas montanhas. Mas nunca mais viu o príncipe.
(Andersen: A Pequena Sereia)
Veio num sonho, certa noite. Ela o amava. Ele a amava também. E ainda que essa coisa, o amor, fosse complicada demais para compreender e detalhar nas maneiras tortuosas como acontece, naquele momento em que acontecia dentro do sonho, era simples. Boa, fácil, assim era. Ela gostava de estar com ele, ele gostava de estar com ela. Isso era tudo. Dormiam juntos, no sonho, porque era bom para um e para outro estarem assim juntos, naquele outro espaço. Não vinha nada de fora, nem ninguém. Deitada nua no ombro também nu dele, não havia fatos. Dormiam juntos, apenas. Isso era limpo e nítido no sonho que ela sonhou aquela noite.
Deitada no ombro dele, ela via seu rosto muito próximo. Esse era o sonho, nada mais. E isso, mais tarde saberia, era o único fato do sonho inteiro: via o rosto dele muito próximo. Como um astronauta prestes a desembarcar veria a face da lua, mal reconhecendo o Mar da Serenidade perdido em poeira cinza, assim ela o via naquela proximidade excessiva, quase inumana de tão próxima. Fechasse os olhos — mas não os fecharia, pois já estava dormindo — guardaria contra as pálpebras cerradas um por um dos traços dele. Crateras miúdas com negros fios de barba despontando duros de dentro delas, molhadas gretas polpudas além das quais brilhava o branco duro dos dentes.
Coisas assim, ela via. E de olhos abertos, embora fechados, pois sonhava, protegia-o, protegiam- se no meio da noite. Tão simples, tão claro. E de alguma forma inequívoca, para sempre. Talvez ele tivesse passado um dos braços em tomo da cintura dela, quem sabe ela houvesse deitado uma das mãos sobre o ombro dele, erguendo os dedos até que tocassem no lóbulo de sua orelha. Em todos os dias que se seguiram à noite daquele sonho, e foram muitos, honestamente não saberia localizar outros detalhes. Pois enquanto dormia, naquela noite, tudo era só e apenasmente isso: dormiam juntos.
No centro da noite, no meio do sonho, no outro espaço.
Quase meio-dia da manhã seguinte, e ela não teria sequer a quem telefonar contando. Contando o que, perguntou-se, se nem havia o que contar propriamente? Lavou pratos e copos da noite anterior, folheou jornais, tanta miséria remota, e bocejou então andando pelo apartamento de solteira, metade do corpo ainda dentro do sonho onde ele também habitara. Despistou dois, três telefonemas, desmarcou alguma coisa pela tarde, outra pela noite. Queria ficar dentro de si, e nem importava quem exatamente era ela agora, assim vadia e meio à mercê, pensando só nele. No homem, no sonho. Morta de saudade, quase três da tarde deitou-se na cama ainda meio morna, e fumando na penumbra cortada pelas cintilações da curva da tarde, sentiu falta. Não de alguém morto ou perdido para sempre em viagem, em rompimento definitivo, não essa falta. Outra, nem falta nem saudade, mas coisa parecida e oca, o que ela sentia às três da tarde, fumando no quarto escuro. E sabia que de alguma forma ele continuava ali. Miúdas crateras, gretas polpudas. Em algum ponto da cama, do quarto, da mente, do espaço.
Embalada pelos ruídos da rua, dormiu até quase sete entre sonhos onde ele não surgia, perambulando por histórias que não o traziam de volta. Lavou o rosto, esquentou o frango no microondas, passou café, acendeu um cigarro espiando chatices na tevê — e tcomou a dormir. Custou um pouco. Foi quando, caindo em tentação, tentou quase desesperada lembrar-se — daquela vez, naquela noite — se ele teria mesmo passado um dos braços pela sua cintura, e se esse braço teria pêlos densos, mas macios de tocar, e se a mão dele realmente fechara-se exata e solidária e carinhosa naquele ponto secreto onde, constrangida, ela admitia ter mesmo algumas gordurinhas, e se a mão dela estaria assim meio pousada nos pêlos do peito dele, distendendo dois, três dedos até tocar no lóbulo da orelha. Colado ao rosto, alguém dissera, muita espiritualidade. Ou o contrário? Budas, Cristos, Oxalás, invocou no escuro que ainda guardava certo cheiro do sono anterior onde, nu e homem, ele habitara ao lado dela. Mas sabia que tudo isso — as invenções recentes sobre o outro espaço — era puro artifício.
Sem artifícios, acordou na manhã seguinte. Vazias, ela e a manhã. E procurou o telefone para contar às amigas. “Premonição”, disse uma, “você vai encontrar alguém”; “transporte astral”, disse outra, “você deve tê-lo realmente encontrado numa outra dimensão”; “ah, mera projeção de carências atávicas”, disse mais uma, “no fundo pura falta de sexo”. Algum dia, ela desesperançava, em algum lugar, planejou em seguida, noutro espaço, por trás de tudo, num mundo paralelo, quem sabe: ah, sim, que certamente tornaria a encontrá-lo numa interfreqüêncía de rádio ou televisão, num reflexo do espelho. E às quatro da manhã a surpreenderam com um prato de macarrão frio sobre os joelhos, os olhos postos vesgos nos riscos magnéticos horizontais da tela da tevê. Ele não estava lá. Nos dias seguintes, mesmo aceitando todos os janta-res e cedendo a todos os cinemas e shoppings e pizzarias, pois ele poderia também estar no real — ele também não estava lá. Nem aqui. Em nenhum lugar onde fosse, de fora ou de dentro, nos dias seguintes ao dia em que estivera deitada no ombro dele tão proximamente nu também, no fundo de um sonho, conseguia reencontrá-lo. Pois havia outros detalhes, semanas depois ainda tentava lembrar. Havia um cheiro, por exemplo. Tênue, quase perverso. Intimidade úmida, limpa, nas dobras da carne suada, preservada na própria pele. Feito égua no escuro do quarto, escancarava narinas farejando o macho que a cavalgaria. Deu para pesquisar colônias masculinas, aspirar camisas entreabertas dos homens pelos ônibus, nas filas de bancos e correios, elevadores, essência entre os pêlos, primeiro suor após o banho, reconheceria quando o encontrasse. O cheiro cru, original. Não encontrou. Dilatava as narinas em lugares públicos cheios de homens suados — mas nenhum cheiro era o dele. Rememorava meticulosa: de baixo para cima, rosto pousado no peito dela, assim o vira naquela única vez. E embora o ângulo distorcido, porque era tudo o que tinha, tentava recompô-lo meses — e distorções — depois. Miúdas crateras, fios negros duros de barba despontando — apegava-se à certeza do negros como se fincasse bandeira em território conquistado — e depois as gretas polpudas de um lábio inferior atrás do qual brilhavam alvos dentes brancos. Alvos, repetia. Revistou revistas procurando semelhanças, Gibsons, Hanks, Lamberts, e esforçando o olhar para além dos (cones imaginava identificar um sobrecílio, um pômulo, mas se passara tanto tempo que talvez, a original, a única, que não saberia seria ainda uma memória ou sua Primeira Invernada. Insistia: cílios longos macios. Sem vírgulas longos macios os cílios do homem que a amava e que ela amava também naquela noite e para sempre no meio de um sonho ficando antigo demais e meio disperso.
Invenções Desesperadas, pois, passou a fazer, Íntimas Orgias Imaginárias. Fossas nasais abertas onde ela passava a ponta da língua localizando certo remoto gosto salgado, e a outra mão dela, não aquela pousada no peito dele, mas esta uma que descia à toa pelos pêlos, enroscando-se até a cintura e então o umbigo súbito em certa barriga perdoada, porque ela o amava, e penetrava no umbigo com a ponta da unha vermelha, antes de mergulhar na mata mais abaixo, aquele homem que não era sequer perfeito e por isso mesmo belo, porque a amava e ela a ele, e isso era para sempre apesar do fugaz. Passaram-se meses, ela não o esquecia.
Toda noite, acompanhada ou não — pois ao fim e ao cabo achava, digamos, saudável manter uma vida real-objetiva enquanto ele continuava a acontecer dentro de si, no outro espaço, sem que ninguém soubesse —, abria-se só para ele. E quando os outros reais, objetivos, debruçavam-se sobre ela, virava-os de costas na cama — boca arriba, repetia, como se fora argentina, boca arriba — e encostando o rosto em seus peitos tentava retomar aquele mesmo ângulo entrevisto à beira do pescoço úmido, íntimo, único. Mas nunca outros homens foram, eram nem seriam aquele, e ela sabia que de maneira alguma poderiam ser, ainda que fingisse com o máximo de empenho. Pois, por trás do sonho, resistia o chamado real-impiedoso.
Porra caralho buceta, repetia sozinha. Bruta, vulgar. Afinal, não era essa a forma de procurá-lo, jamais no chamado real-impiedoso. Então voltava a deitar em horas absurdas e a dormir para tentar encontrá-lo no país onde habitava, e nem sabia que reino mais, tão diverso do dela. Todas as noites, um segundo antes de afundar, pensava — onde quer que você esteja, meu príncipe, em qualquer região da minha mente, no mínimo interstício, na fímbria do pensamento, frincha da memória, dobra da fantasia, faixa vibratória passada presente futura, aqui vou eu ao seu encontro, meu bem amado. E nada. Mesmo que alimentasse o hábito de materializar anjos e fadas sentados à beira de sua cama a perguntarem gentis o que desejava mais profunda e loucamente entre todas as coisas da vida inteira, o que mais queria de tudo que existe no universo infinito — e respondesse sempre, singela e sincera: tornar a encontrá-lo —, nunca mais voltou a vê-lo. Nem no sonho, nem na vida. Inúteis cartomantes, trânsitos, runas, ebós. O Valete de Copas traria carta de amor assim que Netuno abandonasse a oposição de Vênus na casa do karma, Peorth anunciaria o reencontro das coisas perdidas se Oxum aceitasse as rosas amarelas jogadas na cachoeira. Nessa região movediça da qual não desacreditava de todo, pois, afinal, fora onde o conhecera — ele também não estava. Delirava insone: quando eu voltar princesa e você gladiador entre feras, quem sabe na arena; quando emergir do fundo das águas para espiar teu reino terrestre e verde, à superfície, quando eu talvez sereia, mulher-maravilha, pastora e astronauta navegando em abismos — quem, quem sabe quando?
Por enquanto, arduamente. era só um cheiro de homem nu flutuando no escuro do quarto, quentura de bicho vivo pulsando junto à quentura de bicho vivo dela. Outra coisa, noutro lugar. Que não ficava aqui, nem lá. Talvez se morresse. O problema é que a vida era agora e era aqui. E além de não estar nem no aqui nem no agora, ele não partia.
Não se matou. Não seria capaz, resistia sempre à ilusão de encontrá-lo um dia. Por isso mesmo houve outros, claro. Algumas iluminações, encontros quase agradáveis até. O engenheiro divorciado, um professor de olhos verdes. Mas aprendeu a ir dormir sempre o mais cedo que pode, pois é nessa faixa que ele habita, ela sabe, a contemplá-la mesmo de olhos fechados. E de tudo que foi restando nesses anos todos, continua sabendo que sabe que fica lá o lugar onde poderia encontrá-lo outra vez. Do outro lado, onde com os olhos abertos ela vê com os olhos fechados e inteiramente nua, encostada ao ombro dele, que dorme inteiramente nu também, mas a vê-la dentro do sono.
Arfam levemente os dois. Ela dorme segura protegida no ombro dele que a protege seguro. Mesmo dormindo, mesmo do lado de cá. E isso é para sempre, por mais que o tempo passe e a afaste cada vez mais dele, que continua eterno naquele segundo em que o viu. E isso ninguém roubará, repete-se, mesmo levando em conta todos aqueles meses de enganos vis que continuam e continuarão a vir depois daquele sonho.
Eu te amo, repete sozinha para o escuro toda noite, pouco antes de seu corpo dissolver-se na espuma do sono, eu te amo. E se pudessem saber, os outros, todos saberiam que isso não deixa de ser uma vitória. Certa espécie de vitória. Mas tão dúbia que parece também uma completa derrota.
Viu os frutos do pomar amadurecerem e serem colhidos, viu a neve derreter-se nas montanhas. Mas nunca mais viu o príncipe.
(Andersen: A Pequena Sereia)
Veio num sonho, certa noite. Ela o amava. Ele a amava também. E ainda que essa coisa, o amor, fosse complicada demais para compreender e detalhar nas maneiras tortuosas como acontece, naquele momento em que acontecia dentro do sonho, era simples. Boa, fácil, assim era. Ela gostava de estar com ele, ele gostava de estar com ela. Isso era tudo. Dormiam juntos, no sonho, porque era bom para um e para outro estarem assim juntos, naquele outro espaço. Não vinha nada de fora, nem ninguém. Deitada nua no ombro também nu dele, não havia fatos. Dormiam juntos, apenas. Isso era limpo e nítido no sonho que ela sonhou aquela noite.
Deitada no ombro dele, ela via seu rosto muito próximo. Esse era o sonho, nada mais. E isso, mais tarde saberia, era o único fato do sonho inteiro: via o rosto dele muito próximo. Como um astronauta prestes a desembarcar veria a face da lua, mal reconhecendo o Mar da Serenidade perdido em poeira cinza, assim ela o via naquela proximidade excessiva, quase inumana de tão próxima. Fechasse os olhos — mas não os fecharia, pois já estava dormindo — guardaria contra as pálpebras cerradas um por um dos traços dele. Crateras miúdas com negros fios de barba despontando duros de dentro delas, molhadas gretas polpudas além das quais brilhava o branco duro dos dentes.
Coisas assim, ela via. E de olhos abertos, embora fechados, pois sonhava, protegia-o, protegiam- se no meio da noite. Tão simples, tão claro. E de alguma forma inequívoca, para sempre. Talvez ele tivesse passado um dos braços em tomo da cintura dela, quem sabe ela houvesse deitado uma das mãos sobre o ombro dele, erguendo os dedos até que tocassem no lóbulo de sua orelha. Em todos os dias que se seguiram à noite daquele sonho, e foram muitos, honestamente não saberia localizar outros detalhes. Pois enquanto dormia, naquela noite, tudo era só e apenasmente isso: dormiam juntos.
No centro da noite, no meio do sonho, no outro espaço.
Quase meio-dia da manhã seguinte, e ela não teria sequer a quem telefonar contando. Contando o que, perguntou-se, se nem havia o que contar propriamente? Lavou pratos e copos da noite anterior, folheou jornais, tanta miséria remota, e bocejou então andando pelo apartamento de solteira, metade do corpo ainda dentro do sonho onde ele também habitara. Despistou dois, três telefonemas, desmarcou alguma coisa pela tarde, outra pela noite. Queria ficar dentro de si, e nem importava quem exatamente era ela agora, assim vadia e meio à mercê, pensando só nele. No homem, no sonho. Morta de saudade, quase três da tarde deitou-se na cama ainda meio morna, e fumando na penumbra cortada pelas cintilações da curva da tarde, sentiu falta. Não de alguém morto ou perdido para sempre em viagem, em rompimento definitivo, não essa falta. Outra, nem falta nem saudade, mas coisa parecida e oca, o que ela sentia às três da tarde, fumando no quarto escuro. E sabia que de alguma forma ele continuava ali. Miúdas crateras, gretas polpudas. Em algum ponto da cama, do quarto, da mente, do espaço.
Embalada pelos ruídos da rua, dormiu até quase sete entre sonhos onde ele não surgia, perambulando por histórias que não o traziam de volta. Lavou o rosto, esquentou o frango no microondas, passou café, acendeu um cigarro espiando chatices na tevê — e tcomou a dormir. Custou um pouco. Foi quando, caindo em tentação, tentou quase desesperada lembrar-se — daquela vez, naquela noite — se ele teria mesmo passado um dos braços pela sua cintura, e se esse braço teria pêlos densos, mas macios de tocar, e se a mão dele realmente fechara-se exata e solidária e carinhosa naquele ponto secreto onde, constrangida, ela admitia ter mesmo algumas gordurinhas, e se a mão dela estaria assim meio pousada nos pêlos do peito dele, distendendo dois, três dedos até tocar no lóbulo da orelha. Colado ao rosto, alguém dissera, muita espiritualidade. Ou o contrário? Budas, Cristos, Oxalás, invocou no escuro que ainda guardava certo cheiro do sono anterior onde, nu e homem, ele habitara ao lado dela. Mas sabia que tudo isso — as invenções recentes sobre o outro espaço — era puro artifício.
Sem artifícios, acordou na manhã seguinte. Vazias, ela e a manhã. E procurou o telefone para contar às amigas. “Premonição”, disse uma, “você vai encontrar alguém”; “transporte astral”, disse outra, “você deve tê-lo realmente encontrado numa outra dimensão”; “ah, mera projeção de carências atávicas”, disse mais uma, “no fundo pura falta de sexo”. Algum dia, ela desesperançava, em algum lugar, planejou em seguida, noutro espaço, por trás de tudo, num mundo paralelo, quem sabe: ah, sim, que certamente tornaria a encontrá-lo numa interfreqüêncía de rádio ou televisão, num reflexo do espelho. E às quatro da manhã a surpreenderam com um prato de macarrão frio sobre os joelhos, os olhos postos vesgos nos riscos magnéticos horizontais da tela da tevê. Ele não estava lá. Nos dias seguintes, mesmo aceitando todos os janta-res e cedendo a todos os cinemas e shoppings e pizzarias, pois ele poderia também estar no real — ele também não estava lá. Nem aqui. Em nenhum lugar onde fosse, de fora ou de dentro, nos dias seguintes ao dia em que estivera deitada no ombro dele tão proximamente nu também, no fundo de um sonho, conseguia reencontrá-lo. Pois havia outros detalhes, semanas depois ainda tentava lembrar. Havia um cheiro, por exemplo. Tênue, quase perverso. Intimidade úmida, limpa, nas dobras da carne suada, preservada na própria pele. Feito égua no escuro do quarto, escancarava narinas farejando o macho que a cavalgaria. Deu para pesquisar colônias masculinas, aspirar camisas entreabertas dos homens pelos ônibus, nas filas de bancos e correios, elevadores, essência entre os pêlos, primeiro suor após o banho, reconheceria quando o encontrasse. O cheiro cru, original. Não encontrou. Dilatava as narinas em lugares públicos cheios de homens suados — mas nenhum cheiro era o dele. Rememorava meticulosa: de baixo para cima, rosto pousado no peito dela, assim o vira naquela única vez. E embora o ângulo distorcido, porque era tudo o que tinha, tentava recompô-lo meses — e distorções — depois. Miúdas crateras, fios negros duros de barba despontando — apegava-se à certeza do negros como se fincasse bandeira em território conquistado — e depois as gretas polpudas de um lábio inferior atrás do qual brilhavam alvos dentes brancos. Alvos, repetia. Revistou revistas procurando semelhanças, Gibsons, Hanks, Lamberts, e esforçando o olhar para além dos (cones imaginava identificar um sobrecílio, um pômulo, mas se passara tanto tempo que talvez, a original, a única, que não saberia seria ainda uma memória ou sua Primeira Invernada. Insistia: cílios longos macios. Sem vírgulas longos macios os cílios do homem que a amava e que ela amava também naquela noite e para sempre no meio de um sonho ficando antigo demais e meio disperso.
Invenções Desesperadas, pois, passou a fazer, Íntimas Orgias Imaginárias. Fossas nasais abertas onde ela passava a ponta da língua localizando certo remoto gosto salgado, e a outra mão dela, não aquela pousada no peito dele, mas esta uma que descia à toa pelos pêlos, enroscando-se até a cintura e então o umbigo súbito em certa barriga perdoada, porque ela o amava, e penetrava no umbigo com a ponta da unha vermelha, antes de mergulhar na mata mais abaixo, aquele homem que não era sequer perfeito e por isso mesmo belo, porque a amava e ela a ele, e isso era para sempre apesar do fugaz. Passaram-se meses, ela não o esquecia.
Toda noite, acompanhada ou não — pois ao fim e ao cabo achava, digamos, saudável manter uma vida real-objetiva enquanto ele continuava a acontecer dentro de si, no outro espaço, sem que ninguém soubesse —, abria-se só para ele. E quando os outros reais, objetivos, debruçavam-se sobre ela, virava-os de costas na cama — boca arriba, repetia, como se fora argentina, boca arriba — e encostando o rosto em seus peitos tentava retomar aquele mesmo ângulo entrevisto à beira do pescoço úmido, íntimo, único. Mas nunca outros homens foram, eram nem seriam aquele, e ela sabia que de maneira alguma poderiam ser, ainda que fingisse com o máximo de empenho. Pois, por trás do sonho, resistia o chamado real-impiedoso.
Porra caralho buceta, repetia sozinha. Bruta, vulgar. Afinal, não era essa a forma de procurá-lo, jamais no chamado real-impiedoso. Então voltava a deitar em horas absurdas e a dormir para tentar encontrá-lo no país onde habitava, e nem sabia que reino mais, tão diverso do dela. Todas as noites, um segundo antes de afundar, pensava — onde quer que você esteja, meu príncipe, em qualquer região da minha mente, no mínimo interstício, na fímbria do pensamento, frincha da memória, dobra da fantasia, faixa vibratória passada presente futura, aqui vou eu ao seu encontro, meu bem amado. E nada. Mesmo que alimentasse o hábito de materializar anjos e fadas sentados à beira de sua cama a perguntarem gentis o que desejava mais profunda e loucamente entre todas as coisas da vida inteira, o que mais queria de tudo que existe no universo infinito — e respondesse sempre, singela e sincera: tornar a encontrá-lo —, nunca mais voltou a vê-lo. Nem no sonho, nem na vida. Inúteis cartomantes, trânsitos, runas, ebós. O Valete de Copas traria carta de amor assim que Netuno abandonasse a oposição de Vênus na casa do karma, Peorth anunciaria o reencontro das coisas perdidas se Oxum aceitasse as rosas amarelas jogadas na cachoeira. Nessa região movediça da qual não desacreditava de todo, pois, afinal, fora onde o conhecera — ele também não estava. Delirava insone: quando eu voltar princesa e você gladiador entre feras, quem sabe na arena; quando emergir do fundo das águas para espiar teu reino terrestre e verde, à superfície, quando eu talvez sereia, mulher-maravilha, pastora e astronauta navegando em abismos — quem, quem sabe quando?
Por enquanto, arduamente. era só um cheiro de homem nu flutuando no escuro do quarto, quentura de bicho vivo pulsando junto à quentura de bicho vivo dela. Outra coisa, noutro lugar. Que não ficava aqui, nem lá. Talvez se morresse. O problema é que a vida era agora e era aqui. E além de não estar nem no aqui nem no agora, ele não partia.
Não se matou. Não seria capaz, resistia sempre à ilusão de encontrá-lo um dia. Por isso mesmo houve outros, claro. Algumas iluminações, encontros quase agradáveis até. O engenheiro divorciado, um professor de olhos verdes. Mas aprendeu a ir dormir sempre o mais cedo que pode, pois é nessa faixa que ele habita, ela sabe, a contemplá-la mesmo de olhos fechados. E de tudo que foi restando nesses anos todos, continua sabendo que sabe que fica lá o lugar onde poderia encontrá-lo outra vez. Do outro lado, onde com os olhos abertos ela vê com os olhos fechados e inteiramente nua, encostada ao ombro dele, que dorme inteiramente nu também, mas a vê-la dentro do sono.
Arfam levemente os dois. Ela dorme segura protegida no ombro dele que a protege seguro. Mesmo dormindo, mesmo do lado de cá. E isso é para sempre, por mais que o tempo passe e a afaste cada vez mais dele, que continua eterno naquele segundo em que o viu. E isso ninguém roubará, repete-se, mesmo levando em conta todos aqueles meses de enganos vis que continuam e continuarão a vir depois daquele sonho.
Eu te amo, repete sozinha para o escuro toda noite, pouco antes de seu corpo dissolver-se na espuma do sono, eu te amo. E se pudessem saber, os outros, todos saberiam que isso não deixa de ser uma vitória. Certa espécie de vitória. Mas tão dúbia que parece também uma completa derrota.
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Para Gilberto Gawronski
Escrito em 1969, é completamente inédito. O título veio de uma música americana chata que, na época não parava de tocar no rádio. Sofreu vagamente alguma influência do realismo-mágico latino_americano, misturado à linguagem “descontraída” deJ. D. Salinger — e talvez justamente por essa mistura e certa gratuidade geral nunca quis publicá-lo. Ao encontrá-lo perdido numa pasta em uma única versão datilografada e toda rasurada à mão, nem me lembrava de tê-lo escrito um dia.
É verdade, sim, que recebi o diário dela. Não é natural que nesses casos a polícia sempre mande os pertences da vítima para o parente mais próximo? Sim, eu tenho vinte e cinco anos e sou, quer dizer, era filho dela. Único filho. O que não sei é se é certo ficarem chamando ela de vítima, e também nem sei se posso chamar de pertences aquelas tralhas da sacola de plástico. E que é muito pouca coisa — apenas o diário, um regador e uma tesoura. Acho que ela estava com uns sessenta anos, mas isso não tem importância nem acrescenta nada, afinal ter sessenta anos não justifica que se tenha como pertences um diário, um regador e uma tesoura. Andar sempre vestida de azul também não justifica nada, e ela andava, quero dizer, ela andava sempre vestida de azul, vocês compreendem? Detesto ficar repetindo essas coisas, mas acontece que eu não sei pensar antes de falar, como a maioria das pessoas, então eu vou falando e só penso depois e às vezes eu só me dou conta que falei alguma coisa que não devia depois de já ter falado, compreendem?
Como, não interessa? Se sou eu que estou falando só posso falar do jeito que eu falo, e quando eu estou falando o que não interessa tem que interessar porque só depois de falar o que não interessa é que posso falar o que interessa. Assim mesmo, quando me dou conta já estou só no que interessa e que, como eu já disse, às vezes não interessa para mim, mas para os outros sim. Estou sempre tomando na bunda com essa mania, que nem é mania, mas um jeito de ser, o quê? Tá bom, respondo, podem perguntar. Sou despachante, sim. Pego papéis, carteiras de identidade, títulos de eleitor, certificados, fotografias 3 x 4, a maioria agora é 5 x 7, os senhores sabem, essas coisas, e encaminho passaportes, erregês, essas coisas. Têm dias que eu fico muito cansado de fila, guichê, carimbo, protocolo, têm dias que chega numa hora que parece que os pés não cabem dentro das meias e dos sapatos e que meus braços estão engordando dentro do paletó, as pernas dentro das calças, das cuecas, o tronco dentro da camiseta, porque eu ando sempre de cueca e camiseta e meias, mesmo no verão, mas troco todo dia. De camisa e gravata eu também ando, e tem horas também que o meu pescoço parece que fica maior que a camisa e que tudo que cobre meu corpo, meu corpo fica maior do que tudo que cobre ele, os senhores entendem?
Aí nessas horas eu pego e sento numa praça, desabotôo tudo, tiro os sapatos, as meias e fico ali sentado, um tempo. As coisas que acontecem numa praça — não precisa nem a gente prestar atenção nelas, elas só vão acontecendo em volta, não importa que ninguém se importe. Uma vez me ofereceram erva, os senhores sabem o que é, não? Pois é, eu não quis, nem sei por que, tem um amigo meu que diz que tudo é bom como experiência, mas tem umas experiências que eu não quero mesmo ter porque acho que tudo vai ficar muito difícil e eu não vou conseguir mais ficar dentro de mim mesmo. Se eu não conseguir mais ficar dentro de mim mesmo eu vou ficar muito sozinho, porque não estou acostumado a ficar fora de mim mesmo, isso eu não sei se os senhores compreendem, porque nem eu compreendo direito. Tem uma história que talvez explique melhor essa coisa de ficar dentro, ficar fora. Outro dia numa dessas praças já era quase noite e não havia mais ninguém, um cara pediu para me chupar o pau. Ele pediu dum jeito muito educado e tudo, era um cara bem vestido, de barba, com um turbante colorido na cabeça, parecia um indiano. Bom, eu pensei, se ele quer tanto chupar o meu pau eu vou mesmo deixar, porque isso não me tira pedaço nenhum e eu posso continuar dentro de mim mesmo sem nem prestar muita atenção no que ele está fazendo. Eu não ia foder com ele nem nada, ia só deixar ele chupar meu pau, e isso de chupar pau nem precisa que você se mexa, os senhores entendem é só deixar o cara fazer e pronto, é só ficar quieto e o cara faz tudo. Por mim a gente tinha feito ali mesmo, mas ele preferiu o banheiro da praça, acho que porque o turbante chamava muita atenção. Tinha uma mancha amarela nos azulejos da parede e eu fiquei olhando, olhando, até que a mancha amarela deixou de ser uma mancha amarela e começou a parecer uma escada que tinha na minha casa, uma escada toda de madeira, cheia daqueles bichinhos, como é mesmo o nome? ah, cupim, isso, uma escada de madeira cheia de cupim que tinha numa casa que era a minha quando eu era criança. Lembro que eu descia pelo corrimão, escorregando, os buracos da madeira e as felpas raspavam nos fundilhos das calças e os fundilhos sempre puíam, puíam até furar, aí a minha mãe cerzia e todas as minhas calças tinham os fundilhos cerzidos porque por mais que a minha mãe reclamasse eu nunca deixava de descer escorregando pelo corrimão. Ela reclamava sem ficar brava, dizia que era coisa de criança, me pegava no colo e não deixava meu pai me bater. Era sempre assim naquela casa com a escada, o meu pai querendo bater em mim e a minha mãe não deixando. Eu não gostava dele, mas não era só porque ele queria bater em mim, é que ele também batia na minha mãe e fazia outras coisas que não achava certas, mesmo quando não sabia direito o que eram.
Que coisas? Bom, uma noite eu desci bem devagar pela escada porque estava com sede e ia até a cozinha quando vi no tapete da sala meu pai e minha tia fazendo uma coisa que eu nunca tinha visto antes. Sentei no degrau e fiquei olhando, eles estavam sem roupa, ele era grande e peludo, com uma coisa dura no meio das pernas e a minha tia dava uns gemidos que parecia que estavam machucando ela, e eu não entendia porque ela ria e virava a cabeça para os lados se parecia sentir tanta dor. Numa dessas vezes que ela virou a cabeça, ela me viu sentado no degrau. Eu saí correndo e me tranquei no quarto por dentro mas não adiantou porque eu sempre sonhava que o meu pai estava me obrigando a chupar aquela coisa dura. Mas nunca nenhum deles falou daquilo comigo, e daí passou um tempo e um dia eu me olhei no espelho e vi que tinha ficado grande e peludo e com aquela coisa dura no meio das pernas, igual meu pai. Foi aí que eu saí de casa e arrumei esse trabalho de despachante e fui morar noutro lugar, porque ela no ia mais gostar de mim se visse que eu tinha ficado parecido com o meu pai, eu podia até querer começar a bater nela também.
Eu já disse que ela andava sempre vestida de azul, não é? Pois é, ela andava sim, e eu achava até bonito ela andar assim, ela dizia que era porque gostava de céu sem nuvens em dia bem claro. O meu pai?
Ah, logo depois que eu fui embora, ele foi embora também, junto com aquela tia. Não, não sei pra onde, nem quero saber e tenho raiva de quem. Mas naquele tempo que eu morava lá não tinha esse regador nem a tesoura, nem o diário. No jardim só tinha rosas, e as rosas tinham morrido todas com uma geada brava de julho e aí ela deu o regador e a tesoura porque não serviam mais pra nada.
Namorada? Não, não tenho não. Tinha umas mulheres que moravam todas juntas numa casa perto da minha, da outra casa sem escada, para onde eu mudei depois que descobri que tinha ficado grande e peludo. Às vezes elas vinham me visitar e queriam fazer aquilo que meu pai fazia com minha tia no tapete. Quer dizer, elas queriam fazer na cama, tinha uma que queria fazer em pé na pia da cozinha, quem queria sempre fazer no tapete era eu. Elas só achavam esquisito e riam, elas riam muito e eu fazia com uma, duas, três, às vezes eu fazia até com as quatro, elas eram quatro. Eu era muito forte naquele tempo, só me sentia fraco quando lembrava que a geada de julho tinha matado todas as rosas no jardim de minha mãe, me enfraquecia tanto lembrar que minha mãe não tinha mais rosas para cuidar, e se ainda tivesse quem sabe de vez em quando ela se vestiria de vermelho, só para combinar, não é?
Aí aquele cara que estava me chupando o pau no banheiro da praça me perguntou por que é que eu estava olhando tanto a mancha amarela, eu falei das rosas e ele perguntou “mas eram rosas amarelas?” e eu disse “não, não, eram vermelhas, ela só gosta de rosas vermelhas”. Então ele disse que tinha gostado muito de mim e que ia ajudar minha mãe, coitada, o dia inteiro vestida de azul, sozinha naquela casa, sem rosa nenhuma pra cuidar. Eu fiquei tão forte de novo que deixei ele me chupar outra vez ali no banheiro da praça, ele gostou mais ainda e os olhos dele brilhavam como os de gato no escuro, tinha as mãos muito finas e os movimentos leves como se estivesse embaralhando cartas, não sei se os senhores compreendem, e tinha também aquele turbante colorido na cabeça e uma barba fina, dentes muito brancos, mais brancos ainda contra aquela pele cor de azeitona e uma tatuagem no pulso em forma de cobra, assim dando a volta no pulso e mordendo a própria cauda. Eu disse que tinha horror de cobra e ele riu com aqueles dentes que pareciam ainda mais brancos naquela pele quase esverdeada e disse “mas não precisa ter medo, não é uma cobra de verdade”.
Foi nesse momento que eu comecei a achar que ele era um sujeito muito inteligente, pois se a cobra não era de verdade eu não precisava ter medo dela, e se eu não precisava ter medo dela também não precisava ter medo dele, certo? Falei isso pra ele e aí ele tirou do bolso de dentro do casaco uma muda de roseira muito pequena e disse assim “toma, leva de presente para a tua mãe”. Isso foi na segunda-feira passada, eu saí dali e levei imediatamente para a minha mãe, depois fui para a minha outra casa e não voltei mais lá.
O que eu quero dizer, mas acho que os senhores não compreendem mesmo, é que não tenho culpa nenhuma. A única coisa que fiz foi dar aquela muda de presente para a minha mãe, como ele disse, porque achei que ela ficaria feliz, e ficou, e eu também fiquei quando vi que ela ficou. Ele parecia um sujeito decente, bem vestido, educado, parecia estrangeiro, talvez indiano com aquele turbante colorido. Como é que eu podia saber que aquelas rosas eram carnívoras?
Escrito em 1969, é completamente inédito. O título veio de uma música americana chata que, na época não parava de tocar no rádio. Sofreu vagamente alguma influência do realismo-mágico latino_americano, misturado à linguagem “descontraída” deJ. D. Salinger — e talvez justamente por essa mistura e certa gratuidade geral nunca quis publicá-lo. Ao encontrá-lo perdido numa pasta em uma única versão datilografada e toda rasurada à mão, nem me lembrava de tê-lo escrito um dia.
É verdade, sim, que recebi o diário dela. Não é natural que nesses casos a polícia sempre mande os pertences da vítima para o parente mais próximo? Sim, eu tenho vinte e cinco anos e sou, quer dizer, era filho dela. Único filho. O que não sei é se é certo ficarem chamando ela de vítima, e também nem sei se posso chamar de pertences aquelas tralhas da sacola de plástico. E que é muito pouca coisa — apenas o diário, um regador e uma tesoura. Acho que ela estava com uns sessenta anos, mas isso não tem importância nem acrescenta nada, afinal ter sessenta anos não justifica que se tenha como pertences um diário, um regador e uma tesoura. Andar sempre vestida de azul também não justifica nada, e ela andava, quero dizer, ela andava sempre vestida de azul, vocês compreendem? Detesto ficar repetindo essas coisas, mas acontece que eu não sei pensar antes de falar, como a maioria das pessoas, então eu vou falando e só penso depois e às vezes eu só me dou conta que falei alguma coisa que não devia depois de já ter falado, compreendem?
Como, não interessa? Se sou eu que estou falando só posso falar do jeito que eu falo, e quando eu estou falando o que não interessa tem que interessar porque só depois de falar o que não interessa é que posso falar o que interessa. Assim mesmo, quando me dou conta já estou só no que interessa e que, como eu já disse, às vezes não interessa para mim, mas para os outros sim. Estou sempre tomando na bunda com essa mania, que nem é mania, mas um jeito de ser, o quê? Tá bom, respondo, podem perguntar. Sou despachante, sim. Pego papéis, carteiras de identidade, títulos de eleitor, certificados, fotografias 3 x 4, a maioria agora é 5 x 7, os senhores sabem, essas coisas, e encaminho passaportes, erregês, essas coisas. Têm dias que eu fico muito cansado de fila, guichê, carimbo, protocolo, têm dias que chega numa hora que parece que os pés não cabem dentro das meias e dos sapatos e que meus braços estão engordando dentro do paletó, as pernas dentro das calças, das cuecas, o tronco dentro da camiseta, porque eu ando sempre de cueca e camiseta e meias, mesmo no verão, mas troco todo dia. De camisa e gravata eu também ando, e tem horas também que o meu pescoço parece que fica maior que a camisa e que tudo que cobre meu corpo, meu corpo fica maior do que tudo que cobre ele, os senhores entendem?
Aí nessas horas eu pego e sento numa praça, desabotôo tudo, tiro os sapatos, as meias e fico ali sentado, um tempo. As coisas que acontecem numa praça — não precisa nem a gente prestar atenção nelas, elas só vão acontecendo em volta, não importa que ninguém se importe. Uma vez me ofereceram erva, os senhores sabem o que é, não? Pois é, eu não quis, nem sei por que, tem um amigo meu que diz que tudo é bom como experiência, mas tem umas experiências que eu não quero mesmo ter porque acho que tudo vai ficar muito difícil e eu não vou conseguir mais ficar dentro de mim mesmo. Se eu não conseguir mais ficar dentro de mim mesmo eu vou ficar muito sozinho, porque não estou acostumado a ficar fora de mim mesmo, isso eu não sei se os senhores compreendem, porque nem eu compreendo direito. Tem uma história que talvez explique melhor essa coisa de ficar dentro, ficar fora. Outro dia numa dessas praças já era quase noite e não havia mais ninguém, um cara pediu para me chupar o pau. Ele pediu dum jeito muito educado e tudo, era um cara bem vestido, de barba, com um turbante colorido na cabeça, parecia um indiano. Bom, eu pensei, se ele quer tanto chupar o meu pau eu vou mesmo deixar, porque isso não me tira pedaço nenhum e eu posso continuar dentro de mim mesmo sem nem prestar muita atenção no que ele está fazendo. Eu não ia foder com ele nem nada, ia só deixar ele chupar meu pau, e isso de chupar pau nem precisa que você se mexa, os senhores entendem é só deixar o cara fazer e pronto, é só ficar quieto e o cara faz tudo. Por mim a gente tinha feito ali mesmo, mas ele preferiu o banheiro da praça, acho que porque o turbante chamava muita atenção. Tinha uma mancha amarela nos azulejos da parede e eu fiquei olhando, olhando, até que a mancha amarela deixou de ser uma mancha amarela e começou a parecer uma escada que tinha na minha casa, uma escada toda de madeira, cheia daqueles bichinhos, como é mesmo o nome? ah, cupim, isso, uma escada de madeira cheia de cupim que tinha numa casa que era a minha quando eu era criança. Lembro que eu descia pelo corrimão, escorregando, os buracos da madeira e as felpas raspavam nos fundilhos das calças e os fundilhos sempre puíam, puíam até furar, aí a minha mãe cerzia e todas as minhas calças tinham os fundilhos cerzidos porque por mais que a minha mãe reclamasse eu nunca deixava de descer escorregando pelo corrimão. Ela reclamava sem ficar brava, dizia que era coisa de criança, me pegava no colo e não deixava meu pai me bater. Era sempre assim naquela casa com a escada, o meu pai querendo bater em mim e a minha mãe não deixando. Eu não gostava dele, mas não era só porque ele queria bater em mim, é que ele também batia na minha mãe e fazia outras coisas que não achava certas, mesmo quando não sabia direito o que eram.
Que coisas? Bom, uma noite eu desci bem devagar pela escada porque estava com sede e ia até a cozinha quando vi no tapete da sala meu pai e minha tia fazendo uma coisa que eu nunca tinha visto antes. Sentei no degrau e fiquei olhando, eles estavam sem roupa, ele era grande e peludo, com uma coisa dura no meio das pernas e a minha tia dava uns gemidos que parecia que estavam machucando ela, e eu não entendia porque ela ria e virava a cabeça para os lados se parecia sentir tanta dor. Numa dessas vezes que ela virou a cabeça, ela me viu sentado no degrau. Eu saí correndo e me tranquei no quarto por dentro mas não adiantou porque eu sempre sonhava que o meu pai estava me obrigando a chupar aquela coisa dura. Mas nunca nenhum deles falou daquilo comigo, e daí passou um tempo e um dia eu me olhei no espelho e vi que tinha ficado grande e peludo e com aquela coisa dura no meio das pernas, igual meu pai. Foi aí que eu saí de casa e arrumei esse trabalho de despachante e fui morar noutro lugar, porque ela no ia mais gostar de mim se visse que eu tinha ficado parecido com o meu pai, eu podia até querer começar a bater nela também.
Eu já disse que ela andava sempre vestida de azul, não é? Pois é, ela andava sim, e eu achava até bonito ela andar assim, ela dizia que era porque gostava de céu sem nuvens em dia bem claro. O meu pai?
Ah, logo depois que eu fui embora, ele foi embora também, junto com aquela tia. Não, não sei pra onde, nem quero saber e tenho raiva de quem. Mas naquele tempo que eu morava lá não tinha esse regador nem a tesoura, nem o diário. No jardim só tinha rosas, e as rosas tinham morrido todas com uma geada brava de julho e aí ela deu o regador e a tesoura porque não serviam mais pra nada.
Namorada? Não, não tenho não. Tinha umas mulheres que moravam todas juntas numa casa perto da minha, da outra casa sem escada, para onde eu mudei depois que descobri que tinha ficado grande e peludo. Às vezes elas vinham me visitar e queriam fazer aquilo que meu pai fazia com minha tia no tapete. Quer dizer, elas queriam fazer na cama, tinha uma que queria fazer em pé na pia da cozinha, quem queria sempre fazer no tapete era eu. Elas só achavam esquisito e riam, elas riam muito e eu fazia com uma, duas, três, às vezes eu fazia até com as quatro, elas eram quatro. Eu era muito forte naquele tempo, só me sentia fraco quando lembrava que a geada de julho tinha matado todas as rosas no jardim de minha mãe, me enfraquecia tanto lembrar que minha mãe não tinha mais rosas para cuidar, e se ainda tivesse quem sabe de vez em quando ela se vestiria de vermelho, só para combinar, não é?
Aí aquele cara que estava me chupando o pau no banheiro da praça me perguntou por que é que eu estava olhando tanto a mancha amarela, eu falei das rosas e ele perguntou “mas eram rosas amarelas?” e eu disse “não, não, eram vermelhas, ela só gosta de rosas vermelhas”. Então ele disse que tinha gostado muito de mim e que ia ajudar minha mãe, coitada, o dia inteiro vestida de azul, sozinha naquela casa, sem rosa nenhuma pra cuidar. Eu fiquei tão forte de novo que deixei ele me chupar outra vez ali no banheiro da praça, ele gostou mais ainda e os olhos dele brilhavam como os de gato no escuro, tinha as mãos muito finas e os movimentos leves como se estivesse embaralhando cartas, não sei se os senhores compreendem, e tinha também aquele turbante colorido na cabeça e uma barba fina, dentes muito brancos, mais brancos ainda contra aquela pele cor de azeitona e uma tatuagem no pulso em forma de cobra, assim dando a volta no pulso e mordendo a própria cauda. Eu disse que tinha horror de cobra e ele riu com aqueles dentes que pareciam ainda mais brancos naquela pele quase esverdeada e disse “mas não precisa ter medo, não é uma cobra de verdade”.
Foi nesse momento que eu comecei a achar que ele era um sujeito muito inteligente, pois se a cobra não era de verdade eu não precisava ter medo dela, e se eu não precisava ter medo dela também não precisava ter medo dele, certo? Falei isso pra ele e aí ele tirou do bolso de dentro do casaco uma muda de roseira muito pequena e disse assim “toma, leva de presente para a tua mãe”. Isso foi na segunda-feira passada, eu saí dali e levei imediatamente para a minha mãe, depois fui para a minha outra casa e não voltei mais lá.
O que eu quero dizer, mas acho que os senhores não compreendem mesmo, é que não tenho culpa nenhuma. A única coisa que fiz foi dar aquela muda de presente para a minha mãe, como ele disse, porque achei que ela ficaria feliz, e ficou, e eu também fiquei quando vi que ela ficou. Ele parecia um sujeito decente, bem vestido, educado, parecia estrangeiro, talvez indiano com aquele turbante colorido. Como é que eu podia saber que aquelas rosas eram carnívoras?
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Para Sandra Laporta e Homero Paim Filho.
De vários fragmentos escritos em Londres em 1974 nasceu este diário, em parte verdadeiro, em parte ficção. Hesitei muito em publicá-lo — não parece ronto’ há dentro dele várias linhas que se cruzam sem continuidade, como se fosse feito de bolhas. De qualquer forma, talvez consiga documentar aquele tempo com alguma intensidade, e isso quem sabe pode ser uma espécie de qualidade?
27 de janeiro
Encontrei este caderno numa squatter-house em Victoria, ontem à noite. Foi enviado da Índia para Mr. John Schwyer Gummer, estava ainda dentro do envelope, mas o endereço na Índia manchou de umidade e mofo, só dá para ler “Calcutá”. Será um aviso? Sylvia diz que “a Índia está chamando”. Encontramos também um cara chamado Jack, especializado em squatters: e trambiques tipo instalações ilegais de luz, água e gás, que vai nos ajudar a descolar casa. Zé apelidou-o de “Jack, o Esquarteador”. Fala um cockney quase incompreensível. Espero que consiga mesmo a casa, a polícia nos deu um prazo até amanhã ao meio-dia para sairmos da Bravington Road. Mas gostei do caderno. Reproduzo o desenho que Angie mandou da prisão. Fica sendo a epígrafe.
28 de janeiro
Hoje é dia de mudar de casa, de rua, de vida. As malas sufocam os corredores. Pelo chão restam plumas amassadas, restos de purpurina, frangalhos de echarpes indianas roubadas, pontas de cigarro (Players Number Six, o mais barato). Chico toca violão e canta London, London: no, nowhere to go. Poucos ainda sorriem e olham nos olhos. Hoje é dia, mais uma vez, de mudar de casa e de vida. Os olhos buscam signos, avisos, o coração resiste (até quando?) e o rosto se banha de estrelas dormidas de ontem, estrelas vagabundas encontradas pelas latas de lixo abundantes de London, London, Babylon City. Alguém pergunta: “O que é que se diz quando se está precisando morrer?” Eu não digo nada, é a minha resposta. Sento no chão e contemplo os escombros de Sodoma e Gomorra: brava Bravington Road, bye, bye.
Amanhã é dia de nascer de novo. Para outra morte. Hoje é dia de esperar que o verde deste quase fim de inverno aqueça os parques gelados, as ruas vazias, as mentes exaustas de bad trips. Hoje é dia de não tentar compreender absolutamente nada, não lançar âncoras para o futuro. Estamos encalhados sobre estas malas e tapetes com nossos vinte anos de amor desperdiçado, longe do país que não nos quis. Mas amanhã será quem sabe o acerto de contas e Jesuzinho nos pagará todas as dívidas? Só que já não sei se ainda acredito nele. Tão completamente sento e espero que quase acredito ir além deste estar sentado no meio de escombros, here and now esperando Zé chegar com a noticia de que conseguiu a casa graças aos poderes de Jack na região de Victoria, Pimlico. Só espero, não penso nada. Tento me concentrar numa daquelas sensações antigas como alegria ou fé ou esperança. Mas só fico aqui parado, sem sentir nada, sem pedir nada, sem querer nada.
As crianças sujas e ranhentas da casa ao lado vêm perguntar se somos ciganos: are you gipsies? Sylvia mente que sim —from Yugoslavia, diz, agita no ar o pandeirinho com fitas e finge dançar e ler as linhas das mãos das crianças. Gosto tanto desse jeito que Sylvia tem de aliviar as coisas. Meu coração vai batendo devagar como uma borboleta suja sobre este jardim de trapos esgarçados em cujas malhas se prendem e se perdem os restos coloridos da vida que se leva. Vida? Bem, seja lá o que for isto que temos...
30 de janeiro
Metade dos moradores da Bravington Road nos traiu. Já haviam conseguido outra casa ali perto, em Ladbroke Grove, sem nos dizer nada. Felizmente a amizade de Zé com Jack, o Esquarteador, rendeu esta casa em Victoria. São cinco andares, contando o sótão onde fiquei, mas não há aquecimento e luz só no basement. Mas se não tivéssemos conseguido esta, ficaríamos na rua. Que amigos. E acompanharam todo nosso sofrimento, com as malas na calçada, na chuva, com medo da polícia.
Disseram que Angie sai amanhã da prisão. E que irá para a casa de Ladbroke Grove, viver com Deborah.
31 de janeiro
(Carta do espaço sideral para não ser enviada a Angie)
“Vem, que eu quero te mostrar o papel cheio de rosas nas paredes do meu novo quarto, no último andar, de onde se pode ver pela pequena janela a torre de uma igreja. Quero te conduzir pela mão pelas escadas dos quatro andares com uma vela roxa iluminando o caminho para te mostrar as plumas roubadas no vaso de cerâmica, até abrir a janela para que entre o vento frio e sempre um pouco sujo desta cidade. Vem, para subirmos no telhado e, lá do alto, nosso olhar consiga ultrapassar a torre da igreja para encontrar os horizontes que nunca se vêem, nesta cidade onde estamos presos e livres, soltos e amarrados. Quero controlar nervoso o relógio, mil vezes por minuto, antes de ouvir o ranger dos teus sapatos amarelos sobre a madeira dos degraus e então levantar brusco para abrir a porta, construindo no rosto um ar natural e vagamente ocupado, como se tivesse sido interrompido em meio a qualquer coisa não muito importante, mas que você me sentisse um pouco distante e tivesse pressa em me chamar outra vez para perto, para baixo ou para cima, não sei, e então você ensaiasse um gesto feito um toque para chegar mais perto, apenas para chegar mais perto, um pouco mais perto de mim. Então quero que você venha para deitar comigo no meu quarto novo, para ver minha paisagem além dajanela, que agora é outra, quero inaugurar meu novo estar-dentro-de-mim ao teu lado, aqui, sob este teto curvo e quebrado, entre estas paredes cobertas de guirlandas de rosas desbotadas. Vem para que eu possa acender incenso do Nepal, velas da Suécia na beira- da da janela, fechar charos de haxixe marroquino, abrir armários, mostrar fotografias, contar dos meus muitos ou poucos passados, futuros possíveis ou presentes impossíveis, dos meus muitos ou nenhuns eus. Vem para que eu possa recuperar sorrisos, pintar teu olho escuro com kol, salpicar tua cara com purpurina dourada, rezar, gritar, cantar, fazer qualquer coisa, desde que você venha, para que meu coração não permaneça esse poço frio sem lua refletida. Porque nada mais sou além de chamar você agora, porque tenho medo e estou sozinho, porque não tenho medo e não estou sozinho, porque não, porque sim, vem e me leva outra vez para aquele país distante onde as coisas eram tão reais e um pouco assustadoras dentro da sua ameaça constante, mas onde existe um verde imaginado, encantado, perdido. Vem, então, e me leva de volta para o lado de lá do oceano de onde viemos os dois.”
4 de fevereiro
Há tendas árabes pelos quartos, velas acesas nas escadas e a loucura arreganhando seus dentes de jade em cada canto da casa. Para não fazer parte disso, eu quis morrer, quis ir embora, quis perder para sempre a memória, estas memórias de sangue e rosas, drogas e arame farpado, príncipes e panos indianos, roubos e fadas, lixo e purpurina.
5 de fevereiro
Eu estava no alto da escada quando bateram à porta da rua. Comecei a descer enrolado no xale roxo das bad trips, não há aquecimento, faz muito frio fora dos quartos. Antes que eu descesse, empurraram a porta e entraram, estava aberta. Era um grupo grande, na frente deles Angie e Deborah, de mãos dadas. Eu continuei parado, eles vieram vindo pelo corredor. Mas talvez pelo ácido de ontem, ainda, ou pelo choque, não sei, quem sabe até pela fome — eu tinha a impressão de que quanto mais se aproximavam, mais se afastavam. Como se a cada passo que dessem o corredor aumentasse um pouco.
Sem Angie, pensei, sem Angie não irei mais à Espanha. E não há nenhum sentido em estar aqui.
8 de fevereiro
Chorei três horas, depois dormi dois dias.
Parece incrível ainda estar vivo quando já não se acredita em mais nada. Olhar, quando já não se acredita no que se vê. E não sentir dor nem medo porque atingiram seu limite. E não ter nada além deste amplo vazio que poderei preencher como quiser ou deixá-lo assim, sozinho em si mesmo, completo, total. Até a próxima morte, que qualquer nascimento pressagia.
11 de fevereiro
Segunda-feira, vida nova. Sylvia me acordou às quatro da manhã para irmos com Zé até Earl’s Court tentar conseguir trabalho na fábrica. Ninguém tinha dinheiro para café nem nada. Faz muito frio, os automóveis têm uma camada de gelo em cima. Compramos o ticket do metrô, essa hora é perigoso andar sem pagar, tem muita fiscalização. Eles passaram a roleta e me chamaram. Eu ia enfiar o ticket na máquina, mas foi então que percebi que não suportava mais. As pessoas me empurravam querendo passar, o trem chegou, Sylvia e Zé perguntavam do outro lado: “Você não vem? Você não vem?” Sem pensar, gritei: “Não, eu vou voltar para o Brasil”. Não planejei dizer aquilo, não planejei decidir nada. Quando vi, já tinha dito, já tinha decidido. No caminho de volta apanhei uma garrafa de leite numa porta. Um carro da polícia parou do lado. Meu passaporte está preso no Home Office, só tenho uma carta deles, toda rasgada. Quiseram saber mais, eu disse que era squatter ficaram excitadíssimos. Falei que era Brazilian e foi pior. O rato deu uma cuspida e rosnou: “Oh, Brazilian, South America? 1 know that kind o! people... “ Mandou que eu tirasse os tênis, as meias, me deixou completamente descalço no cimento gelado, me revistou inteiro. Fiquei puto e perguntei se ele não queria vir até aqui, disse que tínhamos montes de drogas, armas e bombas. Ligou um radinho, falou não sei com quem. Queria saber onde eu tinha comprado a garrafa deleite. Lembrei de um supermercado em Earl’s Court que fica aberto a noite toda, menti que tinha sido lá. Ele disse que àquela hora estava fechado. Garanti que não, sabia que não fecha nunca, no Natal costumávamos ir lá toda noite roubar macarrão. Ele pediu a nota de compra. Falei que tinha jogado fora.
A humilhação durou quase uma hora. Enfim me soltou e mandou que saísse do país: “0ff’ You’re not ekome here!” Eu disse que estava justamente vindo ra casa escrever uma carta pedindo passagem de volta. Era verdade.
13 de fevereiro
Chico me deu uma chaleira daquelas que apitam quando a água está prestes a ferver, com um coador de metal dentro para o chá. E muito engraçada, redonda e solene, nós a batizamos de Rudolpha Elizabeth, the First. Tínhamos apanhado alguns móveis numa casa vizinha que parecia abandonada, a chaleira estava na cozinha. Estávamos tomando o primeiro Earl Grey preparado em Rudolpha quando chegaram o dono da tal casa, furioso, a polícia pedindo passaporte, cães pastores farejando tudo. Devolvemos os móveis, Rudolpha não.
A polícia e os cães se foram, o homem não, parecia muito curioso com tudo. Tirou do bolso uma garrafinha de scotch e ficou bebendo e pedindo para que cantássemos Blue Moon. Cantamos várias vezes, ele cantava junto e sempre queria mais.
14 de fevereiro
Acho que foi efeito do homem que gostava de Blue Moon. Cantamos na rua em Piccadilly e Trafalgar Square. Deu vinte libras. Nosso maior sucesso é La Bamba, depois Preta, Pretinha, dos Novos Baia- nos. Toco maracas, Zé violão, Chico bongô e Sylvia o pandeirinho de fitas. La Baja dança e canta.
16 de fevereiro
Apareceu ópio, não sei de onde. Fumamos, alguns vomitaram. Fiquei deitado, imóvel. Tudo parecia perfeito. Mas qualquer movimento mais brusco ameaçava a perfeição, era preciso mover-se muito devagar. Acho que peguei o jeito, devo ter vocação para opiômano. Sem me mover, as mãos cruzadas no peito, havia às vezes como umas ondas de cetim envolvendo tudo, arabescos orientais no teto, nas paredes. Não era bom nem mau: era apenas perfeito, sem pensamentos nem aflições, eu poderia ficar para sempre ali naquela espécie não exatamente de morte, mas de vida suspensa. Mas depois inventaram de cheirar heroína e, claro, não resisti, cheirei também. Acabou a perfeição do ópio, veio a náusea. Vomitei loucamente e só, sem sentir nada além de mal-estar.
20 de fevereiro
Zé recebeu a indenização da fábrica, de quando tinha cortado a mão, pegou todo o dinheiro e, sem contar para ninguém, comprou uma passagem para o Brasil. Volta hoje, todo mundo está triste. De certa forma, era o melhor de nós. Sem Zé, não teremos mais fotos nem pão quente roubado de manhã cedo.
22 de fevereiro
Mona também se foi para Paris, vai tentar arrumar trabalho por lá. “Enchi desse miserê”, disse. Ficamos todos meio ofendidos.
A casa inteira resfriada, O dinheiro vindo do Brasil dançou quase todo, ainda bem que eu tinha comprado bastante arroz integral. Com os palitos de madeira, mastigo trinta vezes cada porção. Dá para parar de pensar.
Cacá me expulsou do quarto no sótão, Sylvia disse que posso ficar num canto do quarto dela, que é muito grande. Helô diz que Cacá anda transando com o demônio, fazendo trabalhos com espelhos. Jogou um Tarot para confirmar, mas não deu nada.
23 de fevereiro
Com tanta gente indo embora, ficou um quarto vazio em cima. Pensei em mudar para lá, mas me dou bem com Sylvia e vieram morar uns franceses heroinômanos, amigos não sei de quem. Andam sempre de preto, só saem à noite e não dá para saber ao certo quantos são. Não falam com ninguém, nã,o fazem nenhum barulho, nunca. Parecem sombras.
25 de fevereiro
Essa morte constante das coisas é o que mais dói.
Não quero ser a carpideira do meu tempo. Mesmo encontrando todos os dias pelas escadas os devotos de Morfeu, com suas caras verdes, suas veias machucadas. Amanhã alguém nos cantará. Um rock de horror?
Depois de todas as tempestades e naufrágios, o que fica de mim em mim é cada vez mais essencial e verdadeiro.
Inverno aqui se escreve com F. E a gente entende por que todas aquelas histórias góticas, Frankenstein, Drácula, nasceram aqui. Na esquina, a igreja com o cemitério ao lado, cheio de lápides corroídas, é o perfeito cenário de um filme de horror. Roubamos do altar velas longas, amareladas, lindas.
Sem data
Deborah e Angie, me disseram, estão juntando dinheiro para ir para a Grécia.
Sem data
Grafitado num muro em St. Johns Wood:
“Flower-power is died!”
Sem data
Escuta aqui, cara, tua dor não me importa. Estou cagando montes pras tuas memórias, pras tuas culpas, pras tuas saudades. As pessoas estão enlouquecendo, sendo presas, indo para o exflio, morrendo de overdose e você fica aí pelos cantos choramingando o seu amor perdido. Foda-se o seu amor perdido. Foda-se esse rei-ego absoluto. Foda-se a sua dor pessoal, esse seu ovo mesquinho e fechado.
Sem data
Claro, o dia de amanhã cuidará do dia de amanhã e tudo chegará no tempo exato. Mas e o dia de hoje?
Só quero ir indo junto com as coisas, ir sendo junto com elas, ao mesmo tempo, até um lugar que não sei onde fica, e que você até pode chamar de morte, mas eu chamo apenas de porto.
2 de março
Chorar por tudo que se perdeu, por tudo que apenas ameaçou e não chegou a ser, pelo que perdi de mim, pelo ontem morto, pelo hoje sujo, pelo amanhã que não existe, pelo muito que amei e não me amaram, pelo que tentei ser correto e não foram comigo. Meu coração sangra com uma dor que não consigo comunicar a ninguém, recuso todos os toques e .ignoro todas as tentativas de aproximação. Tenho vontade de gritar que esta dor é só minha, de pedir que me deixem em paz e só com ela, como um cão com seu osso.
A única magia que existe é estarmos vivos e não entendermos nada disso. A única magia que existe é a nossa incompreensão.
11 de março
Louco de speed, hash e solidão. Mudar, partir, ficar. Fomos despejados novamente, nos deram três dias de prazo. Vontade de ler Carlos Drummond de
Andrade:
Tudo somado, devias precipitar-te — de vez — nas águas.
Estás nu na areia, no vento...
Dorme, meu filho.
A casa agonizante. As pessoas andando pelo escuro, velas nas mãos, como fantasmas. Ou como crianças perdidas. Vontade de fugir para não ver esses — quantos? vinte, trinta? — olhos assustados pelas escadas, essas vozes baixas, esses sons ingleses, espanhóis, portugueses, franceses. Não ver, não ouvir, não tocar, não sentir.
O frio entra pelas frestas das portas e janelas. Tirados os panos das paredes e todos os disfarces, tudo fica feio, miserável. Alguém cagou dentro da banheira. Há montes de lixo pelas escadas e corredores. Fomos expulsos, não vale a pena arrumar mais nada, limpar mais nada. Esse lixo espalhado pela casa são os nossos sonhos usados, gastos, perdidos. Sinto ódio, não sei exatamente de quem ou de quê. O estômago vazio há mais de trinta horas, os cigarros filados aqui e ali, o dente quebrado em plena bad trip. Quero outra vez um quarto todo branco e um par de asas. Mesmo de papelão.
13 de março
Segundo dia na escola de belas-artes. Estou exausto. Keep still yourself— still like that— can you move your face?— turn lefl, please. Gentis e distantes, sou pouco mais que um objeto até o take a rest que recebo com alívio. Mr. Graham pediu que posasse das 18h às 21h, já tinha posado das 9h às 18h.
Mas aceito, à noite pagam melhor. Precisávamos ir ver umas squatter-houses em Paddington, não vou aparecer nem tem telefone para avisar. Temos que mudar até amanhã. Tudo vai mal. Até arrumar este trabalho, Sylvia me pagou alguma comida. Só penso em voltar, lá não há liberdade, mas tem sol. E comida.
14 de março
A sensação é de estar afundando na areia movediça. No lodo.
O professor de desenho me vê com um livro de reproduções de Magritte na hora do almoço e diz que Magritte pintava sonhos, e que é impossível ter sonhos às seis da manhã numa estação de metrô. Me surpreendo arranj ando energia para contestar. E digo no meu inglês péssimo que se a realidade nos alimenta com lixo, a mente pode nos alimentar com flores. Talvez porque eu mesmo tome metrô todo dia às seis da manhã para fazer todas as conexões e chegar a Aldgate, com Magritte embaixo do braço. Estamos sem casa. Saio daqui às quatro e encontro com Hermes na porta da casa velha de Victoria para irmos — onde?
Minha aparência é péssima, a mente e o corpo exaustos. Mas existe uma tranqüilidade estranha. Não tenho mais nada a perder. Não sabia que o mundo era assim duro, assim sujo. Agora sei. Tenho apenas essa consciência, que só a loucura ou uma lavagem cerebral poderiam turvar. Sobrevivo todos os dias à morte de mim mesmo. Sinto como uma virilidade correndo no sangue.
15 de março
Sonhei. Há muito não sonhava. Havia uma festa. Era um lugar agradável, ao ar livre, um parque ou um jardim. Quando eu vinha embora Pablo pediu que esperasse por ele, mas eu estava interessado em outras coisas e não dei muita atenção. Era noite, eu vestia a capa preta marroquina. Na rua, um homem tentava voar numa máquina com asas, como aquelas engenhocas de Leonardo da Vinci. Havia um incêndio numa casa próxima, muitas pessoas corriam. Eu não estava interessado. Encontrei Deborah, empurrando um carrinho de bebê com um adulto dentro. Ela disse: “Vou embora para o Brasil. Angie vai ficar. Eu vou escrever de lá”. Eu continuei andando, preocupado com Pablo, se estaria me esperando ou não. Segurei as pontas da capa marroquina e comecei a correr como se quisesse voar. Era bom. As pessoas apontavam e diziam: “Look at him: he s tryng tofly!” De repente um policial me segurou pelo capuz e perguntou por que eu estava correndo. Respondi agressivo: “Just because 1 like it!” Ele sorriu e me soltou. Continuei correndo, tentando voar. No começo de uma colina parei e olhei para o céu. E vi a lua, em quarto-crescente, bem ao lado de Saturno. Era muito bonito. Fiquei maravilhado e pensei que coisas extraordinárias deveriam estar acontecendo com aquela conjunção. Nesse momento uma estrela caiu. Pensei em fazer um pedido, mas a estrela já sumira, e eu sabia que o pedido só valia enquanto ela estivesse visível. Mesmo assim, pedi: que Pablo ainda estivesse me esperando. Comecei a subir os degraus que levavam à nossa casa de Victoria, que estava no alto da colina. Os degraus de pedra eram irregulares e muito gastos, sobre eles havia várias velas, algumas acesas. Apanhei uma delas e entrei na casa. A sala estava cheia de móveis antigos, com aquela luz azulada da lua e de Saturno entrando pelas vidraças. De um andar superior vinha música, acho que era Angie, com Mick Jagger. Subi as escadas e encontrei um desconhecido sentado, lendo. Falei a ele sobre a lua e Saturno, mas não pareceu interessado. Então tomei-o pelo braço e levei-o até o terraço. Apontei o céu. Nesse momento algumas nuvens cobriram a lua, e ele não viu nada. Sacudiu os ombros, voltou a entrar, a sentar e a ler. Fiquei irritado, chamei-o de yourfiscking bastard! várias vezes, mas ele não me deu atenção. Não havia mais ninguém em casa. Pensei em Pablo, queria muito que estivesse me esperando para mostrar-lhe a lua e Saturno. Comecei a subir para meu quarto, procurando por ele. Acordei.
15 de março
Estou sozinho num flat recém-invadido. Um homem com uma arma queria nos mandar embora. Não fomos. São vários flats num prédio grande, há uma organização underground de squatters tentando invadi- los. Estão armados com pedaços de paus e pedras. Harrow Road, Westboume Park, uma zona velha e pobre, terrivelmente úmida. Atrás do flat há um canal de águas poluídas, vezenquando passam barcos. Chico saiu para comer, Hermes batalhar entrada para assistir Chick Corea no Rainbow, Cotrim foi lavar seus pratos no restaurante, Flávio desapareceu, Pablo e Sarah, também. Sylvia vai para um outro flat aqui no mesmo prédio. Rô, Helô e Little Sô foram parar numa squatter em Sutherland Avenue, aqui perto. Uma barra. Junkies pesados, heroína, morfina, polícia rondando, paredes quebradas, sujeira, miséria. E as três idiotas fascinadas com o horror, falando sem parar em Janis Joplin, Jimi Hendrix, um Morrison.
Reconstituí o dente quebrado num dentista de Earl’s Court, passei na Biba depois, não roubei nada e vim “para casa”. Comprei maçãs, tenho algum dinheiro da escola. Acho que vou ao cinema. A partir das oito, no Classic de Nothing 11h11 Gate tem uma sessão quádrupla sensacional: Performance, Five Easy Pieces, Easy Rider e Drive, He Said. Acho que o dinheiro dá até para comer um sanduíche no intervalo. Luxo!
Aqui é muito feio. Nem aquecimento nem luz, como sempre, mas parece que é possível fazer uma ligação elétrica clandestina. Há uns irlandeses ótimos na parte do prédio onde está Sylvia, sabem fazer todas essas coisas. Hermes diz que devem ser terroristas do IRA, possivelmente são mesmo. Tem uma banheira na cozinha, está imunda. Estou sujo, barbudo, cansado. Sonho com banheiras limpas, shampoos, sabonetes, toalhas felpudas, lençóis brancos, café. Mais nada. Aqueles junkíes de Sutherland não me saem da cabeça. As peles, meu Deus, as peles gastas. Estarei assim?
19 de março
“Querida mãe:
A vida aqui anda agitada. Precisamos mudar de novo. Agora estou dividindo um apartamento com Hermes (acho que a senhora lembra dele, era o meu amigo professor de inglês do Yázigi). Fica numa zona antiga de Londres, tem uma igrejinha do século XVI perto e um riozinho que corre atrás do bloco de apartamentos. Não mando o endereço porque ainda não é certo que fiquemos aqui por muito tempo. Se ficarmos, talvez em seguida a gente possa mandar instalar um telefone, até poderíamos bater um papo, quem sabe?
Continua fazendo frio, mas agora tem um pouco mais de sol e a primavera começa depois de amanhã. Semana passada nevou um pouco. Foi lindo. Estou realmente bem. Não sei por que suas cartas vêm sempre tão cheias de medos e suspeitas. Hoje está soprando um vento, não lembro o nome, que os ingleses dizem vir do País de Gales. Todo mundo escancara portas e janelas para que o vento leve embora os maus-espíritos do inverno. É um vento mágico, dizem. Beijos para o pai e para todos.”
20 de março
Na Sir John Cass School of Art, posando desde nove da manhã. Hora do almoço, estou com muita fome e não tenho um maldito shilling. Preciso ficar até as 1 8h, é a hora que eles me pagam. Caminhei um pouco na rua para ver se esquecia a fome, mas faz muito frio e o gelo entra pelo pano dos tênis. Enfastiada, Mrs. Pountney come uma maçã ao meu lado, tem um sanduíche no colo. Sorri, não oferece nada. Sorrio também. Minha vingança é que é uma péssima pintora.
25 de março
Depois de muito tempo, encontro Angie em Portobelio no sábado. Nada a dizer entre nós. Está gasto, aparência suja e cansada. Sacaneou várias pessoas — pegou grana para comprar hash, não comprou nada nem devolveu a grana, inventou várias histórias, sujou com todos. Quando chega, saem de perto. Não consegui ver mais nele aquele menino recém-chegado de Firenze, que apareceu na nossa antiga casa de Olympia com uns olhos grandes e limpos, parecido com Rita Hayworth. As prisões, os roubos, as bad trips, os trabalhos duros, as humilhações e as fomes mataram aquele menino. Sobrou o trambiqueiro, o transador. Vapor barato. Há muitos assim. E ainda falam de paz-&-amor, boas-vibrações & alto-astral...
5 de abril
Pablo foi embora para Barcelona. Não conseguiu o passaporte falso, vai ter mesmo que enfrentar o serviço militar. Dei a ele a pulseira marroquina, provavelmente não vamos nos ver nunca mais. Mas não vou esquecê-lo, repetindo horas cada vez que tomava ácido “No es verdad... No es posible... No lo puedo creer..”
10 de abril
Duas cartas ao mesmo tempo, escritas quase no mesmo dia. Uma de Anita, a garota sueca que vendia sorvete ano passado no quiosque em Estocolmo, perguntando se não vou trabalhar lá este verão. A outra é de Clara, no Rio, dizendo que sim, que eu vá, que continua sempre a minha espera.
E se eu mudasse meu destino num passe de mágica? Voltar a Estocolmo, casar com Anita, ganhar passaporte sueco, auxflio desemprego do governo, viajar para a Índia, Goa, Nepal, Katmandu. Não sei se conseguiria. Estranho, mas é sempre como se houvesse por trás do livre-arbítrio um roteiro fixo, predeterminado, que não pode ser violado. Um roteiro interno que nos diz exatamente o que devemos ou não fazer, e obedecemos sempre, mesmo que nos empurre para aquilo que será aparentemente o pior. O “pior” às vezes é justamente o que deveria ser feito?
16 de abril
Quatro freaks no Holland Park, ao entardecer, embaixo de uma árvore toda vermelha, tocando flauta e cítara. Parecem uma pintura. Sentamos embaixo de outra árvore em frente, Hermes e eu, e ficamos olhando como se fôssemos nós mesmos num espelho, passados a limpo. Pareciam eternos. Sorriram para nós, mas de repente tive consciência do saco de papel todo amassado do supermercado de Earl’s Court nas minhas mãos suadas, me voltou a dornas costas de posar imóvel para escultura. Levantamos, atravessamos o parque e de repente estávamos em Nothing Hili Gate e a cidade era confusa e suja e barulhenta.
20 de abril
Fui rever Midnight Cowboy depois da escola. Já havia visto no Brasil, mas naquela época era pura ficção. Agora não, parecia minha própria vida, só um pouco piorada. Fumei um e fiquei dando voltas no Hyde Park sem ter a menor idéia de onde estava, em que cidade, que país, só sabia que era num planeta sujo.
29 de abril
Na estação de Charing Cross um desconhecido todo vestido de couro negro me diz que quando o viajante interplanetário se aproxima de Saturno imediatamente sente a mudança das vibrações. Que a forma dos habitantes de Saturno darem boas-vindas é fazer amor com os visitantes. Disse que vinha de Saturno e me convidou a fazer amor com ele. Perguntou: “Posso atravessar as portas de seu templo?” Tá querendo me enrabar, traduzi. E caí fora. A loucura brilhava nos olhos dele. Bem, de qualquer forma foi a cantada mais cósmica que já recebi em toda a minha vida.
7 de maio
Pelo menos estou vivo. Em movimento, andando por aí, perdendo ou ganhando, levando porrada, passando fome, tentando amar. “De cada luta ou repouso me levantarei forte como um cavalo jovem”, onde foi que li isso? Sei: Clarice Lispector, meu Deus, foi em Perto do Coração Selvagem.
8 de maio
Daniel, o espanhol anarquista e escultor da Barrow Hili Studio, onde comecei a posar também, fala muito no poeta León Felipe. “Tenía cojones “, repete. Hoje me emprestou a Antologia Rota e copiei:
El mundo es una siot machine con una raflura en la frente del cielo,
sobre ia cabecera dei mar (Se há parado la máquina se ha parado la cuerda.)
El mundo es algo que funciona como ei piano mecánico de un bar
(Se ha acabado la cuerda se há parado la máquina.)
Marinero, tu tienes una estrelia en ei bolsillo...
Drop a star!
Enciende con tu mano ia nueva música dei mundo, la canción marinera de maíiana,
ei hymno venidero de los hombres...
Drop a star! Echa a andar otra vez en este barco vazio, marinero.
Tu tienes una estrelia en ei bolsiilo...
Una estrelia nueva, de paiadío, de fósforo, de imãn.
13 de maio
Tentei durante quase uma semana, não consegui trabalho na fábrica. Isso quer dizer que voltarei ao Brasil sem dinheiro. Talvez nem possa passar no Rio para ver Clara. O flat está uma bagunça. Hermes e quase todos os outros vão para Estocolmo trabalhar durante o verão, ninguém mais se importa com nada. Sábado vamos para Swiss Cottage, para a casa de Charles, de lá parto para o Brasil.
16 de maio
Passamos a noite na delegacia de Earl’s Court.
Motivo: Hermes e eu fomos presos roubando uma biografia recém-lançada de Virginia Woolf escrita por Quentin BelI, o filho de Vanessa. Ficamos rondando, eram dois volumes cheios de fotos, eu estava com a capa marroquina, Hermes com um casaco enorme. Enfim apanhamos um volume cada um e saímos para a High Street Kensington. Já estávamos quase no parque quando o cara da livraria veio correndo atrás. Chamaram a polícia, Hermes nervosíssimo, achando que seríamos deportados. Brinquei, dizendo que de agora em diante Virginia Woolf seria nossa padroeira, nossa fada-madrinha. E que anay era um roubo muito digno. Dormimos cada um em uma cela e de manhã cedo, sem café nem nada, nos levaram num carro cheio de pequenas celas individuais para Shepherd’s Bush, para apanhar mais presos. Conversei um pouco com um suíço ladrão de jóias, elegantíssimo, bigodes louros retorcidos para cima, a cara de Helmut Berger. Havia mais duas indianas pegas roubando roupas íntimas na Biba e umfreak holandês com uma mala enorme cheia de tijolos de haxixe. Todos odeiam a Inglaterra. Roubaram o mundo inteiro, diz uma das indianas, e agora não querem ser roubados?
Fomos julgados na corte de Hammersmith, o mesmo lugar onde julgaram Angie das outras vezes. O juiz era uma mulher, cara muito fechada. Dissemos que éramos estudantes de literatura e não tínhamos grana para comprar livros. Não adiantou nada: trinta libras de multa para cada um. Merda, todo o dinheiro que eu pretendia levar para o Brasil. Hermes foi trabalhar arrasado. Vim para casa, deitei no meio do kaos com aquele xale roxo de fazer bad trip e fiquei esperando visitas. Essas notícias correm depressa, todo mundo já sabia, e também todo mundo já foi preso. Chico trouxe o violão e cantou, Helô jogou um Tarot para mim, mas sempre sai a Torre Fulminada pairando, ela fica insistindo que pode ter um bom significado, mas sei que é sempre péssimo. Sylvia trouxe um bolo e um maço de Players Number Six, vai depois de amanhã para Estocolmo. Suavíssimos, todos. Imagine se eu ia perder uma oportunidade rara dessas de ser bem-tratado.
22 de maio
Eu me fui, eu me sou, eu me serei em cada um dos girassóis do reino a ser feito. E as coisas terão que ser claras. Releio o que escrevi neste caderno, desde janeiro, revejo o que vivi. Tudo me conduziu para este here and now. Tudo terá que ser claro. How can I tell you?
25 de maio
Cartão de Estocolmo, Sylvia diz: “Índia is the way”. No fim do verão, há sempre caronas saindo de Amsterdam. Vai-se pelo Nepal, pela Armênia. O caminho terrestre para as Indias. Todo mundo está indo para lá, Sylvia garante. Vacilo, fico pensando: e se eu mudasse tudo e fosse também? Primeiro Estocolmo
— tak, tak, inte pratte svenska, venta pomei —, um quarto em Kungshambra ou Freskati. Depois Katmandu em vez de Copacabana, budismo tibetano em vez de escola de samba.
26 de maio
Hermes me dá os poemas de Sylvia Plath. São febris, obsessivos, mórbidos, mas não consigo parar de ler. Fico tentando traduzir Fever 103, mas é difícil, já nos três primeiros versos tenho um problema:
Pure? What does it mean? The tongues ofhell
Are duli, duil as the triple (...)
Os dois primeiros versos, tudo bem. E “labaredas” acho que fica melhor que “línguas”, é evidente que ela está se referindo ao fogo dos infernos. Mas como traduzir duli? Opacas, sujas, gordurosas? Sylvia Plath é sempre um mal-estar.
27 de maio
Hermes também partiu para Estocolmo, me deixou alguns cleanings. Com Charles, vim para um fim de semana em Chichester, na casa de Billy e Mike. É bonito aqui. A cozinha branca, o bule vermelho sobre a mesa de madeira, a janela aberta para ojardim cheio de rosas e trepadeiras, um dia de primavera nítido. As vozes de Charles, Billy e Mike lá fora, combinando assistirem Diana Dors no festival de teatro, à noite ela faz Seis Personagens em Busca de um Autor de Pirandello. Quando criança, eu colecionava fotos dela, de Jayne Mansfield e Mamie van Doren, todas as imitadoras de Marilyn Monroe. Agora, ela é uma senhora de idade, virou artista séria, a dois passos daqui. A vida é mesmo doida. Talvez eujá não esteja completamente aqui. Nem lá, seja onde for. Antes de viajar, fico pairando. Talvez a alma parta antes, e não saiba direito para onde ir sem o corpo. Na morte deve ser parecido.
Billy pergunta de Angie. Foi deportado, digo — é verdade, alguém me contou há alguns dias, não lembro quem. Sei que Deborah ficou em Londres, me disseram que estava trabalhando como scort-girl. Charles seca a Henna dos cabelos ao sol. Há tanto sol hoje, quase tanto quanto no Brasil todos os dias. Me revisito no inverno, subindo as escadas sujas no escuro, uma vela acesa na mão, sentindo fome, o dente quebrado. Quero esquecer completamente. E sei que nunca esquecerei.
28 de maio
Fui fazer meu último cleaning. Diálogo com Mrs. Simmons:
— What about rnyfears?
— Well, I neverpayfears to Hermes.
— Sorry, but I’m not Hermes. I came from Chichester today only to clean your house.
Fui ao banheiro lavar as mãos. Tinha que me dar dez pences. Uma inglesona redonda, rosada, busto enorme, corada, aquele ar de gentileza excessiva que esconde sempre o desprezo. Que povo. Quando saio do banheiro, ela me espera na escada com uma moeda de cinco pences na pata gorducha.
— That’s your money.
Fiquei puto, berrei:
— I don’t want it! I don’t need yourfucking money! I hate all the English ladies!
Fui saindo. Ela atrás, imperturbável, monstruosa:
— Please, could you take the rabbish to the basement?
— No! I can not! I’m going to my country!
29 de maio (no avião)
Problemas em Heathrow na hora de pesar a bagagem. Teria que pagar umas trinta libras de excesso, e eu só tinha cinco. Enfiei uns jeans dentro das mangas de um casaco, distribui outras coisas pelos bolsos, mas tive que deixar muita coisa com Charles. Ficaram todos os panos indianos, os livros de Tarot,
Macrobiótica, Alquimia, Astrologia, o vaso chinês, as duas bonecas, a bailarina e a camponesa, a chaleira Rudolpha Elizabeth. E os diários todos da Espanha, França, Suécia, Holanda, os primeiros tempos de Londres. Fiquei pensando se não terei deixado o essencial — e o essencial eram as coisas que coloriram a minha vida nesses dois anos sem cor.
Vejo a Inglaterra de cima. Não sinto nada. Vazio. Agora tudo é passado. Meu presente é este vôo onde nada acontecerá. E o futuro branco. Londres fica para trás. Ainda está claro, dá para ver o canal da Mancha, a ilha de Wight ao longe. Fome. Vontade de conversar com alguém, mas perto só há uns italianos de ternos escuros falando muito rápido, parecem mafiosos. E devem ser.
Canapés e coca-cola. A aeromoça da Aerolineas Argentinas fala espanhol com os outros e inglês comigo. Deve ser o brinco na orelha esquerda, roubado do antiquário de Chichester, a bolsa indiana roubada na Biba, os óculos roubados em Portobeilo. E tudo roubado, carifio, puedes habiar espanhol.
Orly. Afinal, não voltei a Paris. Mas haverá tempo. Um crescente enorme no céu. Faço as contas, deve estar em Virgem. Reorganizar tudo no Brasil? Sobe um time inteiro de futebol ou algo assim, franceses. Cutucam-se, me olham, me filmam. Minha aparência destoa completamente de todo o resto. Começo a desconfiar que London, London, Babylon City é um lugar very, very special.
Peço à aeromoça algumas revistas oujornais brasileiros. Ela me traz uma Manchete. Misses, futebol, parece horrível. Então sinto medo. Por trás do cartão-postal imaginado, sol e palmeiras, há um jeito brasileiro que me aterroriza, O deboche, a grossura, o preconceito.
Saímos de Madri, Barajas. Dei uma voltinha pelo aeroporto. Uma caretice absolutamente inacreditável, é como se tivesse entrado numa máquina do tempo. Devo ter ficado tão acostumado às roupas e ao feeling londrino que simplesmente esqueci que, além da ilha, existem outras coisas. A memória é sempre muito sacana.
De dentro do caderno cai uma folha dobrada. É um poema que Clara encontrou, copiou e mandou do Rio, sobre Ícaro. Diz que é de Darwin, acho estranho. Mas leio outra vez e copio para não pensar:
Com a cera derretendo e oflo solto caiu o desgraçado Ícaro, sob inertes asas;
direto através do céu medonho, com os membros torcidos e os cabelos em desalinho,
sua plumagem espalhada dançou sobre a onda e, chorando-o, as nereidas ornaram sua sepultura
aquática. Sobre seu pálido corpo deitaram suas flores de
pérolas marinhas e espalharam musgo vermelho no seu leito de mármore e em suas torres de coral repicaram os sinos que ressoaram sobre o vasto oceano esse dobre.
Sobrevoamos o Atlântico, a grande asa sob minha janela. Escrevo, escrevo, O ronco dos motores, as narinas cheias de casquinhas de sangue endurecido. Penso em Sylvia, em Estocolmo, irá mesmo para a Índia? E eu não fui, agora é tarde. Tenho medo, desde Londres as palmas de minhas mãos estão encharcadas de suor.
Meu Deus, não sou muito forte, não tenho muito além de uma certa fé — não sei se em mim, se numa coisa que chamaria de justiça-cósmica ou a-coerência-final-de-todas-as-coisas. Preciso agora da tua mão sobre a minha cabeça. Que eu não perca a capacidade de amar, de ver, de sentir. Que eu continue alerta. Que, se necessário, eu possa ter novamente o impulso do vôo no momento exato. Que eu não me perca, que eu não me fira, que não me firam, que eu não fira ninguém. Livra-me dos poços e dos becos de mim, Senhor. Que meus olhos saibam continuar se alargando sempre. Sinto uma dor enorme de não ser dois e não poder assim um ter partido, outro ter ficado com todas aquelas pessoas.
Volta a pergunta maldita: terei realmente escolhido certo? E o que é o “certo”? Digo que todo caminho é caminho, porque nenhum caminho é caminho. Que aqui ou lá — London, London, Estocolmo, Índia — eu continuaria sempre perguntando. Minhas mãos transpiram, transpiram. O nariz seco por dentro. Não quero escrever mais nada hoje. Um casal transa em pé no corredor, sobre o Atlântico. O italiano a meu lado dorme com a mão no pau o tempo todo, será um costume latino?
A lua já se foi. As Plêiades, como dizia Safo, já foram se deitar. E eu vim-me embora, meu Deus, eu vim-me embora.
De vários fragmentos escritos em Londres em 1974 nasceu este diário, em parte verdadeiro, em parte ficção. Hesitei muito em publicá-lo — não parece ronto’ há dentro dele várias linhas que se cruzam sem continuidade, como se fosse feito de bolhas. De qualquer forma, talvez consiga documentar aquele tempo com alguma intensidade, e isso quem sabe pode ser uma espécie de qualidade?
27 de janeiro
Encontrei este caderno numa squatter-house em Victoria, ontem à noite. Foi enviado da Índia para Mr. John Schwyer Gummer, estava ainda dentro do envelope, mas o endereço na Índia manchou de umidade e mofo, só dá para ler “Calcutá”. Será um aviso? Sylvia diz que “a Índia está chamando”. Encontramos também um cara chamado Jack, especializado em squatters: e trambiques tipo instalações ilegais de luz, água e gás, que vai nos ajudar a descolar casa. Zé apelidou-o de “Jack, o Esquarteador”. Fala um cockney quase incompreensível. Espero que consiga mesmo a casa, a polícia nos deu um prazo até amanhã ao meio-dia para sairmos da Bravington Road. Mas gostei do caderno. Reproduzo o desenho que Angie mandou da prisão. Fica sendo a epígrafe.
28 de janeiro
Hoje é dia de mudar de casa, de rua, de vida. As malas sufocam os corredores. Pelo chão restam plumas amassadas, restos de purpurina, frangalhos de echarpes indianas roubadas, pontas de cigarro (Players Number Six, o mais barato). Chico toca violão e canta London, London: no, nowhere to go. Poucos ainda sorriem e olham nos olhos. Hoje é dia, mais uma vez, de mudar de casa e de vida. Os olhos buscam signos, avisos, o coração resiste (até quando?) e o rosto se banha de estrelas dormidas de ontem, estrelas vagabundas encontradas pelas latas de lixo abundantes de London, London, Babylon City. Alguém pergunta: “O que é que se diz quando se está precisando morrer?” Eu não digo nada, é a minha resposta. Sento no chão e contemplo os escombros de Sodoma e Gomorra: brava Bravington Road, bye, bye.
Amanhã é dia de nascer de novo. Para outra morte. Hoje é dia de esperar que o verde deste quase fim de inverno aqueça os parques gelados, as ruas vazias, as mentes exaustas de bad trips. Hoje é dia de não tentar compreender absolutamente nada, não lançar âncoras para o futuro. Estamos encalhados sobre estas malas e tapetes com nossos vinte anos de amor desperdiçado, longe do país que não nos quis. Mas amanhã será quem sabe o acerto de contas e Jesuzinho nos pagará todas as dívidas? Só que já não sei se ainda acredito nele. Tão completamente sento e espero que quase acredito ir além deste estar sentado no meio de escombros, here and now esperando Zé chegar com a noticia de que conseguiu a casa graças aos poderes de Jack na região de Victoria, Pimlico. Só espero, não penso nada. Tento me concentrar numa daquelas sensações antigas como alegria ou fé ou esperança. Mas só fico aqui parado, sem sentir nada, sem pedir nada, sem querer nada.
As crianças sujas e ranhentas da casa ao lado vêm perguntar se somos ciganos: are you gipsies? Sylvia mente que sim —from Yugoslavia, diz, agita no ar o pandeirinho com fitas e finge dançar e ler as linhas das mãos das crianças. Gosto tanto desse jeito que Sylvia tem de aliviar as coisas. Meu coração vai batendo devagar como uma borboleta suja sobre este jardim de trapos esgarçados em cujas malhas se prendem e se perdem os restos coloridos da vida que se leva. Vida? Bem, seja lá o que for isto que temos...
30 de janeiro
Metade dos moradores da Bravington Road nos traiu. Já haviam conseguido outra casa ali perto, em Ladbroke Grove, sem nos dizer nada. Felizmente a amizade de Zé com Jack, o Esquarteador, rendeu esta casa em Victoria. São cinco andares, contando o sótão onde fiquei, mas não há aquecimento e luz só no basement. Mas se não tivéssemos conseguido esta, ficaríamos na rua. Que amigos. E acompanharam todo nosso sofrimento, com as malas na calçada, na chuva, com medo da polícia.
Disseram que Angie sai amanhã da prisão. E que irá para a casa de Ladbroke Grove, viver com Deborah.
31 de janeiro
(Carta do espaço sideral para não ser enviada a Angie)
“Vem, que eu quero te mostrar o papel cheio de rosas nas paredes do meu novo quarto, no último andar, de onde se pode ver pela pequena janela a torre de uma igreja. Quero te conduzir pela mão pelas escadas dos quatro andares com uma vela roxa iluminando o caminho para te mostrar as plumas roubadas no vaso de cerâmica, até abrir a janela para que entre o vento frio e sempre um pouco sujo desta cidade. Vem, para subirmos no telhado e, lá do alto, nosso olhar consiga ultrapassar a torre da igreja para encontrar os horizontes que nunca se vêem, nesta cidade onde estamos presos e livres, soltos e amarrados. Quero controlar nervoso o relógio, mil vezes por minuto, antes de ouvir o ranger dos teus sapatos amarelos sobre a madeira dos degraus e então levantar brusco para abrir a porta, construindo no rosto um ar natural e vagamente ocupado, como se tivesse sido interrompido em meio a qualquer coisa não muito importante, mas que você me sentisse um pouco distante e tivesse pressa em me chamar outra vez para perto, para baixo ou para cima, não sei, e então você ensaiasse um gesto feito um toque para chegar mais perto, apenas para chegar mais perto, um pouco mais perto de mim. Então quero que você venha para deitar comigo no meu quarto novo, para ver minha paisagem além dajanela, que agora é outra, quero inaugurar meu novo estar-dentro-de-mim ao teu lado, aqui, sob este teto curvo e quebrado, entre estas paredes cobertas de guirlandas de rosas desbotadas. Vem para que eu possa acender incenso do Nepal, velas da Suécia na beira- da da janela, fechar charos de haxixe marroquino, abrir armários, mostrar fotografias, contar dos meus muitos ou poucos passados, futuros possíveis ou presentes impossíveis, dos meus muitos ou nenhuns eus. Vem para que eu possa recuperar sorrisos, pintar teu olho escuro com kol, salpicar tua cara com purpurina dourada, rezar, gritar, cantar, fazer qualquer coisa, desde que você venha, para que meu coração não permaneça esse poço frio sem lua refletida. Porque nada mais sou além de chamar você agora, porque tenho medo e estou sozinho, porque não tenho medo e não estou sozinho, porque não, porque sim, vem e me leva outra vez para aquele país distante onde as coisas eram tão reais e um pouco assustadoras dentro da sua ameaça constante, mas onde existe um verde imaginado, encantado, perdido. Vem, então, e me leva de volta para o lado de lá do oceano de onde viemos os dois.”
4 de fevereiro
Há tendas árabes pelos quartos, velas acesas nas escadas e a loucura arreganhando seus dentes de jade em cada canto da casa. Para não fazer parte disso, eu quis morrer, quis ir embora, quis perder para sempre a memória, estas memórias de sangue e rosas, drogas e arame farpado, príncipes e panos indianos, roubos e fadas, lixo e purpurina.
5 de fevereiro
Eu estava no alto da escada quando bateram à porta da rua. Comecei a descer enrolado no xale roxo das bad trips, não há aquecimento, faz muito frio fora dos quartos. Antes que eu descesse, empurraram a porta e entraram, estava aberta. Era um grupo grande, na frente deles Angie e Deborah, de mãos dadas. Eu continuei parado, eles vieram vindo pelo corredor. Mas talvez pelo ácido de ontem, ainda, ou pelo choque, não sei, quem sabe até pela fome — eu tinha a impressão de que quanto mais se aproximavam, mais se afastavam. Como se a cada passo que dessem o corredor aumentasse um pouco.
Sem Angie, pensei, sem Angie não irei mais à Espanha. E não há nenhum sentido em estar aqui.
8 de fevereiro
Chorei três horas, depois dormi dois dias.
Parece incrível ainda estar vivo quando já não se acredita em mais nada. Olhar, quando já não se acredita no que se vê. E não sentir dor nem medo porque atingiram seu limite. E não ter nada além deste amplo vazio que poderei preencher como quiser ou deixá-lo assim, sozinho em si mesmo, completo, total. Até a próxima morte, que qualquer nascimento pressagia.
11 de fevereiro
Segunda-feira, vida nova. Sylvia me acordou às quatro da manhã para irmos com Zé até Earl’s Court tentar conseguir trabalho na fábrica. Ninguém tinha dinheiro para café nem nada. Faz muito frio, os automóveis têm uma camada de gelo em cima. Compramos o ticket do metrô, essa hora é perigoso andar sem pagar, tem muita fiscalização. Eles passaram a roleta e me chamaram. Eu ia enfiar o ticket na máquina, mas foi então que percebi que não suportava mais. As pessoas me empurravam querendo passar, o trem chegou, Sylvia e Zé perguntavam do outro lado: “Você não vem? Você não vem?” Sem pensar, gritei: “Não, eu vou voltar para o Brasil”. Não planejei dizer aquilo, não planejei decidir nada. Quando vi, já tinha dito, já tinha decidido. No caminho de volta apanhei uma garrafa de leite numa porta. Um carro da polícia parou do lado. Meu passaporte está preso no Home Office, só tenho uma carta deles, toda rasgada. Quiseram saber mais, eu disse que era squatter ficaram excitadíssimos. Falei que era Brazilian e foi pior. O rato deu uma cuspida e rosnou: “Oh, Brazilian, South America? 1 know that kind o! people... “ Mandou que eu tirasse os tênis, as meias, me deixou completamente descalço no cimento gelado, me revistou inteiro. Fiquei puto e perguntei se ele não queria vir até aqui, disse que tínhamos montes de drogas, armas e bombas. Ligou um radinho, falou não sei com quem. Queria saber onde eu tinha comprado a garrafa deleite. Lembrei de um supermercado em Earl’s Court que fica aberto a noite toda, menti que tinha sido lá. Ele disse que àquela hora estava fechado. Garanti que não, sabia que não fecha nunca, no Natal costumávamos ir lá toda noite roubar macarrão. Ele pediu a nota de compra. Falei que tinha jogado fora.
A humilhação durou quase uma hora. Enfim me soltou e mandou que saísse do país: “0ff’ You’re not ekome here!” Eu disse que estava justamente vindo ra casa escrever uma carta pedindo passagem de volta. Era verdade.
13 de fevereiro
Chico me deu uma chaleira daquelas que apitam quando a água está prestes a ferver, com um coador de metal dentro para o chá. E muito engraçada, redonda e solene, nós a batizamos de Rudolpha Elizabeth, the First. Tínhamos apanhado alguns móveis numa casa vizinha que parecia abandonada, a chaleira estava na cozinha. Estávamos tomando o primeiro Earl Grey preparado em Rudolpha quando chegaram o dono da tal casa, furioso, a polícia pedindo passaporte, cães pastores farejando tudo. Devolvemos os móveis, Rudolpha não.
A polícia e os cães se foram, o homem não, parecia muito curioso com tudo. Tirou do bolso uma garrafinha de scotch e ficou bebendo e pedindo para que cantássemos Blue Moon. Cantamos várias vezes, ele cantava junto e sempre queria mais.
14 de fevereiro
Acho que foi efeito do homem que gostava de Blue Moon. Cantamos na rua em Piccadilly e Trafalgar Square. Deu vinte libras. Nosso maior sucesso é La Bamba, depois Preta, Pretinha, dos Novos Baia- nos. Toco maracas, Zé violão, Chico bongô e Sylvia o pandeirinho de fitas. La Baja dança e canta.
16 de fevereiro
Apareceu ópio, não sei de onde. Fumamos, alguns vomitaram. Fiquei deitado, imóvel. Tudo parecia perfeito. Mas qualquer movimento mais brusco ameaçava a perfeição, era preciso mover-se muito devagar. Acho que peguei o jeito, devo ter vocação para opiômano. Sem me mover, as mãos cruzadas no peito, havia às vezes como umas ondas de cetim envolvendo tudo, arabescos orientais no teto, nas paredes. Não era bom nem mau: era apenas perfeito, sem pensamentos nem aflições, eu poderia ficar para sempre ali naquela espécie não exatamente de morte, mas de vida suspensa. Mas depois inventaram de cheirar heroína e, claro, não resisti, cheirei também. Acabou a perfeição do ópio, veio a náusea. Vomitei loucamente e só, sem sentir nada além de mal-estar.
20 de fevereiro
Zé recebeu a indenização da fábrica, de quando tinha cortado a mão, pegou todo o dinheiro e, sem contar para ninguém, comprou uma passagem para o Brasil. Volta hoje, todo mundo está triste. De certa forma, era o melhor de nós. Sem Zé, não teremos mais fotos nem pão quente roubado de manhã cedo.
22 de fevereiro
Mona também se foi para Paris, vai tentar arrumar trabalho por lá. “Enchi desse miserê”, disse. Ficamos todos meio ofendidos.
A casa inteira resfriada, O dinheiro vindo do Brasil dançou quase todo, ainda bem que eu tinha comprado bastante arroz integral. Com os palitos de madeira, mastigo trinta vezes cada porção. Dá para parar de pensar.
Cacá me expulsou do quarto no sótão, Sylvia disse que posso ficar num canto do quarto dela, que é muito grande. Helô diz que Cacá anda transando com o demônio, fazendo trabalhos com espelhos. Jogou um Tarot para confirmar, mas não deu nada.
23 de fevereiro
Com tanta gente indo embora, ficou um quarto vazio em cima. Pensei em mudar para lá, mas me dou bem com Sylvia e vieram morar uns franceses heroinômanos, amigos não sei de quem. Andam sempre de preto, só saem à noite e não dá para saber ao certo quantos são. Não falam com ninguém, nã,o fazem nenhum barulho, nunca. Parecem sombras.
25 de fevereiro
Essa morte constante das coisas é o que mais dói.
Não quero ser a carpideira do meu tempo. Mesmo encontrando todos os dias pelas escadas os devotos de Morfeu, com suas caras verdes, suas veias machucadas. Amanhã alguém nos cantará. Um rock de horror?
Depois de todas as tempestades e naufrágios, o que fica de mim em mim é cada vez mais essencial e verdadeiro.
Inverno aqui se escreve com F. E a gente entende por que todas aquelas histórias góticas, Frankenstein, Drácula, nasceram aqui. Na esquina, a igreja com o cemitério ao lado, cheio de lápides corroídas, é o perfeito cenário de um filme de horror. Roubamos do altar velas longas, amareladas, lindas.
Sem data
Deborah e Angie, me disseram, estão juntando dinheiro para ir para a Grécia.
Sem data
Grafitado num muro em St. Johns Wood:
“Flower-power is died!”
Sem data
Escuta aqui, cara, tua dor não me importa. Estou cagando montes pras tuas memórias, pras tuas culpas, pras tuas saudades. As pessoas estão enlouquecendo, sendo presas, indo para o exflio, morrendo de overdose e você fica aí pelos cantos choramingando o seu amor perdido. Foda-se o seu amor perdido. Foda-se esse rei-ego absoluto. Foda-se a sua dor pessoal, esse seu ovo mesquinho e fechado.
Sem data
Claro, o dia de amanhã cuidará do dia de amanhã e tudo chegará no tempo exato. Mas e o dia de hoje?
Só quero ir indo junto com as coisas, ir sendo junto com elas, ao mesmo tempo, até um lugar que não sei onde fica, e que você até pode chamar de morte, mas eu chamo apenas de porto.
2 de março
Chorar por tudo que se perdeu, por tudo que apenas ameaçou e não chegou a ser, pelo que perdi de mim, pelo ontem morto, pelo hoje sujo, pelo amanhã que não existe, pelo muito que amei e não me amaram, pelo que tentei ser correto e não foram comigo. Meu coração sangra com uma dor que não consigo comunicar a ninguém, recuso todos os toques e .ignoro todas as tentativas de aproximação. Tenho vontade de gritar que esta dor é só minha, de pedir que me deixem em paz e só com ela, como um cão com seu osso.
A única magia que existe é estarmos vivos e não entendermos nada disso. A única magia que existe é a nossa incompreensão.
11 de março
Louco de speed, hash e solidão. Mudar, partir, ficar. Fomos despejados novamente, nos deram três dias de prazo. Vontade de ler Carlos Drummond de
Andrade:
Tudo somado, devias precipitar-te — de vez — nas águas.
Estás nu na areia, no vento...
Dorme, meu filho.
A casa agonizante. As pessoas andando pelo escuro, velas nas mãos, como fantasmas. Ou como crianças perdidas. Vontade de fugir para não ver esses — quantos? vinte, trinta? — olhos assustados pelas escadas, essas vozes baixas, esses sons ingleses, espanhóis, portugueses, franceses. Não ver, não ouvir, não tocar, não sentir.
O frio entra pelas frestas das portas e janelas. Tirados os panos das paredes e todos os disfarces, tudo fica feio, miserável. Alguém cagou dentro da banheira. Há montes de lixo pelas escadas e corredores. Fomos expulsos, não vale a pena arrumar mais nada, limpar mais nada. Esse lixo espalhado pela casa são os nossos sonhos usados, gastos, perdidos. Sinto ódio, não sei exatamente de quem ou de quê. O estômago vazio há mais de trinta horas, os cigarros filados aqui e ali, o dente quebrado em plena bad trip. Quero outra vez um quarto todo branco e um par de asas. Mesmo de papelão.
13 de março
Segundo dia na escola de belas-artes. Estou exausto. Keep still yourself— still like that— can you move your face?— turn lefl, please. Gentis e distantes, sou pouco mais que um objeto até o take a rest que recebo com alívio. Mr. Graham pediu que posasse das 18h às 21h, já tinha posado das 9h às 18h.
Mas aceito, à noite pagam melhor. Precisávamos ir ver umas squatter-houses em Paddington, não vou aparecer nem tem telefone para avisar. Temos que mudar até amanhã. Tudo vai mal. Até arrumar este trabalho, Sylvia me pagou alguma comida. Só penso em voltar, lá não há liberdade, mas tem sol. E comida.
14 de março
A sensação é de estar afundando na areia movediça. No lodo.
O professor de desenho me vê com um livro de reproduções de Magritte na hora do almoço e diz que Magritte pintava sonhos, e que é impossível ter sonhos às seis da manhã numa estação de metrô. Me surpreendo arranj ando energia para contestar. E digo no meu inglês péssimo que se a realidade nos alimenta com lixo, a mente pode nos alimentar com flores. Talvez porque eu mesmo tome metrô todo dia às seis da manhã para fazer todas as conexões e chegar a Aldgate, com Magritte embaixo do braço. Estamos sem casa. Saio daqui às quatro e encontro com Hermes na porta da casa velha de Victoria para irmos — onde?
Minha aparência é péssima, a mente e o corpo exaustos. Mas existe uma tranqüilidade estranha. Não tenho mais nada a perder. Não sabia que o mundo era assim duro, assim sujo. Agora sei. Tenho apenas essa consciência, que só a loucura ou uma lavagem cerebral poderiam turvar. Sobrevivo todos os dias à morte de mim mesmo. Sinto como uma virilidade correndo no sangue.
15 de março
Sonhei. Há muito não sonhava. Havia uma festa. Era um lugar agradável, ao ar livre, um parque ou um jardim. Quando eu vinha embora Pablo pediu que esperasse por ele, mas eu estava interessado em outras coisas e não dei muita atenção. Era noite, eu vestia a capa preta marroquina. Na rua, um homem tentava voar numa máquina com asas, como aquelas engenhocas de Leonardo da Vinci. Havia um incêndio numa casa próxima, muitas pessoas corriam. Eu não estava interessado. Encontrei Deborah, empurrando um carrinho de bebê com um adulto dentro. Ela disse: “Vou embora para o Brasil. Angie vai ficar. Eu vou escrever de lá”. Eu continuei andando, preocupado com Pablo, se estaria me esperando ou não. Segurei as pontas da capa marroquina e comecei a correr como se quisesse voar. Era bom. As pessoas apontavam e diziam: “Look at him: he s tryng tofly!” De repente um policial me segurou pelo capuz e perguntou por que eu estava correndo. Respondi agressivo: “Just because 1 like it!” Ele sorriu e me soltou. Continuei correndo, tentando voar. No começo de uma colina parei e olhei para o céu. E vi a lua, em quarto-crescente, bem ao lado de Saturno. Era muito bonito. Fiquei maravilhado e pensei que coisas extraordinárias deveriam estar acontecendo com aquela conjunção. Nesse momento uma estrela caiu. Pensei em fazer um pedido, mas a estrela já sumira, e eu sabia que o pedido só valia enquanto ela estivesse visível. Mesmo assim, pedi: que Pablo ainda estivesse me esperando. Comecei a subir os degraus que levavam à nossa casa de Victoria, que estava no alto da colina. Os degraus de pedra eram irregulares e muito gastos, sobre eles havia várias velas, algumas acesas. Apanhei uma delas e entrei na casa. A sala estava cheia de móveis antigos, com aquela luz azulada da lua e de Saturno entrando pelas vidraças. De um andar superior vinha música, acho que era Angie, com Mick Jagger. Subi as escadas e encontrei um desconhecido sentado, lendo. Falei a ele sobre a lua e Saturno, mas não pareceu interessado. Então tomei-o pelo braço e levei-o até o terraço. Apontei o céu. Nesse momento algumas nuvens cobriram a lua, e ele não viu nada. Sacudiu os ombros, voltou a entrar, a sentar e a ler. Fiquei irritado, chamei-o de yourfiscking bastard! várias vezes, mas ele não me deu atenção. Não havia mais ninguém em casa. Pensei em Pablo, queria muito que estivesse me esperando para mostrar-lhe a lua e Saturno. Comecei a subir para meu quarto, procurando por ele. Acordei.
15 de março
Estou sozinho num flat recém-invadido. Um homem com uma arma queria nos mandar embora. Não fomos. São vários flats num prédio grande, há uma organização underground de squatters tentando invadi- los. Estão armados com pedaços de paus e pedras. Harrow Road, Westboume Park, uma zona velha e pobre, terrivelmente úmida. Atrás do flat há um canal de águas poluídas, vezenquando passam barcos. Chico saiu para comer, Hermes batalhar entrada para assistir Chick Corea no Rainbow, Cotrim foi lavar seus pratos no restaurante, Flávio desapareceu, Pablo e Sarah, também. Sylvia vai para um outro flat aqui no mesmo prédio. Rô, Helô e Little Sô foram parar numa squatter em Sutherland Avenue, aqui perto. Uma barra. Junkies pesados, heroína, morfina, polícia rondando, paredes quebradas, sujeira, miséria. E as três idiotas fascinadas com o horror, falando sem parar em Janis Joplin, Jimi Hendrix, um Morrison.
Reconstituí o dente quebrado num dentista de Earl’s Court, passei na Biba depois, não roubei nada e vim “para casa”. Comprei maçãs, tenho algum dinheiro da escola. Acho que vou ao cinema. A partir das oito, no Classic de Nothing 11h11 Gate tem uma sessão quádrupla sensacional: Performance, Five Easy Pieces, Easy Rider e Drive, He Said. Acho que o dinheiro dá até para comer um sanduíche no intervalo. Luxo!
Aqui é muito feio. Nem aquecimento nem luz, como sempre, mas parece que é possível fazer uma ligação elétrica clandestina. Há uns irlandeses ótimos na parte do prédio onde está Sylvia, sabem fazer todas essas coisas. Hermes diz que devem ser terroristas do IRA, possivelmente são mesmo. Tem uma banheira na cozinha, está imunda. Estou sujo, barbudo, cansado. Sonho com banheiras limpas, shampoos, sabonetes, toalhas felpudas, lençóis brancos, café. Mais nada. Aqueles junkíes de Sutherland não me saem da cabeça. As peles, meu Deus, as peles gastas. Estarei assim?
19 de março
“Querida mãe:
A vida aqui anda agitada. Precisamos mudar de novo. Agora estou dividindo um apartamento com Hermes (acho que a senhora lembra dele, era o meu amigo professor de inglês do Yázigi). Fica numa zona antiga de Londres, tem uma igrejinha do século XVI perto e um riozinho que corre atrás do bloco de apartamentos. Não mando o endereço porque ainda não é certo que fiquemos aqui por muito tempo. Se ficarmos, talvez em seguida a gente possa mandar instalar um telefone, até poderíamos bater um papo, quem sabe?
Continua fazendo frio, mas agora tem um pouco mais de sol e a primavera começa depois de amanhã. Semana passada nevou um pouco. Foi lindo. Estou realmente bem. Não sei por que suas cartas vêm sempre tão cheias de medos e suspeitas. Hoje está soprando um vento, não lembro o nome, que os ingleses dizem vir do País de Gales. Todo mundo escancara portas e janelas para que o vento leve embora os maus-espíritos do inverno. É um vento mágico, dizem. Beijos para o pai e para todos.”
20 de março
Na Sir John Cass School of Art, posando desde nove da manhã. Hora do almoço, estou com muita fome e não tenho um maldito shilling. Preciso ficar até as 1 8h, é a hora que eles me pagam. Caminhei um pouco na rua para ver se esquecia a fome, mas faz muito frio e o gelo entra pelo pano dos tênis. Enfastiada, Mrs. Pountney come uma maçã ao meu lado, tem um sanduíche no colo. Sorri, não oferece nada. Sorrio também. Minha vingança é que é uma péssima pintora.
25 de março
Depois de muito tempo, encontro Angie em Portobelio no sábado. Nada a dizer entre nós. Está gasto, aparência suja e cansada. Sacaneou várias pessoas — pegou grana para comprar hash, não comprou nada nem devolveu a grana, inventou várias histórias, sujou com todos. Quando chega, saem de perto. Não consegui ver mais nele aquele menino recém-chegado de Firenze, que apareceu na nossa antiga casa de Olympia com uns olhos grandes e limpos, parecido com Rita Hayworth. As prisões, os roubos, as bad trips, os trabalhos duros, as humilhações e as fomes mataram aquele menino. Sobrou o trambiqueiro, o transador. Vapor barato. Há muitos assim. E ainda falam de paz-&-amor, boas-vibrações & alto-astral...
5 de abril
Pablo foi embora para Barcelona. Não conseguiu o passaporte falso, vai ter mesmo que enfrentar o serviço militar. Dei a ele a pulseira marroquina, provavelmente não vamos nos ver nunca mais. Mas não vou esquecê-lo, repetindo horas cada vez que tomava ácido “No es verdad... No es posible... No lo puedo creer..”
10 de abril
Duas cartas ao mesmo tempo, escritas quase no mesmo dia. Uma de Anita, a garota sueca que vendia sorvete ano passado no quiosque em Estocolmo, perguntando se não vou trabalhar lá este verão. A outra é de Clara, no Rio, dizendo que sim, que eu vá, que continua sempre a minha espera.
E se eu mudasse meu destino num passe de mágica? Voltar a Estocolmo, casar com Anita, ganhar passaporte sueco, auxflio desemprego do governo, viajar para a Índia, Goa, Nepal, Katmandu. Não sei se conseguiria. Estranho, mas é sempre como se houvesse por trás do livre-arbítrio um roteiro fixo, predeterminado, que não pode ser violado. Um roteiro interno que nos diz exatamente o que devemos ou não fazer, e obedecemos sempre, mesmo que nos empurre para aquilo que será aparentemente o pior. O “pior” às vezes é justamente o que deveria ser feito?
16 de abril
Quatro freaks no Holland Park, ao entardecer, embaixo de uma árvore toda vermelha, tocando flauta e cítara. Parecem uma pintura. Sentamos embaixo de outra árvore em frente, Hermes e eu, e ficamos olhando como se fôssemos nós mesmos num espelho, passados a limpo. Pareciam eternos. Sorriram para nós, mas de repente tive consciência do saco de papel todo amassado do supermercado de Earl’s Court nas minhas mãos suadas, me voltou a dornas costas de posar imóvel para escultura. Levantamos, atravessamos o parque e de repente estávamos em Nothing Hili Gate e a cidade era confusa e suja e barulhenta.
20 de abril
Fui rever Midnight Cowboy depois da escola. Já havia visto no Brasil, mas naquela época era pura ficção. Agora não, parecia minha própria vida, só um pouco piorada. Fumei um e fiquei dando voltas no Hyde Park sem ter a menor idéia de onde estava, em que cidade, que país, só sabia que era num planeta sujo.
29 de abril
Na estação de Charing Cross um desconhecido todo vestido de couro negro me diz que quando o viajante interplanetário se aproxima de Saturno imediatamente sente a mudança das vibrações. Que a forma dos habitantes de Saturno darem boas-vindas é fazer amor com os visitantes. Disse que vinha de Saturno e me convidou a fazer amor com ele. Perguntou: “Posso atravessar as portas de seu templo?” Tá querendo me enrabar, traduzi. E caí fora. A loucura brilhava nos olhos dele. Bem, de qualquer forma foi a cantada mais cósmica que já recebi em toda a minha vida.
7 de maio
Pelo menos estou vivo. Em movimento, andando por aí, perdendo ou ganhando, levando porrada, passando fome, tentando amar. “De cada luta ou repouso me levantarei forte como um cavalo jovem”, onde foi que li isso? Sei: Clarice Lispector, meu Deus, foi em Perto do Coração Selvagem.
8 de maio
Daniel, o espanhol anarquista e escultor da Barrow Hili Studio, onde comecei a posar também, fala muito no poeta León Felipe. “Tenía cojones “, repete. Hoje me emprestou a Antologia Rota e copiei:
El mundo es una siot machine con una raflura en la frente del cielo,
sobre ia cabecera dei mar (Se há parado la máquina se ha parado la cuerda.)
El mundo es algo que funciona como ei piano mecánico de un bar
(Se ha acabado la cuerda se há parado la máquina.)
Marinero, tu tienes una estrelia en ei bolsillo...
Drop a star!
Enciende con tu mano ia nueva música dei mundo, la canción marinera de maíiana,
ei hymno venidero de los hombres...
Drop a star! Echa a andar otra vez en este barco vazio, marinero.
Tu tienes una estrelia en ei bolsiilo...
Una estrelia nueva, de paiadío, de fósforo, de imãn.
13 de maio
Tentei durante quase uma semana, não consegui trabalho na fábrica. Isso quer dizer que voltarei ao Brasil sem dinheiro. Talvez nem possa passar no Rio para ver Clara. O flat está uma bagunça. Hermes e quase todos os outros vão para Estocolmo trabalhar durante o verão, ninguém mais se importa com nada. Sábado vamos para Swiss Cottage, para a casa de Charles, de lá parto para o Brasil.
16 de maio
Passamos a noite na delegacia de Earl’s Court.
Motivo: Hermes e eu fomos presos roubando uma biografia recém-lançada de Virginia Woolf escrita por Quentin BelI, o filho de Vanessa. Ficamos rondando, eram dois volumes cheios de fotos, eu estava com a capa marroquina, Hermes com um casaco enorme. Enfim apanhamos um volume cada um e saímos para a High Street Kensington. Já estávamos quase no parque quando o cara da livraria veio correndo atrás. Chamaram a polícia, Hermes nervosíssimo, achando que seríamos deportados. Brinquei, dizendo que de agora em diante Virginia Woolf seria nossa padroeira, nossa fada-madrinha. E que anay era um roubo muito digno. Dormimos cada um em uma cela e de manhã cedo, sem café nem nada, nos levaram num carro cheio de pequenas celas individuais para Shepherd’s Bush, para apanhar mais presos. Conversei um pouco com um suíço ladrão de jóias, elegantíssimo, bigodes louros retorcidos para cima, a cara de Helmut Berger. Havia mais duas indianas pegas roubando roupas íntimas na Biba e umfreak holandês com uma mala enorme cheia de tijolos de haxixe. Todos odeiam a Inglaterra. Roubaram o mundo inteiro, diz uma das indianas, e agora não querem ser roubados?
Fomos julgados na corte de Hammersmith, o mesmo lugar onde julgaram Angie das outras vezes. O juiz era uma mulher, cara muito fechada. Dissemos que éramos estudantes de literatura e não tínhamos grana para comprar livros. Não adiantou nada: trinta libras de multa para cada um. Merda, todo o dinheiro que eu pretendia levar para o Brasil. Hermes foi trabalhar arrasado. Vim para casa, deitei no meio do kaos com aquele xale roxo de fazer bad trip e fiquei esperando visitas. Essas notícias correm depressa, todo mundo já sabia, e também todo mundo já foi preso. Chico trouxe o violão e cantou, Helô jogou um Tarot para mim, mas sempre sai a Torre Fulminada pairando, ela fica insistindo que pode ter um bom significado, mas sei que é sempre péssimo. Sylvia trouxe um bolo e um maço de Players Number Six, vai depois de amanhã para Estocolmo. Suavíssimos, todos. Imagine se eu ia perder uma oportunidade rara dessas de ser bem-tratado.
22 de maio
Eu me fui, eu me sou, eu me serei em cada um dos girassóis do reino a ser feito. E as coisas terão que ser claras. Releio o que escrevi neste caderno, desde janeiro, revejo o que vivi. Tudo me conduziu para este here and now. Tudo terá que ser claro. How can I tell you?
25 de maio
Cartão de Estocolmo, Sylvia diz: “Índia is the way”. No fim do verão, há sempre caronas saindo de Amsterdam. Vai-se pelo Nepal, pela Armênia. O caminho terrestre para as Indias. Todo mundo está indo para lá, Sylvia garante. Vacilo, fico pensando: e se eu mudasse tudo e fosse também? Primeiro Estocolmo
— tak, tak, inte pratte svenska, venta pomei —, um quarto em Kungshambra ou Freskati. Depois Katmandu em vez de Copacabana, budismo tibetano em vez de escola de samba.
26 de maio
Hermes me dá os poemas de Sylvia Plath. São febris, obsessivos, mórbidos, mas não consigo parar de ler. Fico tentando traduzir Fever 103, mas é difícil, já nos três primeiros versos tenho um problema:
Pure? What does it mean? The tongues ofhell
Are duli, duil as the triple (...)
Os dois primeiros versos, tudo bem. E “labaredas” acho que fica melhor que “línguas”, é evidente que ela está se referindo ao fogo dos infernos. Mas como traduzir duli? Opacas, sujas, gordurosas? Sylvia Plath é sempre um mal-estar.
27 de maio
Hermes também partiu para Estocolmo, me deixou alguns cleanings. Com Charles, vim para um fim de semana em Chichester, na casa de Billy e Mike. É bonito aqui. A cozinha branca, o bule vermelho sobre a mesa de madeira, a janela aberta para ojardim cheio de rosas e trepadeiras, um dia de primavera nítido. As vozes de Charles, Billy e Mike lá fora, combinando assistirem Diana Dors no festival de teatro, à noite ela faz Seis Personagens em Busca de um Autor de Pirandello. Quando criança, eu colecionava fotos dela, de Jayne Mansfield e Mamie van Doren, todas as imitadoras de Marilyn Monroe. Agora, ela é uma senhora de idade, virou artista séria, a dois passos daqui. A vida é mesmo doida. Talvez eujá não esteja completamente aqui. Nem lá, seja onde for. Antes de viajar, fico pairando. Talvez a alma parta antes, e não saiba direito para onde ir sem o corpo. Na morte deve ser parecido.
Billy pergunta de Angie. Foi deportado, digo — é verdade, alguém me contou há alguns dias, não lembro quem. Sei que Deborah ficou em Londres, me disseram que estava trabalhando como scort-girl. Charles seca a Henna dos cabelos ao sol. Há tanto sol hoje, quase tanto quanto no Brasil todos os dias. Me revisito no inverno, subindo as escadas sujas no escuro, uma vela acesa na mão, sentindo fome, o dente quebrado. Quero esquecer completamente. E sei que nunca esquecerei.
28 de maio
Fui fazer meu último cleaning. Diálogo com Mrs. Simmons:
— What about rnyfears?
— Well, I neverpayfears to Hermes.
— Sorry, but I’m not Hermes. I came from Chichester today only to clean your house.
Fui ao banheiro lavar as mãos. Tinha que me dar dez pences. Uma inglesona redonda, rosada, busto enorme, corada, aquele ar de gentileza excessiva que esconde sempre o desprezo. Que povo. Quando saio do banheiro, ela me espera na escada com uma moeda de cinco pences na pata gorducha.
— That’s your money.
Fiquei puto, berrei:
— I don’t want it! I don’t need yourfucking money! I hate all the English ladies!
Fui saindo. Ela atrás, imperturbável, monstruosa:
— Please, could you take the rabbish to the basement?
— No! I can not! I’m going to my country!
29 de maio (no avião)
Problemas em Heathrow na hora de pesar a bagagem. Teria que pagar umas trinta libras de excesso, e eu só tinha cinco. Enfiei uns jeans dentro das mangas de um casaco, distribui outras coisas pelos bolsos, mas tive que deixar muita coisa com Charles. Ficaram todos os panos indianos, os livros de Tarot,
Macrobiótica, Alquimia, Astrologia, o vaso chinês, as duas bonecas, a bailarina e a camponesa, a chaleira Rudolpha Elizabeth. E os diários todos da Espanha, França, Suécia, Holanda, os primeiros tempos de Londres. Fiquei pensando se não terei deixado o essencial — e o essencial eram as coisas que coloriram a minha vida nesses dois anos sem cor.
Vejo a Inglaterra de cima. Não sinto nada. Vazio. Agora tudo é passado. Meu presente é este vôo onde nada acontecerá. E o futuro branco. Londres fica para trás. Ainda está claro, dá para ver o canal da Mancha, a ilha de Wight ao longe. Fome. Vontade de conversar com alguém, mas perto só há uns italianos de ternos escuros falando muito rápido, parecem mafiosos. E devem ser.
Canapés e coca-cola. A aeromoça da Aerolineas Argentinas fala espanhol com os outros e inglês comigo. Deve ser o brinco na orelha esquerda, roubado do antiquário de Chichester, a bolsa indiana roubada na Biba, os óculos roubados em Portobeilo. E tudo roubado, carifio, puedes habiar espanhol.
Orly. Afinal, não voltei a Paris. Mas haverá tempo. Um crescente enorme no céu. Faço as contas, deve estar em Virgem. Reorganizar tudo no Brasil? Sobe um time inteiro de futebol ou algo assim, franceses. Cutucam-se, me olham, me filmam. Minha aparência destoa completamente de todo o resto. Começo a desconfiar que London, London, Babylon City é um lugar very, very special.
Peço à aeromoça algumas revistas oujornais brasileiros. Ela me traz uma Manchete. Misses, futebol, parece horrível. Então sinto medo. Por trás do cartão-postal imaginado, sol e palmeiras, há um jeito brasileiro que me aterroriza, O deboche, a grossura, o preconceito.
Saímos de Madri, Barajas. Dei uma voltinha pelo aeroporto. Uma caretice absolutamente inacreditável, é como se tivesse entrado numa máquina do tempo. Devo ter ficado tão acostumado às roupas e ao feeling londrino que simplesmente esqueci que, além da ilha, existem outras coisas. A memória é sempre muito sacana.
De dentro do caderno cai uma folha dobrada. É um poema que Clara encontrou, copiou e mandou do Rio, sobre Ícaro. Diz que é de Darwin, acho estranho. Mas leio outra vez e copio para não pensar:
Com a cera derretendo e oflo solto caiu o desgraçado Ícaro, sob inertes asas;
direto através do céu medonho, com os membros torcidos e os cabelos em desalinho,
sua plumagem espalhada dançou sobre a onda e, chorando-o, as nereidas ornaram sua sepultura
aquática. Sobre seu pálido corpo deitaram suas flores de
pérolas marinhas e espalharam musgo vermelho no seu leito de mármore e em suas torres de coral repicaram os sinos que ressoaram sobre o vasto oceano esse dobre.
Sobrevoamos o Atlântico, a grande asa sob minha janela. Escrevo, escrevo, O ronco dos motores, as narinas cheias de casquinhas de sangue endurecido. Penso em Sylvia, em Estocolmo, irá mesmo para a Índia? E eu não fui, agora é tarde. Tenho medo, desde Londres as palmas de minhas mãos estão encharcadas de suor.
Meu Deus, não sou muito forte, não tenho muito além de uma certa fé — não sei se em mim, se numa coisa que chamaria de justiça-cósmica ou a-coerência-final-de-todas-as-coisas. Preciso agora da tua mão sobre a minha cabeça. Que eu não perca a capacidade de amar, de ver, de sentir. Que eu continue alerta. Que, se necessário, eu possa ter novamente o impulso do vôo no momento exato. Que eu não me perca, que eu não me fira, que não me firam, que eu não fira ninguém. Livra-me dos poços e dos becos de mim, Senhor. Que meus olhos saibam continuar se alargando sempre. Sinto uma dor enorme de não ser dois e não poder assim um ter partido, outro ter ficado com todas aquelas pessoas.
Volta a pergunta maldita: terei realmente escolhido certo? E o que é o “certo”? Digo que todo caminho é caminho, porque nenhum caminho é caminho. Que aqui ou lá — London, London, Estocolmo, Índia — eu continuaria sempre perguntando. Minhas mãos transpiram, transpiram. O nariz seco por dentro. Não quero escrever mais nada hoje. Um casal transa em pé no corredor, sobre o Atlântico. O italiano a meu lado dorme com a mão no pau o tempo todo, será um costume latino?
A lua já se foi. As Plêiades, como dizia Safo, já foram se deitar. E eu vim-me embora, meu Deus, eu vim-me embora.
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