Imagine-se cercado de estrelas.
Ali do lado, ao alcance da mão
É fácil enlouquecer durante a
semana de cinema brasileiro, em Gramado. Sem falar no choque cultural com a
cidade europeizada, sem nordestinos nem mendigos; sem falar na estranha neblina
que desce de repente do pico das serras, a qualquer hora do dia, para ir embora
sem o menor aviso; sem falar no ar tão limpo e na luz tão clara que chegam a
doer nos pulmões e nos olhos acostumados ao cinza urbano. Mesmo sem considerar
isso tudo ajudando no processo de loucura— há as estrelas.
E estrelas,
você sabe, não são de carne e osso. Pelo menos no meu coração de guri criado no
meio dos campos da fronteira com a Argentina, vendo estrelas só no céu — o céu
do Rio Grande é o mais belo do Brasil, sem bairrismos — e nas revistas. As
estrelas das revistas mais intocáveis até do que as do céu, que numa
determinada época do verão costumavam desabar aos montes em direção ao
horizonte. Fazíamos pedidos. As outras, as da terra, não víamos nunca. No
máximo, Vicente Celestino e—Jesus, como sou antigo!—Procópio Ferreira. Fiquei
não só extasiado, mas, para usar o adjetivo exato, estarrecido também.
Agora,
imagine-se você cercado de estrelas durante uma semana inteira. Ali do lado,
ao alcance da mão. É pirante. Você sai do quarto e dá de cara com a moça do
quarto ao lado. E a moça do quarto ao lado é nada menos que Nicole Puzzi. Você
pega o elevador e uma lourinha simpática faz um comentário rápido sobre o
tempo: é Débora Bloch. Aí você vai tomar um café, e o gatão ao lado pede o
açúcar: é Nuno Leal Maia. No corredor, meio estonteado, você esbarra sem querer
em Marieta Severo. Enquanto pede mil desculpas, alguém esbarra em você: é
Arnaldo Jabor. Você resolve ir ao banheiro molhar os pulsos — e quem está
fazendo xixi ali do lado, como se fosse a coisa mais normal do mundo? Chico
Buarque de Hollanda. Você pensa, meu Deus, preciso sair urgente deste hotel,
dar uma volta na rua, ver gente comum, banal, mortal, normal.
Até conseguir
chegar à rua, você já tropeçou em Cláudio Marzo, Bruna Lombardi, Fernanda
Torres, Riccelli, Roberto Bonfim, Miriam Rios e — socorro, assim também é
demais! — Tom Jobim. De cabeça baixa, para não ver mais ninguém, porque chega!
você corre para o bar mais fuleiro da esquina. Um bar onde estrelas não
entrariam. Mineral com gás, por piedade. O cara ao lado, um de bonezinho, acha
a idéia boa e pede uma também. Você olha para a cara ao lado. Embaixo do
bonezinho está Ney Latorraca. Você desiste da água, sai a mil pra rua. E
choca-se com uma senhora alta, elegantési- ma: Ilka Soares. Logo a tia Ilka, de
quem eu colecionava fotos recortadas de O Cruzeiro, Vida Doméstica e
Cinelândia?
Não, eu não
agüento. Não fui feito para essas alturas. Uma vez em que Caetano me sorriu na
praia, baixei os olhos e passei batido com o ar mais remoto que consegui armar
na cara. Tenho medo-pânico de estrelas. Do céu, da terra. Elas devem permanecer
no espaço, nas telas, nos palcos. Não andar se misturando por aí, nos bares,
nos balcões, nos elevadores, nos banheiros — feito fossem seres comuns.
Preciso — como o Molina, de O beijo da mulher-aranha — ter certeza de que as
estrelas são todas como a Leni Lamaison, de Sônia Braga, fumando com gestos
largos, cobertas por metros de tule negro, longe do insensato mundo.
Caso
contrário, digo ao povo que piro. Não vou admitir de jeito nenhum que as
estrelas tenham um cotidiano assim pobrinho que nem o nosso. Como meu irmão
Felipe, quando tinha uns dez anos, que me perguntou:
— Caio, a Brigitte Bardot também
faz cocô? Até hoje, eu juro que não.
O Estado de S. Paulo, 15/4/1986
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