Uma esquizocrônicapara Samuel
Beckett Na forma do caos
Nuvens radioativas, pacotes econômicos:
nunca fomos tão felizes! Terroristas líbios, uma colagem de Vicente Kutka,
qualquer ponto do sensível, ah: resgates, punks no metrô, copos de vinho tinto,
um blues de Bessie Smith, sauna japa na Liberdade, trocar lençóis na sexta,
Anjelica Huston de chapéu negro, aquele olhar chiquérrimo sobre o mundo, táxis,
táxis, alguém no JB referindo-se aos "esfuzian- tes-anos-80" (?),
cortes na seleção, leves paranóias, mas eu sei onde estou metido, gangues
juvenis, a frase de Beckett dando voltas na cabeça: nenhuma dor, quase nenhuma
dor—isso é que é maravilhoso, velhinhos tocando Olhos negros no Brahma,
cartão-postal de Paris na cabeceira, tons dourados, folhas mortas, como te amei
e não disse, Giovanni guilhotinado por amor, imperceptivelmente chegar à próxima
face depois desta, talvez desprezível, graves paranóias, o relógio da Paulista
marcando trágico, lento & inexorável o começo do fim de domingo, sinto
falta de você, hi-fi com Fanta: astral Bukowski, geladas fotos sensuais de
Pedro Fedrizzi, alguém me chamando de "tiete-bem-pensante" (?), mas
não pensem que não sei onde estou metido, pessoas cirandando em torno de um
poste, madrugada de sábado no Bexiga, engarrafamentos de trânsito, pressa
dentro dos táxis, dragão tatuado no braço, muito busto, muita coxa, Hélio que
vai para a Europa, yuppies na Oscar Freire, Bruna Lombardi, Diadorim,
homem-mulher, feijoada no Supremo, nenhuma importância, só porque sei onde
estou metido, outra vítima de aids, parem de me testar: sou legal, cara,
pizzarias entupidas de criancinhas, táxis, táxis, atriz argentina joga-se pela
janela, e se eu dissesse de repente e sem pudor eu-te-amo? Patrícia em prantos
ao telefone, de pura transgressão beber litros de água mineral em pleno Madame
Satã, quem me seduz? Olhar com medo, olhar com perdão, olhar com interesse,
olhar com náusea e paixão, e de jeito nenhum compreender nada de onde se está
desgraçadamente metido, telefones que não param de tocar, Rê
Bordosa minha amada à beira do suicídio, não esquecer de comprar gilete G-II,
que falta faz Ana C., meu Deus do céu, palavras lindas na letra M do Aurelião,
repetir fascinado me- tâmero, metasterno, metereoscópio, paranóias
desenfreadas, tudo o que você quiser, e táxis, táxis, monóxido de carbono,
amigos solicitando estranhíssimas cumplicidades, copos e copos de vinho tinto,
ninguém dizendo meu-amor, suspeitas, censura interna outra vez, palavrão não
pode, esse filme que já vi e por isso mesmo sei onde estou metido, uma carta
que não chega nunca, nossa, como estou me lixando, vela branca pro anjo da
guarda, bate outra, sal de frutas, pó de guaraná, candidatura de Gabeira,
sen-si-bi-li-da-de-ex-ces-si-va não, meu caro: honestidade, epidemias, vírus,
pestes, dengues, devia vender mais caro minh'alminha inestimável, Toninho ameaçado
pelos skinheads, nenhuma solidariedade, azia na certa amanhã de manhã,
saudade, saudade inútil o tempo todo de qualquer coisa indefinida, de alguém
desconhecido, investigar preço de secretária eletrônica, ter certeza de que em
algum ponto do caminho se perdeu e ponto, e pronto, acabou, e para sempre,
querido e não tocado jamais, mobilizado pela raiva, por favor me leva daqui
para que eu me esqueça de onde sei que estou metido, corrompido até o último
hímen, já temos um passado, meu amor, me convida pra jantar na tua casa, bota
Billie Holiday baixinho, depois me dá um beijo na boca, bem molhado,
irrecusável, um sonho com Hilda Hilst, o texto, o texto, traí meu destino,
companheira, empurrado pela desordem, sobrevivendo ao naufrágio, agarrado
mísero e adjetivoso a meu pedaço de madeira flutuante, e agora chega, chega,
let it be, let it be, baby, que la vie, em rose ou em black no duro — é sempre
uma brasa, mora: o caos é a forma.
Quanto a
vocês, salve-se quem puder. Porque quanto a mim, querida, querido, queridos—eu?
Ah: eu juro por todos os santos que sei muitíssimo bem onde estou metido.
O Estado de S. Paulo, 6/5/1986
Marcadores: A vida gritando nos cantos
Eliete chegou no meio do speed.
No terceiro dia da paixão, virei tiete
Estou apaixonado.
Não se
preocupem, não é por uma pessoa. Ou é, sim, por uma pessoa.
Mas só
indiretamente. Estou apaixonado pelo trabalho dela, pela voz, pelo clima, pela
delicadeza e pela Arte (assim mesmo, com maiúscula) dela. Deixo de mistério,
entrego: Eliete Negreiros e seu último — segundo, ao que sei — LP, da
Copacabana.
E isso que
ando difícil, ando torturado. Não tenho tempo, corro o dia todo, acho tudo e
todos barulhentos, exaustivos. Movido por esse horrível sentimento de urgência
paulistana que não me deixa olhar nada lentamente, sentir devagar. Sufocado,
ando apressado. Nos segundos roubados desse estrangulador ganhar-a-vida, me
alimento de jóias raras: João Gilberto, sempre, um pouco de Sade, Billie,
Bassie, Nana Caymmi, Nara Leão, Schumann. Tudo o mais me parece atordoante.
Ando em busca do silêncio que a cidade não dá. Da paz que a cidade não dá. Da
suavidade zen que esta cidade não dá, nunca deu nem dará nunca. A ninguém.
Foi no meio do
speed que chegou Eliete. Eu nunca tinha prestado atenção nela. Mal nos
conhecemos, mais através de um lindo amigo em comum—Milton Hatoum, o Manaus.
Mas tenho preconceitos. É feio, sei, mas tenho. Daí pensava: ai meu Deus, mais
esta Arriguete, com aquelas letras concretistoides geladas &
modernésimas... Nunca tive paciência para ouvir Eliete antes. Embora, nas
poucas vezes em que nos cruzamos, ficasse agradecido e contagiado pela paz
dela.
Comecei pela
versão de La vie en rose. Deu um clack! na cabeça, não sei explicar. Fui
arriscando outras faixas, uma por uma, medo de estar enganado. Não estava.
Primeiro veio uma letra lindíssima de Zé Miguel Wisnik, com música de Carlos
Rennó: Domingo longo (ah, conheço tantos); veio um samba de Elton Medeiros e Eduardo Gudin, falando
"às vezes se guarda o melhor caminho/ se oculta o desejo pra não
sofrer".
Uns blues
doloridos de Itamar Assumpção. O sax de Roberto Sion. No meio da pressa, como
eu ia dizendo, a voz mansa, afinadíssima, de Eliete dizendo sossega, sossega,
meu amigo, tudo é coisa de gente, tem um bonito in aparente por trás, tenta
ver.
No terceiro
dia da paixão, virei tiete e liguei pra ela. Queria dizer obrigado, menina,
quando você canta, a vida para de girar tão rápido e até parece bonita. Ela foi
paciente com minha invasão. Desliguei agradecido, espantado com minha própria
ousadia. Agradecer é difícil. E a gente precisa aprender, a gente precisa.
Aprender a não ser só.
Eliete,
new-bossa. Para que vocês compreendam: o primeiro LP que comprei na vida foi de
Sylvinha Telles. Tinha doze anos. Aos trinta e sete, só João Gilberto me
sereniza. Ou Astrud. Há um mês, só tiro para lavar uma camiseta escrita
"Bossa-Nova", que o Pardal, lá da lojinha do mesmo nome, me deu.
"Ah, bossa-nova, new-bossa, olha eu aqui sem viver" — chora minha
rainha Rita Lee. A vida então se adoça. Gosto de mel, de flor, de azul. Não de
avenida Paulista nem de Madame Satã. Preciso manter a ilusão de que tudo pode
ser doce. Preciso acreditar que a vida pode ser como a voz de Eliete. E que em
alguma esquina, um dia — por que não? — encontrarei um amor bonito esperando
por mim.
Quando saio,
agora, fico impaciente. Quero voltar pra casa, colocar logo o disco para que o
mundo todo se reorganize em doçura. Gostar de ouvir Eliete é cuidar de um
certo jeito de olhar o mundo. Por trás do susto, perdão de olhos molhados,
pegar na mão devagarinho e repetir de verdade, do fundo, sem o menor pudor, sem
ânsia alguma:
—Gosto de
você. Você existir me ajuda a viver.
Depois,
acreditar que tudo vai dar certo. E deixar — como ela canta—que o amor dê o que
falar.
O Estado de S. Paulo, 29/4/1986
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