Tenho dificuldade para dormir. Vezenquando por razões objetivas: febres, suores, tosses, aqueles vudus que só soropositivos conhecem. Mas essas nem são as piores noites. Mais horrível é quando não durmo de Puro Ódio, com maiúsculas. Fico então tentado a ligar para Hilda Hilst, outra que também dorme mal. Hilda me disse que reza, e chora, e pensa com pena e dor no planeta, e que tudo se agravou desde que cometi a imprudência de enviar a ela um livro do psicanalista gaúcho Ernesto Bono — exatamente aquele em que ele levanta a inquietante tese de que a Terra está tomada por extraterrestres do Mal, capazes de substituir um ser humano por um clone, ou simplesmente seqüestrá-lo. Desde que leu Bono, Hilda — delirante, impressionável, e um pouco por isso mesmo a mais brilhante escritora brasileira viva — acrescentou a suas velhas angústias noturnas mais essa: ser “trocada” por um ET...
Esse medo não tenho, tô muito bombardeado pra interessar a ETs, mas também rezo e penso no planeta com imensa pena. Só não choro porque o Ódio é maior que a pena. Rolando na cama, luzinhas vermelhas do vídeo, computador e baterias brilhando no escuro, teço medonhas fantasias no meio da noite. Como estas: Amanhã de manhã vou sair pelas ruas desgrenhado como se ainda tivesse cabelos, em robe de chambre e barba por fazer e chinelos em frangalhos aos berros de chega! chega! e vou até Triunfo, nem que seja a pé, soltar uma bomba na câmara de vereadores e cuspir na cara daquele tal Deusinho e vou gritar aos quatro ventos como é que foi mesmo aquela história do seqüestro do pai de Romário? e o massacre dos sem-terra em Rondônia? por que ninguém fala mais nisso? e quando estiver bem doido eu vou entrar clandestino num avião da Air France para ir até Paris dar um tiro bem no meio dos cornos de Jacques Chirac pois cá entre nós alguém tem que fazer esse servicinho mas depois vou ficar comovido e vai me baixar uma Teresa de Calcutá de frente e partirei para a Bósnia chorando alto como chorei naquele cinema em Saint-Germain-des-Prés ano passado vendo Bosna! documentário que Bernard-Henry Lévi fez lá naquele inferno e tudo isso sempre gritando chega! chega! chega! tomado de cólera divina e asco e. Corta.
Nesse trecho da viagem, se não dormi, o cinza das madrugadas já começou a ficar cada vez mais claro através das frestas das persianas. E é possível que eu ceda à tentação de tomar mesmo um Lexotan 3 mg com 40 gotas de codeína, coisa que faço rarissimamente, vez por mês, modestíssima orgia barbitúrico-estupefaciente. Mas é mais provável que levante bem na hora do lobo, cinco, cinco e meia da matina, para abrir as janelas do quarto lembrando sempre daquela peça de Antônio Bivar, Abre a janela e deixa entrar o ar puro e o sol da manhã, em que Maria della Costa estuprava uma estátua grega. Certamente irei ao quarto dos fundos que virou biblioteca, também para escancarar janelas e ver o sol nascer atrás dos telhados, enquanto cheiro a malva que Nídia Guimarães me deu em Canela. Pego ao acaso Hoelderlin, Anne Sexton, Mário Quintana ou T. S. Eliot, poetas assim, dessa estirpe, leio meia dúzia de versos, depois desço apaziguado as escadas até a cozinha. E passo café e faço pranaiamas nirvânicos voltado para o Oriente e observo como anda o pé de araçá plantado há um mês e cuido também o alecrim, o poejo, a hortelã, o boldo, a arruda, o manjericão, o capim-cidró, e só depois suspiro cheio de amor por todas as coisas belas que o Criador fez para o deleite nosso. Beatificado.
Passou, penso, o Puro Ódio passou.
Aí pego os jornais do dia embaixo da porta. No primeiro cigarro, descubro que não, não passou. A moça bonita de Garibaldi jogada no rio, terremotos, vendavais pelo Caribe (ai, Jacques Chirac!), balas perdidas, evangélicos chutando santas, ai clips quentintarantinescos do horror nosso de cada dia. Nove da manhã meus pais já levantaram, chegou a diarista. Tomar banho. Lento, limpo, longo. Porque assim é, todo dia, e a gente diz sim, alguns não admitem. Esses me interessam. Welcome, companheiro desta ala Sul da enfermaria Shikasta!
Esse medo não tenho, tô muito bombardeado pra interessar a ETs, mas também rezo e penso no planeta com imensa pena. Só não choro porque o Ódio é maior que a pena. Rolando na cama, luzinhas vermelhas do vídeo, computador e baterias brilhando no escuro, teço medonhas fantasias no meio da noite. Como estas: Amanhã de manhã vou sair pelas ruas desgrenhado como se ainda tivesse cabelos, em robe de chambre e barba por fazer e chinelos em frangalhos aos berros de chega! chega! e vou até Triunfo, nem que seja a pé, soltar uma bomba na câmara de vereadores e cuspir na cara daquele tal Deusinho e vou gritar aos quatro ventos como é que foi mesmo aquela história do seqüestro do pai de Romário? e o massacre dos sem-terra em Rondônia? por que ninguém fala mais nisso? e quando estiver bem doido eu vou entrar clandestino num avião da Air France para ir até Paris dar um tiro bem no meio dos cornos de Jacques Chirac pois cá entre nós alguém tem que fazer esse servicinho mas depois vou ficar comovido e vai me baixar uma Teresa de Calcutá de frente e partirei para a Bósnia chorando alto como chorei naquele cinema em Saint-Germain-des-Prés ano passado vendo Bosna! documentário que Bernard-Henry Lévi fez lá naquele inferno e tudo isso sempre gritando chega! chega! chega! tomado de cólera divina e asco e. Corta.
Nesse trecho da viagem, se não dormi, o cinza das madrugadas já começou a ficar cada vez mais claro através das frestas das persianas. E é possível que eu ceda à tentação de tomar mesmo um Lexotan 3 mg com 40 gotas de codeína, coisa que faço rarissimamente, vez por mês, modestíssima orgia barbitúrico-estupefaciente. Mas é mais provável que levante bem na hora do lobo, cinco, cinco e meia da matina, para abrir as janelas do quarto lembrando sempre daquela peça de Antônio Bivar, Abre a janela e deixa entrar o ar puro e o sol da manhã, em que Maria della Costa estuprava uma estátua grega. Certamente irei ao quarto dos fundos que virou biblioteca, também para escancarar janelas e ver o sol nascer atrás dos telhados, enquanto cheiro a malva que Nídia Guimarães me deu em Canela. Pego ao acaso Hoelderlin, Anne Sexton, Mário Quintana ou T. S. Eliot, poetas assim, dessa estirpe, leio meia dúzia de versos, depois desço apaziguado as escadas até a cozinha. E passo café e faço pranaiamas nirvânicos voltado para o Oriente e observo como anda o pé de araçá plantado há um mês e cuido também o alecrim, o poejo, a hortelã, o boldo, a arruda, o manjericão, o capim-cidró, e só depois suspiro cheio de amor por todas as coisas belas que o Criador fez para o deleite nosso. Beatificado.
Passou, penso, o Puro Ódio passou.
Aí pego os jornais do dia embaixo da porta. No primeiro cigarro, descubro que não, não passou. A moça bonita de Garibaldi jogada no rio, terremotos, vendavais pelo Caribe (ai, Jacques Chirac!), balas perdidas, evangélicos chutando santas, ai clips quentintarantinescos do horror nosso de cada dia. Nove da manhã meus pais já levantaram, chegou a diarista. Tomar banho. Lento, limpo, longo. Porque assim é, todo dia, e a gente diz sim, alguns não admitem. Esses me interessam. Welcome, companheiro desta ala Sul da enfermaria Shikasta!
Marcadores: Pequenas Epifanias
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