tag:blogger.com,1999:blog-162823082024-03-18T06:14:40.016-03:00Caio Fernando Abreuludelfuegohttp://www.blogger.com/profile/08109557533556971820noreply@blogger.comBlogger231125tag:blogger.com,1999:blog-16282308.post-72282898248831559052014-01-26T21:16:00.000-02:002014-01-26T21:16:00.205-02:00A vida é uma brasa, mora?<div class="MsoNormal" style="mso-outline-level: 3; text-align: justify;">
Uma esquizocrônicapara Samuel
Beckett Na forma do caos</div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Nuvens radioativas, pacotes econômicos:
nunca fomos tão felizes! Terroristas líbios, uma colagem de Vicente Kutka,
qualquer ponto do sensível, ah: resgates, punks no metrô, copos de vinho tinto,
um blues de Bessie Smith, sauna japa na Liberdade, trocar lençóis na sexta,
Anjelica Huston de chapéu negro, aquele olhar chiquérrimo sobre o mundo, táxis,
táxis, alguém no JB referindo-se aos "esfuzian- tes-anos-80" (?),
cortes na seleção, leves paranóias, mas eu sei onde estou metido, gangues
juvenis, a frase de Beckett dando voltas na cabeça: nenhuma dor, quase nenhuma
dor—isso é que é maravilhoso, velhinhos tocando Olhos negros no Brahma,
cartão-postal de Paris na cabeceira, tons dourados, folhas mortas, como te amei
e não disse, Giovanni guilhotinado por amor, imperceptivelmente chegar à próxima
face depois desta, talvez desprezível, graves paranóias, o relógio da Paulista
marcando trágico, lento & inexorável o começo do fim de domingo, sinto
falta de você, hi-fi com Fanta: astral Bukowski, geladas fotos sensuais de
Pedro Fedrizzi, alguém me chamando de "tiete-bem-pensante" (?), mas
não pensem que não sei onde estou metido, pessoas cirandando em torno de um
poste, madrugada de sábado no Bexiga, engarrafamentos de trânsito, pressa
dentro dos táxis, dragão tatuado no braço, muito busto, muita coxa, Hélio que
vai para a Europa, yuppies na Oscar Freire, Bruna Lombardi, Diadorim,
homem-mulher, feijoada no Supremo, nenhuma importância, só porque sei onde
estou metido, outra vítima de aids, parem de me testar: sou legal, cara,
pizzarias entupidas de criancinhas, táxis, táxis, atriz argentina joga-se pela
janela, e se eu dissesse de repente e sem pudor eu-te-amo? Patrícia em prantos
ao telefone, de pura transgressão beber litros de água mineral em pleno Madame
Satã, quem me seduz? Olhar com medo, olhar com perdão, olhar com interesse,
olhar com náusea e paixão, e de jeito nenhum compreender nada de onde se está
desgraçadamente metido, telefones que não param de tocar, Rê
Bordosa minha amada à beira do suicídio, não esquecer de comprar gilete G-II,
que falta faz Ana C., meu Deus do céu, palavras lindas na letra M do Aurelião,
repetir fascinado me- tâmero, metasterno, metereoscópio, paranóias
desenfreadas, tudo o que você quiser, e táxis, táxis, monóxido de carbono,
amigos solicitando estranhíssimas cumplicidades, copos e copos de vinho tinto,
ninguém dizendo meu-amor, suspeitas, censura interna outra vez, palavrão não
pode, esse filme que já vi e por isso mesmo sei onde estou metido, uma carta
que não chega nunca, nossa, como estou me lixando, vela branca pro anjo da
guarda, bate outra, sal de frutas, pó de guaraná, candidatura de Gabeira,
sen-si-bi-li-da-de-ex-ces-si-va não, meu caro: honestidade, epidemias, vírus,
pestes, dengues, devia vender mais caro minh'alminha inestimável, Toninho ameaçado
pelos skinheads, nenhuma solidariedade, azia na certa amanhã de manhã,
saudade, saudade inútil o tempo todo de qualquer coisa indefinida, de alguém
desconhecido, investigar preço de secretária eletrônica, ter certeza de que em
algum ponto do caminho se perdeu e ponto, e pronto, acabou, e para sempre,
querido e não tocado jamais, mobilizado pela raiva, por favor me leva daqui
para que eu me esqueça de onde sei que estou metido, corrompido até o último
hímen, já temos um passado, meu amor, me convida pra jantar na tua casa, bota
Billie Holiday baixinho, depois me dá um beijo na boca, bem molhado,
irrecusável, um sonho com Hilda Hilst, o texto, o texto, traí meu destino,
companheira, empurrado pela desordem, sobrevivendo ao naufrágio, agarrado
mísero e adjetivoso a meu pedaço de madeira flutuante, e agora chega, chega,
let it be, let it be, baby, que la vie, em rose ou em black no duro — é sempre
uma brasa, mora: o caos é a forma.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 18.0pt;">
Quanto a
vocês, salve-se quem puder. Porque quanto a mim, querida, querido, queridos—eu?
Ah: eu juro por todos os santos que sei muitíssimo bem onde estou metido.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
O Estado de S. Paulo, 6/5/1986</div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
Caio Fernando Abreuhttp://www.blogger.com/profile/06236145863035634830noreply@blogger.com278tag:blogger.com,1999:blog-16282308.post-87229143876776245452014-01-19T21:13:00.004-02:002014-01-19T21:13:54.733-02:00Ah, bossa-nova, new-bossa...<div class="MsoNormal" style="mso-outline-level: 2; text-align: justify;">
Eliete chegou no meio do speed.
No terceiro dia da paixão, virei tiete</div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Estou apaixonado.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 18.0pt;">
Não se
preocupem, não é por uma pessoa. Ou é, sim, por uma pessoa.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 18.0pt;">
Mas só
indiretamente. Estou apaixonado pelo trabalho dela, pela voz, pelo clima, pela
delicadeza e pela Arte (assim mesmo, com maiúscula) dela. Deixo de mistério,
entrego: Eliete Negreiros e seu último — segundo, ao que sei — LP, da
Copacabana.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 18.0pt;">
E isso que
ando difícil, ando torturado. Não tenho tempo, corro o dia todo, acho tudo e
todos barulhentos, exaustivos. Movido por esse horrível sentimento de urgência
paulistana que não me deixa olhar nada lentamente, sentir devagar. Sufocado,
ando apressado. Nos segundos roubados desse estrangulador ganhar-a-vida, me
alimento de jóias raras: João Gilberto, sempre, um pouco de Sade, Billie,
Bassie, Nana Caymmi, Nara Leão, Schumann. Tudo o mais me parece atordoante.
Ando em busca do silêncio que a cidade não dá. Da paz que a cidade não dá. Da
suavidade zen que esta cidade não dá, nunca deu nem dará nunca. A ninguém.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 18.0pt;">
Foi no meio do
speed que chegou Eliete. Eu nunca tinha prestado atenção nela. Mal nos
conhecemos, mais através de um lindo amigo em comum—Milton Hatoum, o Manaus.
Mas tenho preconceitos. É feio, sei, mas tenho. Daí pensava: ai meu Deus, mais
esta Arriguete, com aquelas letras concretistoides geladas &
modernésimas... Nunca tive paciência para ouvir Eliete antes. Embora, nas
poucas vezes em que nos cruzamos, ficasse agradecido e contagiado pela paz
dela.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 18.0pt;">
Comecei pela
versão de La vie en rose. Deu um clack! na cabeça, não sei explicar. Fui
arriscando outras faixas, uma por uma, medo de estar enganado. Não estava.
Primeiro veio uma letra lindíssima de Zé Miguel Wisnik, com música de Carlos
Rennó: Domingo longo (ah, conheço tantos); veio um samba de Elton Medeiros e Eduardo Gudin, falando
"às vezes se guarda o melhor caminho/ se oculta o desejo pra não
sofrer".</div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 18.0pt;">
Uns blues
doloridos de Itamar Assumpção. O sax de Roberto Sion. No meio da pressa, como
eu ia dizendo, a voz mansa, afinadíssima, de Eliete dizendo sossega, sossega,
meu amigo, tudo é coisa de gente, tem um bonito in aparente por trás, tenta
ver.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 18.0pt;">
No terceiro
dia da paixão, virei tiete e liguei pra ela. Queria dizer obrigado, menina,
quando você canta, a vida para de girar tão rápido e até parece bonita. Ela foi
paciente com minha invasão. Desliguei agradecido, espantado com minha própria
ousadia. <a href="" name="OLE_LINK8"></a><a href="" name="OLE_LINK7">Agradecer é difícil. E a gente precisa aprender, a gente precisa.
Aprender a não ser só.</a></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 18.0pt;">
Eliete,
new-bossa. Para que vocês compreendam: o primeiro LP que comprei na vida foi de
Sylvinha Telles. Tinha doze anos. Aos trinta e sete, só João Gilberto me
sereniza. Ou Astrud. Há um mês, só tiro para lavar uma camiseta escrita
"Bossa-Nova", que o Pardal, lá da lojinha do mesmo nome, me deu.
"Ah, bossa-nova, new-bossa, olha eu aqui sem viver" — chora minha
rainha Rita Lee. A vida então se adoça. Gosto de mel, de flor, de azul. Não de
avenida Paulista nem de Madame Satã. Preciso manter a ilusão de que tudo pode
ser doce. Preciso acreditar que a vida pode ser como a voz de Eliete. E que em
alguma esquina, um dia — por que não? — encontrarei um amor bonito esperando
por mim.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 18.0pt;">
Quando saio,
agora, fico impaciente. Quero voltar pra casa, colocar logo o disco para que o
mundo todo se reorganize em doçura. Gostar de ouvir Eliete é cuidar de um
certo jeito de olhar o mundo. Por trás do susto, perdão de olhos molhados,
pegar na mão devagarinho e repetir de verdade, do fundo, sem o menor pudor, sem
ânsia alguma:</div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 18.0pt;">
—Gosto de
você. Você existir me ajuda a viver.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 18.0pt;">
Depois,
acreditar que tudo vai dar certo. E deixar — como ela canta—que o amor dê o que
falar.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
O Estado de S. Paulo, 29/4/1986</div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
Caio Fernando Abreuhttp://www.blogger.com/profile/06236145863035634830noreply@blogger.com37tag:blogger.com,1999:blog-16282308.post-78330509967401258232013-10-03T16:24:00.000-03:002013-10-03T16:24:00.339-03:00Meu deus, são estrelas demais!<div class="MsoNormal" style="mso-outline-level: 3; text-align: justify;">
Imagine-se cercado de estrelas.
Ali do lado, ao alcance da mão</div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
É fácil enlouquecer durante a
semana de cinema brasileiro, em Gramado. Sem falar no choque cultural com a
cidade europeizada, sem nordestinos nem mendigos; sem falar na estranha neblina
que desce de repente do pico das serras, a qualquer hora do dia, para ir embora
sem o menor aviso; sem falar no ar tão limpo e na luz tão clara que chegam a
doer nos pulmões e nos olhos acostumados ao cinza urbano. Mesmo sem considerar
isso tudo ajudando no processo de loucura— há as estrelas.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 18.0pt;">
E estrelas,
você sabe, não são de carne e osso. Pelo menos no meu coração de guri criado no
meio dos campos da fronteira com a Argentina, vendo estrelas só no céu — o céu
do Rio Grande é o mais belo do Brasil, sem bairrismos — e nas revistas. As
estrelas das revistas mais intocáveis até do que as do céu, que numa
determinada época do verão costumavam desabar aos montes em direção ao
horizonte. Fazíamos pedidos. As outras, as da terra, não víamos nunca. No
máximo, Vicente Celestino e—Jesus, como sou antigo!—Procópio Ferreira. Fiquei
não só extasiado, mas, para usar o adjetivo exato, estarrecido também.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 18.0pt;">
Agora,
imagine-se você cercado de estrelas durante uma semana inteira. Ali do lado,
ao alcance da mão. É pirante. Você sai do quarto e dá de cara com a moça do
quarto ao lado. E a moça do quarto ao lado é nada menos que Nicole Puzzi. Você
pega o elevador e uma lourinha simpática faz um comentário rápido sobre o
tempo: é Débora Bloch. Aí você vai tomar um café, e o gatão ao lado pede o
açúcar: é Nuno Leal Maia. No corredor, meio estonteado, você esbarra sem querer
em Marieta Severo. Enquanto pede mil desculpas, alguém esbarra em você: é
Arnaldo Jabor. Você resolve ir ao banheiro molhar os pulsos — e quem está
fazendo xixi ali do lado, como se fosse a coisa mais normal do mundo? Chico
Buarque de Hollanda. Você pensa, meu Deus, preciso sair urgente deste hotel,
dar uma volta na rua, ver gente comum, banal, mortal, normal.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 18.0pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 18.0pt;">
Até conseguir
chegar à rua, você já tropeçou em Cláudio Marzo, Bruna Lombardi, Fernanda
Torres, Riccelli, Roberto Bonfim, Miriam Rios e — socorro, assim também é
demais! — Tom Jobim. De cabeça baixa, para não ver mais ninguém, porque chega!
você corre para o bar mais fuleiro da esquina. Um bar onde estrelas não
entrariam. Mineral com gás, por piedade. O cara ao lado, um de bonezinho, acha
a idéia boa e pede uma também. Você olha para a cara ao lado. Embaixo do
bonezinho está Ney Latorraca. Você desiste da água, sai a mil pra rua. E
choca-se com uma senhora alta, elegantési- ma: Ilka Soares. Logo a tia Ilka, de
quem eu colecionava fotos recortadas de O Cruzeiro, Vida Doméstica e
Cinelândia?</div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 18.0pt;">
Não, eu não
agüento. Não fui feito para essas alturas. Uma vez em que Caetano me sorriu na
praia, baixei os olhos e passei batido com o ar mais remoto que consegui armar
na cara. Tenho medo-pânico de estrelas. Do céu, da terra. Elas devem permanecer
no espaço, nas telas, nos palcos. Não andar se misturando por aí, nos bares,
nos balcões, nos elevadores, nos banheiros — feito fossem seres comuns.
Preciso — como o Molina, de O beijo da mulher-aranha — ter certeza de que as
estrelas são todas como a Leni Lamaison, de Sônia Braga, fumando com gestos
largos, cobertas por metros de tule negro, longe do insensato mundo.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 18.0pt;">
Caso
contrário, digo ao povo que piro. Não vou admitir de jeito nenhum que as
estrelas tenham um cotidiano assim pobrinho que nem o nosso. Como meu irmão
Felipe, quando tinha uns dez anos, que me perguntou:</div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
— Caio, a Brigitte Bardot também
faz cocô? Até hoje, eu juro que não.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
O Estado de S. Paulo, 15/4/1986</div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
Caio Fernando Abreuhttp://www.blogger.com/profile/06236145863035634830noreply@blogger.com29tag:blogger.com,1999:blog-16282308.post-75934024818825924392013-09-25T16:22:00.000-03:002013-09-25T16:22:00.040-03:00Meus amigos são um barato<div class="MsoNormal" style="mso-outline-level: 3; text-align: justify;">
Qualquer semelhança com a
realidade não é mera coincidência</div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Se a Nara Leão, naquele velho
disco, também achava — por que não poderia eu também achá-lo? E se o Nirlando
Beirão, tão chique, tem um vizinho yuppie — por que não posso ter coisa
semelhante em minha vida de retinas fatigadas? E confessá-lo de público —
atente na expressão —, assim: meus amigos são um barato. Um baratão. Nos dois
sentidos: o do insólito e o do inseto.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 18.0pt;">
Meu amigo
Pedro, por exemplo, é um barato no sentido mais tradicional da expressão. Ou
não? Fico um pouco confuso, e pensando bem talvez ele seja mesmo uma curtição.
O passatempo preferido dele é, nos fins de semana, fazer tremendas vivências
em Mauá. Fazer vivência vem a ser o quê? Ora, cara, tá por fora: qualquer coisa
pode ser uma vivência: um chá, um baseado, uma caminhada. Importante é que
seja em grupo. E que você vá fundo, entendeu? Com direito a nirvanas e
iluminações.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 18.0pt;">
Meu amigo
Pedro é superfeliz. Detesta quem tem problemas: ele diz que é baixo-astral. Ele
está sempre numa ótima. Detalhe: mora num apartamento de andar inteiro de
frente para a praia, no Rio. Com os pais, claro — embora tenha trinta anos. Mas
tudo bem: para gozar de inteira liberdade, ele pode usar uma coberturazinha
absolutamente simples. Outro passatempo dele, embora adore pedir carona, é
dirigir o Monza zerinho de manhã. Daqueles que você aperta botões e acontecem
coisas tipo fontes luminosas, faróis de laser, show de mulatas etc. Mas ele,
meu amigo Pedro, é singelo e franciscano: anda sempre de camisetinha zurrapa e
sandália havaiana. Tem certeza de que, um dia, vamos todos viver em paz — na
Era de Aquário. Confirmou isso no último verão, passado na Bahia, com uma pá de
gente de cabeça feita.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 18.0pt;">
Já minha amiga
Kate, um pouco mais moça, despreza meu amigo Pedro. Comenta: "Ele acha que
Woodstock foi ontem. E ainda nem desarrumou a mochila". Ele comenta sobre
ela: "Quem não dormiu no sleeping bag nem sequer sonhou". A verdade é
que não conheço ninguém mais moderno (ou pós, nos dois sentidos: o do depois e
o das carreiras) que minha amiga Kate. Coberta de negro, cabelo raspado de um
lado, vezenquando uma peruca rosa de náilon. Naturalmente é performática. E
faz cursos sen-sa-cio-nais: o último foi de vídeo-performance — um arraso.
Minha amiga Kate acha tudo meio antigo, mas concede ir ao Satã, ao Rose
Bom-Bom, dá umas bandas pelo Ritz e não pisa nem morta no Pirandello. Acha que
tudo é uma questão de pique-e-pá-e-crã, sabe como? Fico numas que só...</div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 18.0pt;">
Meu amigo
Betinho é radicalmente o oposto. Faz a linha subir-com-esforço-na-vida. Quanto
mais esforço, melhor. Tem visões futuristas com videocassetes, IBMs elétricas,
secretárias eletrônicas louras de olhos azuis, guarda-roupas completos para as
quatro estações comprados na Mr. Kitsch. Embora, no fundo, goste mesmo é de
Calvin Klein. Ou — em momentos de profunda verdade interior — de um sólido
Pierre Cardin. Naturalmente, ele veio de baixo. Muito baixo. Tem um problema
sério: quando bebe, tem paixão por ouvir Alcione. E por tudo isso, se você for
a um restaurante com meu amigo Betinho, pode estar certo de que a conta jamais
será dividida em partes iguais. Em alto e bom som, ele sempre dirá: "Mas
eu não tomei cafezinho!"</div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 18.0pt;">
Minha amiga
Joana — ex-atriz, ex-cantora, ex-traficante — há anos largou tudo, pegou uns
panos vermelhos, botou um mala no pescoço, com aquele 3X4 de Rajneesh, e foi
embora pra Floripa (leia-se Florianópolis). É conhecida por lá como Bodhira,
que em sânscrito quer dizer flor de não me lembro o quê. Será — haja — ló- tus?
Quando fui visitá-la, fizemos muita meditação caótica juntos. Supervivência, se
pintar, experimente. É um barato.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 18.0pt;">
Enfim, esses
são só alguns. Tem mais, talvez para uma Parte II. Mas, como todo ficcionista,
sempre procuro deixar muito claro que qualquer semelhança com pessoas vivas ou
mortas — bem, você sabe. E eu adoro meus amigos. Simplesmente adoro.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
O Estado de S. Paulo, 8/4/1986</div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
Caio Fernando Abreuhttp://www.blogger.com/profile/06236145863035634830noreply@blogger.com56tag:blogger.com,1999:blog-16282308.post-46219773518540433222013-09-17T19:52:00.000-03:002013-09-17T19:52:00.870-03:00A maldição dos Saint-Marie<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<i><span lang="PT">Para</span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<i><span lang="PT">Ilone Madalena Dri Almeida,<o:p></o:p></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<i><span lang="PT"> minha primeira leitora.<o:p></o:p></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT"><br />
<!--[if !supportLineBreakNewLine]--><br />
<!--[endif]--><i><o:p></o:p></i></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<i><span lang="PT"> “ No
ginásio, em Santiago, tive a sorte de ter um professor de Português muito bom </span></i><span lang="PT">— <i>José Cavalcanti Jr. Certa vez ele
realizou um concurso de romances, e este meu foi o vencedor. Foi em 1962, eu
tinha 13 ou 14 anos. </i>O <i>sucesso foi enorme: as meninas faziam fila para
ler (só havia uma cópia, escrita <st1:personname productid="em caderno Avante" w:st="on">em caderno Avante</st1:personname> com caneta Parker 51). É evidente
que a história cheia de clichês, influenciada por radionovelas, fotonovelas e
melodramas mambembes do Circo- Teatro Serelepe, não presta, mas talvez possa
render algumas risadas. Anos mais tarde, foi a base para Luiz Arthur Nunes e eu
escrevermos a peça teatral </i><i>A maldição
do Vale Negro</i>. <i>Não mudei absolutamente nada do original: a graça aqui,
creio, está justamente no tosco e no tolo.” </i><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">CAPÍTULO 1<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Adriana estava sentada em uma poltrona, folheando um livro sem muito
interesse. Suas roupas eram modestas, mas não pobres, tinha longos cabelos
negros que nunca prendia e seus olhos também eram negros, dando-lhe uma
expressão triste que jamais se apagava, nem mesmo quando ela sorria.
Subitamente, uma batida à porta. Adriana assustou-se, mas logo levantou
correndo para abrir, não sem antes arrumar os cabelos com as delicadas mãos.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Boa-noite, Adriana — disse o homem a quem a jovem atendeu. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Oh, Fernando! — falou ela, com sua voz quente e vibrante. — Fernando, tenho
tanta coisa para contar... <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">O homem entrou. Estava ricamente vestido, mas seu rosto era vulgar. Tinha a
testa muito larga, contrastando com os olhos miúdos e vivos que examinavam a
moça com avidez. Adriana fê-lo sentar e, tomando as mãos dele entre as suas,
levou-as à boca, roçando-as suavemente com os lábios. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Querido — ela disse comovida —, há mais uma estrela no céu, há mais um
anjinho aos pés da Virgem Maria... <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Que significa isso, Adriana? — perguntou Fernando, com o largo sobrecenho
franzido. A moça, surpreendida com a
reação, não conseguiu falar e fez um quase imperceptível aceno com a cabeça.
Por fim conseguiu balbuciar timidamente algumas palavras.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— S-sim, Fernando... Agora poderemos nos casar e... então nós iremos viver
no seu castelo, Fernando... no castelo de Saint-Marie... nós e nosso
filhinho...<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Fernando, furioso, deu-lhe um empurrão gritando:<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Idiota! Você pensava que eu, o senhor de Saint-Mame, iria casar-me com
você? Com você, uma zinha qualquer?<i>
</i>Mulheres iguais a você, Adriana, encontram-se aos montes em qualquer
lugar, mulheres que com um gesto oferecem-se a qualquer homem!<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Adriana estava <st1:personname productid="em p←. Sua" w:st="on">em pé. Sua</st1:personname>
aparência tão doce transformara-se em uma máscara onde se estampavam
simultaneamente o ódio, o desespero e o desprezo. Levantando a cabeça, ela
olhou fixamente para Fernando e em voz rouca, entrecortada pelas lágrimas,
gritou-lhe:<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— E homens iguais a você, Fernando de SaintMarie, não se encontram todos os
dias. Homens que em sua suja alma não têm um pingo de moral, uma gota de honra
nem de dignidade. Homens que não pensam nas mulheres puras e honradas que
sacrificam-lhes toda a sua pureza para que eles satisfaçam os seus desejos
sexuais, desejos de bestas. E depois de saciados não hesitam em abandonar uma
pessoa que sofreu todos os seus sofrimentos, deixando também o sangue de seu
sangue, a carne de sua carne que germinou no ventre de quem o amou. Você,
Fernando, estava num alto pedestal. Por você eu abandonei tudo, mas agora o
pedestal caiu e o ídolo caiu ao chão esfacelando-se. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Cinicamente, o homem contemplava Adriana. Por fim levantou-se, furioso com
as últimas palavras da jovem e, dando-lhe uma violenta bofetada, atirou- a ao
chão. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Prostituta! — gritou. — Prostituta é a palavra que serve para você,
Adriana! <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Em seguida tirou algumas notas da carteira e atirou-as no rosto de Adriana,
lavado em sangue e lágrimas. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Infeliz! — gritou a moça. — Hei de vingar-me, e minha vingança será
terrível, Fernando de Saint-Marie. Hei de ving... <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Com um gemido, Adriana perdeu os sentidos. Fernando apanhou o chapéu e o
sobretudo e saiu assobiando. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Pouco depois, a moça voltou a si do desmaio e arrastando-se penosamente
pelo tapete manchado de sangue conseguiu chegar a uma mesinha, sobre a qual
estava uma imagem da Virgem com Jesus ao colo. Erguendo o belo rosto para a
imagem, Adriana juntou as mãos pálidas e rogou:<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Virgem Santíssima, o que mais quero na vida é que meu filho nasça. Por
favor, Senhora, deixe-o nascer... deixe-o nascer... <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">E proferindo essas palavras caiu novamente des maiada. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">CAPÍTULO II<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Ali, nas montanhosas escarpas dos Pirineus, erguia-se o imponente castelo
Saint-Marie, nome que também designava a família possuidora do castelo. À
frente do casarão havia uma alameda que, descendo as escarpas dos Pirineus,
encontrava a estrada que levava até um pequeno povoado. Dos lados e atrás do
castelo existiam terríveis precipícios e, alguns quilômetros depois, um
regatozinho onde as lavadeiras trabalhavam. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Vamos encontrar Fernando de Saint-Marie, o futuro proprietário do castelo,
subindo pela alameda que conduzia à morada. Neste instante ele batia à porta
com a pesada e severa aldrava em forma de cabeça de leão. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Uma criadinha apressou-se a abrir. Fernando entregou-lhe o sobretudo, o
chapéu, e entrou na imponente mansão. Logo à frente da porta havia uma
escadaria que, mais acima, dividia-se <st1:personname productid="em duas. O" w:st="on">em duas. O</st1:personname> futuro senhor de Saint-Marie subiu essas
escadas com passadas fortes, que retumbavam no silêncio do castelo. Tomou a
escada da direita e subiu até um amplo <i>living </i>onde se encontravam cinco
pessoas. <br />
Uma delas era a Senhora Ilsa de Saint-Marie, mulher de sessenta anos, de
fisionomia bondosa e acolhedora. A outra era Eleonora, parente longínqua da
fami’lia e que há quatro anos vivia ali, desde que completara quinze anos. Era
uma jovem magra, assustada, mas não era feia. Tinha cabelos louros presos num
coque e dois olhos enormes e azuis. A outra pessoa na sala, além do avô de
Fernando e do mordomo Jacques, era a governanta Amália, uma mulher orgulhosa e
vaidosa e que, apesar de ter mais de quarenta anos, nunca se casara, por isso
tornando-se amarga e triste. Foi ela quem criou Fernando desde que este nasceu.
<br />
Dona Ilsa de Saint-Marie virou-se para o filho com a fisionomia alegre. Com
dificuldade levantou- se da poltrona para beijar Fernando:<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— E então — perguntou —, como foi seu passeio? — Mas sem dar tempo ao moço
de responder, continuou: — Não sei por que esses passeios noturnos, nunca
gostei deles. Você sabe, meu filho, que não somos vistos com bons olhos na
vila... <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Deixe o rapaz sossegado, Dona Ilsa! — exclamou Amália. — Ele já é um
homem, sabe o que faz!<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Fernando estava alheio a essas conversas. Lembrava das palavras de Adriana
ao sair da casa dela. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Eleonora, noiva de Fernando, amava-o muito, mas ao mesmo tempo sentia certo
medo dele. Agora estava triste, pois o rapaz não lhe dirigira um olhar sequer
desde que chegara. Adiantou-se intimidada, tomou a mão da Senhora Ilsa e
levou-a aos lábios.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Até logo, titia — disse. — Vou para meus aposentos, se me permite. <br />
A velha Senhora de Saint-Marie tinha um sorriso malicioso nos lábios quando
perguntou:<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Já, Eleonora? Não vai conversar um pouco com seu noivo? Ou será que vocês
estão brigados?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">A tímida jovem murmurou um trêmulo <i>não </i>e saiu quase correndo da
sala.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— E você, Amália — continuou Dona Ilsa —, já encontrou a moça que precisava
para ajudá-la no serviço? <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Não — foi a seca resposta da governanta. — Mas mandei avisar no povoado. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Fernando avançou e, dando um beijo na enrugada face da mãe, disse: <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Vou seguir o exemplo de Eleonora, mãe. Também vou deitar-me. Estou muito
cansado.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Fernando retirou-se. E Amália fez o mesmo, seguida pela Senhora Ilsa e pelo
mordomo que empurrava a cadeira de rodas do Senhor de Saint-Marie. <br />
O silêncio caiu sobre o castelo de Saint-Marie. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">CAPÍTULO III<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Em seus aposentos, Fernando tinha os pensamentos voltados para Adriana:<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— “O que pensará ela fazer? Qual será a sua vingança? Ah, mas eu não
deveria estar receando alguma coisa da parte de uma mulherzinha vulgar e
inculta, apesar de muito bela... Mais bela que minha noiva Eleonora...” <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Esse último pensamento de Fernando ocorreu-lhe sem que o quisesse. Mas, na
verdade, não se podia comparar a beleza de Adriana à de Eleonora. Uma era
ardente, sensual, um verdadeiro vulcão prestes a explodir; a outra, tímida,
frágil e delicada. Duas mulheres totalmente opostas uma da outra. <br />
— “E se ela contar à minha mãe que eu, o futuro Senhor de Saint-Marie, sou o
pai de seu filho?” <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Perto dali, Eleonora tinha seus pensamentos voltados para Fernando.
Abraçada ao macio travesseiro, imaginava por que motivo o jovem não retribuía
seu amor: <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— “Será que ele ama outra, meu Deus? Mas quem, quem poderia ser? Fernando
quase não sai do castelo, passa os dias trancado no escritório. E quando sai” —
pensava ela com amargura — “...quando sai não se digna a lançar-me um olhar, um
gesto, um nada. E eu... eu o amo tanto, tanto... Daria a minha vida para vê-lo
feliz...” E enterrando a loura cabeça no travesseiro, ela começou a soluçar
baixinho, deixando as lágrimas correrem livremente. Por fim, receando que a
cruel Amália a ouvisse, silenciou e adormeceu. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Lá embaixo, no povoado, Adriana tinha pensamentos muito diferentes dos da
doce Eleonora: <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— “Fernando odeia-me... e eu também o odeio. Não sei como pude entregar
minha virgindade a um homem mau que só tem pensamentos voltados para o
dinheiro. Preciso vingar-me, preciso fazê-lo sofrer tudo o que estou
sofrendo... Sei que Amália, a governanta do castelo, andou pela vila anunciando
que necessitava de uma ajudante. Pois bem, eu me empregarei no castelo até que
meu filho nasça e então me vingarei de você, Fernando de Saint-Marie. Você há
de pagar bem caro o que me fez!” E Adriana cerrou com ódio os punhos. Quando os
abriu, tinha as mãos crispadas e no rosto uma expressão de fúria. Foi com
dificuldade que conseguiu acalmar-se para poder dormir. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Mas voltemos ao castelo de Saint-Marie, justamente no momento em que um
grito horrendo feriu os ares. Passos ressoaram pelos corredores. Era Amália
dirigindo-se ao quarto de Eleonora, de onde partira o grito. Entrou e deparou
com a moça sentada na cama, com uma expressão de horror no rosto.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Que aconteceu? — perguntou a governanta.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Foram eles — respondeu Eleonora com uma expressão de loucura — ... foram
os fantasmas... eu os vi... ali, na janela... vultos brancos movimentando-se no
ar... <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Essa é a maldição que pesa sobre nós, os SaintMarie — disse a voz da
Senhora Ilsa, que acabara de entrar. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Eleonora rompeu a chorar e, enquanto Dona lisa a consolava, Amália falou
com desprezo: <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Maldição, fantasmas... Fantasmas não existem, minha cara Eleonora. Você
sonhou. Ou então... <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Notando a pausa feita pela governanta, a Senhora Ilsa procurou completar,
perguntando friamente: <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— ... ou então o quê, Amália?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Ou então Eleonora está enlouquecendo — concluiu Amália, saindo do aposento.
<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Eleonora levantou a cabeça e disse quase gri tando: <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Eu sei que não sou louca! Eu os vi... Ali, ali... Eram brancos... sim,
muito brancos... e dançavam...<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Dona Ilsa encostou a mão na testa da jovem. Estava quente, sim, muito
quente. Mas a bondosa senhora não se assustou, e ali permaneceu embalando a
pobre moça até que ela dormisse e então, na ponta dos pés, apagou a luz e
retirou-se para seus aposentos. E a noite cheia de mistérios e segredos
envolveu o castelo até o romper de um novo dia. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">CAPÍTULO IV<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">A manhã já chegou àquela região da França. O dia amanheceu tão bonito que
parecia quase impossível existirem ódios naquela linda região. No povoado, as
donas de casa já andavam pelas ruas carregando sacolas, todas cumprimentando-se
alegremente. Longe da vila, na fonte, as lavadeiras trabalhavam enquanto
cantarolavam canções regionais. Quase todos estavam contentes. Somente no
imponente castelo dos Saint-Marie é que parecia não haver uma janela ou porta
abertas que pudessem permitir a entrada da felicidade. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">No castelo, todos já estavam em pé, à exceção do idoso Senhor Danilo de
Saint-Marie, que era paraiftico e não se encontrava disposto a levantar-se. <br />
No saguão da morada, a orgulhosa governanta Amália conversava com uma jovem
totalmente vestida de preto. Era Adriana.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Então? — perguntou a governanta. — Você sabe o que tem a fazer aqui? <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Não, senhora — respondeu Adriana. — Apenas sei que desejava uma ajudante,
não sei o que tenho a fazer. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Não é muita cousa. Apenas fiscalizar o trabalho das criadas e servir o
café da Senhora lisa, do Senhor Danilo, de Eleonora e de Fernando. <br />
— Adriana não se mostrou nervosa nem mesmo quando ouviu Amália dizer o nome de
Fernando. Ela imaginava o que faria o rapaz quando a visse. <br />
— E então? Aceita? Além de seu salário, terá casa e comida. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Oh, sim, senhora. Permita que eu me retire para ir ao povoado buscar
minhas roupas?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">A governanta fez um gesto indiferente, e Adriana retirou-se. Amália não
simpatizara com a moça, e não procurou esconder isso. Pouco depois a Senhora
lisa entrou no recinto acompanhada de Eleonora. Seu rosto estava alegre e,
sacudindo no ar um envelope, disse à governanta:<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Amália, imagine o que diz aqui! George acabou seus estudos e vem morar
conosco, não é maravilhoso? <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Amália não concordava, ela nunca gostara de George, o outro filho de Dona
Ilsa. Sempre mostrara clara preferência por Fernando. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Eleonora ainda não conhecia George, por isso mostrava-se animada. Sua
paiidez habitual quase a abandonara. Mas fingindo mostrar-se interessada, Amália
indagou: <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— E quando ele chega?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Hoje mesmo, Amália — respondeu a Senhora Ilsa. — Após o meio-dia. Não
esqueça de arrumar o quarto dele. A propósito, já conseguiu a ajudante? <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Sim. É jovem ainda e muito bonita, por isso creio que não goste de trabalhar.
<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">A Senhora Ilsa ergueu uma sobrancelha, ela conhecia Amália há quase vinte
anos e notou que esta não simpatizara com Adriana. Sabia que teria que suportar
intrigas e mentiras da parte da governanta para que se zangasse com a moça. <br />
Eleonora pensava em seu noivo. Sabia que ele estava trancado no escritório,
como sempre, de onde só sairia para o almoço, mas mesmo assim perguntou,
timidamente: <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— E... Fernando?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Ora — foi a resposta impertinente de Amália — está no escritório. Onde
mais poderia estar, minha cara Eleonora?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">A jovem corou, baixando os olhos, e a governanta deu um sorriso maldoso.
Ela considerava Fernando quase como propriedade sua, e não admitia que lhe
tomassem seu afeto. Ficou alguns instantes parada e depois, pedindo licença,
saiu dali. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">A Senhora Ilsa e Eleonora também se retiraram para o jardim e o saguão
ficou vazio. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Em seu escritório, no meio de uma papelada, Fernando escrevia nervosamente.
Ele procurava concentrar-se no trabalho sem conseguir, seu pensamento fugia
para Adriana. Levantou-se e passeou de um lado para outro fumando, fumando
incessantemente, depois chegou à janela e ficou a olhar para fora. Assim
permaneceu algum tempo, até que um carro parou no jardim e prendeu-lhe a
atenção. De dentro do carro desceu uma moça morena, vestida de preto. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Os olhos de Fernando não conseguiam acreditar no que viam, mas era verdade,
a terrível verdade. Aquela moça é Adriana! Fernando sentiu-se cambalear e
precisou sentar. Passou a mão pela testa e sentiu o suor escorrendo-lhe pelo
rosto. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">CAPÍTULO V<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Adriana caminhava rapidamente pelos longos corredores do castelo, nas mãos
uma pequena valise onde estavam guardadas suas poucas roupas. Neste momento,
ela passava justamente pelo escritório de Fernando quando a porta se abriu. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Adriana — disse Fernando, agarrando a jovem pelo braço. — Adriana, o que
é que você está fazendo aqui? <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">A moça assustou-se, mas recobrou a calma e fitou friamente aquele homem.
Deu um safanão no braço e disse:<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Estou empregada aqui, Fernando, e aqui ficarei até o meu filho nascer. <br />
Adriana deu uma entonação especial às três últimas palavras, e gozou com o
desespero de Fernando. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Mas você.., você não vai... — gaguejou ele. — Não, Fernando. Não vou
contar nada à sua mãe. Por enquanto, não. E agora largue-me, tenho o que fazer.
<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">E a moça, com um gesto de desprezo, retirou- se caminhando de cabeça erguida<i>. </i><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">As horas passaram-se. No grande salão, todos, menos o Senhor Danilo de
Saint-Marie, estavam reunidos para o almoço. Adriana servia a mesa. A Senhora
Ilsa mostrava-se muito excitada, pois George poderia chegar a qualquer momento.
Subitamente uma batida na porta fez a Senhora levantar-se. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— É George, eu sei! Meu coração diz que é ele! — Dona Ilsa fez questão de
abrir ela mesma a porta. Ali estava parado umjovem moreno, alto, vestido com
cuidado, e seus olhos inteligentes tinham um tom esverdeado. Dona Ilsa abriu a
pesada porta e o rapaz atirou-se nos seus braços. <br />
Depois ele cumprimentou Amália, Fernando, Eleonora e... Adriana. Nestas duas
últimas, o seu olhar parou, ele não as conhecia. Eleonora estendeu-lhe a mão e
disse: <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Eu sou Eleonora, George.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">O jovem beijou-lhe a mão, mas seus olhos não se desviaram de Adriana.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Quem é essa moça? — perguntou.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Oh — Amália apontou Adriana —, é a minha nova ajudante. Começou a trabalhar
hoje. George sorriu para Adriana, simpatizara com ela. A moça retribuiu-lhe o
gesto, sorrindo timidamente. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">E ficariam ali a fitar-se se Dona Ilsa não os interrompesse. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Venha, George — disse ela —, você deve estar cansado. Vamos até o seu
quarto. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Adriana ficou parada, seu coração batendo descompassadamente. Sentia algo
que não podia definir, como uma vontade louca de correr, de olhar o céu, o sol,
as flores. Mas a fria Amália interrompeu os seus pensamentos perguntando: <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Adriana, você não vai servir Fernando?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">A moça estremeceu e pegou uma vasilha. Fernando notara como ela ficou
impressionada com o seu irmão, e uma onda de ciúme, de ódio, de rancor
invadiu-lhe o coração. Sim, ele não conseguia esconder seus sentimentos:
Fernando amava Adriana. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">A tarde passou sem novidades até a hora do jantar, quando todos voltaram a
reunir-se em volta da mesa. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— E George? — perguntou Amália. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— George está muito cansado — respondeu a Senhora lisa. — Ele ficou em seus
aposentos. Adriana vai levar-lhe o jantar.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Adriana estremeceu, mas pegou uma bandeja e, subindo as escadas, bateu à
porta do quarto do rapaz.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Entre — disse ele.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Adriana entrou. O rapaz estava deitado lendo um livro, mas, ao vê-la,
passou a mão pelos cabelos e colocou o livro sobre a mesinha de cabeceira.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Vim trazer-lhe a janta, senhor George.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">A moça colocou a bandeja sobre a mesa. Ao fazer isso, seus olhos
encontraram-se com os de George. Este, sentando-se na cama, perguntou: <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Por que está tremendo, Adriana?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Por nada — disse ela nervosamente. — Sou uma tola. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Sabe que é muito bonita?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Adriana corou, mas nada respondeu e, abrindo a porta, saiu do quarto. Seu
coração voltara a florir: Adriana sentia que encontrara o seu verdadeiro amor <br />
e estava feliz. Ela amava George como nunca tinha amado ninguém. Era um
sentimento puro, calmo, belo, muito diferente da violenta paixão que sentira
por Fernando. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">CAPÍTULO VI<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Amanheceu mais um dia na França. Lá no alto, no castelo dos Saint-Marie, a
vida de intrigas, ciúmes e desconfianças continuava. Ainda não eram nove horas
e todos continuavam em seus aposentos, à exceção da governanta Amália, que dava
ordens na cozinha, e de Adriana. Adriana já levou o lanche a todos, menos a
Eleonora e a George, e o de Fernando, Amália fez questão de levar. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Neste momento Adriana subiu para servir George. A bandeja tremia em suas
mãos e o seu coração batia nervosamente. Ela contou lentamente os degraus até
chegar lá em cima e bateu à porta, depois entrou sem esperar resposta. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Bom-dia, senhor George.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Bom-dia, Adriana. Sabe que esta noite sonhei com você? Ora, não precisa
ficar vermelha assim... <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Adriana baixou a cabeça e murmurou: <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Senhor George, eu... eu sou apenas uma criada, nada mais que isso. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">George a olhou sorrindo, mas não se conteve e disse: <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Adriana, sabe que a amo? — A moça ergueu o rosto muito pálido e ficou a
olhar o másculo rosto do rapaz. Mas eis que surgiu como um turbilhão e, sem que
ela pudesse explicar como, seus lábios encontraram-se com os de George e um
doce beijo os uniu. — Adriana, desde que a vi senti que minha vida ia mudar. Eu
a amo muito... muito... <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Enlevada, Adriana repetiu as últimas palavras do rapaz: <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Eu o amo muito... muito... — Mas subitamente lembrou-se que já pertencera
a outro, e afastou-se bruscamente, saindo do quarto a correr. Chegando às
escadas, começou a chorar, mas secou as lágrimas com as mãos e desceu. <br />
Enquanto isso, na cozinha, uma mão segura um pequeno frasco e despeja um pó
branco no café destinado à Eleonora. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">A manhã passou tranqüilamente. No almoço, Adriana procurou evitar que seu
olhar se encontrasse com o de George, mas ficou tão nervosa que derramou um
prato de sopa, levando uma repreensão da dura Amália. Findo o almoço, a Senhora
Ilsa propôs um passeio pelos campos, mas somente Eleonora e George animaram-se
com a idéia. E os três convidaram Adriana para acompanhá-los. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Saíram a caminhar. Adriana acompanhava a Senhora Ilsa; mais à frente George
caminhava com Eleonora, olhando de vez em quando, furtivamente, para trás. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Adriana — disse a Senhora Ilsa, arquejando —, acho que não posso mais,
vamos sentar um pouco?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">A jovem sorriu e procurava ajudar Dona lisa quando tudo escureceu, e ela
precisou segurar na mão da velha senhora para não cair. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— O que houve, Adriana? — perguntou Dona Ilsa. — Está se sentindo mal? <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Oh, não — respondeu a moça, passando a mão pela testa —, foi apenas uma
tontura... Já passou... <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Dona Ilsa notou a palidez da jovem e procurou dar à voz um tom normal
quando disse:<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Minha filha, sou velha e experiente, não procure esconder nada de mim. Eu
sei o que há. Você... você vai ter um filho, não é isso? <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Adriana não respondeu, desejaria estar muito longe dali, desejaria não ter
que contar sua amarga história à bondosa Senhora Ilsa. Pensando nisso, começou
a chorar convulsivamente.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Chore, minha filha, chore que isso só lhe fará bem. Mas não se preocupe,
não a mandarei embora. O seu filho terá um lar. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">A moça levantou os olhos cheios de gratidão e abraçou Dona Ilsa. Nesse
momento, Fernando assomou à janela do castelo e ficou intrigado ao ver aquela inesperada
cena. Vendo aquilo, George e Eleonora também voltaram-se, e o rapaz perguntou,
trêmulo: <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— O que houve com Adriana, mamãe?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Houve que... que Adriana vai ser mãe... <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— ... vai ser mãe?! —repetiram Eleonora e George <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">A Senhora lisa acenou com a cabeça e, abraçada a Adriana, voltou-se e
começou a caminhar de volta ao castelo dos Saint-Marie. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">CAPÍTULO VII<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Mais uma noite cobriu a França e todo o Ocidente. Os cães e lobos começaram
a entoar sua costumeira canção à lua que, naquele dia, nega-se a aparecer e com
ela, também as estrelas. O céu estava sem nuvens, negro, totalmente negro, e a
angústia parecia pairar sobre o mundo, principalmente na velha mansão da
tradicional família dos Saint-Marie, onde um manto de desgraça envolvia tudo.
Aos lados e atrás do castelo, os ameaçadores precipícios dos Pirineus
aumentavam a tristeza do cenário. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">A refeição notuma estava sendo servida. Ao redor da mesa agrupa-se toda a
família, até mesmo o Senhor Danilo, que se sentia melhor. Amália, a fria
governanta, também está à mesa, pois é quase uma Saint-Marie. Adriana servia os
pratos, ajudada por uma criada macilenta que parecia estar sempre receando uma
repreensão. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Toda a famflia reunida, hein? — disse George, tentando alegrar o
ambiente. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Amália teve vontade de dar uma de suas costumeiras respostas. Chegou a
abrir a boca para falar, mas a Senhora Ilsa, como que prevendo o que ela diria,
lançou-lhe um olhar e o silêncio se restabeleceu. A suave Eleonora olhava
Fernando que, calado como sempre, não lhe prestava atenção. A jovem reprimiu um soluço e levou o garfo aos lábios, mas uma
garra de ferro pareceu comprimir-lhe a garganta. Ela soltou um gemido que se
transformou num grito lancinante e depois tombou.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Eleonora! — gritou Dona Ilsa, levantando-se. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Eleonora, o que houve? — falou George, auxiliando ajovem a levantar-se. E
voltando-se para Adriana, pediu: — Adriana, pegue um copo d’água, depressa, por
favor!<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Todos estavam nervosos e falavam ao mesmo tempo, apressadamente. Amalia
esquivou-se e subiu as escadarias quase correndo. O terror e a alegria
estampavam-se ao mesmo tempo em seu rosto perverso.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Outra vez — gemeu Eleonora —, outra vez...<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Mas por Deus — gritou George borrifando-lhe as faces com água —, o que
aconteceu?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Confie em nós, minha filhinha — pediu a Senhora Ilsa. — Diga-nos o que
aconteceu.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Até mesmo Fernando aproximou-se e tomou a mão da moça. Eleonora sorriu,
dizendo depois:<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Foi só um mal-estar... Não se preocupem, já estou bem...<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">O velho Senhor Danilo de Saint-Marie aproximou-se em sua cadeira de rodas e
falou tremulamente: <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Minha filha, ouça um conselho ditado por um homem velho e experiente. O
que você tem sempre aconteceu com as noivas dos Saint-Marie, algumas chegaram a
morrer antes de casar e... <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Com lágrimas nos olhos azuis, Eleonora gritou: <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— E... Continue, por favor, diga que estou enlou quecendo! <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">O velho sorriu mostrando as gengivas murchas e descoradas: <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Não, Eleonora, não é isso... É a maldição dos Saint-Marie! Por causa dela
estamos todos refugiados neste castelo, reduzidos a este mísero grupo. Nós...
que já dominamos quase toda a França! <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Então é isso — gritou Eleonora. — É a maldição de que nunca quiseram
falar! <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Dona Ilsa procurava acalmar a jovem acariciando-lhe as louras mechas do
cabelo. Fernando aproximou-se do velho senhor e perguntou: <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— E o que o senhor aconselha? <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">O velho deu um sorriso enigmático e disse: <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Casar-se, casar-se o quanto antes... Antes que sua noiva seja levada pela
morte! <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">E afastou-se rindo alto. Enquanto isso, Amália regressou fingindo um nervosismo
que estava longe de sentir. A Senhora Ilsa ergueu-se, tinha o ar solene, o ar
que adotava nos momentos importantes. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Pois o casamento deve realizar-se o quanto antes — disse. — No máximo,
dentro de um mês. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Fernando fez um gesto de pouco caso, que feriu Eleonora, feliz com a
realização de seu sonho. A um canto, Adriana sentia-se mais do que nunca como
uma simples criada, como uma mulher ultrajada que procura vingar-se. Sem
querer, olhou ternamente para George e, para sua surpresa, o rapaz lhe devolveu
o olhar. Olhar esse que não passou despercebido. Amália o notou. A família
ainda ficou reunida mais algum tempo a conversar, a fazer planos para o
casamento de Fernando e Eleonora. Mas logo recolheram-se, e todas as luzes se
apagaram. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">CAPÍTULO VIII<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Adriana caminhava pelos longos corredores do castelo. A escuridão a
assustava, e só ao lembrar-se que tem que subir ao último andar, onde fica seu
quarto, tem um arrepio de medo. Agora ela passava pelo quarto da Senhora Ilsa
Saint-Marie, logo além ficavam os aposentos de George. Mas de repente parou, e
foi com espanto na voz que perguntou: <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— George! O que está fazendo aqui? <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Adriana — disse o rapaz num sussurro —, não posso mais... Eu a amo muito,
temos que nos casar! <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Espantadíssima, Adriana só conseguiu gaguejar: <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— E-eu t-também... amo você, George... mas você sabe que... q-que eu...<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Sim, eu sei que você vai ter um filho, Adriana. Mas creia, eu a amo muito
e isso não faz diferença. Sei que você ainda conserva a pureza da alma e se
cometeu alguma... alguma loucura.., foi num momento de embriaguez, num momento
de paixão. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">O rapaz falava ansiosamente, olhando bem dentro dos negros e tristes olhos
da infeliz Adriana. Esta sussurrou: <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— George, nosso amor é puro, sim, mas nunca seria feliz. Sempre haverá aquela
sombra em meu passado... e você não sabe quem é o pai de meu filho... <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Adriana, não me torture... Nós poderemos esquecer isso, e o pai de seu
filho, o canalha que a maculou, não se interporá jamais entre nós. Quando a
criança nascer nós já estaremos casados! <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Adriana pensou na felicidade de que poderia usufruir. O futuro estava em
suas mãos, e por um instante ela quase esqueceu por que estava ali. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Não, George, eu o amo também... mas tenho outro objetivo <st1:personname productid="em mente. S" w:st="on">em mente. Só</st1:personname> poderemos
casar quando eu já o tiver alcançado, e isso será muito breve, creia-me. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">George espantou-se com o tom em que eram ditas aquelas palavras, e mais
estupefato ficou quando Adriana saiu a correr, sem lhe dar explicações. Mas ele
conseguiu alcançá-la. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Adriana, não sei que objetivo será esse. Mas quero que me prometa o
seguinte: dentro de um mês, no casamento de meu irmão, anunciaremos o nosso
noivado, está bem? <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">A jovem concordou com a cabeça. Sim, que melhor vingança poderia desejar? O
despeito e o ciúme de Fernando ao saber que ela, Adriana, seria uma
Saint-Marie, e que o seu filho poderia ser o senhor de tudo um dia. Mas não
apenas por isso casaria com George, não: ela também o amava. Com um beijo
rápido, despediu-se de George e foi para seu quarto. O resto da noite passou com
o horror de costume. Isto é, os fantasmas apareceram novamente para Eleonora,
que outra vez gritou, pedindo socorro. Todos acudiram a seus gritos, e a
Senhora Ilsa, olhando pelo janelão, nada conseguiu ver, embora desejasse estar
enganada. A Senhora lisa julgava, assim como todos os outros, que a pobre moça
estava mesmo ficando louca. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">E as horas, os dias, as semanas passaram rapidamente. Agora faltam apenas
dois dias para o enlace de Eleonora e Fernando, e também para o noivado de
George e Adriana. Cerca de vinte empregados movimentavam-se pelo castelo
arrumando, limpando, enfeitando. Apesar dos protestos de Amália, a Senhora lisa
fazia questão de que fosse realizada uma festa de arromba. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Passou-se mais um dia. À noite, Eleonora teve novamente suas visões, e no
dia seguinte, à hora do almoço, recusou o alimento. A Senhora lIsa, Adriana e
George mostravam-se preocupados com a jovem, que definhava a olhos vistos. <br />
Mas o tempo é inexorável, e o sol descambou mais uma vez. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">CAPÍTULO IX<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Finalmente chegou o esperado dia. Desde cedo Adriana estava em pé, e não só
ela, Amália, George, a Senhora Ilsa, Fernando e até o Senhor Danilo de
Saint-Marie fizeram questão de madrugar. Eieonora, por insistência de Dona
Ilsa, permanecia em seus aposentos. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Deitada em seu leito, Eleonora pensava: — “Afinal chegou o dia, o grande
dia de meu casamento. Eu devia estar feliz, mas não sei por que não estou.
Sinto algo... algo que me diz que Fernando não é como eu penso... Oh, mas como
sou tola, pensando sempre em coisas tristes.” E tentou mudar seus pensamentos,
mas não o conseguiu. Permaneceu então deitada até que uma batida à porta a
sobressaltasse. Era Adriana, com uma cestinha de onde retirou uma escova e um
pente. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Bom-dia, Eleonora, vim prepará-la para a ce rimônia. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Eleonora olhou para o vestido de noiva sobre uma poltrona. Era lindo, sim,
lindíssimo e muito antigo: fora usado pela primeira Saint-Marie e seria usado
pela última, rezava a tradição da família. A moça tentou levantar-se, mas
estava muito fraca e quase não conseguia sair da cama. Adriana ajudou a moça a
vestir-se e começou a passar-lhe o pente pelos louros cabelos, enquanto
conversava alegremente. De súbito, Eleonora perguntou-lhe: <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Adriana, por que você está sempre vestida de preto? Morreu alguém de sua
família? <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Adriana teve um sobressalto, e foi com a voz repassada de tristeza que
respondeu: <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Não, minha amiga, não morreu ninguém de minha família, pois já não a
tenho. O que não existe mais é... um ídolo ou um homem que do mais alto degrau
passou para o mais baixo... e acabou esfacelando-se e misturando com a poeira
do chão... <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Eleonora não entendeu mas, percebendo que o assunto entristecia Adriana,
calou-se. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">As horas passaram. A Senhora Ilsa veio bater à porta do quarto de Eleonora.
<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Eleonora, minha filha, apresse-se! Só estamos esperando por você. <br />
Adriana abriu a porta e a noiva saiu do recinto, belíssima, parecendo um anjo
caído há pouco do céu. A Senhora lisa extasiou-se com a beleza da jovem e
George, que passava por ali, soltou um assobio de entusiasmo. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Você está lindíssima, prima! E você, Adriana, não vai se arrumar também? <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">A moça fez um aceno com a cabeça e saiu em direção a seu quarto. Dona lisa
e George acompanharam a frágil Eleonora até a capela dos Saint-Marie, onde já
estavam os convidados. A aparição da noiva fez um murmúrio de admiração
erguer-se no ar. George estava impaciente e, quando viu Adriana entrar, puxou-a
para o altar e disse: <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Senhores, em breve outro casamento realizar-se-á aqui. Tenho o prazer de
comunicar-vos que estou noivo da senhorita Adriana Legrange! <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Um murmúrio ergueu-se novamente. Todos estavam espantados com George de
Saint-Marie casar-se com uma pobretona, além de tudo no estado em que se
encontrava. Mas Dona Ilsa mostrou-se feliz, e não se cansava de beijar e abraçar
a noiva. Todos da família aprovavam o casamento, apenas Fernando parecia
descontente e Amália mordia os lábios de despeito. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">A cerimônia começou. Transcorreu tudo normalmente e, depois de realizado o
casamento, todos dirigiram-se para o castelo, onde um lauto almoço será servido
aos convidados. Adriana já não era mais uma criada, mas a noiva de George.
Todos pareciam tranqüilos e felizes, mas eis que um horrendo grito interrompeu
a tagarelice das mulheres. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Vejam! — gritou um convidado, apontando um vulto branco que despencava no
precipício. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Uma mão invisível pareceu tapar a boca de todos. Um silêncio mortal
envolveu o castelo de SaintMarie. O vulto branco era Eleonora. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Eleonora! — gritou a Senhora lisa. — Eleonora, minha filha querida! <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">E fez menção de jogar-se também no precipício. Fernando conseguiu segurá-la
a tempo. Entre lágrimas, George balbuciou: <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Ela era um anjo, e os anjos não pertencem à Terra. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">CAPÍTULO X<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Após o frustrado casamento de Fernando, uma profunda mudança ocorreu <st1:personname productid="em Saint-Marie. A Senhora" w:st="on">em Saint-Marie. A Senhora</st1:personname>
lisa tcomou-se uma mulher triste e caiada, a maior parte do dia rezando na
pequena capela ou no túmulo de Eieonora. Amália tcomou-se ainda mais fria e
insensível, parecendo intimamente muito satisfeita. Adriana agora já não era
apenas uma criada, não mais servia à mesa ou tirava o pó dos móveis, e ocupava
seu tempo a fazer roupas para o filho. George continuava a ser aquele rapagão
alegre, mas sua alegria às vezes parecia forçada. Fernando não mudou: a morte
de Eleonora não o comoveu absolutamente. Mas tomemos uma noite da mansão e
vejamos o que acontece. Adriana não conseguia dormir, revirando-se na cama.
Subitamente olhou para a janela e viu vultos brancos esvoaçando. “Fantasmas”,
pensou ela, e de sua garganta saiu um grito aterrorizado. <br />
Quase imediatamente surgiram a Senhora lisa, Amália e George. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Ali... — disse ela, trêmula — ...ali na janela... os fantasmas... — E
rompeu num choro convulsivo. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— É a maldição — disse soturnamente Amália. Ela está noiva de um
Saint-Marie e... <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Dona Ilsa interrompeu a governanta para consolar Adriana. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Não chore, filhinha — disse ternamente —, isso não é bom no seu estado,
não se preocupe. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">George também consolava Adriana: <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Querida, acalme-se, pense em nosso filho. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">A moça ficou satisfeita ao ouvir o <i>nosso, </i>e acalmou-se, adormecendo
novamente. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Como Amália estava sozinha para atender toda a mansão, uma nova criada
substituiu Adriana. No seu primeiro dia, levou o café da manhã para a moça. <br />
— Bom-dia — disse Adriana —, vejo que é nova aqui. Como se chama? <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Lili, madama — respondeu a figurinha magra e irrequieta. — Mas se quiser
pode me chamar de Noeli, que é meu verdadeiro nome, eu porém prefiro...<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Sei, sei — respondeu Adriana, rindo da maneira truncada da mocinha falar.
— Dê-me o café, Lili. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">A empregadinha, sempre rindo muito, perguntou: <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Eo seu nome, madama? Não é a Dona Driana? <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Adriana — corrigiu a moça —, mas dê-me logo o café e deixemos de
tagarelar. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Sim senhora, olha, eu trouxe até um pão com <i>mantêga </i>pra madama tão
bonita. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">—Manteiga, Lili, manteiga. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Adriana tomou seu café, depois entregou a bandeja a Liii, que saiu do
quarto muito espevitada. O dia estava lindo. A Senhora lisa levantou-se muito
cedo e foi fazer sua visita matinal ao túmulo de Eleonora. Adriana saiu a
passeio com George, só voltando ao meio-dia. Ao sentar-se à mesa, Amália
fitou-a com olhos estranhos. Subitamente a moça soltou um grito e caiu ao chão
desfalecida. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Adriana! — gritou George desesperado. — Oh, não! Está acontecendo com ela
o mesmo que com Eleonora! <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Minha querida — disse Dona lisa maternalmente <br />
—, tome este copo d’água e logo ficará boa. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Fernando retirou-se bruscamente da saia. Amália disse, vitoriosa: <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— É a maldição! Dela ninguém escapa, ninguém! <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">O Senhor Danilo de Saint-Marie aconselhou: <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Vocês têm que casar-se logo, antes que o precipício chame Adriana, como
fez com Eleonora. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">O velho senhor era muito respeitado, sua sugestão era a única aconselhável.
Ficou decidido então que a cerimônia seria logo realizada, um casamento
simples, quase em segredo. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">No dia seguinte George foi ao povoado arrumar os papéis necessários para o
casamento. Adriana ficou no castelo, tricotando e conversando com Liii, a
criadinha, com quem fez grande amizade. Amália caminhava sozinha pelos
corredores. Suas passadas retumbavam no silêncio, ela parecia preocupada com
alguma cousa. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Ao anoitecer, George voltou ao castelo, cansado, mas feliz. Dentro de uma
semana será realizado o casamento. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">CAPÍTULO XI<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Passaram-se cinco dias de tensão em Saint-Marie. Adriana tinha visões e
desmaios cada vez mais freqüentes. Certa noite ouviu-se um grito louco no
castelo, mas não vinha dos aposentos de Adriana, e sim do quarto de Amália. <br />
Todos correram para lá. A peça estava cheia de fumaça negra, uma língua de fogo
lambia o teto. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Tia Amália! — gritou Fernando penetrando no aposento. — Tia Amália, onde
está a senhora? <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Nesse momento ouviu-se um estrondo na parte norte da mansão, aquela parte
do castelo acabara de ruir. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Subitamente uma horrenda gargalhada assustou a todos. Amália, correndo
pelos corredores com um toco de vela na mão, parecia totalmente louca. Com uma
expressão de fúria, ela gritou: <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Eleonora morreu! E Adriana morrerá também! Os Saint-Marie morrerão todos!
Eu os matarei um a um! Sempre fui tratada como uma criada, mas me vingarei! Hei
de matar a todos, todos! <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">George agarrou a infame governanta e puxou-a para fora da mansão. Adriana,
a Senhora lisa e Danilo de Saint-Marie, com sua cadeira de rodas empurrada pelo
mordomo Jacques, seguiram atrás. Lili já se encontrava lá fora. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Jacques — pediu George —, segure Amáiia enquanto vou buscar Fernando. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">E entrou novamente no castelo envolto em nuvens de fumaça. Adriana gritou
por ele, mas o corajoso rapaz não a atendeu. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— George — chorava Dona Ilsa —, George, não... Perdi minha querida
Eleonora, Fernando e agora George. Não, meu Deus, é demais para mim. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Acalme-se, filha — disse o idoso Senhor Danilo. — George voltará e trará
Fernando também. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Dona Ilsa chorava desconsoladamente. Adriana não sabia o que fazer. Amália
acalmou-se, e lágrimas caíam-lhe dos olhos enquanto pronunciava palavras
desconexas. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Veneno, veneno... meu amor... Eleonora... Fernando... eu me vingarei... o
pó... sim, o pó está lá dentro... deixem-me buscar o pó... os lençóis... os
fantasmas... a maldição... ninguém escapa da maldição... <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">E sacudia a cabeça desgrenhada violentamente. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Nesse momento um formidável estrondo retumbou no silêncio da noite. O
castelo de Saint-Marie já não existia. E... George? <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— George! — gritou Adriana. — George, querido, onde está você? <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Um grito respondeu ao chamado de Adriana: era George, curvado sobre o corpo
inanimado de Fernando. Adriana correu para lá. Ao ver a moça Fernando
sussurrou: <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Adriana... você... você me perdoa? <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Adriana limpou com o lenço o sangue que escorria do peito de Fernando,
acenando com a cabeça. “Sim”, murmurou, mas o homem já nada escutava. Fernando
de Saint-Marie estava morto. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">A Senhora lIsa chorava mansamente enquanto acariciava os cabelos do rapaz. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— O que é que você perdoa, Adriana? <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Fernando era o pai de meu filho — murmurou Adriana. E ante os olhos
estupefatos dos outros a moça desfiou a sua longa e triste história. Dona Ilsa
a abraçou, dizendo entre lágrimas: <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Você é uma Saint-Marie, Adriana. — E virando para Amália, perguntou
friamente: — E você, o que tem a dizer? <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Amália não oferecia mais resistência, e respondeu: <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Eu amava Fernando e odiava todos os SaintMarie. Por isso suspendia
lençóis à janela do quarto de Eleonora, e depois de Adriana. Uma negra velha da
aldeia deu-me um pó branco que eu colocava nos alimentos de Eleonora e de
Adriana, daí provinham os desmaios e tonturas. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Terminou? — perguntou George, espantado com a revelação. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Sim, terminei. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Lili comentou: <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Puxa, que mulher ruim! <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Jacques, o mordomo, levou Amália ao povoado para deixá-la na delegacia.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Perdi Eleonora — lamentava-se Dona Ilsa —, e agora perdi também
Fernando... <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Não chore, mamãe — disse George. — A senhora ganhou uma filha.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Dona Ilsa levantou os olhos cheios de lágrimas para Adriana, procurando
sorrir. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Está feliz? — perguntou George a Adriana. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Oh, George! — soluçou a moça. — Como posso estar feliz? Não mereço o seu
amor. O meu coração estava cheio de ódio por Fernando, eu só pensava <st1:personname productid="em vingana. Voc↑" w:st="on">em vingança. Você</st1:personname> me
perdoa? <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Como resposta, o rapaz abraçou-a e deu-lhe um leve beijo nos lábios. Talvez
agora eles possam ser felizes, a pérfida Amália não fará mal a mais ninguém. <br />
A aurora já põe os dedos cor-de-rosa no puro azul do firmamento. Contra o
horizonte destaca-se a outrora mansão dos Saint-Marie, agora transformada <st1:personname productid="em ru■nas. Mais" w:st="on">em ruínas. Mais</st1:personname> atrás
vê-se a silhueta de dois jovens abraçados, parecendo uma promessa de esperança
e fé no futuro. <o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
Caio Fernando Abreuhttp://www.blogger.com/profile/06236145863035634830noreply@blogger.com50tag:blogger.com,1999:blog-16282308.post-39585838070820975612013-09-06T19:50:00.000-03:002013-09-06T19:50:00.253-03:00O prícipe Sapo <div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<i><span lang="PT">À memória de Carmen da Silva</span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<i><span lang="PT">“Numa tarde de novembro de 1966 eu estava em meu
quarto no IPA, internato <st1:personname productid="em Porto Alegre" w:st="on">em
Porto Alegre</st1:personname>, lendo Graciliano Ramos, quando vieram trazer um
envelope grande chegado de São Paulo. Era um exemplar do revista </span></i><i><span lang="PT">Cl</span></i><span lang="PT">audia <i>com este conto publicado e uma
carta de Carmen da Silva. Há quase um ano, eu enviara o texto a ela pedindo
apreciação, e não recebera resposta. A carta explicava: Carmen queria me
proporcionar a surpresa da publicação, a primeira. Foi naquele momento que me
tornei definitivamente escritor. Exceto por algumas palavras e parágrafos, não
mudei mais nado nesta história. Tentar “melhorá- la”seria atraiçoar a inocência
dos 18 anos que eu tive.”<o:p></o:p></i></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT"> </span> </div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Bonita mesmo ela nunca foi, sobre isso todos sempre estiveram de acordo.
Ainda mais agora, já quarentona, os cabelos muito finos e lisos eternamente
presos num coque sem graça, os olhos parados numa expressão estranha, misto de
ironia e tristeza. Mas não se pode negar que tinha algo diferente — alguma
coisa assim que transcendia o corpo e ficava pairando ao seu redor como... como
uma névoa vaga de manhã de outono. (Ia dizer <i>auréola, </i>mas essa palavra lembra santa e isso eu garanto que ela nunca
foi.) O fato é que ela possuía uma graça especial, talvez o modo como se
debruçava à janela, ou mesmo o jeito oblíquo de sorrir apertando os lábios,
como se temesse revelar no sorriso todo o seu mundo interior. <br />
Teresa era seu nome. Nome comum que não lembra nada nem ninguém — a não ser as
duas santas, a Teresinha de Jesus na música infantil e a Teresa Cristina
imperatriz, com as quais aliás nem um pouco ela se parecia. Pois Teresa vinha de
uma família muito numerosa. Onze irmãs. Todas com T de inicial no nome também.
Teresa, sorte dela, foi das mais velhas, pois a décima segunda, esgotado o
reservatório de nomes, foi batizada como Telêmaca. Mesmo essa conseguiu casar.
Todas as outras conseguiram, menos Teresa. Foram-se indo aos poucos todos
aqueles tês, como a água numa banheira vai sumindo, sumindo, de repente a gente
depara com a banheira vazia e pergunta: “Ué, cadê a água?” Foi isso que
aconteceu com Teresa. Madrinha, testemunha ou aia de todos os casamentos.
Sempre sorridente, feliz com a felicidade das outras, escondendo uma ponta, só
uma pontinha, de inveja boa. Os parentes já se olhando de esguelha, trocando
sorrisos maliciosos, fazendo apostas ferinas: “Será que esta encalha?” As irmãs
casando e Teresa sobrando, o corpo fanando, a carteira e as luvas puindo de
tanto casamento. E um misto de amargura e expectativa se acumulando num fundo
de alma. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">“Minha vez também há de chegar”, pensava, comparando-se às dez irmãs. E
tirava, honestamente, um saldo a seu favor: era mais inteligente, mais desembaraçada,
mais elegante. Mas ia sobrando. E a esperança — a esperança ameaçando tomar-se
real no primo Gonçalo, de olhos verdes, verdes, tocador exímio de violão,
seresteiro incorrigível, partido visado pelas moçoilas românticas e temido
pelos papais, aquela esperança apequenando mais e mais no coração de Teresa.
Foi-se de vez no nono casamento: Tanira e Gonçalo confirmam. Teresa, madrinha
mais uma vez. Sorriso desta vez como pintado no rosto onde os olhos mostraram,
pela primeira vez, aquele misto de ironia e tristeza. Depois a festa, os doces,
as danças, os pares rodopiando, o violão, os olhos — meu Deus, tão doidamente
verdes! — de Gonçalo postos nos olhos sem graça da irmã. Teresa enfiada num
canto, falando de pontos de crochê para dona Anaurelina, buço cerrado, seios
fartos, mãe de Gonçalo rodopiando na valsa e olhos (ainda, Deus meu!) postos
nos olhos de Tanira. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">À noite, sozinha na cama, amargura, culpa, choro envergonhado, desejos
inconfessáveis, pensamento <st1:personname productid="em Gonalo. Olhos" w:st="on">em
Gonçalo. Olhos</st1:personname> nos olhos de Tanira, tão desvairadamente
verdes. Os noivos na cama longe dali decerto abraçados, colados, fundidos.
Olhos nos olhos mesmo no escuro. A cor dos olhos dele devia brilhar no escuro,
como os dos gatos, dos tigres. Um gato no cio miou lá fora, e ela revirando-se,
mãos buscando água na mesinha de cabeceira, sono pesado, pesadelo verde, cheio
de olhos e gatos, valsas e tigres. Na manhã seguinte, a vergonha de si mesma,
das coisas que pensara durante a noite — seria doida? O medo de retratar-se em
cada gesto, em cada palavra, a fazia cerrar-se áspera à menor tentativa de
aproximação dela e das irmãs restantes. E à noite, outra vez o corpo ardia no
desejo impossível do corpo do pequeno. Os dias atordoados, as noites longas,
suores, frustração. O tempo, remédio pra tudo, diziam, passando. As irmãs
casando sem parar. Teresa ressecando. Os pais morrendo. Quando eles morreram, o
pai menos de ano depois da mãe, ela não chorou. Já havia esgotado, pensava, sua
capacidade de sofrer. Mas pensando na relativamente boa situação financeira em
que ficara após a morte deles, a única solteira e desamparada, não podia deixar
de lembrá-los com gratidão. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Teresa de luto fechado, sozinha em casa com o gato. Às segundas, visita de
Têmis; às terças, visita de Tania; às quartas, de Teima; às quintas, de
Tatiana; às sextas, de Tflia, que as outras moravam em outras cidades. Os
sábados livres para igreja, cemitério. Domingos: banho, vestido bem passado,
talco, perfume, coque, janela. Olhos gulosos nos homens que passavam. Olhos
úmidos ao ouvir as crianças de mãos da- das cantando “Se eu roubei, se eu
roubei teu coração, tu roubaste, tu roubaste o meu também”. Novelas no rádio e
leituras para matar o tempo. No começo, desde almanaques de farmácia até livros
de colégio, depois dedicou-se somente às histórias infantis. Domingo à tarde,
debruçada na moldura verde da janela, em segredo punha nos vizinhos apelidos
tirados dos livros. Branca de Neve era a moça branca e anêmica, diziam que tuberculosa,
filha de seu Libório açougueiro que, por sua vez, era o gigante de João e o Pé
de Feijão. As irmãs Rosa Branca e Rosa Vermelha, as duas metidas filhas do
médico, e a Moura Torta. a portuguesa da venda, coitada, tão boazinha apesar do
narigão e da corcunda. E foi assim que apareceu o príncipe Sapo. <br />
Teresa adorava aquela história, já lera mais de dez vezes. “Ai como sou besta e
sem fundamento”, pensava, tamanha mulher lendo e ainda por cima gostando dessas
bobagens para crianças.” Pensava vagamente em procurar um médico para curar a
mania, ouvira falar de psicólogos, médicos de cabeça, que curam coisas assim.
Mas não fazia nada. Fugia a toda hora para aquele mundo feito de casas de doce,
castelos, fadas, maçãs mágicas. Sonhava com o príncipe Sapo. Negava o real,
enojava-se da lembrança de Gonçalo, braços cabeludos, peito cabeludo, suado,
cheiro de homem, cigarro e cerveja, banhas incipientes com o casamento. Tinha
nojo, sim. Comparava-o ao príncipe Sapo — louro, delicado, perfumado, olhos
azuis — não verdes, verdes não! —, tocando piano com aquelas mãos tão alvas.
Gonçalo tocava violão. Teresa odiava violão, amava violão. Odiava Gonçalo,
amava Gonçalo. De manhã, no espelho, chamava-se em voz alta de besta, besta,
besta. Estava ficando louca e velha e feia e quase quarentona e ressecada e
cínica, até cínica. meu Deus. Chorava. Recompunha Gonçalo na memória traço por
traço, depois apagava tudo com as imagens dos príncipes das histórias infantis.
<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Resolveu então encontrar o príncipe Sapo. Durante três domingos procurou-o
inutilmente em todos os homens que passaram sob a janela. No quarto, debruçada
na janela verde, cabelos presos no coque, talco, banho recente, corpo
apaziguado — pois no quarto domingo achou. Não, não era louro nem delicado, nem
tinha os olhos azuis. Resumindo: em nada se parecia à gravura do livro. Em
compensação, lembrava tanto um sapo que ela não pôde deixar de olhá-lo atenta. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">E lá vinha ele descendo a rua, baixinho, cheio de tiques, os olhos saltados
saltando para os lados. Um terno surrado dançando no corpo franzino, uma pasta
embaixo do braço, caminhando como se fosse aos saltos. Um sapo perfeito. <br />
Ela riu alto e ele quase parou, espantado com aquele riso tão claro na garganta
da solteirona da janela verde. Depois se foi, baixinho, nervoso. Teresa ficou
olhando até que desaparecesse na curva da rua. À noite sonhou com ele. Não mais
com a figura do livro, mas com ele mesmo, o sapo. Sonhou coisas que a fizeram
corar no dia seguinte, olhando-se ao espelho e chamando-se baixinho de cínica,
cínica, cínica. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Indagou pela vizinhança, até descobrir. Era professor de piano, pobre,
solteiro, morava na pensão da esquina, O nome: Francisco, todos chamavam de
Chico. Nada lembrava príncipe, nem sapo. Professor de piano, isso gostava.
Resolveu comprar um piano. Comprou. Tomásia, Tônia, Tatiana, demais tês e
respectivos maridos censuraram-na por jogar fora assim a herança dos pais,
coitados, tão bons, falecidos há tão pouco tempo, e ela já querendo gastar
dinheiro, assanhada, ingrata, e num piano, logo num piano, coisa preta, grande
e quase sem utilidade, a não ser tocar, coisa que aliás ela não sabia,
profanadora do luto, arriscando-se a levar castigo divino, nem parecia que
respeitava a memória deles, nem parecia que era católica apostólica romana. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Chega! — berrou Teresa, replicando que já tinha quase quarenta anos, o
dinheiro era seu, fazia o que bem entendesse dele, não seria por isso que
deixaria de amar os pais, coitados, tão bons, fal há tão pouco tempo. — E além
disso — continuou nética —, vocês têm seus maridos e filhos para trair, e eu,
que que eu tenho? Me digam, o que tenho nesta casa vazia? <br />
Escândalo. As irmãs saindo uma a uma, das, chamando-a de cínica, cínica,
cínica. Relações <br />
cortadas. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Mas o piano veio. Grande, rabudo, pretíssimo. Dedos cansados acariciando
teclas à toa. Sons difusos, dissonantes, espalhando-se pela casa grande e
deserta, entrando no coração amargurado de Teresa, ferindo-o de leve. Leve como
o toque de seus dedos nas teclas frias, frias como as lágrimas pingando no
assoalho escuro, escuro como a madeira envernizada do piano na qual ela passava
a mão como se fosse uma pele de gente. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Não perdeu tempo. Em seguida, as aulas. O príncipe Sapo batendo tímido na
porta. Olhos baixos, pés esfregados no capacho. E escalas, escalas e mais
escalas. Notas, sustenidos, bemóis, cachorro vai, dó-ré-mi, claves, mi-dó-ré,
pauta, compasso, cachorro vem, ré-mi-dó. Teresa deslumbrada, como se tivesse em
suas mãos a chave do cofre onde o mundo esconde seus tesouros. Quase
esqueceu-se do verdadeiro motivo pelo qual comprara o piano, tanto gostava de música.
A solidão nem mais pesava. Havia agora um amanhã, um ontem, um hoje. Havia o
piano, as lições, os exercícios. Esqueceu o gato, a janela no domingo, os
livros infantis, as novelas. Havia o piano. E havia também o príncipe, o Sapo. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">No começo tinha nojo dele. O homenzinho apagado demais, humilde demais,
sempre quieto, como consciente do desprezo que provocava, e por isso mesmo mais
desprezível. Mas ao cair de uma tarde, Teresa surpreendeu-se a olhá-lo com
pena, depois com compreensão, depois com simpatia, depois... Bem, noutro dia
suas mãos tocaram-se rápidas sobre o teclado. Afastaram-se logo. A dele
trêmula, nervosa; a dela hesitante; ambas, encabuladas. No dia seguinte buscaram-se
discretamente, tocando-se como que por acaso, as quatro mãos. Uma semana mais
tarde olharam-se nos olhos. Olhos fatigados, de gente quase velha, quase sem
ilusões. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">O piano cantava cada vez com mais alegria, os rumores na rua cresciam, todo
mundo comentando a pouca vergonha. Mas Teresa feliz, feliz, feliz. Uma página
inteira feliz. Um livro inteiro feliz. Um mundo inteiro, Teresa feliz. <br />
<!--[if !supportLineBreakNewLine]--><br />
<!--[endif]--><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Até que Gonçalo, sempre o cunhado mais decidido, veio falar com ela.
Tranqüila, Teresa ouviu... <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Olha, não temos nada com a sua vida, nem eu nem sua irmã, mas achamos que
devemos... — pigarreou, tossiu, meio engasgado com as palavras difíceis
ensaiadas antes — ... devemos zelar pelo bom nome da famflia, tão
representativa na sociedade local. Afinal de contas, seus pais... <br />
— . . .coitados, tão bons, falecidos há tão pouco tempo — interrompeu Teresa
distraída. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Gonçalo parou, surpreso. Ela sorriu com o canto da boca. ironia, ele
desconfiou. Mas prosseguiu: <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Pois é, isso. Eles não haviam de gostar. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Mas gostar de quê? <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Desses rumores. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Quais <i>rumores, </i>Gonçalo? <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Ele começou a perder a paciência. Os olhos antigamente tão incrivelmente
verdes! ela pensou com pena — ganharam um brilho frio e mau e opaco de vidro
sujo, fundo de garrafa.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT"> — Ora, Teresa, não se faça de
inocente. Você já não é mais nenhuma criança, já tem trinta e cinco anos e... <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Trinta e oito. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Pois é, isso. Não é mais idade de andar namoricando com esse tal de
professor que não tem nem onde cair morto, e deve estar de olho mesmo é no seu dinheiro,
esse... <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Príncipe Sapo. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Hein? <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Príncipe Sapo, ora. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Gonçalo olhou melhor para ela. E adoçou a voz como quem fala com uma
criança — ou uma louca —, os olhos retomando por segundos aquele verde bom de
antigamente. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Que príncipe, Teresa? <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Sapo, já disse. Que coisa, parece surdo. Aquele que pegou a bola de ouro
da princesa e pediu para ir com ela, comerem juntos, dormiremjuntos, você sabe.
<br />
Gonçalo desviou os olhos e deslizou-os pela sala, o piano enorme e o retrato de
Chico Francisco príncipe Sapo sobre ele. Teresa acompanhou seus olhos pensando
— “Gonçalo, eu amei você. Seus olhos verdes, seu violão. Amei a serenata que
você nunca me fez<i>”. </i>Depois
foi falando devagar, sílaba por sílaba, como se o que dissesse fosse algo muito
frágil:<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT"> — Eu vou me casar com o Chico —
“Francisco príncipe Sapo”, completou mentalmente. E mentiu, deixando-se embalar
pelas próprias palavras: — Já mandei até ver o vestido, branco, comprido, com
uma cauda deste tamanho. Vou casar de noiva, dos pés à cabeça. <br />
Gonçalo suspirou. Já ouvira falar de muitos casos assim, essas moças
passadonas, solitárias. Podia ficar ainda mais grave com o passar do tempo. Não
tinha cura. Pediu licença, levantou e se foi, levando para sempre seu olhar já
nem tão verde e a serenata frustrada. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Pausa de uma lição. Sobre o guardanapo branco do piano, chá e bolinhos.
Zumbido de mosca voando, entontecida pelo calor. Teresa com os dedos que há
pouco ensaiaram no teclado, sem erro, a primeira parte de <i>Pour Élise </i>descansados
no regaço. Feliz, feliz, feliz, casar. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Chico — disse de repente —, nós vamos nos casar.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Silêncio. Teresa envolveu com olhar terno aquele homem pequenino demais,
humilde demais — mas tão seu, o único que a vida lhe dera. A mosca zumbia mais,
o calor aumentava, cinco da tarde de janeiro. Então ele olhou bem fundo nos
olhos dela. Tinha uns olhos pardos, salientes, caídos, infinitamente tristes. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Eu não posso, Teresa. Não posso casar com você. Nem com ninguém. <br />
E foi explicando aos trancos, a voz ainda mais baixa, mais cansada. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">— Foi no quartel, há muitos anos. Uma granada, você sabe, explosão, um
acidente, estilhaços. Não sou homem inteiro. Só meio homem, entende, Teresa?
Não me obrigue a falar nisso! <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Teresa endureceu o rosto, imóvel na cadeira. Antes que ela falasse, o
príncipe Sapo foi saindo exatamente como entrara: cabeça baixa, meio tropeçando
no capacho. Na porta ainda parou e olhou para trás. E achou-a tão bonita ali
sentada na sala clara, ao lado do piano, aquele olhar triste e irônico, os
cabelos finos e lisos presos no eterno coque, as mãos cruzadas no regaço, tão
bonita que não pôde deixar de sorrir. Foi esse sorriso que doeu <st1:personname productid="em Teresa. Doeu" w:st="on">em Teresa. Doeu</st1:personname> pelo
resto da vida. <br />
Ah, pobre Teresa, irmã de mil outras teresas do mundo inteiro. Piano vendido
num leilão. Domingo à tarde, cabelos num coque, banho recém-tomado lavando
mágoas e suores. Teresa na janela verde. Teresa olhar irônico e triste. Teresa
olhar guloso em todos os homens que passam. Teresa de olhos úmidos ouvindo as
crianças a esganiçar <i>Rua da Solidão. </i>Fogueira no corpo ainda virgem de
quase quarenta anos, <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">fogueira no fundo do pátio incendiando livros e sonhos, bruxas e príncipes.
Vontade de gritar, gritar bem alto e bem forte, sozinha à beira do fogo. O
vento bate e salva do fogo uma página colorida e sopra-a pela rua afora. Ah,
outra vez essa vontade de gritar um grito alto e triste que dobre lá longe,
junto com a folha colorida em chamas, na mesma esquina onde dobrou para sempre
Francisco Chico príncipe Sapo última esperança. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
Caio Fernando Abreuhttp://www.blogger.com/profile/06236145863035634830noreply@blogger.com68tag:blogger.com,1999:blog-16282308.post-69411276139118378462013-08-27T19:46:00.000-03:002013-08-27T19:46:00.782-03:00Introdução ao Passo da Guanxuma<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<i><span lang="PT">À memória de Erico
Verissimo,</span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<i><span lang="PT">que acreditava em mim <o:p></o:p></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<i><span lang="PT">‘A primeira vez que a cidade imaginária Passo da
Guanxuma apareceu num conto meu foi em </span></i><i><span lang="PT">Uma praiazinha de areia bem
clara, ali, na beira da sanga,</span></i><span lang="PT"> <i>escrito em 1984 e incluído no livro </i><i>Os dragões não conhecem o paraíso.</i> <i>Naquele conto é narrado o
assassinato de Dudu Pereira, que volta a aparecer aqui. Em outras histórias,
voltou a aparecer o Passo, até que assumi a cidade, um pouco como a Santa Maria
dejuan Carlos Onetti. Este texto, de 1990, pretendia ser o primeiro capítulo de
um romance inteiro sobre o Passado tão ambicioso e caudaloso que talvez eu
jamais venha a escrevê- lo. De qualquer forma, acho que tem vida própria, com o
estabelecimento de uma geografia e esses fragmentos de histórias quase sempre
terríveis respingados aqui e ali como gotas de sangue entre as palavras.’<o:p></o:p></i></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Por quatro pontos pode-se entrar ou sair do Passo da Guanxuma. Vista de
cima, se alguém a fotografasse — de preferência numa daquelas manhãs
transparentes de inverno, quando o céu azul de louça não tem nenhuma nuvem e a
luz claríssima do sol parece aguçar em vez de atenuar a navalha do frio solto
pelas ruas, com o aglomerado das casas quase todas brancas no centro, em torno
da praça, e as quatro estradas simétricas alongando suas patas sobre as pontas
da Rosa dos Ventos — e ao revelar o filme esse fotógrafo carregasse nas sombras
e disfarçasse os verdes, a cidade se pareceria exatamente com uma aranha na
qual algum colecionador tivesse espetado um alfinete bem no meio, como se faz
com as borboletas, no ponto exato em que as quatro estradas se cruzariam, se
continuassem cidade adentro, e onde se ergue a igreja. A torre aguda da igreja
seria a cabeça desse alfinete prendendo no espaço a aranha de corpo irregular,
talvez disforme, mas não aleijada nem monstruosa — uma pequena aranha
inofensiva, embora louca, com suas quatro patas completamente diferentes umas
das outras. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">LESTE: OS PLÁTANOS<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Os românticos e sonhadores, esses que imaginam vidas vagamente inglesas, de
paixões contidas, silêncios demorados e gestos escassos mas repletos de
significados, preferem a estrada do leste. Ela vai subindo da cidade em tantas
curvas que as pessoas são obrigadas a diminuir a velocidade, tanto faz que
andem a pé, a cavalo, de automóvel ou bicicleta, até chegarem ofegantes na
alameda de plátanos. Lá, onde já não existem casas, fora um ou outro rancho
perdido no campo entre capões de eucaliptos, a estrada começa seu caminho em
direção a Porto Alegre. Os plátanos são muito altos, dos dois lados da estrada,
e as folhas superiores, de ambos os lados, quase chegam a se misturar, formando
uma espécie de túnel — que mesmo antes
do filme com Doris Day, grande sucesso do Cine Cruzeiro do Sul, ganhou o nome
de Túnel do Amor. No final de maio, a luz do sol deitando no horizonte oposto
bate oblíqua nas folhas douradas e vermelhas caídas no chão e nas que ainda
restam nos galhos cada vez mais descarnados para revestir inteiro de ouro o
Túnel do Amor. Forra-se de prata também, nas noites de lua cheia,
principalmente as de Câncer, Leão ou Virgem, em pleno verão, quando as árvores
já recuperaram as folhas e, no auge do verdor, preparam-se para perdê-las outra
vez. Novamente entrelaçadas nas copas altas, dispondo sombras, noite alta elas
conspiram a favor daqueles namoros considerados <i>fortes </i>e de certas
amizades estranhas, como aquela que durante anos uniu a Tarragô filha do
vice-prefeito à alemoa Gudrun da revistaria. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Mesmo que nada mais existisse lá, só o Túnel seria suficiente para que os
apaixonados do Passo preferissem essa estrada a qualquer outra das três, mas há
outras razões. Tomando-se uma picada de terra batida à direita de quem vem da
cidade, pouco antes da alameda, chega-se à casa de Madame Zaly, cartomante,
vidente e curandeira respeitada por todo Estado e, dizem mas ninguém prova, a
aborteira mais hábil da cidade, com seus devastadores chás de arruda e outras
tisanas. Madame Zaly, cega de um olho coberto por venda preta e estranho
sotaque — alguns juram que peruano, outros francês, indiano os mais delirantes,
mas para os heréticos mera língua presa —, também planta girassóis e se alguém
lhe perguntasse por que, certamente explicaria, sacudindo as muitas pulseiras
de ouro, que é nativa-do-signo-de-Leão-e-
os-leoninos-precisam-do-sol-em-todas-as-suas-formas. Nas tardes de verão,
quando os girassóis escancaram as pétalas amarelas em volta da casa de tábuas
também amarelas de Madame Zaly, de dentro do Túnel do Amor pode-se ver aquele
exagero de ouro respingado em gotas sobre o verde do campo. E quando, de
dezembro a março, alguma moça volta ao Passo com um girassol dos grandes nas
mãos, ou dos pequenos nos cabelos, todo mundo fica logo sabendo que ela foi ou
ver o futuro ou matar uma criança. Foi assim que Dulce Veiga certa vez entrou
na cidade de tardezinha, pouco antes de ir embora para sempre, um girassol dos
pequenos entre os cabelos naquele tempo ainda castanhos, lisos, caídos abaixo
da cintura, tantos anos atrás, quase ninguém lembra sequer que ela era de lá. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">NORTE: AS SANGAS<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Menos romântica e mais erótica, porque no Passo amor e sexo correm tão
separados que até as estradas refletem isso, é a pata estendida em direção ao
norte. Do vale onde fica a cidade ela sobe áspera, em linha reta até o topo da
coxilha da zona do meretrício. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Aqui, assim como Madame Zaly reina a leste com seus estranhos poderes sobre
as plantas e os destinos, quem brilha soberana sobre a carne e os prazeres é <st1:personname productid="La Morocha" w:st="on">La Morocha</st1:personname>, uma paraguaia
meio índia de olhos verdes estreitos de cobra e cuja de mate novo sempre entre
os dedos cheios de anéis. O mais vistoso deles, dizem, uma serpente de prata
com olhos de rubi autêntico, mas dizem tanta coisa no Passo sobre as vidas alheias,
teria sido presente do próprio lendário prefeito Tito Cavalcanti, quase trinta
anos no poder, que a teria trazido ainda petiça lá dos lados de Encamación.
Passada a meia dúzia de casas dos domínios de <st1:personname productid="La Morocha" w:st="on">La Morocha</st1:personname>, só a dela de
material, com parreira nos fundos e hibiscos vermelhos na frente, à esquerda e
à direita do outro vale em que a estrada do norte afunda num pontilhão de
madeira, estendem-se os lajeados e a sanga Caraguatatá. De águas fresquíssimas
no verão e gélidas nas manhãs de inverno, cobertas por uma camada de geada tão
fina que dá a impressão de que bastaria soprar leve na superfície para rachá-la
em cacos e ver os lambaris do fundo. <br />
Essa, claro, é a estrada preferida da bagaceirada do Passo. Nas noites de verão
dizem que a soldadesca, os rapazes e até senhores de família, médicos e
vereadores costumam arrebanhar o chinaredo das pensões de <st1:personname productid="La Morocha" w:st="on">La Morocha</st1:personname> para
indescritíveis bacanais na beira dos lajeados, com muita costela gorda, coração
de galinha no espeto, cachaça, violão e cervejinha em caixa de isopor. Depois
dessas noitadas a areia branca da pequena praia da sanga Caraguatatá amanhece
atulhada de brasas dormidas, pontas de cigarro, restos de carne mastigada,
algum coração de galinha mais fibroso, camisas-de-vênus úmidas, tampinhas de garrafa,
restos de papel higiênico com placas duras e, contam em voz baixa para as
crianças não ouvirem, às vezes algum sutiã ou calcinha de cor escandalosa,
dessas de china rampeira, alguma cueca manchada ou sandália barata de loja de
turco com a tira arrebentada. <br />
Ao cair da tarde, principalmente em janeiro quando as famfiias direitas buscam
o frescor da sanga, a tradição manda os maridos irem na frente para limparem
discretamente as areias, enquanto as senhoras se fingem de distraídas e
diminuem o passo, sacudindo as toalhas sobre as quais vão sentar, que Deus me
livre pegar doença de rapariga, comentam baixinho entre si, mas algum guri
metido sempre acha alguma coisa nas macegas. Os lajeados são muitos, a sanga
Caraguatatá desdobra-se secreta e lenta entre pedras, algumas tão altas que
podem ser usadas como trampolim, e para quem tiver coragem de entrar pelo mato
cerrado onde, dizem, até onça tem, revela praias de águas cada vez mais
cristalinas, que pouca gente viu. Numa delas, certa manhã de setembro, Dudu
Pereira foi encontrado morto e nu, a cabeça espatifada por uma pedra jogada ao
lado, ainda com fios de cabelo grudados, lascas de ossos e gotas cinzas de
cérebro. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">SUL: O ARCO<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Em direção ao pampa e ao Uruguai, além do pobrerio da Senzala espalhado em
malocas de telhado de latão, há o quartel do Passo com a Vila Militar Rondon ao
lado, sempre com alguns cariocas de fala chiada e meio sem modos, todo mundo
acha. Tinha que ser mesmo perto das malocas, costuma dizer com desprezo dona
Verbena Marques de Amorim, quase todo ano segunda colocada na lista das dez
mais elegantes do Passo, perdendo sempre para alguma carioca rebolativa,
exagerada nas pinturas e balangandãs, afinal carioca não pode viver longe da
favela. Mas a Senzala não tem lata d’água na cabeça, samba ou tamborim. Nos
baixos úmidos até em tempo de seca, a piazada barriguda cata agrião e girinos
pelos banhados e, dizem, até mesmo algum sapão rajado para feitiço de Madame
Zaly, um pila cada, enquanto negrinhas adolescentes pulam cercas de arame
farpado, de preferência em noite de lua nova, trouxa nas costas, para
atravessar a cidade a pé e cair de boca na vida do lado oposto, nas pensões de <st1:personname productid="La Morocha. Algumas" w:st="on">La Morocha. Algumas</st1:personname>
se regeneram antes de pegar doença incurável de macho e vão se empregar com
senhoras de sociedade, feito a Lisaura Sonia de Souza, que depois foi primeira
e única Miss Mulata Passo da Guanxuma, casou com coronel reformado e hoje até
bingo canta aos sábados no Círculo Militar, mas não passa nem da porta dos
fundos do Clube Comercial. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Viveiro de domésticas, pedreiros, jardineiros, benzedeiras e mandaletes
para a cariocada da Vila Militar Rondon, ninguém sabe bem como, a cada agosto,
a Senzala sobrevive aos surtos de tifo, meningite e tudo que é peste ruim. Mais
do que pela vontade de Deus, todo mundo acha que é mesmo por artes santas da
Gorete dos Lfrios, estuprada e degolada aos nove anos de idade, a cabeça sem
corpo, de olhos abertos e sorrindo afogada entre tufos de copos-deleite no
banhado, em ano que ninguém lembra quando e nem mesmo se realmente houve.
Padroeira de todos os maloqueiros, basta acender vela branca em noite de lua
cheia ao lado de açúcar branco, que toda criança adora, mais nove
copos-de-leite, a idade da santinha, colhidos de fresco — e todas as preces são
atendidas. O padre nega, mas dizem de fonte segura que corre beatificação no
Vaticano, até bispo já andou fazendo rol de milagre. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">No alto da coxilha, com a Vila Militar dentro, o quartel parece um pequeno castelo medieval,
principalmente por causa do arco branco na entrada, que pode ser visto desde a
praça central, longe dali. Acontece cada coisa, dizem, entre os oficiais de
fora e a soldadesca do Passo, tudo rapaziada farrista e sem vergonha, mas nunca
esclarecem que coisas, só dizem Deus-me-livre revirando os olhos se alguém
insiste um pouco. Logo após o arco suavizado em muros caiados de branco em
tcomo do quartel e da vila, a estrada se desagrega nuns descampados de cupins,
unhas-de-gato, pitangueiras magrinhas, ásperos gravatás e pedras branquicentas,
entre as quais rastejam mortais cruzeiras, que só mesmo a soldadesca fazendo
manobras se atreve a enfrentar. Diz que passatempo preferido de milico com mira
boa é apontar justo onde, na testa da cobra, os dois braços da cruz se cruzam,
quem acerta vira lenda, como virou Biratã Paraguaçu, morenão que depois foi pro
Rio viver em Copacabana com padrinho capitão. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">O arco branco é o ponto mais alto daquele horizonte. Para quem vem das
bandas do Uruguai, de certa curva na estrada, a primeira imagem do Passo é
exatamente a torre da igreja bem no centro desse arco, atravessando-o feito
seta apontada para o céu. Além de aranha, dizem pois, o Passo da Guanxuma é
também o corpo de um guerreiro tapuia enterrado entre vales e coxilhas, tão
valente que nem mesmo embaixo da terra conseguiram arrancar-lhe das mãos o arco
e a seta. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">OESTE: O DESERTO<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Para a fronteira com a Argentina estende-se a última pata da aranha. O
deserto, apenas o deserto, um ondulado deserto de areia avermelhada que o vento
sopra fazendo e desfazendo as dunas que ameaçam a única coisa que ainda resta
por lá: cercado por cinamomos cada vez mais raquíticos, distante da estrada mas
nem tanto que não possa ser visto, com sua piscina — a única do Passo — em
forma de cuia de mate, ergue-se o que ainda resta do palacete de Nenê Tabaj
ara, o estancieiro responsável, dizem, por todo aquele areal dos infernos que
em dia nem muito longe até açude teve. Veneno demais na plantação,
monoculturas, coisas assim, todas do mal, e como Deus castiga, agora que perdeu
quase tudo em dívida de jogo e hipoteca, o deserto avança sobre seu último
refúgio sem que ele tenha para onde fugir. Sozinho no casarão roído pelos
ventos, a piscina seca há anos, Zezé passa o dia inteiro olhando as fotos da
filha Eliana, a mais linda das sete que teve, e as outras seis, espalhadas pelo
mundo, não querem saber dele — sem chorar, de joelhos, os olhos secos vermelhos
da areia que entra pelas frestas, não de lágrima. Numa madrugada roxa de
outubro, uivando feito gata no cio, cabelos ruivos desgrenhados até a cintura,
Eliana Tabajara, a mais linda moça que o Passo já viu, foi vista vagando
inteiramente nua, as coxas tingidas pelo vermelho do próprio sangue, falando
sozinha no meio do deserto, inteiramente louca. Dizem que até hoje vive, sem
dentes, a cabeça raspada, pele e osso, num hospício <st1:personname productid="em Buenos Aires" w:st="on">em Buenos Aires</st1:personname>, outros
que já morreu, e aquele vulto branco gemendo pelas areias nas madrugadas é seu
espfrito sem paz, deflorada pelo próprio pai, dizem também, mas ninguém prova
nada. <o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Isso é o que se conta, o que se diz, o que se vê e não se vê, mas se
imagina do Passo. De tudo, o mais real, salpicadas entre as quatro patas da
aranha <br />
— no meio dos girassóis do leste, à beira dos lajeados ao sul, pelos
descampados do norte e até mesmo entre os vãos mais sombrios das areias a oeste
—, o que mais tem em qualquer tempo de seca ou aguaceiro, calorão ou friagem,
são touceiras espessas de guanxuma. Por mais que o tempo passe e o asfalto
recubra a polvadeira vermelha das estradas, transformando tudo em lenda e passado,
por mais sujas e secretas as histórias sussurradas pelos bolichos, entre rolos
de fumo preto e sacos de feijão, por mais que por vezes o tempo pareça não
andar, ou andar depressa demais, quando as antenas de tevê e as parabólicas
começam a interferir entre o arco e a torre, exatamente por causa da planta, de
dois males jamais sofreu, sofre ou sofrerá o Passo. De distúrbios estomacais,
que chá de guanxuma é tiro e queda, nem de pó acumulado, que os ramos servem
para fazer vassouras capazes de assentar até mesmo a poeira daquele deserto
próximo que sopra e sopra noite e dia sem parar e, dizem, dizem tanto, ai como
dizem nesse Passo, nunca pára de crescer. <o:p></o:p></span></div>
Caio Fernando Abreuhttp://www.blogger.com/profile/06236145863035634830noreply@blogger.com10tag:blogger.com,1999:blog-16282308.post-77445156140181418322013-08-19T19:44:00.000-03:002013-08-19T19:44:00.389-03:00Noites de Santa Tereza<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<i><span lang="PT">Para Ledusha</span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<i><span lang="PT">Foi escrito em 1983, no Rio de Janeiro, entre as
novelas de </span></i><span lang="PT">Triângulo das
Águas, <i>e nunca publicado, creio, por ser às vezes francamente pornográfico.
Sua linguagem ao mesmo tempo afetada e chula, cheia de referências literárias,
tem uma influência deliberada de Ana Cristina César, na época minha grande
interlocutora, amiga e cúmplice. <o:p></o:p></i></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<i><span lang="EN-US">Out of the ash<o:p></o:p></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<i><span lang="EN-US">I rise with my red hair<o:p></o:p></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<i><span lang="EN-US">And I eat men like air<o:p></o:p></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
(Sylvia Plath: <i>Lady Lazarus) </i></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Me penetras por trás como a uma cadela, a grande cabeça roxa da tua pica
encharcada pela minha saliva. Só fico de quatro, como gostas, depois de hastear
tua bandeira no mínimo a meio pau, batendo acima do umbigo rendido de
eletricista. Carpinteiros, ergam bem alto o pau da cumeeira! grito rindo
arreganhada enquanto molho lençóis e mordo fronhas e teu leite grosso escapa de
dentro de mim para melar coxas e pentelhos. Enxugamos os gozos em papel
higiênico cor-de-rosa e voltas a me chamar de senhora, sem ouvir Claudia
Chawchat que bate portas no quarto ao lado, escandalizada com meus gritos.
Puta, não diz, mas ai! traumatismos, reumatismos, solecismos. Estou ficando
velha e louca aqui no alto deste morro velho, bem na curva da mangueira e das
tormentas. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">No porto inseguro lá embaixo vão e voltam navios de e para Surabaya,
Johnny, tira esse cachimbo da boca, seu rato! A hora da partida, acaricio
culhões de estivadores pelo cais, mas acordo às quatro da manhã para chupar
outra vez o guarda noturno, depois às seis me faço enrabar em pé pelo negrão
jardineiro pedindo que me chame de Zelda para que eu goze como numa valsa.
Zilda, ele geme, Zildinha, então desisto temporariamente de sexo e pela manhã
compro rosas na feira onde não há um que eu não tenha, sabes? Tipo Clarissa
Dalloway compareço à pérgola do hotel em modelinho vaporoso, entre sedas e
musselinas me estendo na relva folheando diários da Mansfield e suavemente
tusso, tusso, <i>très </i>Bertha Young. Mas não apago o cigarro, é com ele em
punho que à tarde troto ladeira abaixo em chita estampada e havaianas, hibisco
no jubão, bem Sonia Braga. Lambo com os olhos do rabo o cobrador e desço antes
do Flamengo deixando telefone embrulhadinho junto com o dinheiro da passagem.
Mais tardar sábado tem mulatão de Madureira em meu dossel. <br />
Te busco por telefone, telegrama e telepatia na cidade antiga onde vendo móveis,
viro punk a tesouradas, cinco furos na orelha esquerda, jogo um Volpi no lixo,
cometo escrotidões indizíveis rasgando noites que não estas de agora, mais
tropicais e tão ordinárias quanto. Enfim parto em lágrimas da cidade iluminada
espatifando corações de gás néon, tudo em vão naquelas madrugadas em que choro
bêbada cheirada malfodida metade no ombro de Patricia, metade no ombro de Luiz
Carlos, e repito repito meu amor você não precisa mentir, você só precisa me
dizer porque, Camille Claudel perde. Deixo recado definitivo na secretária
eletrônica alta madrugada e parto, definitiva também, pasta de originais
inéditos na sacola <br />
relíquia Biba de franjas e espelhinhos na gare da Estação da Luz: Janet Frame
abandona a Nova Zelândia.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Agora sou o último quarto no fim de corredor, à esquerda de quem vai, não
de quem vem, compreende? antes da queda brusca do caminho nos trilhos do
bondinho. Ligo a TV sem som, espalho devagar nívea hidratante entre as coxas,
pelas róseas pregas do cuzinho que eles gostam de arrombar, objetos brutais e
necessários. E de novo te espero em desespero, outra paisagem, outros sabores,
quem sabe o porteiro da noite batendo à porta dizendo ser você interurbano
urgente na portaria e eu nem atenda abrindo de joelhos com os dentes manchados
de batom o zíper do garotão. <i>Anyway, </i>amanhã vou e volto tentar te ver,
talvez ponte-aérea, trem só se me sentir demasiado Karen Blixen, o que é raro.
Trarei Rimbaud da Abissínia <br />
— alma gangrenada, a minha; dele a perna, naturalmente — para abnegada cuidá-lo
até o fim. Recados para Isabelle, exigirei direitos totais sobre a obra, que
não há de ser <i>par delicatésse </i>que perderei minha vida.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Entre os galhos da mangueira carregada espio a lua minguante sobre a
Guanabara, lobiswoman esfaimada na curva das tormentas. Fumo além da conta,
tenho umas febres suspeitas, certos suores à noite, muito além deste verão sem
fim. Uns gânglios, umas fraquezas,
sapinhos na boca toda, será? Tenho lido coisas por aí, dizem, sei lá. Não duro
muito, acho.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
Caio Fernando Abreuhttp://www.blogger.com/profile/06236145863035634830noreply@blogger.com16tag:blogger.com,1999:blog-16282308.post-80148059298458599672013-08-13T19:42:00.000-03:002013-08-13T19:42:00.548-03:00Anotações sobre um amor urbano<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<i><span lang="PT">Em memória de</span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<i><span lang="PT">Paulo Yutaka <o:p></o:p></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<i><span lang="PT">Entre 1977, quando foi escrito, e 1987, este texto
passou por várias versões. Três delas chegaram a ser publicadas (na extinta
revista mineira </span></i><i><span lang="PT">Inéditos</span></i><span lang="PT">; <i>no caderno Cultura, de </i><i>Zero</i>
<i>Hora</i>, <i>e no suplemento literário de
</i><i>A Tribuna da Imprensa</i>). <i>Alguns
trechos também foram utilizados por Luciano Alabarse num espetáculo teatral.
Mas nunca consegui senti- lo pronto e por isso mesmo também nunca o incluí <st1:personname productid="em livro. Continuo" w:st="on">em livro. Continuo</st1:personname>
tendo a mesma sensação. Mas talvez o jeito meio sem jeito destes pedaços mais
parecidos com fiagmen tos de cartas ou diário íntimo afinal seja a sua própria
forma informe e inacabada.<o:p></o:p></i></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<i><span lang="PT"><br />
<!--[if !supportLineBreakNewLine]--><br />
<!--[endif]--><o:p></o:p></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<i><span lang="PT">Te amo como as begônias tarântulas amam seus
congêneres; como as serpentes se amam enroscadas lentas algumas muito verdes
outras escuras, a cruz na testa lerdas
prenhes, dessa agudez que me rodeia, te amo ainda que isso te fulmine ou que um
soco na minha cara me faça menos osso e mais verdade.<o:p></o:p></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">(Hilda Hilst: <i>Lucas, Naim) <o:p></o:p></i></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Desculpa, digo, mas se eu não tocar você agora vou perder toda a
naturalidade, não conseguirei dizer mais nada, não tenho culpa, estou apenas
sentindo sem controle, não me entenda mal, não me entenda bem, é só esta
vontade quase simples de estender o braço para tocar você, faz tempo demais que
estamos aqui parados conversando nesta janela, já dissemos tudo que pode ser
dito entre duas pessoas que estão tentando se conhecer, tenho a sensação
impressão ilusão de que nos compreendemos, agora só preciso estender o braço e,
com a ponta dos meus dedos, tocar você, natural que seja assim: o toque, depois
da compreensão que conseguimos, e agora. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Não diz nada, você não diz nada. Apenas olha para mim, sorri. Quanto tempo
dura? Faz pouco despencou uma estrela e fizemos, ao mesmo tempo e em silêncio,
um pedido, dois pedidos. Pedi para saber tocá-lo. Você não me conta seus
desejos. Sorri com os olhos, com a mesma boca que mais tarde, um dia, depois
daqui, poderá me dizer: não. Há uma espécie de heroísmo então quando estendo o
braço, alongo as mãos, abro os dedos e brota. Toco. Perto da minha a boca se
entreabre lenta, úmida, cigarro, chiclete, conhaque, vermelha, os dentes se
chocam, leve ruído, as línguas se misturam. Naufrago em tua boca, esqueço, mastigo
tua saliva, afundo. Escuridão e umidade, calor rijo do teu corpo contra a minha
coxa, calor rijo do meu corpo contra a tua coxa. Amanhã não sei, não sabemos. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Pensei <st1:personname productid="em voc↑. Eram" w:st="on">em você. Eram</st1:personname>
exatamente três da tarde quando pensei <st1:personname productid="em voc↑. Sei" w:st="on">em você. Sei</st1:personname> porque sacudi a cabeça como se você
fosse uma tontura dentro dela e olhei o digital no meio da avenida. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Corre, corre. O número do telefone dissolvendo-se em tinta na palma da mão
suada. Ah, no fim destes dias crispados de início de primavera, entre os
engarrafamentos de trânsito, as pessoas enlouquecidas e a paranóia à solta pela
cidade, no fim destes dias encontrar você que me sorri, que me abre os braços,
que me abençoa e passa a mão na minha cara marcada, no que resta de cabelos na
minha cabeça confusa, que me olha no olho e me permite mergulhar no fundo
quente da curva do teu ombro. Mergulho no cheiro que não defino, você me embala
dentro dos seus braços, você cobre com a boca meus ouvidos entupidos de
buzinas, versos interrompidos, escapamentos abertos, tilintar de telefones,
máquinas de escrever, ruídos eletrônicos, britadeiras de concreto, e você me
beija e você me aperta e você me leva para Creta, Mikonos, Rodes, Patmos,
Delos, e você me aquieta repetindo que está tudo bem, tudo, tudo bem. O
telefone toca três vezes. Isto é uma gravação deixe seu nome e telefone depois
do bip que eu ligo assim que puder, OK? <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">O cheiro do teu corpo persiste no meu durante dias. Não tomo banho. Guardo,
preservo, cheiro o cheiro do teu cheiro grudado no meu. E basta fechar os olhos
para naufragar outra vez e cada vez mais fundo na tua boca. Abismos marinhos,
sargaços. Minhas mãos escorrem pelo teu peito. Gramados batidos de sol, poços
claros. Alguma coisa então pára, todas as coisas param. Os automóveis nas ruas,
os relógios nas paredes, as pessoas nas casas, as estrelas que não conseguimos
ver aqui do fundo da cidade escura. Olho no poço do teu olho escuro, meia-noite
<st1:personname productid="em ponto. Quero" w:st="on">em ponto. Quero</st1:personname>
fazer um feitiço para que nada mais volte a andar. Quero ficar assim, no
parado. Sei com medo que o que trouxe você aqui foi esse meu jeito de ir
vivendo como quem pula poças de lama, sem cair nelas, mas sei que agora esse
jeito se despedaça. Torre fulminada, o inabalável vacila quando começa a brotar
de mim isso que não está completo sem o outro. Você assopra na minha testa. Sou
só poeira, me espalho em grãos invisíveis pelos quatro cantos do quarto. Fico
noite, fico dia. Fico farpa, sede, garra, prego. Fico tosco e você se assusta
com minha boca faminta voraz desdentada de moleque mendigo pedindo esmola neste
cruzamento onde viemos dar. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">A cidade está louca, você sabe. A cidade está doente, você sabe. A cidade
está podre, você sabe. Como posso gostar limpo de você no meio desse doente
podre louco? Urbanóides cortam sempre meu caminho à procura de cigarros,
fósforos, sexo, dinheiro, palavras e necessidades obscuras que não chego a
decifrar em seus olhos semafóricos. Tenho pressa, não podemos perder tempo.
Como chamar agora a essa meia dúzia de toques aterrorizados pela possibilidade
da peste? (Amor, amor certamente não.) Como evitaremos que nosso encontro se
decomponha, corrompa e apodreça junto com o louco, o doente, o podre? Não
evitaremos. Pois a cidade está podre, você sabe. Mas a cidade está louca, você
sabe. Sim, a cidade está doente, você sabe. E o vírus caminha em nossas veias,
companheiro. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Fala, fala, fala. Estou muito cansado. Já não identifico nenhuma palavra no
que diz. Apenas me deixo embalar pelo ritmo de sua voz, dentro dessa melodia
monótona angustiada perpiexa repetitiva. Quase três da manhã. Não temos aonde
ir, nunca tivemos aonde ir. Um nojo, vezenquando me dá um asco — nojo é culpa,
nojo é moral — você se sente sórdido, baby? — eu tenho medo, não quero correr
riscos — mas agora só existe um jeito e esse jeito é correr o risco — não é
mais possível — vamos parar por aqui — quero acordar cedo, fazer cooper no
parque, parar de beber, parar de fumar, parar de sentir — estou muito cansado —
não faz assim, não diz assim — é muito pouco — não vai dar certo — anormal, eu
tenho medo — medo é culpa, medo é moral — não vê que é isso que eles querem que
você sinta? medo, culpa, vergonha — eu aceito, eu me contento com pouco — eu
não aceito nada nem me contento com pouco — eu quero muito, eu quero mais, eu
quero tudo. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Eu quero o risco, não digo. Nem que seja a morte. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Cachorro sem dono, contaminação. Sagüi no ombro, sarna. Até quando esses
remendos inventados resistirão à peste que se infiltra pelos rombos do nosso
encontro? Como se lutássemos — só nós dois, sós os dois, sóis os dois — contra
dois mil anos amontoados de mentiras e misérias, assassinatos e proibições.
Dois mil anos de lama, meu amigo. Esse lixo atapetando as ruas que suportam
nossos passos que nunca tiveram aonde ir. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Chega em mim sem medo, toca no meu ombro, olha nos meus olhos, como nas
canções do rádio. Depois me diz: — “Vamos embora para um lugar limpo. Deixe
tudo como está. Feche as portas, não pague as contas nem conte a ninguém. Nada
mais importa. Agora você me tem, agora eu tenho você. Nada mais importa. O
resto? Ah, o resto são os restos. E não importam”. Mas seus livros, seus
discos, quero perguntar, seus versos de rima rica? Mas meus livros, meus
discos, meus versos de rima pobre? Não importa, não importa. Largue tudo. Venha
comigo para qualquer outro lugar. Triunfo, Tenerife, Paramaribo, Yokohama.
Agora, já. Peço e peço e não digo nada mas peço e peço diga, diga já, diga
agora, diga assim. Você não diz nada. Você não me vê por trás do meu olho que
vê. Você não me escuta por trás da minha boca que pede sem dizer, e eu bem sei.
Você planeja partir para um país distante, sem mim, de onde muitos anos depois
receberei a carta de um desconhecido com nome impronunciável anunciando a sua
morte. Foi em abril, dirá, abril ou maio. Ou setembro, outubro. Os mais cruéis
dos meses. Tanto faz, já não importará depois de tanto tempo, numa cidade
remota. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Pelas escadarias da avenida deserta, lata de coca- cola largada na porta da
igreja, aqui parece que o tempo não passou, quero te mostrar um vitral, esta
sacada, aquele balcão como os de Lorca, entremeado de rosas, quero dividir meu
olhar, desaprendi de ver sozinho e agora que tudo perdeu a magia, se magia
houve, e havia, e não consigo mais ver nenhum anjo em você, pastor, mago,
cigano, herói intergaláctico, argonauta, replicante, e agora que vejo apenas um
rapaz dentro do qual a morte caminha inexorável, só não sabemos quando o golpe
final, mas virá, cabelos tão negros, rosto quase quadrado, quase largo, quase
pálido, onde já começou a devastação, olhos perdidos, boca de naufrágio
vermelho pesado sobre o escuro da barba malfeita, olho tudo isso que vejo e não
tem outra magia além dessa, a de ser real, e vou dizendo lento, como quem tem
medo de quebrar a rija perfeição das coisas, e vou dizendo leve, então, no teu ouvido
duro, na tua alma fria, e vou dizendo louco, e vou dizendo longo sem pausa —
gosto muito de você gosto muito de você gosto muito de você. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Tantas mortes, não existem mais dedos nas mãos e nos pés para contar os que
se foram. Viver agora, tarefa dura. De cada dia arrancar das coisas, com as
unhas, uma modesta alegria; em cada noite descobrir um motivo razoável para
acordar amanhã. Mas o poço não tem fundo, persiste sempre por trás, as cobras
no fundo enleadas nas lanças. Por favor, não me empurre de volta ao sem volta
de mim, há muito tempo estava acostumado a apenas consumir pessoas como se
consome cigarros, a gente fuma, esmaga a ponta no cinzeiro, depois vira na
privada, puxa a descarga, pronto, acabou. Desculpe, mas foi só mais um engano?
e quantos mais ainda restam na palma da minha mão? Ah, me socorre que hoje não
quero fechar a porta com esta fome na
boca, beber um copo de leite, molhar plantas, jogar fora jornais, tirar o pó de
livros, arrumar discos, olhar paredes, ligar-desligar a tevê, ouvir Mozart para
não gritar e procurar teu cheiro outra vez no mais escondido do meu corpo,
acender velas, saliva tua de ontem guardada na minha boca, trocar lençóis,
fazer a cama, procurar a mancha da esperma tua nos lençóis usados, agora está
feito e foda-se, nada vale a pena, puxar as cobertas, cobrir a cabeça, tudo
vale a pena se a alma, você sabe, mas alma existe mesmo? e quem garante? e quem
se importa? apagar a luz e mergulhar de olhos fechados no quente fundo da curva
do teu ombro, tanto frio, naufragar outra vez em tua boca, reinventar no escuro
teu corpo moço de homem apertado contra meu corpo de homem moço também, apalpar
as virilhas, o pescoço, sem entender, sem conseguir chorar, abandonado,
apavorado, mastigando maldições, dúbios indícios, sinistros augúrios, e amanhã
não desisto: te procuro em outro corpo, juro que um dia eu encontro. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT">Não temos culpa, tentei. Tentamos. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<br />
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
Caio Fernando Abreuhttp://www.blogger.com/profile/06236145863035634830noreply@blogger.com12tag:blogger.com,1999:blog-16282308.post-54353180820405334732013-08-10T19:25:00.002-03:002013-08-10T19:25:26.820-03:00Na cama por causa de Madonna<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 18.0pt;">
<span style="text-indent: 18pt;">Tentei
ignorar, juro. Mas foi completamente impossível. Acontece que moro a duas
quadras do Caesar Park, onde Madonna ficou. Do meu monástico 12</span><sup style="text-indent: 18pt;">a</sup><span style="text-indent: 18pt;">
andar, dias e noites ouvia lá embaixo os gritos daquela involuntária homenagem
póstuma a Fellini. Certa manhã, acordei com um barulho estranhíssimo sob a
janela: helicópteros sobrevoavam a área. E, mesmo tendo que desviar da Augusta
para chegar à Paulista nas minhas peregrinações urbanas, não consegui mais
ignorar. Mesmo decidindo não ir ao show (pruridos ideológicos, tipo eeeu,
colaborar com esse Grosseiro Símbolo da Alienação Capitalista?), acabei indo.
Na última hora, meu amigo Denis Escudero acenou com um irrecusável convite. E
fui.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 18.0pt;">
Safári, claro.
Uma hora de ônibus, duas na fila, mais três até começar. Dúvidas
pleistocênicas, oh Deus, já não tenho idade, devia ficar em casa lendo
Cervantes no original, que juventude idiota, não tenho mesmo vergonha na cara
& etc. Então as luzes apagaram, a bailarina seminua desceu pela corda. E eu
adorei. No dia seguinte, de cama por causa da Madonna, descobri algo
inteiramente insus- peitado — ela é do bem.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 18.0pt;">
Nem ofensiva
nem obscena, Madonna representa tudo aquilo que todos nós gostaríamos de ser e
ter: o prazer sem culpa. Acho que uma figura assim não existiria em tempos e
espaços sem o vírus da aids, que bloqueou a prática sexual e incendiou todas as
formas imaginárias e indiretas da sexualidade. Veja-se, no mundo inteiro, a
maré de revistas, filmes, vídeos pornográficos, sexo por telefone e todas as
formas de, digamos, fazer a coisa da maneira mental, não física — e portanto
sem riscos. Madonna faz no palco tudo aquilo que as pessoas (as saudáveis)
fazem na cabeça. Exemplo — um crioulo fortíssimo, com sotaque baiano, vendendo
cerveja na fila, gritava o que todo mundo sentia: "Minha gente, quero ser
que nem a Madonna para dar mais que chuchu na cerca!"</div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 18.0pt;">
Infelizmente,
observei outras atitudes, também sintomáticas da era da aids. No palco
(fantasia) pode, no real (vida) não. A drag queen montadésima foi atacada aos
gritos de "bicha! louca! piranha!". Tudo na maior agressividade. Mas,
durante as duas horas da realidade fantástica instaurada pelo show, há
respeito no ar. Ávida suposta de Madonna e seu reflexo coreografado (belamente,
pelo brasileiro Alexandre Magno), mesmo entre berros excitados, é recebida com
encantamento. Madonna é um pouco como aquele transatlântico que atravessa ao
longe a madrugada em Amarcord, de —justamente — Fellini.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 18.0pt;">
Na saída
(Safári Parte II, o Retorno) Denis observou: "Engraçado, parece que tem
uma espécie de tristeza no ar". E tinha. Pelas ladeiras do Morumbi, a
noite tinha ficado fria, guardas tentavam organizar um trânsito histérico, os
ônibus não vinham, as ruas pareciam sujas, as calçadas destruídas. Fugaz, o
sonho passara. Ninguém era mais Madonna. Nem ela, de volta ao hotel, enjaulada
lá no alto, enquanto cá embaixo o povo só queria receber uma espécie de autorização
— a de que se pode também, mesmo em tempos sombrios e sem graça, ser meio
Madonna na vida.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 18.0pt;">
A moça fez um
enorme bem ao astral do Brasil. Parece que gostou de nós, e a gente precisa
tanto, especialmente o Rio de Janeiro. No meio de dias estranhos, pesados (as
mortes de Fellini, River Phoenix, do maravilhoso Felipe Pinheiro, bombas por
toda a Alemanha, lama grossa em Brasília), Madonna deixou no ar um sopro de
vitalidade. Saúde, alegria, tesão. Com ou sem vírus e crise, Madonna dá vontade
dessa coisa sagrada: viver. Por isso mesmo, Deus a abençoe. E pouco importa se
Ele não existe, porque ela também não existe. Existem símbolos. São eles que
mobilizam e, mesmo quando não bastam, são necessários. Melhor ainda se forem
belos. E, repito, do bem. Do lado certo da luz, compreende?</div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
O Estado de S.Paulo, 14/11/1993</div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<br />Caio Fernando Abreuhttp://www.blogger.com/profile/06236145863035634830noreply@blogger.com19tag:blogger.com,1999:blog-16282308.post-60302459552475405302013-08-08T17:37:00.003-03:002013-08-08T17:37:46.524-03:00Pra machucar os corações<div class="MsoNormal" style="mso-outline-level: 3; text-align: justify;">
Para quem tem mais de trinta,
trinta e cinco anos, este disco pode ser uma tortura. Não, não é que seja um
mau disco. Eu explico. Ou tento</div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
É que fatalmente eu/tu/ele/nós
vamos lembrar. E não estou certo se essas lembranças serão boas. Ou se seriam
boas, lembradas hoje, você me entende? Porque o tempo passado, filtrado pela
memória e refletido no tempo presente — agora —, parece sempre melhor. E terá
mesmo sido?</div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 18.0pt;">
Apenas, quem
sabe, porque não havia fadiga lá. Aquela fadiga que se insinua, persistente,
entre o ruído das buzinas e das descargas abertas nos engarrafamentos de
trânsito, todo dia. Ou essa, de atravessar mais uma vez qualquer avenida às
seis da tarde para, de repente, olhar a multidão também fatigada e perguntar:
mas que cidade, afinal, é esta? E que vida? A quase amável, paciente fadiga de
contemplar o grande relógio das repartições e escritórios, quase imóvel na sua
lentidão, a partir das cinco e a caminho das seis da tarde. Para nos despejar,
novamente, nas ruas entupidas de fumaça e desejos bandidos nas esquinas, dentro
de carros apertados entre outros carros ou de ônibus apinhados — até o
interior dos apartamentos, com seus fantasmas emboscados, uns mortos, outros
vivos. E então o acúmulo de contas atrasadas, telefonemas ansiosos, telenovelas
chatas, quem sabe algum plano, certas fantasias. Outra cidade, outro país,
outro planeta, outra vida que não esta—uma memória de flores no cabelo e pés
descalços, pouco antes de o ruído do despertador e de o meu/teu/dele/nosso
coração serem os únicos audíveis dentro da escuridão onde afundamos na lama de
nossos sonhos mortos.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 18.0pt;">
Mas eu falava
— tentava—de um disco. De John Lennon.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 18.0pt;">
Ele foi
gravado ao vivo, no Madison Square Garden, em 30 de agosto de 1972. Há quase,
portanto, catorze anos. Você tinha quantos — quinze, vinte, vinte e cinco? E
provavelmente também imaginava que, um dia, pudesse não haver mais guerras,
nem países, nem ódio entre as pessoas. Um
mundo novo, não é isso? Depois houve cinco tiros nas costas, e pouco antes,
durante o depois, os muros das cidades pixados com frases como
"flower-power is dead". E então uma invasão de cabelos muito curtos,
quase raspados, roupas negras, couro justo: a ridicularização de tudo em que
você acreditou durante tanto tempo — e largou faculdade, largou família, caiu
em bandos pelas estradas para sonhar com essa coisa que não aconteceu: um
mundo novo. O deboche das suas antigas — e perdidas — ilusões. Patrício Bisso
só sobe no palco para cantar qualquer coisa como "bolsa peruana? Sandália
indiana? Hippie! Mata". Eu rio, você ri, ele ri—nós rimos todos juntos. E
temos um sutil cuidado em evitar, no vocabulário, no vestuário, qualquer
detalhe capaz de nos identificar como sobreviventes daquele tempo. Agora somos
mais do que modernos: demi-darks. Não temos fé, nem esperança, nem caridade.
Bebemos vodca pura, cheiramos umas. Nunca mais compramos uma caixinha de
incenso. E a bad-trip pinta sem química.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 18.0pt;">
Tudo isso dói
tanto. Eu nunca mais tinha ouvido John Lennon. O tempo corre, a gente vai
descobrindo jeitos de se proteger. Elis? Nem pensar: põe aí a Paula Toller.
Marc (quem lembra?) Bolan? De jeito nenhum, melhor um Boy George, cara. Let's
Roller. It's only rock and roll. Só que eu nem sempre sei se gusto. Mas, por
trás das defesas, esse vinco no canto esquerdo da boca continua avançando, cada
vez mais fundo, cada vez mais longo. Você tenta reagir, sem dizer claramente
não, pelo amor de Deus, não me dá esse disco pra ouvir, eu não entendo nada de
música, eu não conheço John Lennon e nunca ouvi falar em Yoko Ono. Eu não tenho
tempo. Não posso parar, nem pensar, nem sentir. Nem lembrar. Eu preciso ganhar
dinheiro. Tenho pressa neste passo alucinado em direção ao buraco negro do
futuro.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 18.0pt;">
Mas você acaba
aceitando. Agora somos profissionais. Coloca no toca-discos, como quem não
quer nada. Liga a TV, ao mesmo tempo. E, no meio dos sons que vêm também da rua
e dos outros apartamentos, de repente aquela voz tão antiga e conhecida grita:</div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 18.0pt;">
— Mother!</div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 18.0pt;">
Aumente o
volume. Ou desligue para sempre, você me entende?</div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
O Estado deS. Paulo, 6/4/1986</div>
<br />Caio Fernando Abreuhttp://www.blogger.com/profile/06236145863035634830noreply@blogger.com10tag:blogger.com,1999:blog-16282308.post-81950711654614682432011-10-23T09:11:00.008-02:002011-10-24T00:03:37.194-02:003X4 LIÉGE<div><span style="font-family: Arial; font-size: x-small;"></span><br />
<div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">Sou morena e magrinha, mas não como qualquer polinésia, como queria Cecília, e também nada tenho de Oriente: sou mais britânica na minha morenez, sou mais Brontë, qualquer das três. Meu pequeno coração foi gestado numa áspera charneca, gasto os invernos tentando descobrir infrutífera um caminho qualquer sobre a neve capaz de transformar todos os caminhos num único descaminho gelado e sem porto, tivesse nascido cem anos atrás me fanaria em brancas rendas e hemoptises escarlates, menos por doença que por delicadeza, insuportáveis que são para meus olhos os escarpados penedos das tardes ou a luz clara do meio-dia, envolta em penumbras que amenizassem o duro contorno das coisas viventes, assim me fanaria, com a magra mão translúcida estendida para o aro metálico dos óculos pousados sobre a capa de couro de um romance antigo, cheio de paixões impossíveis. Frente ao espelho, é com recato que tranço meus longos cabelos, enquanto a ponta de meus frágeis dedos de unhas curtas, às vezes roídas, acaricia o roxo das olheiras, herança de solitárias insônias. Depois busco um lugar junto à janela, pouso o rosto sobre uma das mãos e com a outra vou traçando riscos tristes pelas vidraças sempre embaçadas, por vezes grafo nomes de lugares e gentes que nunca conhecerei, sóis fanados atrás de nuvens débeis, flores doentias, estrelas opacas, talos quebradiços, plátanos desfolhados, olhos profundos, rostos apoiados em mãos magras como as minhas, identifico enquanto meus dedos riscam e riscam e riscam sem parar o inefável. De mancebos e malícias pouco sei, meu precário aprendizado da carne limita-se àquela gosma gelada que um Estudante certo dia depositou entre minhas coxas virginais, contra um muro descascado e cheio de brutais palavrões gravados a prego, numa sépia tarde outoniça. Até a chegada das regras seguintes, temi que houvesse plantado sua áspera semente dentro de mim, e de cada vez que cerrava as pálpebras tornava a sentir seu bafo de fera no cio contra meu colo pálido, as pedras do muro ferindo minhas espáduas, a vergonhosa corrida com as meias soquete desabando sobre os sapatos de verniz, os inúmeros banhos e todos os perfumes, todas as colônias, sabonetes, essências que passei pelo corpo para arrancar de minha pele aquele cheiro descarado de animal. Prefiro os cheiros fanados, as rosas quase murchas, e nos transes mais dolorosos sempre fui eu a banhar os cadáveres familiares, cortando-lhes os cabelos e as unhas com infinito carinho, de certa forma meus mortos todos foram também meus filhos quando os polia esmerada para que São Pedro não lhes pusesse defeito ao baterem às portas celestes, que nada teriam contra mim no Reino dos Céus até minha partida que, rogo constantemente, há de ser breve. Mas até hoje persiste o cheiro, embora na chegada do fluxo tenha me embriagado feito demente naquele sangue que assegurava a permanência de minha pureza, deixei-me sangrar durante várias horas, empapando lençóis e roupas íntimas, até estar segura de que nem a mais ínfima gota do líquido vital daquele selvagem havia maculado minhas entranhas: eu as reivindico brancas como o linho das fronhas, como o cretone dos lençóis, como a renda destas cortinas que o vento sopra contra as violetas nessas tardes em que o sol demora a partir e o céu inteiro tinge-se de lilás. Não, não ofereço perigo algum: sou quieta como folha de outono esquecida entre as páginas de um livro, definida e clara como o jarro com a bacia de ágata no canto do quarto - se tomada com cuidado, verto água límpida sobre as mãos para que se possa refrescar o rosto, mas se tocada por dedos bruscos num segundo me estilhaço em cacos, me esfarelo em poeira dourada. Tenho pensado se não guardarei indisfarçáveis remendos das muitas quedas, dos muitos toques, embora sempre os tenha evitado aprendi que minhas delicadezas nem sempre são suficientes para despertar a suavidade alheia, e mesmo assim insisto - meus gestos e palavras são magrinhos como eu, e tão morenos que, esboçados à sombra, mal se destacam do escuro, quase imperceptível me movo, meus passos são inaudíveis feito pisasse sempre sobre tapetes, impressentida, mãos tão leves que uma carícia minha, se porventura a fizesse, seria mais branda que a brisa da tardezinha. Para beber, além do chá com <i>une &irme de lait, </i>raramente admito um cálice de vinho, mas que seja branco para não me entontecer, e que seja seco para não esbrasear em excesso minha garganta em ardores que, temo, poderiam descontrolar-se além do limite imposto pela pudicícia, e para vestir, além do branco absoluto, admito apenas o cinza e o bege, raramente o preto, demasiado dramático para quem busca integrar-se ao fundo, não destacar-se, poucas vezes ouso o bordô, contudo me agrade o sangue coagulado de seus tons, lembrando dores para sempre pacificadas na sua estagnação, e nunca me atrevi aos azuis, iluminados demais para minha severidade. Nas folhas que datilografo como secretária, os chefes jamais detectaram uma rasura sequer, uma violação de margem, um toque mais nítido ou esmaecido, sou sempre precisa, caracteres negros sobre o branco impecável, e isso é tudo. Recebo modesta os elogios, vou duas vezes ao banheiro cada dia, ao chegar e ao partir, quando não tenho serviço cruzo os braços sobre o busto escasso e simplesmente permaneço, existo mais profundamente assim, quando silente, ou abro discreta certo livro de poemas líricos para saborear algum verso enquanto contemplo as alamedas estendidas atrás das janelas. Mas desde que, há duas semanas, uma cigana desvendou as fracas linhas das palmas de minha mão, pouco sossego encontro até em meu próprio sossego: dois amores, ela apontou, um já passado, e com amargura localizei na memória aquele sôfrego Estudante, e outro em breve por chegar. Desde então, me desconheço. Abreviaram-se-me as idas ao banheiro para molhar os pulsos e os lóbulos das orelhas, animando a circulação que se me estanca nas veias, por vezes olvido a torneira aberta e surpreendo-me a odiar minhas próprias tranças, as manchas roxas sob os olhos e tudo que me torna assim, fugaz. Mal posso conter um susto investigando o porte de cada homem que se aproxima, em cada esquina que dobro, em cada ônibus que tomo para ir e vir, sinto que busco prometido e me detesto por essa inquietação febril, pelo amor que desconheço e mal consigo supor, tão parca é minha vida de memórias ou medidas. Esforço-me por dar-lhe pinceladas tênues, não me atrevo aos óleos nem aos acrílicos, é nos guaches e sobretudo nas aquarelas que procuro o verde esmaecido de sua tez, mas por vezes alguma coisa se alvoroça e me surpreendo alucinada, incontrolável, a chafurdar em tintas fortes, berrantes cores primárias, formas toscas, símbolos sensuais, e é então que mergulho em banhos gelados no meio da noite para apaziguar a carne incompreensível, fremente qual Teresa d'Ávila, afogada entre lençóis, as palavras da cigana me embalando feito uma berceuse, imagino se não será o próprio Senhor este que se aproxima, e não conheço. Em cada junho, sei que não suportarei o próximo agosto, me debato elaborando aquela futura tarde gris para encontrá-lo - não aqui, entre torpezas, mas numa outra dimensão de luz maior, além de meu próprio corpo, irmão-burro aprisionado pelos instintos, num espaço discreto e contido como eu mesma venho sendo através destas quase três décadas que, álgida, sobrepujei. Sobrevivo a cada manhã quando, cruzando as portas e corredores que me conduzem às ruas intermináveis, imagino sempre que sou invisível para cada um dos que passam. Ninguém suspeita de meu segredo, caminho severa pelas calçadas, olhos baixos para que minha sede não transpareça: ah sou tão morena e magrinha que ninguém me adivinha assim como tenho andado - castamente cinzelada no topo deste morro onde os ventos não cessam jamais de uivar, tendo entre as mãos, como quem segura lírios maduros dos campos, uma espera tão reluzente que já é certeza. </span></span></div></div>Unknownnoreply@blogger.com99tag:blogger.com,1999:blog-16282308.post-76591085100536750342011-10-23T09:11:00.007-02:002011-10-24T00:03:19.222-02:0018X24 GLADYS<div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;">Sou uma loura trintona e gostosa, dezoito por vinte e quatro, como se dizia antigamente, mas só repito essas expressões comigo mesma, aprendi que a gente entrega o tempo em lembranças assim, por isso sempre contenho o susto que me afoga o peito quando por acaso escuto Anísio Silva, Gregório Barrios, Lucho Gatica, porque além de trintona e gostosa sou também moderna e extrovertida. Daquelas louras que permanecem até o fim e o depois de qualquer coquetel, e há tantos coquetéis e tantos principalmente <i>depois </i>de coquetéis na minha vida, sempre repito ao espelho passando as bem tratadas mãos de longuíssimas unhas ciclamens pelas fartas curvas perigosas da opulenta carne que Deus me deu, e só ele sabe a quantas duras e caras penas mantenho firme e fresca. Sou uma loura coquete que adora coquetéis, onde costumo degustar dulcíssimos martínis com cerejas, jamais com azeitonas, detesto o amargo, minha boca de insuspeitadas próteses foi feita apenas para saborear doçuras e todo dia, com as impecáveis unhas ciclamens, bato veloz nas teclas de minha IBM de secretária eficientíssima, a coluna muito ereta, realçando o arrogante relevo do busto que, em idos tempos, já mereceu a disputada faixa de Miss Suéter, acentuado ainda mais pelas malhas justas nem sempre decotadas, pois aos poucos a vida foi me ensinando que a luxúria reside menos na exibição integral do que naquela breve nesga de carne mal-e-mal entrevista entre a luva e a manga, e tenho meus sutis pudores: cruzo as pernas ardilosa, para que esse instante fugaz em que minha intimidade quase se revela por inteiro seja feito mais de ardentes expectativas do que de cruéis certezas. Não fui jamais uma loura óbvia demais, embora tenha estado sempre e por assim dizer à tona de mim mesma, em meu longo conhecimento dos homens descobri astuciosa que, no primeiro roçar de pupilas, é preciso prometer absolutamente tudo mas, no prosseguimento desses furtivos rituais, sei esmerar-me em caprichos lânguidos e débeis negativas, de forma que, quanto mais me esquivo, mais prometo, e mais abundante, se é que me entendem - cada <i>não </i>saído de meus cristalinos dentes equivale a dois, dez, duzentos <i>sins, but not now; </i>te daria já uma turmalina, mas te darei mais tarde uma urna de diamantes. Sou uma loura facílima, e por isso mesmo extremamente difícil, minhas obviedades possuem mapas complexos, os inúmeros x apontando o local exato do tesouro são quase todos falsos, eivados de seiemaranhadas, lagos barrentos infestados de piranhas, crocodilos famintos, pigmeus vorazes, caçadores de cabeça, tigres enfurecidos, ninhos de serpentes, pestes tropicais, febres malignas, curares e tisanas. Mas para o bom caçador, e aprendi também a importância de deixar o caçador supor-se caçador quando na verdade é o caçado, eu, pantera astuciosa de garras afiadas, andar felino, ferocidades invisíveis, mas como ia dizendo - sou também uma loura labiríntica em suas próprias tramas, tão densas que freqüentemente surpreendo-me atingindo o ponto oposto ao de minha rota anterior, um bom caçador-caçado sempre sabe como chegar direto ao próprio x que nem sempre é remoto, mas só os mais astutos percebem que o x, em vez de perdido entre incontáveis perigos, pode estar à beira do mais manso dos regatos, à sombra da mais florida cerejeira, no mais fresco desvão do mais fértil dos vales. Para estes, cedo, para estes, quase sem hesitar, escancaro minhas coxas de cetim e sou guia experiente em todos os passos que conduzem aos segredos de minha licorosa caverna, para estes acendo as luzes dos meus adentros, faço com que as sombras deixem de ser ameaçadoras para tornarem-se macias penumbras, veludosas alfombras distendidas com cuidados extremos para secar o suor e matar a sede dos bravos viajantes, extenuados pelo esforço de manterem eretas suas rijas armas de fogo nos roteiros por minhas intrincadas entranhas. É verdade que por vezes me perturbo tentando localizar entre esses o Grande Descobridor, qual América em sua nativa solidão virginal, impaciente pelo Colombo que a revele de vez para o mundo, explorando-a até o derradeiro veio de ouro para torná-la escrava cativa, serva humilhada dos mais brutais colonialismos, e para esse me preparo, para esse me burilo e me lapido esmerada - e sei que virá. Há duas semanas uma cigana localizou dois sinais, dois amores entre a minha linha do coração e o solitário sintético do anular esquerdo, um já vivido, afirmou, e logo lembrei daquele inábil escoteiro que em tempos imemoriais, inconfessáveis sob pena de revelar um coração já marcado pelas intempéries da existência, deixei que ensaiasse em minha exuberante geografia seus hesitantes primeiros passos, e após trinta e seis meses de proveitosa aprendizagem permiti que partisse, disseminando por outras paragens toda a sabedoria que, com trágica paciência e dilacerada alegria, concedi que extirpasse de mim, pois sempre soube ser eu, loura febril, nada mais que a primeira, jamais a derradeira, jamais a única entronizada em santa e mãe de filhos, a escolhida de seu esplêndido e insaciável ventre juvenil. Chafurdando em abissal melancolia na crise que se sucedeu, mergulhada em fugas barbitúricas, oceanos de gim, telefonemas noturnos em desespero, perambulações sedentas por todas as vielas pecaminosas do prazer, jurei solene aos pés de Oxum jamais voltar a ser como que progenitora de meus protegidos, preparando-os para a existência e, após, quedando em frenético abandono. Mas o segundo, a unha da cigana riscou forte a linha junto à base de meu dedo mínimo, o segundo chegará nos próximos meses e será sim ele, adivinhei, o Grande Descobridor, o tão sabido que nada terei a ensinar-lhe, e tão sabida eu mesma em todas as lições que já prestei que nada terei a aprender de si. Seremos, ele e eu, infatigável troca de prazeres, tilintar de cintilantes cristais em brindes com champanhe fervilhante de luxúria, línguas divididas na volúpia, corpos ensandecidos na selvageria dos gestos mais furiosos e mais amenos, entre suores, gemidos e secreções de líquidos pujantes feito cachoeiras tropicais, sete quedas, sete orgasmos terei eu de cada vez que me engolfe náufraga em sua ejaculação amazônica. Por ele espero, monja voraz, e desde que a cigana me desvairou assim investigo os volumes, os cheiros, os pêlos de todos os homens que ousam aproximar-se do covil desta pantera, receando então que uma excessiva ansiedade no fundo das castanhas luas gêmeas de meus olhos possam evidenciar uma sede demasiada para suas viris misoginias. Pelos inúmeros coquetéis por onde tenho desfilado meus ardis, observo em desprazer e apreensão meus desbragamentos cada vez mais freqüentes nos dulcíssimos martínis, e triturando a polpa das incontáveis cerejas temo explodir os limites de meus dezoito por vinte e quatro para transformar-me súbita em outdoor coloridíssimo, tão escandaloso e desesperadamente imenso que jamais caberia em quarto ou membro algum de qualquer homem. E quando despida e solitária em minha rendada furna investigo fatigada as novas marcas que o dia passado lavrou inclemente em meu rosto, tenho tido frêmitos próximos da dor, e quando me lanço sobre os lençóis acetinados do leito inutilmente perfumado, sinto que minhas ardências ameaçam arrebentar o negro négligé, e quando por malícia ou enfado cedo a algum caçador menor, suas estocadas já não despertam meu distraído prazer, perdido x inlocalizável até para mim mesma que o dispus no mapa, meu corpo enregelado agora abriga outros delírios, enquanto sob meus louros cabelos de raízes implacável e semanalmente descoloridas desfilam inconfessáveis fantasias com esse Grande Descobridor, cuja proximidade adivinho num eriçamento tal que nunca sei se será pressentimento ou puro engano. Por vezes raras, num misto de temor e júbilo, julgo escutar o ruído dos ramos secos sob a janela esmagados por suas negras botas reluzentes, enquanto se aproxima entre folhagens, e pelas madrugadas ardidas me engano supondo divisar nas sombras a massa escura e áspera da barba que lanhará meus seios intumescidos de desejo. É quando odeio a cigana por ter me enlouquecido assim, e custo a dormir, enredada em ódio, os dedos arquitetando delícias imaginárias nos lábios mais recônditos, mas na manhã seguinte não deixo de considerar o noturno coquetel de cada dia e então escovando cem vezes meus louros cabelos, sempre penso que pode ser Hoje. Escolho com cuidado os tules, as pedras, os organdis, os brilhos e brincos, e é tão luminosa e devastadora que enfrento o dia nascente que, apesar das sombras da madrugada, a cada nova manhã os que me vêem passar soberba e apocalíptica, pisando ereta no topo dos saltos, devem pensar qualquer coisa assim: lá vai uma loura trintona e gostosa, ao certeiro encontro de seu Grande Descobridor. </span></div></div>Unknownnoreply@blogger.com12tag:blogger.com,1999:blog-16282308.post-37260435228063623672011-10-23T09:11:00.006-02:002011-10-24T00:03:03.893-02:00FOTOGRAFIAS<div><span style="font-family: Arial; font-size: x-small;"></span><br />
<div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><i><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">Para Maria Adelaide Amaral</span></span></i></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><i><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"></span></i><br />
<div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span style="font-size: small;"><i><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;">Desejo uma fotografia como esta </span></i><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;">- <i>o senhor vê? </i>- <i>como esta: [...] Não... neste espaço que ainda resta ponha uma cadeira vazia.</i></span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">Cecilia Meireles: "Encomenda"<i></i></span></span></div></div></div>Unknownnoreply@blogger.com11tag:blogger.com,1999:blog-16282308.post-88002676424708075802011-10-22T20:04:00.002-02:002011-10-24T00:02:21.020-02:00TRANSFORMAÇÕES (Uma fábula)<div><br />
</div>Unknownnoreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-16282308.post-55047657863125741382011-10-21T10:49:00.002-02:002011-10-24T00:02:50.106-02:00OS COMPANHEIROS (Uma história embaçada)<div><span style="font-family: Arial; font-size: x-small;"></span><br />
<div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span style="font-size: small;"><i><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;">Para Eduardo San Martin</span></i><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"></span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"></span><br />
<div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">Poderia também começá-la assim - pi-gar-re-ou & disse: diríamos que ele apresentava-se ou revelava-se ou expressava-se (entregava-se, quem sabe?) ou fosse lá o que fosse, naquele momento específico, por uma predileção, tendência, símbolo, sintoma ou como queiram chamá-lo, senhores, senhoras, aos cafés amargos, aos tabacos fortes, aos blues lentos, embora a redundância deste último. E os morcegos esvoaçavam ao redor da casa. Esse o início. </span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">Os morcegos esvoaçavam ao redor da<span style="letter-spacing: -0.1pt;"> </span>casa e o De Camisa Xadrez, que fora amado e ferira de faca a quem o amara, ainda amarrava os cabelos na nuca. O De Camisa Xadrez ainda tinha cabelos suficientes para amarrar na nuca. Então era desse jeito: o De Camisa Xadrez amarrando os cabelos na nuca enquanto os morcegos esvoaçavam ao redor da casa e, como numa orgia, como num vício, como numa tara, como num inconfessável ritual sadomasoquista, Ele entregava-se aos blues amargos, cafés fortes, tabacos lentos. Só não tinha ainda identificado a moça porque era tão moreninha & brejeira que abriu logo o papo trans-cen-den-tal, ela embarcando. Peixes, logo vi, regente Netuno, ah Netuno, cuidado com as ilusões, mocinha, profundas e enganosas feito o mar que é teu elemento. E assim passaram-se anos. </span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">Cruel citar grafites tipo homem, mate a mãe que existe dentro de você, a minha mãe já está morrendo objetivamente, no plano real-objetivo, feliz ou infelizmente ela existe fora de mim (e esse era um fato que não alterava e, repito, fato - porque tudo são fatos, só eles existem, mas isso é outra história) como ia dizendo, não se esquive do fato de haver uma história em suspenso aqui, não digamos assim, pois uma história jamais fica suspensa: ela se consuma no que se interrompe, ela é cheia de pontos finais internos, o que a gente imagina que poderia ser talvez uma continuação às vezes não passa de um novo capítulo, eventualmente conservando as mesmas personagens do anterior, mas seguindo uma ordem cujas regras nos são ilusoriamente às vezes familiares? ou inteiramente aleatórias? Isso eu não sei, mas a verdade é que chega-se sempre longe demais quando não se quer Ir Direto Aos Fatos, e o problema de Ir Direto Aos Fatos é que não há cir-cun-ló-quios então, e a maioria das vezes a graça reside justamente nesses Vazios Volteios Virtuosos, digamos assim: que não haja beleza nos fatos desde que se vá direto a eles? ou que não exista mistério, que seja insuportavelmente dispensável gostar dos tais circunlóquios. Ultrapasse-os, ordeno. Acontece que. Não, nada acontece - mas, por favor, não falemos disso agora. </span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">O cruel vinha de que o silêncio também seria inábil e farposo, contudo educado, então feria, e não pense que vou esclarecer quem, facilitando as coisas por cegueira, pressa ou tontura: o cruel era a palavra verbalizada, e o verbo era o mal? mas o silêncio idem, e voltando um pouco atrás, se o verbo era o mal, no princípio seria o Mal e não o Bem como queremos supor? Oh. Apenas na estradinha de terra batida que subia o morro, entre o rio e o mar, foi que começaram a divertir-se um pouco, identificando-se sestrosos. A Médica Curandeira tinha crespos cabelos negros que acentuavam seu dramatismo, aliados a Certo Ar Sofrido De Mulher Com Mais De Trinta Anos Que Já Passou Por Muitas Barras. E até que era simpática, descobria prosaico o Jornalista Cartomante entre dois goles de vinho, duas tragadas do tabaco amargo velho conhecido. O Ator Bufão cumpria com eficácia paradoxal suas funções de pano de fundo freqüentemente estridente demais, mas inofensivo como costumam ser os bufões, mesmo quando se metem a contundentezinhos.</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">Era nesse pé que as coisas estavam quando. E quase não havia nada a acrescentar, porque nada acontecia entre eles, a não ser, utilizando certa nor-ma-ti-vi-da-de e não necessariamente nessa ordem: a) Climas Indefiníveis; <i>b) </i>Sutilezas Indizíveis; <i>c) </i>Nobrezas Horríveis. Nomeava assim. Horríveis com maiúscula, porque mesmo não tendo que justificar-se enfim e ao cabo: nobreza em excesso roía por dentro, isso era como a conseqüência de uma aprendizagem instalada agora dentro do quarto. Como se por baixo do longo cano de uma luva branca imaculada por trás do rendilhado dos canutilhos houvesse garras torcidas, esguias feito torres góticas, arranhando vidraças fechadas na treva.</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">Mas assim era. Caminhava na rua sem tocar na rua, conseguia. Movimentava-se entre espelhos. Caminhar na rua: jogo de infinitos. O de agora remetendo ao de antes, que refletia o depois, que era algo bem próximo do agora, e assim por diante <i>ad infinitum </i>circular. Tudo refletia-se Cada reflexo o devolvia a algo que não a rua propriamente dita. Essa, por onde caminhava. Poder-se-ia argumentar contra Ele que isso não passava de mais um meio de não se comprometer demasiado. Uma daquelas Horríveis Nobrezas, porque concluir ou reconhecer uma aprendizagem não significava necessariamente passar a agir de maneira diferente. Mas queria dizer que, naquele momento, naquele fato suspenso em que nada acontecia, de repente e sem nenhum motivo, a Médica Curandeira (de passado guerrilheiro), o Ator Bufão (egresso de um seminário) e o Jornalista Cartomante (com raízes contraculturais) não estavam preocupados ou diminuídos pelo fato de serem Caricaturalmente Representativos De Uma Geração, fosse qual fosse. A bem da verdade, revele-se em alto e bom som, embora por escrito: eles foram intensamente felizes enquanto nada acontecia. Pelo menos até que se ouvissem novamente os morcegos lá fora. Claro que não sabiam disso - da felicidade, não dos morcegos sinistramente audíveis - nem talvez saberão um dia; exatamente por isso é preciso que se diga, para que ninguém entenda, mas pelo menos fique registrado, em benefício de nada nem ninguém. Sendo completamente o que eram, inspiravam estufados de humaneza sem culpa. </span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">E tudo isso ia acontecendo sem acontecer propriamente, enquanto a Moreninha Brejeira, se olhada mais atentamente, o que era difícil, guardava alguma fundura por trás da brejeirice e, olhando bem, nem parecia tão moreninha assim. Era exaustivo, mesmo sem muitas palavras entre eles, não aqui, onde é o único jeito de tentar contá-los. Era incompreensível também, para quem nunca esteve dentro de algo semelhante. Mas reconfortante, mesmo que não bebessem chá. Como costumam ser os reencontros, afinal. Ou como deveriam costumar ser, que o mais das vezes são é mesmo puro desconforto, mesmo com chá.</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">Só que os morcegos, porra, não paravam de rondar, embora fosse verão e a casa tivesse sido branca um dia e o gramadinho até mesmo guardasse recuerdos fagueiros de tardes ensolaradas com bolas dessas de grandes gomos coloridos e doguezinhos saltitantes ao pé de raparigas um tanto antigas e naturalmente em flor nos seus modelinhos rendados com meias soquetes desabando sobre sapatinhos de verniz, bambolês & bilboquês abandonados nos degraus de pedra gasta. Tinha um gosto remoto disso tudo, a casa. Mas ele não acreditava o suficiente a ponto de justificar a presença dos morcegos, ou não seria mais que uma suspeita? pois sequer, falha imperdoável nesta história, a casa comportava sótãos poeirentos, porões sinistros, bananeiras nos quintais. Pensando melhor, continuavam sem saber, fazia muitos anos, se a realidade seria mesmo meio mágica ou apenas levemente paranóica, dependendo da disposição de cada um para escarafunchar a ferida. </span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">Preferia então, ele, observá-la ao espelho, como quando caminhava na rua. Isso o remetia a outras feridas mais antigas, nem mais nem menos dolorosas, porque a memória da dor da feridantiga amenizou-se, compreende? Menos pela cicatriz deixada, uma feridantiga mede-se mais exatamente pela dor que provocou, e para sempre perdeu-se no momento em que cessou de doer, embora lateje louca nos dias de chuva. O que provavelmente deve ser muito sadio. A Moreninha Brejeira jamais poderia supô-lo imerso em tais inutilidades cerebrinas, e já não restava uma gota de cumplicidade entre o De Camisa Xadrez e o Jornalista Cartomante, posto que isso implicaria uma espécie de homoerotismo sublimado, se é que me faço entender nesse meandro. Como uma cópula moral, uma foda ética ou etílica, sabe-se lá a que requintados níveis de abstração, perversidade ou subterfúgio podem chegar certas trepadas. Considerava feridas, enfim, totalmente mergulhado nos lentos blues, nos tabacos fortes, nos cafés amargos vezenquando substituídos por conhaques (densos) ou vinhos (secos). Entre duas palavras quaisquer, era capaz de deter-se para tomar providências objetivas, tipo esvaziar cinzeiros trocar discos servir bebidas abrir janelas para fechá-las em seguida, rápido, para que os morcegos não entrassem. </span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">Quanto à Médica Curandeira, era ainda capaz de exibir na pele torturada as marcas dos cigarros acesos, principalmente nos seios e nas coxas, numa espécie de sedução pelo avesso, pelo ideológico, não pelo estético, mas isso só na intimidade mais absoluta, quando estivesse descartada qualquer possibilidade de ser enquadrada em algum tipo de exibicionismo leninista-trotskista. Se bem que, como rugas e perdas, cicatrizes também fossem troféus. Grandes fracassos, tipo Napoleão em Waterloo, deveriam ser condecorados, afinal por que essa discriminação maniqueísta? cobrava o Ator Bufão, vezenquando tomando as rédeas para jogar no ar palavras que, como bufão que era - e dos bons, diga-se a seu favor -, transformavam-se em várias bolas ao mesmo tempo jogadas para o alto. Seria capaz de (des)ordená-las nas mais infinitas seqüências combinatórias, tipo duas vermelhas no ar sobre a cabeça uma roxa na mão esquerda uma azul na mão direita e aquela amarela passando por baixo da perna direita ou esquerda, não importa, e no ar também, neste exato momento, aquela verde-musgo. O problema maior do Ator Bufão era que todos os seus talentos não valiam um vintém, visto que nos dias de hoje já não existe mais muita gente interessada em bizarras combinações no ma-la-ba-ris-mo com bolas coloridas.</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">Ele baixou os olhos. Feridas, cicatrizes, desejos - mastigou, mastigaram. Contra a janela fechada (para que não entrassem morcegos), a Moreninha Brejeira junto à Médica Curandeira parecia uma Capitu levemente amadurecida pedindo conselhos àquela Catharina dos ventos uivantes. Só não sabia de si, nem de parâmetros, o De Camisa Xadrez - aquele que muito fora amado e ferira fundo de faca a quem o amou: permanecia mudo parado suspenso entre várias coisas que já não eram e outras tantas que poderiam vir a ser, ou não. Enquanto nada se decidia, amarrava os cabelos na nuca, posto que ainda tinha cabelos, embora a década fosse outra, e outros os delírios. Amarrava-os assim e agora, tão nítido, porque essa era quem sabe sua vitória tácita, sua implícita vantagem naquele momento em que, além de nenhum avanço, todos os demais tinham cortado ou perdido os cabelos. Haviam chegado a um ponto em que verbalizar morcegos poderia arruinar tudo, mesmo que nada houvesse a ser arruinado. Mesmo que sequer houvesse morcegos. </span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">Pois diga-se ainda que, apesar do ruído côncavo de asas, daqueles miúdos guinchos cruzados no ar, das garras viscosas sem luvas nem canutilhos arranhando as vidraças, mesmo olhando-se vezenquando nos olhos há anos empapuçados de álcool e drogas, não se atreviam a verbalizar morcegos. Ou não é que não se atrevessem: os morcegos talvez fossem incomunicáveis, pois em não sendo verbalizados, e portanto compartilhados, cada um suspeitava que fossem estritamente pessoais & intransferíveis, compreende? O que quero finalmente dizer é que não verbalizando os morcegos, os morcegos não existiam, passando a ser o que não eram: uma metáfora de si mesmos. Sendo assim (tudo tão lógico), nem sequer obscuras tensões pairavam sobre o De Camisa Xadrez, a Moreninha Brejeira, o Ator Bufão, a Médica Curandeira e o Jornalista Cartomante, todos sem pretexto algum para estarem ali agora assim, sentados sobre o tapete no quarto do Marinheiro Frustrado, que andava ausente, embora deixasse em seus devidos lugares as âncoras polidas e as luzidias maquetes de transatlânticos, alguns dentro de garrafas. Ausente também o Marido Ideal, já que sua função na vida sempre fora mesmo ausentar-se estratégico sem deixar vestígios, o que tinha sua dose de melancolia, mas também de alívio, convenhamos. Como as estantes de madeira escura suportando o peso das obras completas de Karl May, Michel Zevaco e Edgard Rice Burroughs.</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">Dentro do pleno verão, pela escada soprou inesperadamente um vento frio. </span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">Nesses momentos, quando os blues tornavam-se ainda mais lentos, é que se ouviam os morcegos lá fora. Nesses momentos é que contemplavam os mútuos tênis espatifados, mesmo que estivessem descalços, considerando fatos incontornáveis como a pilha de pratos sujos na pia da cozinha. Ir Direto Aos Fatos agora seria por exemplo correr sem vírgulas para a pia armado da mais higiênica das intenções & um bom detergente biodegradável. Ou virar o disco para libertar um blues ainda mais agônico, quase insuportável de tão dolorido, que cada nota emitida pelo sax durasse pelo menos o tempo do Gênesis. Até que a Moreninha Brejeira estalasse os dentes contra uma maçã imaginária para, de certa forma, expulsá-los do paraíso. E produzir-se-iam abrolhos e urzes e espinhos e nutrir-se-iam com as ervas dos campos e comeriam o pão temperado com o suor da própria fronte - pois são assim os ciclos, comentaria didático, mas um tanto fatigado e já sem graça, o Ator Bufão. Os demais, não se sabe, calariam. Ou não fariam gesto algum, o que é sempre uma maneira ainda mais muda de calar. </span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">Ao mesmo tempo, para todos, era extremamente cômodo e perfeitamente insuportável permanecer assim, no meio do parado, suspeitando vôos de morcegos por trás das janelas fechadas daquele quarto onde, quem sabe, apenas as âncoras ancoradas nas paredes poderiam indicar qualquer coisa como - um rumo? E finalmente, por uma longa série de razões vagas fundas baças tolas ou ainda mais confusas, esse tipo de coisa era praticamente tudo que se poderia dizer sobre eles. Assim lentos, assim amargos, assim surdos, assim fortes até. Sobrevivendo à morte de todos os presságios. </span></span></div></div></div>Unknownnoreply@blogger.com10tag:blogger.com,1999:blog-16282308.post-56832511997136569242011-10-18T10:38:00.002-02:002011-10-18T14:41:20.934-02:00EU, TU, ELE<div><span style="font-family: Arial; font-size: x-small;"></span><br />
<div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span style="font-size: small;"><i><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;">Para Raquel Salgado</span></i><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"></span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"></span><br />
<div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">Tateio, tateias, tateia. Ou tateamos, eu e tu, enquanto ele se movimenta sem dificuldade entre as coisas? Sei pouco de ti, apenas suspeito da tua existência desde quando descobri que nem eu nem ele éramos os donos de certas palavras. Como se tivesse percebido um espaço em branco entre ele e eu e assim - por exclusão, por intuição, por invenção - te adivinhasse dono desse espaço entre a luz dele e o escuro de mim. Tateias, também? De ti, quase não sei. Mas equilibras o que entre ele e eu é pura sombra.</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">Estou me afastando, estou indo embora e preciso que me entendas antes que eu vá, crucificado na parte externa do vagão de um trem em alta velocidade. Tento devagar, mais claro: ele não se afasta. Dia após dia, eu noto, torna-se mais simpático, mais eficiente, mais solícito - para utilizar palavras que não sei bem o que significam, mas imagino sempre alguém sorrindo muito, fazendo reverências, curvando constantemente a cabeça, como uma gueixa. Gueixa, ele, a grande puta, com seu silêncio de passinhos miúdos e pés amarrados. Preciso tentar certa ordem no que digo, e dizer de novo, vê se me entendes: ele não se afasta, mas é dentro dele que eu me afasto. Dentro dele, eu espio o de fora de nós. E não me atrevo. </span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; letter-spacing: 0.1pt; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">O que vejo nos outros, com seus grandes poros abertos, são caras demasiado vivas. As caras de fora se debruçam sobre ele e eu tenho medo, eu nunca poderia olhar de frente para todos aqueles olhos boiando na superfície branco-gelatinosa, raiada de veiazinhas vermelhas, e eu sinto nojo. Não dos olhos, mas do interior das caras que transparece nas veiazinhas. Também não são as bocas, mas os gosmosos vermelhuscos de dentro, quando se abrem demasiado. Os inúmeros pontinhos pretos dos narizes, às vezes subindo para a testa, entre as sobrancelhas, o interior rosado dos narizes, as goelas abertas com suas umidades móveis ao fundo, cheias de pequenos espasmos, miúdas convulsões. Quando as grandes caras vivas se debruçam, sinto que transpareço nas veiazinhas dos olhos deles, e tenho medo que apenas um piscar me lance para fora, entre as coisas pontudas. E quando ele abre sua boca movediça para escarrar palavras, gotas de saliva e mau hálito, tenho medo de ele ser essa palavra, essa gota, esse hálito. O mesmo de quando esfrega as palmas das mãos e solta no ar os feixes de energia, como se fosse uma vibração, não um ser. </span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">Sempre posso parar, olhar além da janela. Mas do interior do trem, nunca é fixa a paisagem. Os pés de ipê coloridos misturam-se às paredes de concreto e as paredes de concreto às ruazinhas de casas desbotadas e as ruazinhas de casas desbotadas às caras das lavadeiras na beira do rio, e desta distância essas caras não são móveis nem vivas, mas sem feições, esculpidas em barro sob as trouxas brancas de roupa suja, e outra vez o roxo e o amarelo dos ipês e o marrom da terra e o bordô das buganvílias e o verde de uma farda militar atravessando os trilhos. Há um excesso de cores e de formas pelo mundo. E tudo vibra pulsátil, fremindo. </span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; letter-spacing: 0.2pt; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">Daquela última tarde de luz, o que me ficou na memória foi o visgo frio do suor nas palmas das mãos, os inúmeros pontos luminosos vibrantes dos automóveis, minhas frontes estalando com o barulho. Os automóveis eram faíscas coloridas metálicas voando sobre o cimento. Eu apertava minha tontura com as palmas molhadas das mãos, sem saber se ia, se voltava ou permanecia parado quieto entre aqueles pontos alucinados de luz girando em volta de mim. Devo ter começado a gritar, porque ele cerrou a boca com força, não me deixando escapar por sua garganta fechada. </span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">Mas era a ti, a ele ou a mim que o homem visitava às vezes? De quem seria a língua sem nojo que explorava o mais fundo de todos os buracos do corpo dele? Da janela eu observava as mãos abrindo apressadas o fecho das calças, os dedos hábeis afastando panos, as narinas sugando o cheiro secreto das virilhas, O grande corpo vivo e móvel do homem, atrás das grades eu queria minhas aquelas mãos que o tocavam e também meus aqueles dedos e minhas ainda aquelas narinas e aquela língua lambendo o membro rijo dele até deixá-lo empinado o suficiente para, com muito cuidado, entrar rasgando de prazer e dor. Eras tu, era eu ou era ele quem torcia lentamente o corpo até desabar de costas na cama, e contornando com as coxas abertas o tronco e a bunda do homem pudesse assim senti-lo dentro de mim, de ti ou dele, como a fêmea deve sentir seu macho, cara a cara, jamais como um homem recebe a outro homem, o rosto contra a nuca, nesse amor feito de esperma e pêlos, de suor e merda? Atrás da janela dele, eu olhava sem me permitir. Mas nosso orgasmo era o mesmo, e éramos então um só os três, cavalgados por esse homem que esgotávamos com a sede das nossas línguas. Nesses momentos, eu conhecia a tua face tão detalhadamente quanto a dele e a minha. E não me assustavam os poros demasiado abertos, nem me enojava aquele gosmoso de dentro dos buracos. </span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">Quanto a ti, já reparaste como o mundo parece feito de pontas e arestas? Já chamei tua atenção para a escassez de contornos mansos nas coisas? Tudo é duro e fere. Observo, observas como ele se move sem choques por entre os gumes. Te parece dócil, assim sinuoso, evitando toques que possam machucá-lo? Pois a mim parece falso, conheço bem suas tramas e sei de todas as vezes que concedeu para que o de fora não o ferisse. Olha, ouve e repara: essas sinuosidades são de cobra, não de ave. </span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">Só às vezes julgo compreender. Então tenho vontade de abrir todas as janelas da casa para que o sol possa entrar. É isso que me ocorre pelas manhãs, sempre à mesma hora, depois de ouvir os ruídos que ele faz antes de sair. Fico atento à água escorrendo da torneira, ao rascar da escova contra os dentes, à água da privada levando para os esgotos os detritos recusados pelos intestinos, à água limpando os resíduos de sono no canto dos olhos, à água fria do chuveiro despertando os músculos, à água aquecida para o café, fico atento a tudo. E água, água, água e água, eu repito todas as manhãs, e mesmo que continue o dia inteiro entre lençóis, a mão inventando prazeres escondidos entre as pernas, há sempre uma parte de mim que o acompanha pelas ruas, no seu trajeto sujo entre as faíscas metálicas dos automóveis, distribuindo os primeiros sorrisos falsos do dia, e pelo dia adentro afora, cumprindo sem hesitações o seu bem traçado roteiro. Sabe tudo o que quer, ele, o grande porco. E sabe exatamente como consegui-lo. Pelo dia afora, adentro, essa parte de mim que vai com ele tenta extravasar-se pelos seus olhos, pela sua boca, para alertar as grandes caras móveis que o observam com simpatia. A cada tentativa, ele me pressente e me rechaça, ele me empurra para o fundo de si para que eu não o desmascare. E me rouba a voz, e me leva o gesto, fazendo com que me cale e me imobilize impotente entre as pontas duras das quais ele se desvia, porco bailarino capaz de todas as baixezas pelo solo principal. É sem testemunhas que eu o desmascaro todas as manhãs, enquanto escuto escorrer a água com que supõe lavar toda a sua sujeira. Mas te investigo, te busco, te suspeito cúmplice de mim, não dele, porque a tua ajuda é a única que posso esperar, então insisto sempre se me entendes, e volto a perguntar então, me entendes? assim, me entendes, tu? agora, me entendes, ou nunca? </span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; letter-spacing: 0.2pt; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">Era agradável quando a moça vinha com suas tabelas, seus gráficos e compassos para falar do movimento dos astros sobre as nossas cabeças, sábia e distraída, desenhando pirâmides, triângulos, esferas e losangos nos papéis quadriculados. Foi numa das primeiras vezes que ele tentou afastá-la, rindo grosso, como as pessoas costumam rir dessas coisas, preferindo sempre os porcos às aves. Foste tu quem me ajudou daquela vez, a fechar violento a boca dele até seus dentes se cerrarem a ponto de quebrar? Pois não era apenas meu aquele esforço, eu soube, e essa quem sabe tenha sido a primeira vez que te descobri existindo paralelo a mim e a ele. Ou não importam cronologias, se coexistias mesmo anterior à minha consciência de ti. Quanto à moça, continuava a vir, dizia sempre que quando a Lua transitasse por Aquário. Mas eu nunca soube de constelações: limitava-me a recebê-la, e parecia uma menina cheia de fé em tudo aquilo que suspeitava real, embora invisível. </span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">Meus dias são sempre como uma véspera de partida. Movimento-me entre as pontas como quem sabe que daqui a pouco já não vai estar presente. As malas estão prontas, as despedidas foram feitas. Caminhando de um lado para outro na plataforma da estação, só me resta olhar as coisas lerdo e torvo, sem nenhuma emoção, nenhuma vontade de ficar. As janelas abrem para fora, os bancos parecem-se aos bancos e os vasos foram feitos para se colocar flores em seu oco. As coisas todas se parecem a si próprias. Nada modificará o estar das coisas no mundo, e a minha partida ontem, hoje ou amanhã, não mudará coisa alguma. Cada coisa se parece exatamente com cada coisa que ela é. Assim eu próprio, me parecendo a mim mesmo, de um lado para outro, entre cigarros sem sabor, jornais sangrentos e a certeza de que o único fato que poderia deter minha partida seria a tua aceitação deste convite: não queres me ajudar a matá-lo? </span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">Houve um dia em que o homem não veio mais. E sem saber se teria sido eu, tu ou ele quem o afastara, nesse mesmo dia escrevi qualquer coisa como uma oração que me pareceu ridícula. Mas revisitando papéis antigos agora, ela pulsa como se tivesse sido apunhalada e, percebo, como se tivesse sido escrita também para ti, para ele e para mim. Assim:</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">eu não estou esperando por esse homem que não é só esse mas todos e nenhum como uma sede do que nunca bebi sem forma de águas apenas na estreiteza do aqui agora eu espero por ele desde que nasci e desde sempre soube que na hora da minha morte misturando memórias e delírios e antevisões um pouco antes a última coisa que perguntarei seria um mas onde está mas onde esteve esse tempo todo que me lanhei sem ti e para me alegrar depois quem sabe talvez enfim desista ou sorria lindo sem dentes sorria luminoso na escuridão da minha boca sorria vasto como nunca foi possível e cuspa qualquer coisa como então você esteve sempre aí uma vida de procuras sem te achar e silêncio para então morrer de morte morrida sem volta de vida gasta marcada de muitas cicatrizes de vida retalhada por muitos cortes mas nunca mortais a ponto de impedir este ridículo até na hora de minha morte amém.</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">Mas esta cara de mim, recém-desperta, revigorou-se aos poucos e sem suspiros, porque não há o que lamentar, e pensa crua, a cara descarada: pois não nos separamos, os três. Quando me julgo fora, estou dentro. E quando me suponho dentro, estou fora. De ti ou dele, de mim em mim, tríplice engastado, embora pareça confuso assim formulo, e me parece quase claro enquanto ruge a cidade longe e debruço este corpo de nós sobre os sete viadutos: tríplice engastado, tríplice entranhado, tríplice enlaçado. Tríplice inseparado para sempre, a morte de um é a morte de três, não quero que me ajudes a matá-lo porque mataria a ti e também a mim. E me recomponho, e te recomponho, e recomponho a ele, que é também eu e também tu. </span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">A moça disse que a Lua passava por Escorpião, e contou: sem dentes, rasgado, fragmentos de vômito endurecido grudados nos pêlos do peito, o homem a perseguia. Antes que a tocasse, ela encontrou o animalzinho branco, de focinho rosado, e apanhando um pedaço de pau bateu, bateu e bateu até que o bicho se tornasse um mingau de sangue e ossos partidos e pêlos raros onde boiava um par de olhos abertos que não morriam. Eu contei: pelo tronco da árvore, de um lado a outro do precipício, eu atravessava. Foi quando parei, com medo do abismo. Não voltaria, nem iria em frente. Então olhei a parede do precipício e vi os cachos verdes de uvas e meu medo começou a passar porque eu não sentiria fome nem morreria pois logo viria a vindima, o tempo maduro das uvas. Oníricos, trocávamos sonhos os dois, os três, os quatro. E a fêmea emboscada no corpo da moça chamava por mim, por ti, por ele, sem se importar que fôssemos três. De nós três, ela sabia e queria. Antes de partir, ainda escreveu no papel cheio de gráficos, olhando para nós de um em um, guarda isso: o outro também se busca cego, o outro também e sempre é três. </span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">Tempos depois - agora, para ser preciso percebo: é pelos corredores escuros do labirinto que caminhamos tateando, os três, à procura do vértice. Sei que não entendes, sei que ele também não entende. Do teu dia, quase não sei, mas sei do teu labirinto em ti, como sei do labirinto dele em mim, do meu labirinto em ti. E também não entendo. </span></span></div><span lang="PT" style="font-family: Arial; font-size: 12pt; mso-ansi-language: PT; mso-bidi-language: AR-SA; mso-fareast-font-family: 'Times New Roman'; mso-fareast-language: PT-BR;">Preciso parar. Estou cansado. Pela cabeça, essa luz que não sei se é compreensão ou loucura. É de mim, de ti ou dele que sai essa voz contando o sonho de ontem? Como se fosses tu, assim entras no teatro e te chamam dentro do sonho e te chamam para fazer o papel do sonho de alguém que não veio, e dizes que nunca viste a peça e nunca leste o texto e nada sabes de marcações intenções interiorizações e te dizem que não importa porque é só um sonho e um sonho não precisa ensaio, e já não sabes se começas a rir ou a gritar, então foges para encontrar o outro, mas o rosto da moça tem os olhos do homem e a boca da moça, os seios da moça são os seios da moça, aqueles mesmos, cujos bicos duros roçavam tua barba malfeita quando os beijavas, mas o sexo da moça é o sexo do homem, aquele mesmo que te inundava de esperma quente, e não sentes medo nem nojo, mas te afastas confuso e caminhas</span><span lang="PT" style="font-family: Arial; font-size: 12pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-language: AR-SA; mso-fareast-font-family: 'Times New Roman'; mso-fareast-language: PT-BR;"> </span><span style="font-family: Arial; font-size: 12pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-language: AR-SA; mso-fareast-font-family: 'Times New Roman'; mso-fareast-language: PT-BR;">caminhas</span><span style="font-family: Arial; font-size: 12pt; mso-ansi-language: PT; mso-bidi-language: AR-SA; mso-fareast-font-family: 'Times New Roman'; mso-fareast-language: PT-BR;"> <span lang="PT">em busca do teatro para entrar em cena e desempenhar tão bem quanto possas o teu papel de sonho do sonho de outro, depois procuras procuras dentro do teatro, em pirâmides de estreitos corredores, e continuas procurando o palco, o vértice, a câmara real, a tua deixa, a tua marca, e antes de acordar não pensas, ou pensas, sim, eu não sei, ele não sabe, tu não sabes nem ninguém se de repente não estarás perdido nem não sabes o papel de cor, pois o palco é a procura do palco e o teu papel é não saber o papel e tudo está certo e a aparente desordem se ordena súbita e a grande ordem de todas as coisas é o caos girando desordenado assim como deve girar o caos, e assim mergulho eu e assim mergulhas tu e assim mergulha ele: a tontura de nossos seis passos equilibra-se instável e precisa sobre o fio da navalha. Mas - sei, sabes, sabemos as uvas talvez custem demais a amadurecer. E quase não temos tempo. </span></span></div></div>Unknownnoreply@blogger.com8tag:blogger.com,1999:blog-16282308.post-23234848635139709552011-10-11T14:37:00.002-03:002011-10-12T22:07:10.303-03:00PERA, UVA OU MAÇÃ?<div><span style="font-family: Arial; font-size: x-small;"></span><br />
<div align="right" style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span style="font-size: small;"><i><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;">Para Celso Curi</span></i><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"></span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"></span><br />
<div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">Rói as unhas no momento em que abro a porta, a bolsa comprimida contra os seios. Como sempre, penso, ao deixá-la passar, cabeça baixa, para sentar-se no mesmo lugar, segundas e quintas, dezessete horas: como sempre. Fecho a porta, caminho até a poltrona à sua frente, sento, cruzo as pernas, tendo antes o cuidado de suspender as calças para que não se formem aquelas desagradáveis bolsas nos joelhos. Espero algum tempo. Ela não diz nada. Parece olhar fixamente as minhas meias. Tiro devagar os cigarros do bolso esquerdo do paletó, apanho um com a ponta dos dedos, sem tirar o maço do bolso, e fico batendo o filtro no braço da poltrona enquanto procuro o isqueiro no bolso pequeno da calça. Antes de acendê-lo, penso mais uma vez que não deveria usar esses isqueiros plásticos descartáveis. Alguém me disse que não-são-degradá. Não consigo lembrar quem, quando, nem onde ou por quê. Rodo o isqueiro maligno entre os dedos, depois acendo o cigarro. Então ela diz:</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">- Desculpe, mas acho que você está com as meias trocadas.</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; letter-spacing: 0.2pt; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">Geralmente um cigarro dura entre cinco e dez minutos. Como eu, para tranqüilizá-la, tento gastar o máximo de tempo possível fazendo coisas como fechar a porta, puxar as calças, pensar em isqueiros e ecologias, quase sempre ela fala somente quando termino o primeiro cigarro. Quase sempre depois que pergunto, com extremo cuidado, no que está pensando. Só então ela suspira, ergue os olhos, me olha de frente. Desta vez, porém, não suspira ao falar nas meias. Penso em dizer que acordei um pouco tarde demais, razoavelmente atrasado, e que. Mas prefiro perguntar lento:</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">- E isso te incomoda?</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">Ela contrai os ombros, de maneira que sobem até quase a altura das orelhas. Depois solta-os devagar, curvando-os para trás, convexos, como se fizesse uma massagem em si mesma:</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">- Não é que incomode, só que. Olha, para falar a verdade eu não me importo nem um pouco com as suas meias.</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">Solta a última frase rápido demais, como se estivesse querendo se ver logo livre dela, e fica à espera para ver o que digo. Mas eu não digo coisa alguma. Limito-me a dar outra tragada no cigarro, batendo a cinza no cinzeiro italiano trazido de Milão. Arrumo os óculos sobre o nariz, estes aros estilo nouvelle-vague precisam ser ajustados, sempre escorregando. Alguma cinza cai sobre minhas calças. Molho o indicador e o polegar para apanhá-la sem que se esfarele, jogo-a no cinzeiro. Ela espera. Olho fixamente para ela. Ela olha fixamente para mim, depois baixa os olhos enquanto seus ombros também tornam a subir e novamente a baixar. Quando chegam ao lugar normal, ela torna a erguer os olhos. Eu continuo esperando. Resolvo ajudá-la, pausado:</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">- Quer dizer então que você não se importa nem um pouco com as minhas meias?</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">Ela abre a boca sem falar.</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">- Não foi o que você disse? </span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">Ela suspira. Estica as pernas, cruza os braços impaciente:</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">- Foi, foi. Mas o que eu quero mesmo dizer é que hoje não estou disposta a gastar. Gastar não, passar. Não se sinta agredido, não é isso. O que acontece é que. Eu não estou disposta a passar. Eu, eu aposto nas ameixas.</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">Sem entender, espero. Ela também tira um cigarro da bolsa. Remexe algum tempo, procurando fogo. Chego a estender meu isqueiro não degradável, mas ela já encontrou uma caixa de fósforos. Acende, sacode a chama no ar decidida: </span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">- Escuta, hoje eu não estou disposta <i>a passar </i>aqui uma dessas suas horas de quarenta e cinco minutos discutindo as razões sub ou inconscientes de por que eu disse que você está com as meias trocadas, certo?</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">Eu bato o cigarro no cinzeiro.</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">- É que aconteceu uma coisa.</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">Eu descruzo as pernas.</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">- Uma coisa <i>muito </i>importante.</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">Eu olho o relógio suíço, passaram-se quinze minutos. Volto a encará-la, esperando que continue a falar. Não continua, mas olha fixo para mim, as faces coradas, olhar brilhante como se tivesse um pouco de febre. Espero um pouco mais. Agora que estou com as pernas descruzadas, basta estendê-las para ver a cor das meias. Chego a ficar tão curioso que faço um pequeno movimento para a frente. Talvez a bordô com friso branco, e a xadrez de preto e vermelho? A cinza do cigarro torna a cair sobre as calças, mas desta vez não é necessário molhar o indicador e o polegar para levá-la ao cinzeiro. Basta uma leve sacudidela para que caia sobre o tapete. Quando torno a olhar para ela seus olhos brilham tanto que, mais uma vez, tento ajudá-la. Calmo:</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">- Mas que coisa tão importante assim foi essa que te aconteceu?</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">Ela baixa a cabeça, murmura alguma coisa para si mesma em voz tão baixa que não consigo ouvir uma palavra.</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">- Como foi que você disse?</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">Ela apaga o cigarro, tensa:</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">- Quando vinha vindo para cá tropecei num caixão de defunto.</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">Se eu trouxesse muito lentamente uma das pernas até o lado direito da poltrona, dobrando um pouco o joelho, conseguiria ver a cor pelo menos de uma das meias. Mas ela continua:</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; letter-spacing: 0.2pt; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">- Quando dobrei a rua, daquele sobrado amarelo da esquina ia saindo um enterro. -Tira outro cigarro da bolsa. - Não, não foi assim. Antes, eu tinha comprado um quilo de ameixas. - Por um momento fica com dois cigarros nas mãos, um aceso, outro apagado. Depois acende um no outro. - Também não foi assim. Antes, ontem, eu dormi até quase as três horas da tarde de hoje. Então minha mãe me chamou para vir aqui.</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">Pára de falar, faz uma careta. Fico sem entender, até que ela apague o cigarro.</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">- Acendi o filtro, que merda.</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">Ela nunca disse um palavrão antes, penso.</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">- Escute.</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span style="font-size: small;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;">Talvez a verde-musgo com losangos cinzentos? E no outro pé a cinza com debruns vermelhos?</span><span style="font-family: Arial;"></span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">- Eu vinha vindo para cá. Eu vinha vindo meio tonta, como sempre fico, assim meio tonta, meio aérea quando durmo tanto. E nem durmo, é mais uma coisa que parece assim. Que nem, sei lá. Foi numa dessas barraquinhas de frutas que eu vi. Eu vinha de cabeça baixa, umas ameixas tão vermelhas. Eu vinha pensando numa porção de coisas quando.</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">- Que coisas?</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">- Que coisas o quê?</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">- As que você vinha pensando.</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">- Ah.</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">Ela acende outro cigarro. Do lado certo. E fala soltando a fumaça:</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">- Sei lá, que eu ando. Muito triste. Uma merda, tudo isso. Mas não importa, não me interrompa agora. Deixa eu falar, por favor, deixa eu falar. Tem uma coisa dentro de mim que continua dormindo quando eu acordo, lá longe de mim. - Traga fundo. E solta a fumaça quase sem respirar. - Foi então que vi aquelas ameixas e achei tão bonitas e tão vermelhas que pedi um quilo e era minha última grana certo porque meus pais não me dão nada e daí eu pensei assim se comprar essas ameixas agora vou ter que voltar a pé para casa mas que importa volto a pé mesmo pode ser até que acorde um pouco e aquela coisa lá longe volte pra perto de mim e então eu vinha caminhando devagarinho as ameixas eu não conseguia parar de comer sabe já tinha comido acho que umas seis estava toda melada quando dobrei a esquina aqui da rua e ia saindo um caixão de defunto do sobrado amarelo na esquina certo acho que era um caixão cheio quer dizer com defunto dentro porque ia saindo e não entrando certo e foi bem na hora que eu dobrei não deu tempo de parar nem de desviar daí então eu tropecei no caixão e as ameixas todas caíram assim paf! na calçada e foi aí que eu reparei naquelas pessoas todas de preto e óculos escuros e lenços no nariz e uma porrada de coroas de flores devia ser um defunto muito rico certo e aquele carro fúnebre ali parado e só aí eu entendi que era um velório. Quer dizer, um enterro. O velório é antes, certo?</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">- É - confirmo. - O velório é antes.</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">- Ficou todo mundo parado, me olhando. Eu me abaixei e comecei a catar as ameixas na sarjeta. Eu não estava me importando que fosse um enterro e que tudo tivesse parado só por minha causa, certo? Apanhei uma por uma. Só depois que tinha guardado todas de volta no pacote é que as coisas começaram a se mexer de novo. Eu continuei vindo para cá, as pessoas continuaram carregando o caixão para o carro fúnebre. Mas primeiro ficou assim um minuto tudo parado, como uma fotografia, como quando você congela a cena no vídeo. Eu juntando as ameixas e aquelas pessoas todas ali paradas me olhando. Você está prestando atenção? Aquelas pessoas todas paradas me olhando e eu ali juntando as ameixas.</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">Ela pára de falar, fica olhando para mim. Depois repete:</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">- Me olhando, as pessoas. Eu, juntando as ameixas.</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">Ela apaga o cigarro. Olho o relógio, faltam quinze minutos. Acendo outro cigarro. Através da fumaça percebo que ela toca com cuidado alguma coisa dentro da bolsa, sem abri-la, por sobre o couro. Imagino que vá tirar mais um cigarro, mas ela nem chega a abrir a bolsa. Apenas toca nesse objeto no interior, distraída, com as pontas dos dedos de unhas roídas. Tão distante que preciso trazê-la de volta, firme:</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">- No que é que você está pensando?</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">Ela ri. Ela nunca riu antes, penso.</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">- Numa brincadeira besta que a gente tinha quando eu era mais guria. Aquela coisa de reunião dançante, cuba-libre, você sabe. - Tira o objeto de dentro da bolsa, mas permanece com ele fechado dentro da mão. - Faz tanto tempo que eu não bebo, tanto tempo que eu não danço. Tanto tempo, meu Deus, que eu não brinco. Será que ainda existe reunião dançante? E cuba-libre, será que existe? E aquela brincadeira, será que alguém ainda brinca? - Olha para mim. Imagino que o objeto em suas mãos deva ser uma caixa de fósforos. - Era meio sacana, mas uma sacanagem boba, meio juvenil, era assim. Uma pessoa tapa os olhos da gente com um lenço, depois aponta para outra pessoa e pergunta se você quer pêra, uva ou maçã. Pêra é um aperto de mão. Uva, um abraço. Maçã é um beijo na boca. - Ri de novo. E me olha enviesada. - Só que a gente dá um jeitinho de falar com a pessoa que pergunta e daí, quando ela aponta alguém que a gente tá a fim, dá um puxão disfarçado no lenço. Então a gente pede: maçã. - Enquanto fala, percebo que esfrega suavemente aquele objeto contra a blusa, sobre os seios. Sorri mais ao dizer: - Foi a primeira vez que eu beijei de língua.</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">Agora seus ombros estão um tanto baixos demais, quase curvos, côncavos. Os olhos brilham menos, começam a ficar meio enevoados. Acho que vai chorar, procuro com os olhos a caixa de lenços de papel. E que mais, penso em perguntar. Então ela endireita o corpo:</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">- Quanto tempo ainda falta?</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">Olho o relógio:</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">- Cinco minutos.</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">- <i>Faltam cinco minutos, já no existem mais palavras </i>- ela cantarola desafinada, com uma entonação que me parece irônica. - Tem uma música assim, não tem? Ou acabei de inventar, sei lá.</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">Continua a esfregar aquele objeto contra a blusa. O que será, penso sem interesse. Ela torna a olhar para as minhas meias. Talvez uma inteiramente branca, outra azul, listradinha de preto?</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">- Olha, antes de ir embora eu quero dizer a você que aposto nas ameixas. Foi isso que me veio na cabeça depois que saí caminhando. E quando entrei aqui no edifício, de costas para o enterro, o tempo todo, sem olhar para trás, no elevador, na sala de espera, quando entrei e sentei aqui, o tempo todo. - Os olhos brilham mais. Nunca ela me olhou tanto tempo de frente, antes. - Eu quero, certo? Eu preciso continuar apostando nas ameixas. Não sei se devo, também não sei se posso, se é. Permitido? Sei lá, acho que também não sei o que é <i>dever </i>ou <i>poder, </i>mas agora estou sabendo de um jeito muito claro o que é <i>precisar, </i>certo? E quando a gente precisa, não importa que seja proibido. Querer? - Interrompe-se como se eu tivesse feito uma pergunta. Mas eu não disse nada. - Querer a gente inventa.</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">Eu apago o cigarro. E bocejo sem querer.</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">- Ou não - ela diz levantando-se. Ela nunca levantou sem que eu dissesse <i>bem-por-hoje-é-só, </i>antes.</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">Eu levanto também, sem ter planejado. Isso nunca me aconteceu antes. Ela continua esfregando o objeto contra a blusa. Só quando interrompe o gesto, a mão estendida para mim, é que percebo. Trata-se de uma ameixa. Madura, cor de vinho tinto. De sangue, talvez. Ela caminha até a mesa, coloca-a sobre a agenda ao lado do telefone.</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">- Isto é para você.</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">- Obrigado - eu digo sem querer.</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">Ela arruma os cabelos com os dedos antes de sair.</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">- Feliz ano novo - diz, batendo a porta. Os olhos cintilam.</span></span></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span lang="PT" style="font-family: Arial; mso-ansi-language: PT;"><span style="font-size: small;">Mas estamos recém em setembro, penso em dizer. Apenas penso, ela já fechou a porta atrás de si. Torno a abri-la, mas não há mais ninguém na sala de espera além da secretária lixando as unhas. Fecho a porta outra vez e há um momento em que fico parado, ouvindo o barulho do relógio em contraponto com o ar-condicionado. Depois caminho até minha mesa. Toco a ameixa. A cor de sangue, de vinho, parece refletir-se na superfície polida das minhas unhas. É tão lustrosa que brilha, a casca estufada quase arrebentando pela pressão interna da polpa madura, que imagino amarela, sumarenta, estalando contra os dentes. Deixo a ameixa de lado e pego a agenda embaixo dela. Resolvo telefonar para seus pais, aconselhando que a internem novamente. Mas antes preciso ver a cor das minhas meias. Quem sabe a lilás, com pespontos azulmarinho? Os óculos tornam a escorregar para a ponta do nariz. Talvez a amarelinha de listras brancas? Não há tempo. A secretária começa a bater na porta, chegou o próximo cliente.</span></span></div></div></div>Unknownnoreply@blogger.com8tag:blogger.com,1999:blog-16282308.post-10048661351067000392011-10-08T20:24:00.000-03:002011-10-08T20:24:50.930-03:00Contracapa e orelhas de Os dragões não conhecem o paraíso<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj9S1DQwgo8-UTtXgHQ68IvXcs-CC57QKg_ZzkhSfLiAz8ga4Bxlo1e-jfLJvWep_mrad7J9K68x-lE3FPCcH94PAUiGoTgZHgR0JIKgdpplg4164fVL8JGMVPpqf0CV6me0cR7/s1600/Drag%25C3%25B5esCapa.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" kca="true" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj9S1DQwgo8-UTtXgHQ68IvXcs-CC57QKg_ZzkhSfLiAz8ga4Bxlo1e-jfLJvWep_mrad7J9K68x-lE3FPCcH94PAUiGoTgZHgR0JIKgdpplg4164fVL8JGMVPpqf0CV6me0cR7/s1600/Drag%25C3%25B5esCapa.jpg" /></a></div><br />
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjLYfoabtDT142_2c-ktGs2ehifkWFY94BT6xc0ZeQ05-J_jcorN1TWBe7iCiCvA5GSZDdbJcrxgs_X8fvM_QvCBFKoOoSscNPxwD5Y0KvB9VVoezLe1xO5r2MKbHA74dmgqNMy/s1600/Drag%25C3%25B5esContracapa.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" kca="true" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjLYfoabtDT142_2c-ktGs2ehifkWFY94BT6xc0ZeQ05-J_jcorN1TWBe7iCiCvA5GSZDdbJcrxgs_X8fvM_QvCBFKoOoSscNPxwD5Y0KvB9VVoezLe1xO5r2MKbHA74dmgqNMy/s1600/Drag%25C3%25B5esContracapa.jpg" /></a></div>Unknownnoreply@blogger.com11tag:blogger.com,1999:blog-16282308.post-75970187832389138152011-10-06T09:43:00.001-03:002011-10-06T09:44:47.611-03:00Os contos de Os dragões não conhecem o paraíso<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhOORI3zNdLJjOBKttyZiiRgjlNtflMveZybRGrkZHs4tZQ2_93AIbsHdfLDkhsErbYUmmYShHdQuejihnHE9DVGzDhg6ZfV9ozUIfO_VDr15Na-WO1KKn_ywvF9QLrDzQr1cc-/s1600/os+drag%255Boes+n%25C3%25A3o+conhecem+o+para%25C3%25ADso.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" closure_uid_xwv87s="104" height="320px" kca="true" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhOORI3zNdLJjOBKttyZiiRgjlNtflMveZybRGrkZHs4tZQ2_93AIbsHdfLDkhsErbYUmmYShHdQuejihnHE9DVGzDhg6ZfV9ozUIfO_VDr15Na-WO1KKn_ywvF9QLrDzQr1cc-/s320/os+drag%255Boes+n%25C3%25A3o+conhecem+o+para%25C3%25ADso.jpg" width="207px" /></a></div><br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt;"><b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><span style="font-family: Verdana;">Os dragões não conhecem o paraíso (1988) </span></b></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt;"><span style="color: white; font-family: Verdana;">Linda, ma história horrível<br />
O destino desfolhou<br />
a beira do mar aberto <br />
sem Ana, blues <br />
Saudade de Audrey Hepburn<br />
O rapaz mais triste do mundo <br />
Os sapatinhos vermelhos <br />
Uma praiazinha de areia bem clara, ali, na beira da sanga<br />
dama da noite <br />
Mel & girassóis<br />
A outra voz <br />
Pequeno monstro<br />
Os dragões não conhecem o paraíso</span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt;"><span style="color: white;"><br />
</span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt;"><span style="color: white;"><br />
</span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt;"><span style="color: white; font-family: Verdana;">*Todos os contos estão disponíveis no blog</span></div>Unknownnoreply@blogger.com13tag:blogger.com,1999:blog-16282308.post-88568065705577490972011-10-03T21:37:00.000-03:002011-10-03T21:37:07.152-03:00O RAPAZ MAIS TRISTE DO MUNDO<div style="text-align: justify;"></div><div style="text-align: justify;">Para<br />
Ronaldo Pamplona da Costa </div><div style="text-align: justify;">“São aqueles que vêm do nada <br />
e partem para lugar nenhum. <br />
Alguém que aparece de repente,<br />
que ninguém sabe de onde veio nem para onde vai.<br />
A man out of nowhere.” </div><div style="text-align: justify;">(Nelson Brissac Peixoto: Cenários em Ruínas) </div><div style="text-align: justify;"><br />
UM AQUÁRIO de águas sujas, a noite e a névoa da noite onde eles navegam sem me ver, peixes cegos ignorantes de seu caminho inevitável em direção um ao outro e a mim. Pleno inverno gelado, agosto e madrugada na esquina da loja funerária eles navegam entre punks, mendigos, neons, prostitutas e gemidos de sintetizador eletrônico - sons, algas, águas - soltos no espaço que separa o bar maldito das trevas do par que na cidade que não é nem será mais a de um deles. Porque as cidades, como as pessoas ocasionais e os apartamentos alugados, foram feitas para serem abandonadas - reflete, enquanto navega. <br />
Ele: esse homem de quase quarenta anos, começando a beber um pouco demais, não muito, só o suficiente para acender a emoção cansada, e a perder cabelo no alto da cabeça, não muito, mas o suficiente para algumas piadas patéticas. Sobre esse espaço vazio de cabelos no alto da cabeça caem as gotas de sereno, cristais de névoa, e por baixo dele acontecem certos pensamentos altos de noite, algum álcool e muita solidão. Ele acende um cigarro molhado, ele ergue a gola do impermeável cinza até as orelhas. Nesse gesto, a mão que segura o cigarro roça áspera na barba de três dias. Ele suspira, então, gelado. </div><div style="text-align: justify;">Há muitas outras coisas que se poderia dizer sobre esse homem nesta noite turva, neste bar onde agora entra, na cidade que um dia foi a dele. Mas parado aqui, no fundo do mesmo bar em que ele entra, sem passado, porque não têm passado os homens de quase quarenta anos que caminham sozinhos pelas madrugadas - todas essas coisas um tanto vagas, um tanto tolas, são tudo o que posso dizer sobre ele. Assim magro, molhado, meio curvo de magreza, frio e estranhamento. O estranhamento típico dos homens de quase quarenta anos vagando pelas noites de cidades que, por terem deixado de ser as deles, tornaram-se ainda mais desconhecidas que qualquer outra. <br />
O bar é igual a um longo corredor polonês. As paredes demarcadas - à direita de quem entra, mas à esquerda de onde contemplo - pelo balcão comprido e, do lado oposto, pela fila indiana de mesinhas ordinárias, fórmica imitando mármore. Nessa linha, estendida horizontal da porta de entrada até a juke-box do fundo onde estou e espio, ele se movimenta - magro, curvo, molhado - entre as pessoas enoveladas. Vestido de escuro, massa negra, monstro vomitado pelas ondas noturnas na areia suja do bar. Entre essas pessoas, embora vestido de cinza, ele parece todo branco. <br />
O homem pede uma cerveja no balcão, depois se perde outra vez no meio das gentes. Alongando o pescoço, mal consigo acompanhar o topo da sua cabeça de homem alto, meio calvo, até que ele descubra a cadeira vazia na mesa onde está sentado aquele rapaz. E daqui onde estou, ao lado da máquina de música próxima ao corredor que afunda na luz mortiça dos banheiros imundos, posso vê-los e ouvi-los perfeitamente através do bafo de cerveja, desodorante sanitário e mijo que chegam juntos às nossas narinas. <br />
Na máquina de música, para embalar esse encontro que eles ainda não perceberam que estão tendo, para ajudá-los a navegar melhor nisso que por enquanto não tem nome e poderiam sequer ver, se eu não ajudasse - escolherei lentos blues, solos sofridos de sax, pianos lentíssimos, à beira do êxtase, clarinetas ofegantes e vozes graves, negras vozes roucas ásperas de cigarros, mas aveludadas por goles de bourbom ou conhaque, para que tudo escorra dourado como a bebida de outras águas, não estas, tão turvas, de onde emergiram dois pobres peixes cegos da noite, para sempre ignorantes da minha presença aqui, junto à máquina de música, ao lado do corredor que leva aos banheiros imundos, a criar claridades impossíveis e a ninar com canções malditas esse encontro inesperado, tanto por eles, que navegam cegos, quanto por mim, pescador sem anzol debruçado sobre a água do espaço que me separa deles. <br />
Aquele, aquele mesmo para onde meu olhar se dirige agora, aquele rapaz em frente ao qual o homem de impermeável cinza senta com sua cerveja. Exatamente esse: um rapaz de quase vinte anos, bebendo um pouco demais, não muito, como costumam beber esses rapazes de quase vinte anos que ainda desconhecem os limites e os perigos do jogo, com algumas espinhas, não muitas, sobras de adolescência espalhadas pelo rosto muito branco, entre fios dispersos da barba que ainda não encontrou aquela justa forma definitiva já arquitetada na cara dos homens de quase quarenta anos, como esse que está à frente dele. Por trás das espinhas, entre os fios da barba informe, acontecem certos pensamentos - densos de névoa, algum álcool e muita solidão. Aquele rapaz acende um cigarro molhado, aquele rapaz desce a gola do casaco preto, aquele rapaz afasta da lapela puída umas cinzas, uns fios de cabelo, poeiras, gotas, grilos. Depois suspira, gelado. Olha em volta como se não visse nada, ninguém. Nem sequer esse homem sentado à sua frente, que aparentemente também não o vê. <br />
Há muitas outras coisas que se poderia dizer sobre aquele rapaz nesta noite sombria, na cidade que sempre foi a dele, neste bar onde agora está sentado à frente de um homem inteiramente desconhecido. Mas parado aqui no fundo do mesmo bar onde ele agora está sentado, com seu pequeno passado provavelmente melancólico e nenhum futuro, porque é sempre obscuro, quase invisível, o futuro dos rapazes de menos de vinte anos - todas essas coisas um tanto vagas, um tanto tolas, são tudo o que posso dizer sobre ele. Assim magro, molhado, meio curvo de magreza e frio. Com esse estranhamento típico dos rapazes que ainda não aprenderam nem os perigos nem os prazeres do jogo. Se é que se trata de um jogo. <br />
Pudesse eu ser o grande Zeus Olimpo e destruiria a cidade com raios flamejantes só para viver o momento da luz elétrica do raio* - ele dirá, aquele rapaz, correspondendo à previsível arrogância de sua idade. Não agora. Por enquanto, não diz nada. Nem ele nem o homem de quase quarenta anos, sentados frente a frente na mesa à esquerda de onde estrategicamente espiono, junto à máquina de música, à direita de quem entra, surgidos do fundo do aquário de águas sujas da noite e da névoa na noite lá fora em que navegavam cegos e tontos, antes de entrarem neste bar. Antes que eu os sugasse com meus olhos ávidos dos encontros alheios, para dar-lhes vida, mesmo esta precária, de papel, onde Zeus Olimpo Oxalá Tupã também exercem seu poder sobre predestinados simulacros. <br />
Não, não dizem nada. Há ruído suficiente em volta para poupar-lhes as palavras, quem sabe amargas. Talvez também, pelo avesso, leite intolerável para a garganta ardida de quem ronda as noites feito eles, feito eu, feito nós. Adiáveis as palavras deles. Não as minhas. <br />
Por enquanto, olham em volta. Deliberadamente, não se</div><div style="text-align: justify;">(*) Um verso inédito de Antonio Augusto Caldasso Couto </div><div style="text-align: justify;">encaram. Embora sejam os dois magros, meio curvos de tanta magreza, molhados da névoa lá de fora, embora um vista cinza e outro preto, como mandam os tempos, para não serem rejeitados, embora ambos bebam cervejas um tanto mornas, mas pouco importa neste bar o que se bebe, desde que se beba, e fumem cigarros igualmente amassados, viciosos cigarros tristes desses que só homens solitários e noturnos rebuscam nas madrugadas pelo fundo dos bolsos dos casacos, tenham eles vinte ou quarenta anos. Ou mais, ou menos homens solitários não tem idade. Embora gelados, tontos de álcool, hirtos de frio, lúcidos dessa solidão que persegue feito sina os homens sem passado nem futuro, nem mulher ou amigo, família nem bens - eles não se olham.<br />
Eles se ignoram. Porque pressentem que - eu invento, sou Senhor de meu invento absurdo e estupidamente real, porque o vou vivendo nas veias agora, enquanto invento - se cederem à solidão um do outro, não sobrará mais espaço algum para fugas como alguma trepada bêbada com alguém de quem não se lembrará o rosto dois dias depois, o pó cheirado na curva da esquina, a mijada sacana ao lado do garçom ausente de conflitos, mas compreensivo com qualquer tipo de porre alheio, um baseado sôfrego na lama do parque. Coisas assim, você sabe? Eu, sim: amar o mesmo de si no outro às vezes acorrenta, mas quando os corpos se tocam as mentes conseguem voar para bem mais longe que o horizonte, que não se vê nunca daqui. No entanto, é claro lá: quando os corpos se tocam depois de amar o mesmo de si no outro. <br />
Portanto, não se olham. E não sou eu quem decide, são eles. Não se deve olhar quando olhar significaria debruçar-se sobre um espelho talvez rachado. Que pode ferir, com seus cacos deformantes. Por isso mesmo hesito, então, entre jogar minha ficha em Bessie Smith ou Louis Armstrong (tudo é imaginário nesta noite, neste bar, nesta máquina de música repleta de outras facilidades mais em voga), para facilitar o fluxo, desimpedir o trânsito, para adoçar ou amargar as coisas, mesmo temendo que rapazes de menos de vinte anos não sejam ainda capazes de compreender tais abismos colonizados, negros requintes noturnos de vozes roucas contra o veludo azul a recobrir paredes de outro lugar que não este corredor polonês numa cidade provinciana cujo nome esqueci, esquecemos. Sofisticação, pose: fadiga e luvas de cano longo. <br />
Minha, deles. Porque somos três e um. O que vê de fora, o que vê de longe, o que vê muito cedo. Este, antevisão. Os três, o mesmo susto. Vendo de dentro, emaranhados. Agora quatro? <br />
Porque então começa. Mas começa tão banal - como é seu nome, qual o seu signo, quer outra cerveja, me dá um cigarro, não tenho grana, eu pago, pode deixar, fazendo o quê, por aí, vendo o que pinta, vem sempre aqui, faz tanto frio - que quase aperto o botão de outros sons que não aqueles que imagino, tão roucos, para que no grito tenso de um baixo elétrico possam chafurdar na estridência de cada noite. Mas subitamente os dois se compõem - esse homem de impermeável cinza, aquele rapaz de casaco preto, juntos na mesma mesa - e sem que eu esteja prevenido, embora estivesse, porque fui quem armou esta cilada, de repente eles se olham bem dentro e fundo dos olhos um do outro. Ao lado da massa negra, monstro marinho, no meio do cheiro de mijo e cerveja, por entre os azulejos brancos das paredes do bar, como um enorme banheiro cravado no centro da noite onde estão perdidos - eles se encontram e se olham. <br />
Eles se reconhecem, finalmente eles aceitam se reconhecer. Eles acendem os cigarros amarrotados um do outro com segurança e certa ternura, ainda tímida. Eles dividem delicadamente uma cerveja em comum. Eles se contemplam com distância, precisão, método, ordem, disciplina. Sem surpresa nem desejo, porque esse rapaz de casaco preto, barba irregular e algumas espinhas não seria o homem que aquele homem de espaço vazio no alto da cabeça desejaria, se desejasse outros homens, e talvez deseje. Nem o oposto: aquele rapaz, mesmo sendo quem sabe capaz de tais ousadias, não desejaria esse homem através da palma da mão inventando loucuras no silêncio de seu quarto, certamente cheio de flâmulas, super-heróis, adesivos e todos esses vestígios do tempo que mal acabou de passar, quando é cedo demais para saber se se deseja, fatalmente, outro igual. Quem sabe sim. Mas este homem, aquele rapaz - não. É de outra forma que tudo acontece. <br />
Eles se contemplam sem desejo. Eles se contemplam doces, desarmados, cúmplices, abandonados, pungentes, severos, companheiros. Apiedados. Eles armam palavras que chegam até mim em fragmentos partidos pelo ar que nos separa, em forma de interrogações mansas, hesitantes, perguntas que cercam com cautela e encantamento um reconhecimento que deixou de ser noturno para transformar-se em qualquer outra coisa a que ainda não dei nome, e não sei se darei, tão luminosa que ameaça cegar a mim também. Contenho o verbo, enquanto eles agora vêem o que mal começa a se desenhar, e eu acho belo. <br />
O rapaz olha os próprios braços e diz: eu sou tão magro, vê? Quando abraço uma mina - ele fala assim mesmo, mina, e o homem pisca ligeiramente, discreto, para não sublinhar o abismo de quase vinte anos - fico olhando para os meus braços frágeis incapazes de abraçar com força uma mulher, e fico então imaginando músculos que não tenho, fico inventando forças, porque eu sou tão fraco, porque eu sou tão magro, porque eu sou tão novo. O rapaz olha em volta seco, nenhuma sombra de paixão em seu rosto muito branco, e diz ainda: eu quero me matar, eu não entendo estar vivo, eu não tenho pai, minha mãe me sacode todo dia e grita acorda, levanta, vadio, vai trabalhar. Eu quero ler poesia, eu nunca tive um amigo, eu nunca recebi uma carta. Fico caminhando à noite pelos bares, eu tenho medo de dormir, eu tenho medo de acordar, acabo jogando sinuca a madrugada toda e indo dormir quando o sol já está acordando e eu completamente bêbado. Eu nasci neste tempo em que tudo acabou, eu não tenho futuro, eu não acredito em nada - isso ele não diz, mas eu escuto, e o homem em frente dele também, e o bar inteiro também. Então o homem responde, com essa sabedoria meio composta que os homens de quase quarenta anos inevitavelmente conseguiram. <br />
Ele, o homem, passa a palma da mão pelos cabelos ralos, como se acariciasse o tempo passado, e diz, o homem diz: não tenha medo, vai passar. Não tenha medo, menino. Você vai encontrar um jeito certo, embora não exista o jeito certo. Mas você vai encontrar o seu jeito, e é ele que importa. Se você souber segurar, pode até ser bonito. O homem tira a carteira do bolso, pede outra cerveja e um maço de cigarros novinhos, depois olha com olhos molhados para o rapaz e diz assim. Não, ele não diz nada. Ele olha com olhos molhados para o rapaz. Durante muito tempo, um homem de quase quarenta anos olha com olhos molhados para um rapaz de quase vinte anos, que ele nunca tinha visto antes, no meio de um bar no meio desta cidade que já não é mais a dele. Enquanto esse olhar acontece, e é demorado, o homem descobre o que eu também descubro, no mesmo momento. <br />
Aquele rapaz de casaco preto, algumas espinhas, barba irregular e pele branca demais - este é o rapaz mais triste do mundo. <br />
E para tornar todas essas coisas ainda mais ridículas, ou pelo menos improváveis, o amanhã que já é hoje será dia dos Pais. Atordoado por datas que nada significam para os que nada têm, sem nenhum filho, mais para reforçar o lado da solidão, o homem de quase quarenta anos começa a contar que veio de outra cidade para ver seu pai. E vai revelando então, naquele mesmo tom desolado do rapaz que agora e para sempre tornou-se o rapaz mais triste do mundo, igual ao que ele foi, mas não voltará a ser, embora jamais deixará de sê-lo, ele diz assim: eles não olham para mim, eles ficam lá naquela segurança armada de família que não admite nada nem ninguém capaz de perturbar o seu sossego falso, e não me olham, não me vêem, não me sabem. Me diluem, me invisibilizam, me limitam àquele limite insuportável do que eles escolheram suportar, e eu não suporto - você me entende? <br />
O rapaz de menos de vinte anos quase não entende. Mas estende a mão por cima da mesa para tocar a mão do homem de quase quarenta anos. Os dedos da mão desse homem se fecham dentro e entre os dedos da mão daquele rapaz. Há tanta sede entre eles, entre nós. <br />
Passou-se muito tempo. Vai amanhecer. O frio aumentou. O bar está meio vazio, quase fechando. Debruçado na caixa, o dono dorme. Gastei quase todas as minhas fichas: tudo é blues, azul e dor mansinha. Só me resta uma, que vou jogar certeiro em Tom Waits. Me preparo. Então - enquanto os garçons amontoam cadeiras em cima das mesas vazias, um pouco irritados comigo, que a tudo invento e alimento, e com esses dois caras estranhos, parecem dois veados de mãos dadas, perdidamente apaixonados por alguém que não é o outro, mas poderia ser, se ousassem tanto e não tivessem que partir - o homem segura com mais força nas duas mãos do rapaz mais triste do mundo. As quatro mãos se apertam, se aquecem, se misturam, se confortam. Não negro monstro marinho viscoso, vômito na manhã. Mas sim branca estrela do mar. Pentáculo, madrepérola. Ostra entreaberta exibindo a negra pérola arrancada da noite e da doença, puro blues. E diz, o homem diz: <br />
- Você não existe. Eu não existo. Mas estou tão poderoso na minha sede que inventei a você para matar a minha sede imensa. Você está tão forte na sua fragilidade que inventou a mim para matar a sua sede exata. Nós nos inventamos um ao outro porque éramos tudo o que precisávamos para continuar vivendo. E porque nos inventamos, eu te confiro poder sobre o meu destino e você me confere poder sobre o teu destino. Você me dá seu futuro, eu te ofereço meu passado. Então e assim, somos presente, passado e futuro. Tempo infinito num sZ, esse é o eterno. <br />
No bar de cadeiras amontoadas, resta apenas aquela mesa onde os dois permanecem sentados, alheios às ruínas do cenário. Do meu canto, espio. Deve haver alguma puta caída num canto, alguma bichinha masturbando um negro no banheiro. Eu não os vejo. Por enquanto e agora, não. Do meu canto, vejo somente esses homens diversos e iguais, as quatro mãos dadas sobre a mesinha ordinária, fórmica imitando mármore. <br />
E é então que o rapaz conta que entregou flores o dia inteiro, que juntou algum dinheiro, batalhou cem paus, qualquer micharia assim, essas coisas de rapazes com menos de vinte anos - e faz questão, magnífico, de pagar a última cerveja. Tudo é último agora. Não há mais bares abertos na cidade. Uma luz vítrea começa a varar a névoa da noite onde eles ainda estão mergulhados junto comigo, com você, peixes míopes apertando os olhos para se verem de perto, em dose, e conseguem. Lindos, assustadores: as guelras fremem. O homem puxa outra vez sua carteira cheia de notas e cheques e cartões, dessas carteiras recheadas que só os homens de quase quarenta anos conseguiram conquistar, mas não significam nada em momentos assim. O rapaz insiste, o homem cede, guarda a carteira. O último garçom traz a última cerveja. Eu jogo minha última ficha na máquina de música, no último blues. Ninguém vê, ninguém ouve mais nada na manhã que chega para adormecer loucuras. Amanhã, você lembrará? <br />
Ternos, pálidos, reais: eles se olham. Eles se acariciam mutuamente as mãos, depois os braços, os ombros, o pescoço, o rosto, os traços do rosto, os cabelos. Com essa doçura nascida entre dois homens sozinhos no meio de uma noite gelada, meio bêbados e sem nenhum outro recurso a não ser se amarem assim, mais apaixonadamente do que se amariam se estivessem à caça de outro corpo, igual ou diverso do deles - pouco importa, tudo é sede. De onde estou, vejo a alma dos dois brilhar. Amarelinho, violeta claro: dança sobre o lixo. Eles choram enquanto se acariciam. Um homem de quase quarenta anos e um rapaz de menos de vinte, sem idade os dois. <br />
Eu sou os dois, eu sou os três, eu sou nós quatro. Esses dois que se encontram, esse três que espia e conta, esse quarto que escuta. Nós somos um - esse que procura sem encontrar e, quando encontra, não costuma suportar o encontro que desmente sua suposta sina. É preciso que não exista o que procura, caso contrário o roteiro teria que ser refeito para introduzir Tui, a Alegria. E a alegria é o lago, não o aquário turvo, névoa, palavras baças: Netuno, sinastrias. E talvez exista, sim, pelo menos para suprir a sede do tempo que se foi, do tempo que não veio, do tempo que se imagina, se inventa ou se calcula. Do tempo, enfim. </div><div style="text-align: justify;">Esse estranho poder demiúrgico me deixa ainda mais tonto que eles, quando levantam e se abraçam demorada- mente à porta do bar, depois de pagarem a conta. Amantes, parentes, iguais: estranhos. <br />
Então o rapaz se vai, porque tem outros caminhos, O homem fica, porque tem outros caminhos. Ele acompanha o vulto do rapaz que se vai, exatamente com o mesmo olhar com que acompanho o vulto desse homem parado por um instante à porta do bar. E não ficará, porque esta cidade não é mais a dele. O rapaz sim, ficará, porque é nesta mesma cidade que deve escolher essa coisa vaga - um caminho, um destino, uma história com agá -, se é que se escolhe alguma coisa, para depois matá-la, essa coisa vaga futura, quando for passado, se é que se mata alguma coisa. A voz rouca de Tom Waits repete e repete e repete que este é o tempo, e que haverá tempo, como num poema de T. S. Eliot, e sim, deve haver, certamente, enquanto o último garçom toca suave no ombro desse homem de impermeável cinza, cabelos rareando no alto da cabeça, quase quarenta anos, parado à porta do bar. Delicado, amigável, apontando o vulto do rapaz mais triste do mundo que se afasta para tomar o primeiro ônibus, o garçom pergunta: <br />
- Ele é seu filho? <br />
De onde estou, ao lado da máquina de música que emudece, sinto um inexplicável perfume de rosas frescas. Como se tivesse amanhecido e uma súbita primavera se instaurasse no parque em frente - nada contra as facilidades dos finais. Antes que o homem se vá, consigo vê-lo sorrir de manso e então mentir ao garçom dizendo sim, dizendo não, quem sabe. E o que disser, como eu, será verdade. Aqui de onde resto, sei que continuamos sendo três e quatro. Eu pai deles, eu filho deles, eu eles próprios, mais você: nós quatro, um único homem perdido na noite, afundado nesse aquário de águas sujas refletindo o brilho de neon. Peixe cego ignorante de meu caminho inevitável em direção ao outro que contemplo de longe, olhos molhados, sem coragem de tocá-lo. Alto de noite, certa loucura, algum álcool e muita solidão. </div><div style="text-align: justify;">Quero mais um uísque, outra carreira. Tudo aos poucos vira dia e a vida - ah, a vida - pode ser medo e mel quando você se entrega e vê, mesmo de longe. <br />
Não, não quero nem preciso nada se você me tocar. Estendo a mão. <br />
Depois suspiro, gelado. E te abandono.</div>Unknownnoreply@blogger.com7tag:blogger.com,1999:blog-16282308.post-65677935770444051892011-10-02T19:17:00.001-03:002011-10-03T21:31:20.997-03:00UMA PRAIAZINHA DE AREIA BEM CLARA, ALI, NA BEIRA DA SANGA<div style="text-align: justify;"></div><div style="text-align: justify;">Para<br />
Antonio Maschio<br />
e <br />
Wladimir Soares</div><div style="text-align: justify;">“Each man kills the things he loves. </div><div style="text-align: justify;">(Oscar Wilde, citado por Fassbinder em <br />
Querelle) </div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;">1</div><div style="text-align: justify;">HOJE faz exatamente sete anos que fugi para sempre do Passo da Guanxuma, Dudu. É setembro, mês do teu aniversário, mas não lembro o dia certo. <br />
Lembrei disso agora há pouco, olhando minha cara no espelho enquanto decidia se faço ou não a barba. Continua dura e cerrada, a barba, você conhece. Se faço todos os dias, a cara vai ficando meio lanhada, uns fios encravados, uns vermelhões. Se não faço, fica parecendo suja, a cara. Não decidi nada. Mas foi quando olhei para o espelho que vi o calendário ao lado e aí me veio esse peso no coração, essa lembrança do Passo, de setembro e de você. Quando pensei setembro, pensei também numas coisas meio babacas, tipo borboletinhas esvoaçando, florzinhas arrebentando a terra, ventanias, céu azul como se fosse pintado a mão. Tanta besteirada tinha naquela cidade, meu Deus. Ainda terá? <br />
Agora olhei pela janela. A janela do meu quarto dá para os fundos de outro edifício, fica sempre um ar cinzento preso naquele espaço. Um ar grosso, engordurado. Se você estivesse aqui e olhasse para a frente, veria uma porção de janelinhas de banheiro, tão pequenas que nem dá para espiar o monte de sacanagens que devem acontecer por trás delas. Se você olhasse para baixo, veria aquelas latas de lixo todas amontoadas no térreo. Só quando olhasse para cima, poderia ver um pedacinho do céu - e quando escrevi pedacinho de céu lembrei daquela mágica antiga que você gostava tanto, era mesmo um chorinho? Sempre olho para cima, para ver o ar cinzento entre a minha janela e o paredão do outro edifício que se encomprida até misturar com o céu. Feito uma capa grossa de fuligem jogada sobre esta cidade tão longe aí do Passo e de tudo que é claro, mesmo meio babaca. <br />
Quando penso desse jeito, nesta cidade daqui, Dudu, você nem sabe como me dá uma vontade doida, doida de voltar. Mas não vou voltar. Mais do que ninguém, você sabe perfeitamente que eu nunca mais posso voltar. Pensei isso com tanta certeza que cheguei a ficar meio tonto, a mão escorregou e fez esse borrão aí do lado, desculpe. Eu apertei as duas mãos contra a folha de papel, como se quisesse me segurar nela. Como se não houvesse nada embaixo dos meus pés. <br />
Você não sabe, mas acontece assim quando você sai de uma cidadezinha que já deixou de ser sua e vai morar noutra cidade, que ainda não começou a ser sua. Você sempre fica meio tonto quando pensa que não quer ficar, e que também não quer - ou não pode - voltar. Você fica igualzinho a um daqueles caras de circo que andam no arame e de repente o arame plac! ó, arrebenta, daí você fica lá, suspenso no ar, o vazio embaixo dos pés. Sem nenhum lugar no mundo, dá para entender? <br />
Ando tão só, Dudu. Ando tão triste que às vezes me jogo na cama, meto a cara fundo no travesseiro e tento chorar. Claro que não consigo. Solto uns arquejos, roncos, soluços, barulhos de bicho, uns grunhidos de porco ferido de faca no coração. Sempre lembro de você nessas horas. Hoje, preferi te escrever. Também, os lençóis estão imundos. A dona que me aluga este quarto só troca de duas em duas semanas, e já deve andar pelo fim da segunda. Peguei ainda a mania de comprar comida na rua, naqueles pratinhos de papel metálico, fico comendo entre os lençóis, volta e meia acaba caindo algum pedaço no meio deles. Arroz, omelete, maionese, pizza - essas comidas de plástico que a gente come aqui, nada de costela gorda com farinha, como aí no Passo. <br />
Fora isso, que é bastante porco, continuo um cara bem limpinho. Dudu. E se você ainda consegue lembrar daqueles banhos que a gente tomava pelados na sanga Caraguatatá - porque eu, eu não esqueço um segundo nestes sete anos -, mais do que ninguém, você sabe como isso é verdade. </div><div style="text-align: justify;"><br />
2</div><div style="text-align: justify;">Tenho trinta e três anos e sou um cara muito limpo. Tomo no mínimo um banho por dia, escarafuncho bem as orelhas com cotonetes, desses que, dizem, têm um dourado no meio, daí você ganha um prêmio se encontrar, mas eu nunca encontrei. As unhas não corto, não é preciso, desde criança rôo até o sabugo. <br />
Não sou um cara feio, acho que não. Verdade que podia ser mais alto um pouco, embora não seja nenhum pônei. E um pouco menos peludo, também podia. De vez em quando tiro toda a roupa e fico me olhando nu na porta de espelho do guarda-roupa. Tem pêlo por todo lado, quando faço a barba tenho que começar a raspar ali onde termina o peito e começa o pescoço. Fica parecendo uma blusa dessas sem gola, uma camiseta escura. Se não raspasse, emendava tudo. Tem pêlos também nos ombros, um pouco nas costas, depois rareia, só começa de novo pouco abaixo da cintura, antes da bunda. </div><div style="text-align: justify;">Pêlos pretos, crespos. Nos lugares onde não tem pêlos, a pele é muito branca. <br />
Não era assim, lá no Passo. Quero dizer, não que eu não fosse peludo - isso começou com uns treze, catorze anos, e não parou até hoje. Pêlo é o tipo de coisa que não pára nunca de crescer no corpo de um cara. Mas a pele, isso que eu quero dizer, a pele não era branca. No Passo tinha sol quase todo dia, e uma praiazinha de areia bem clara, na beira da sanga. Eu ficava ali deitado na areia, completamente nu, quase sempre sozinho. Eu nadava e nadava e nadava naquela água limpa. Deve ser por isso que, embaixo desses pêlos todos, os músculos são muito duros. <br />
Ou eram. Tenho ficado tanto tempo deitado que eles estão amolecendo. Esse é só um dos sintomas, ficar muito tempo deitado. Tem outros, físicos. Uma fraqueza por dentro, assim feito dor nos ossos, principalmente nas pernas, na altura dos joelhos. Outro sintoma é uma coisa que chamo de pálpebras ardentes: fecho os olhos e é como se houvesse duas brasas no lugar das pálpebras. Há também essa dor que sobe do olho esquerdo pela fronte, pega um pedaço da testa, em cima da sobrancelha, depois se estende pela cabeça toda e vai se desfazendo aos poucos enquanto caminha em direção ao pescoço. E um nojo constante na boca do estômago, isso eu também tenho. Não tomo nada: nenhum remédio. Não adianta, sei que essa doença não é do corpo. <br />
Quando apalpo meu corpo e sinto ele ficando mole, levanto de um salto e saio a caminhar pelo quarto. Faço cinqüenta flexões, até meus peitos e braços ficarem duros de novo. Isso durante o dia, porque não suporto o barulho das buzinas na rua. À noite saio, dou umas voltas. Gosto de ver as putas, os travestis, os michês pelas esquinas. Gosto tanto que às vezes até pago um, ou uma, para dormir comigo. Foi assim que acabei conhecendo o Bar. Mas não quero falar disso agora. <br />
Para não falar disso agora, levanto a cabeça, desvio os olhos do espelho para não ver a cara barbada que parece suja e, devagarinho, começo a soltar as mãos das bordas da pia enquanto olho fixo dentro do meu olho no espelho. Imagino aquele cara, o do arame no circo, mas o contato do arame com a pele da sola dos pés deve ser gelado e cortante tipo fio de faca. O da pia também é frio, mas redondo, redondo feito peito ou bunda de mulher. Embaixo dos meus pés descalços continua a não ter nada. Então contraio bem os dedos, que nem macaco querendo segurar alguma coisa. Depois solto os dedos dos pés do assoalho de tábuas lixadas. Solto os dedos das mãos da pia e caminho até a porta para ver se chegou.<br />
Assim todos os dias, várias vezes por dia, depois das duas da tarde. A dona que me aluga este quarto costuma colocar as cartas em cima da mesinha no corredor. Abro muitas vezes a porta, espio, nunca tem nada. Nem podia, claro, depois de tudo. Não tenho ninguém mais lá no Passo. Só o Dudu. Que agora, depois de sete -anos, já nem sei direito se tenho para sempre ou, ao contrário, não terei nunca mais. <br />
Não queria pensar no Dudu agora, mas quando abri a porta e vi a mesinha do corredor vazia - vazia de cartas, quero dizer, porque tem sempre aquele elefante rosa com flor de plástico do lado - sem querer, fiquei pensando bem assim: como seria bom se tivesse uma carta do Dudu agora. Aí eu pegava a carta, me sentava, lia devagar, devia ter notícia do Passo, devia falar naquela praiazinha, em setembro, numas tardes quase quentes outra vez, já dava para começar a tomar sol de novo, eu e ele, porque além de mim ele era o único cara que conhecia aquele lugar. Mas então eu acendia um cigarro e lia, depois pegava papel e caneta, pensava um pouco e começava a responder. Depois da data, tinha que escrever alguma coisa, aí embatucava, em dúvida se seria melhor meu-prezado-Dudu ou caro-Dudu, amigo-Dudu ou só Dudu, ou quem sabe meu-amigo. Ficaria um monte de tempo assim pensando, roendo a tampa da caneta, até começar a escurecer. Talvez resolvesse começar a escrever sem data nem nada, para não contar tudo. Talvez deixasse a carta assim mesmo, só uma data num papel em branco, e tomaria um banho, faria de vez </div><div style="text-align: justify;">a barba, depois me vestiria lento até chegar a hora de sair para o Bar, decidindo que não era preciso carta alguma, porque desta vez. <br />
Só que essas eram o tipo de coisa que eu não queria de jeito nenhum pensar no meio daquela tarde, quase noite. No Passo, no Bar, no Dudu. Tudo isso me faz tanto mal. <br />
Fechei a porta, encostei a parte de cima da cabeça contra ela. Só nos filmes as pessoas fazem isso, nunca vi ninguém fazer de verdade. Comecei a fazer para ver se sentia o que as pessoas sentem nos filmes - pessoas sempre sentem coisas nos filmes, nos bares, nas esquinas, nas músicas, nas histórias. Nas vidas acho que também, só que não se dão conta. Depois percebi que aquela dor que sobe ali do olho esquerdo pela testa diminuía um pouco assim, então fui me virando até apertar o lado esquerdo da cabeça, justamente onde doía, contra a porta fechada. A dor doía menos assim, embora não fosse exatamente uma dor. Mais um peso, um calafrio. Uma memória, uma vergonha, uma culpa, um arrependimento em que não se pode dar jeito. <br />
Eu estava de costas contra a porta quando olhei pela janela aberta do outro lado do quarto. Então pensei que bastaria uma corrida rápida da porta até a janela, depois um impulso mínimo para jogar meu corpo por ela e plac! ó, pronto, acabou: moro no décimo andara. Não foi a primeira vez que isso me passou pela cabeça. O que me segurou desta vez, como me segurava em todas as outras, foi pensar naquele monte de latas de lixo lá no térreo. Meu pequeno corpo, cheio de pêlos e músculos duros, cairia exatamente sobre elas. Imaginei uns restos de macarrão enrolados nos anéis do meu cabelo crespo, uma garrafa vazia de pinga vagabunda no meio das minhas pernas, um modess usado na ponta do meu nariz. E continuei parado. Tenho horror à idéia de ficar sujo, mesmo depois de morto. </div><div style="text-align: justify;"><br />
3</div><div style="text-align: justify;">Só que desta vez, Dudu, por mais nojeiras que imaginasse sobre meu corpo caído lá embaixo, não sei por que, a vontade de saltar continua. Mas eu resisto. Não que alguém fosse sentir muita falta minha ou se achar, sei lá, sacaneado com a minha morte. Nem Teresângela, aquela putinha que veio me chupar o pau umas quatro ou cinco vezes, acho que te contei, nem Marilene, mulher do Indio, aí do Passo (um beijo nela), que gostava de mim, faz tanto tempo, nem os donos do Bar, o gordinho que sorri e às vezes abana de longe, ou o de bigode e chapeuzinho preto redondo de Carlitos. Nem você, que nunca me escreveu. Ninguém, Dudu. Eu comecei a enumerai nos dedos quem poderia sentir a minha falta: sobraram dedos. Todos estes que estou olhando agora. <br />
Eu ando muito infeliz, Dudu, este é um segredo que conto só para você: eu tenho achado, devagarinho, cá dentro de mim, em silêncio, escondido, que nem gosto mais muito de viver, sabia? <br />
Não é falta de grana, não. Aqui a gente se vira. Um dia vendo livros, no outro faço pesquisa. Sei ló, sempre pinta. Nunca precisei de muito, você sabe. Meu único luxo têm sido os discos de Dulce Veiga que fico catando nas lojas, já tenho quase todos, você ia gostar de ouvir, outro dia encontrei até o Dulce Também Diz Não, autografado e tudo. Nem falta de amor, que te falei da Teresângela, e tem também o Carlão ali da Praça Roosevelt, quando bebo demais, fumo maconha, tomo bola, me esqueço de mim e fico meio mulher, mais a Noélia, uma gatona repórter da revista Bonita, que conheci no Bar uma noite que ela perguntou o meu signo no horóscopo chinês, e eu sou Tigre e você, lembrei, Dragão. <br />
Amor picadinho, claro, amor bêbado, amor de fim de noite, amor de esquina, amor com grana, amor com fissura, chato nos pentelhos e doença, nas madrugadas de sábado desta cidade que você não conhece nem vai conhecer. De qualquer jeito, amor, Dudu, embora não mate a sede da gente. Amor aos montes, por todos os cantos, banheiros e esquinas. </div><div style="text-align: justify;">Não é isso, nem a falta disso. Me roendo por dentro, é outra coisa que só você poderia saber o que é, mas nem você mesmo soube naquele tempo, e agora nem eu sei se saberia explicar a você ou a qualquer outro. <br />
Mas o que quero te contar, e só sei meio vagamente porque justo hoje, é um negócio tão louco que nem sei como começar. Quem sabe assim - sabia que uma noite eu vi você? Não ria, não duvide de mim, não pense que foi assim como quando você sente saudade demais de uma pessoa, então começa a vê-la nas outras, em todos os lugares, de costas, por um jeito de andar, de sorrir ou virar a cabeça de lado. Foi outra coisa. E não era apenas uma vontade de ver você que te trazia de volta, era você mesmo, Dudu. Você exato, como você é ou foi, sete anos atrás. Como uma pessoa, mesmo por engano, nunca pode ser outra pessoa. <br />
Foi no Bar, a primeira vez que fui ao Bar, e foi por sua causa que fui lá, faz uns três, quatro anos. Eu vinha descendo a rua Augusta quando vi você dobrar aquela esquina da banca de frutas, sorrir para mim, acenar com a mão, mascando chiclete (de hortelã, eu sabia) como sempre, depois entrar num portão de ferro desses altos, antigos. Eu fui atrás, eu nem sabia que aquilo era um bar. Me perdi numas salas cheias de fumaça e gente estranha, gente falando muito e muito alto, atravessei umas portas, uns arcos, desci escadas, tornei a subir, fui parar numa janela grande aberta para a rua. Então olhei para o outro lado e lá estava você, na calçada oposta, embaixo de um outdoor de carro, calcinha ou dentes, não lembro ao certo. <br />
Você não era uma visão do outro lado da rua, Dudu. Você nem sequer estava de branco, você vestia aquele jeans todo desbotado, meio rasgadinho na bunda e no joelho direito, com uma camiseta branca, como as que você usava, mascando aquele chiclete que de longe eu sabia que era hortelã. Era você exato, Dudu. Eu atravessei as salas, a fumaça dos cigarros, os sons estridentes de todas as palavras que aquelas pessoas jogavam feito bolas no ar, passei pelo balcão, atravessei aquele corredorzinho de entrada, afastei umas gentes amontoadas no portão enquanto você esperava por mim do outro lado. Então precisei parar e dar passagem a um desses ônibus elétricos que o tempo todo sobem e descem a Augusta. Quando o ônibus passou, você tinha desaparecido outra vez. <br />
Loucura, não é, Dudu? <br />
Fiquei dando umas voltas por ali, sem acreditar, até ir parar na Praça Roosevelt. Foi nessa noite que encontrei o Cartão pela primeira vez, parado na frente do cinema Bijou, onde passava, lembro tão bem, A História de Adele H, o tipo de filme que você gostava. De longe, as mãos nos bolsos, cigarro na boca, mascando chiclete ao mesmo tempo, parecia você. Essa foi só a primeira vez que te vi. <br />
Desde aquela noite, peguei a mania de ir ao Bar, pensando assim que era um lugar onde você costumava ir, feito íamos no Agenor da Boca, lá no Passo, encontrar a Marilene fugida do Indio, com dois poemas na bolsa. Te vi outras noites, Dudu, sempre no Bar. Acontece de repente, tão rápido que nunca consigo dizer nada. As vezes estou numa mesa, quase sempre com a Noélia, e você desce as escadas, como se fosse em direção à sala grande da frente. Você sempre sorri, me abana. Depois desaparece. <br />
Nunca falei sobre você a ninguém. Nem vou falar. Não falaria de você nem a você mesmo, se hoje não tivesse percebido que, além de fazer sete anos que saí para sempre do Passo da Guanxuma, é um dia próximo do teu aniversário. Por isso estou te escrevendo, depois de tanto tempo. Também para deter aquela vontade de saltar pela janela e acabar de vez com esta saudade do Passo, onde não vou voltar, com essa mania louca de procurar você no Bar quase todas as noites, sem te encontrar. Eu sinto tanta falta, Dudu. Penso às vezes que, quando eu estiver pronto, embora não tenha a menor idéia de como possa ser estar-pronto, um dia, um dia comum, um dia qualquer, um dia igual hoje, vou encontrar você claro e calmo sentado no Bar, à minha espera. Na mesa à sua frente, um copo de vinho que você vai erguer no ar feito uma saudação, até que eu me aproxime sem que você desapareça, para que eu possa então te abraçar dando um soco leve no ombro, sem te machucar, como antigamente, e sentar junto para contar todas as coisas que aconteceram comigo nestes sete anos. </div><div style="text-align: justify;">Desde aquela tarde quase quente de setembro, quando nos estendemos nus sobre a areia clara das margens da sanga Caraguatatá, um dia perto do teu aniversário, o cú azul feito alguém tivesse pintado ele, essas ventanias de primavera secando rápido nossos cabelos molhados, enquanto uma borboletinha amarela esvoaçava entre nós para escapar depressa no momento exato em que, ali do meu lado, você se debruçou na areia para olhar bem fundo dentro dos meus olhos, depois estendeu o braço lentamente, como se quisesse me tocar num lugar tão escondido e perigoso que eu não podia permitir o seu olho nos pêlos crespos do meu corpo, a sua mão na minha pele que naquele tempo não era branca assim, o seu hálito de hortelã quase dentro da minha boca. Foi então que peguei uma daquelas pedras frias da beira d’água e plac! ó, bati de uma só vez na tua cabeça, com toda a força dos meus músculos duros - para que você morresse enfim, e só depois de te matar, Dudu, eu pudesse fugir para sempre de você, de mim, daquele maldito Passo da Guanxuma que eu não consigo esquecer, por mais histórias que invente.</div>Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-16282308.post-76342191040278708962011-09-29T08:26:00.000-03:002011-09-29T08:26:48.242-03:00A OUTRA VOZ<div style="text-align: justify;"></div><div style="text-align: justify;">ERAM cinco e quinze da tarde. Sabia mesmo sem olhar o relógio, mesmo que nesse dia nem houvesse sol, para poder acompanhar a mancha clara de luz reduzindo-se cada vez mais na parede em frente à janela aberta, enquanto a noite chegava. E eles viessem, com a noite. Mas tinha medo de pensar nisso, então supunha que sabia por uma espécie de vibração no ar, assim como se as coisas, aquelas coisas de fora, tivessem um movimento especial, feito um leve arfar, todos os dias, passados quinze minutos das cinco horas, à tarde. Só que as coisas não se moviam. Talvez quem sabe na superfície ou dentro de seu corpo, contrair de vísceras, dilatação da pupila, um palpitar mais acelerado no coração, miúdas gotas de suor na palma das mãos - breve susto na alma. <br />
De qualquer forma, sabia - de onde quer que viesse o aviso. Sabia tanto que, igual às outras vezes, colocou a mão sobre o telefone um pouco antes que tocasse. E antes ainda sequer de começar a esperar, porque eram cinco e quinze, ele estremeceu ao ouvir o toque, quase sorrindo para dentro, para si, porque de alguma forma era como se o toque fosse produzido apenas pela vibração de seus dedos suspensos sobre o aparelho. Tivesse o poder de, à distância, magnetizar a mão de outra pessoa, induzindo o dedo indicador naquela mão daquela outra pessoa a discar seus seis ou sete números para chamá-lo. Mas já não tinha poder algum, se é que tivera um dia. E achava que não, além desse de agora: manter as pontes pelo tempo necessário e impreciso. <br />
Só atendeu depois do telefone tocar três vezes. <br />
Luminosa e viva, a outra voz, cheia de cristais agudos. Pedrinhas moídas de gelo batendo nas bordas de vidro de um copo. Tão reluzentes que piscou os olhos sem querer, ofuscado. Olhava pela janela, a sombra na parede oposta. Precisava de tempo, nessa transição entre as trevas do interior da caverna e o campo eletrizado de luz. Zona de penumbra, embora soubesse, acostumando retinas viciadas, perguntou lento: <br />
- Quem está falando? - e repetiu duas, três vezes, até que a voz parasse de falar sobre qualquer coisa que ele não entendia direito, qualquer coisa daquelas lá de fora, inteligíveis somente para quem estava lá, no meio do vivo, sem começo nem fim, nem dirigida especialmente a ele, interferência numa linha cruzada. <br />
- Não está me reconhecendo? Sou sempre eu. <br />
Afastou um pouco o fone do ouvido - tão alta, a outra voz. Não que fosse desagradável, nem estridente demais. Ao contrário: fugindo assim pelos furinhos do fone, o som parecia espalhar-se por todos os cantos do quarto estreito. Batia nas paredes, eco refletido, derramada sobre todos os objetos, envolvendo-os em finos tecidos sonoros, dissolvia o mofo, coloria a sombra, ensolarada. Asa de cigarra, manhã de janeiro. O quarto escuro brilhou, esmaltado pela voz de ouro. Por favor, quis pedir, me leva daqui, preciso de ajuda antes que seja tarde demais. Mas não era permitido. Rígidos rituais solenes, escondidos atrás das fórmulas de cortesia, às cinco e quinze da tarde. E a dor feito buraco de traça disfarçado sob castiçais. Tornou a aproximar o fone do ouvido, com carinho e cuidado. <br />
- O que é que houve? Você não está bem?</div><div style="text-align: justify;">- Estou - disse devagar. Impossível dizer “tenho medo” ou alguma coisa dessas - pessoal, assustadora. Levou a mão livre ao coração. Suspirou, entre duas batidas. - Não houve nada. Estou bem. <br />
- Tive a impressão que você não estava ouvindo. A voz de rio, água deslizando entre pedras lisas, clarinhas, alguma flor amarela, respingos na corola, repetiu, o tronco áspero que arranhava a garganta dele mesmo, pedindo passagem - e o fio do telefone ligando as duas vozes sobre a cidade, às cinco e quinze de cada tarde - preciso tempo. <br />
- O quê? <br />
- Tempo. Preciso sempre de um certo tempo, desde o momento em que você começa a falar até. <br />
A voz riu. Levemente cúmplice, quase terna, visitante habitual e complacente das escadarias dentro dele, poeiras, sótãos, teias de aranha visguentas dificultando o caminho, e de repente a queda brusca no meio de um corredor conhecido, embora ele não tivesse terminado de falar. <br />
- Até poder falar. Ë a minha voz. Fica assim como se eu não tivesse controle nenhum sobre ela. Eu me desacostumo de falar. Parece depois que vem de longe, que não é minha. Nunca aconteceu isso com você? <br />
- Sempre se pode cantar. Ou ler um livro em voz alta. Você não tem nenhum livro aí? <br />
- Você sabe que não - começou a dizer. Mas um ruído de avião ou automóvel do outro lado do fio interrompeu por um momento o som. Uma nuvem cobria o sol. Havia ruídos lá, e movimentos, trepidâncias, pulsações: podia senti-los a atravessar a linha, irrequietos, quase vivos, para saírem do fone, junto com a voz, retorcendo-se pelos cantos do quarto. Nenhum interesse além das grades da janela, das quais se afastariam com nojo. Esse nojo curioso, apiedado, por um bicho numa jaula. <br />
- Quero que você fique bom logo - a outra voz disse. E parecia verdade. Só de ouvi-la, tinha vontade de debruçar-se à janela para cumprimentar alguém que estendesse roupas lá embaixo, sem medo dos dentes arreganhados. Não havia varais. Do outro lado da janela, apenas o muro de cimento, alto como uma parede, a aridez do pátio coberto de lajes, sem plantas. E as grades, antes, para barrar previamente o salto que ainda não dera. (Do lado de lá, a moça sorriu mais com os olhos azuis atrás de óculos redondos do que com a boca pequena, lábios polpudos, bem desenhados. Como costumava sorrir. Esboçou no ar um movimento para ampará-la - vacilava tanto nos últimos tempos, desde que desaprendera a ficar em pé, ou desinteressara-se disso, concentrada na aprendizagem de outros equilíbrios mais delicados. Ela esquivou-se suave, mas firme, como a dizer que agora já não importava, qualquer ajuda e’ inútil depois da travessia decidida: te estreito, te estreito e me precipito.*) Quis repetir isso ao telefone, para avisar à voz, mansa chantagem. Só conseguiu dizer: <br />
- Obrigado. <br />
Por trás da palma da mão contra o peito, por trás do pano da camisa, entre massas de carne entremeadas de músculos, nervos, gorduras, veias, ossos, o coração batia disparado. Você vai me abandonar - repetiu sem som, a boca movendo-se muito perto do fone - e eu nada posso fazer para impedir. Você é meu único laço, cordão umbilical, ponte entre o aqui de dentro e o lá de fora. Te vejo perdendo-se todos os dias entre essas coisas vivas onde não estou. Tenho medo de, dia após dia, cada vez mais não estar no que você vê. E tanto tempo terá passado, depois, que tudo se tornará cotidiano e a minha ausência não terá nenhuma importância. Serei apenas memória, alívio, enquanto agora sou uma planta carnívora exigindo a cada dia uma gota de sangue para manter-se viva. Você rasga devagar seu pulso com as unhas para que eu possa beber. Mas um dia será demasiado esforço, excessiva dor, e você esquecerá como se esquece um compromisso sem muita importância. Uma fruta mordida apodrecendo em silêncio no prato. </div><div style="text-align: justify;">(*) Ana Cristina César: inéditos e dispersos</div><div style="text-align: justify;">- Hein? <br />
- Nada. Não disse nada. <br />
- Tive a impressão de ter ouvido você falar. Muito baixo. Pensei que fosse com eles. <br />
- Quem? <br />
- Você sabe. Como é que você os chama? <br />
- Ana, Carlos. Eles não estão aqui, agora. <br />
- Eles têm voltado? <br />
- Todas as noites. <br />
(Paciente, determinado, o rapaz esperava a festa acabar. Tão determinado que, se alguém o olhasse mais atento, certamente perceberia alguma forma mais precisa nos movimentos, agora sem hesitação nenhuma, talvez na voz mais dura, um brilho estranho nos olhos. As contas, afinal, estavam feitas: não restara saldo. Um por um, esperava que todos se fossem. Limparia cinzeiros, depois, na casa vazia, recolheria migalhas da festa pelos cantos da sala para jogá-las no lixo. Talvez espiasse a noite de verão, parado à porta, sozinho com sua escolha, e respirasse muito fundo, ainda uma vez, deixando o cheiro denso do mar entontecer um pouco mais a cabeça cansada de tantos cansaços de tantos anos. Tão miúdos que nem percebera o peso. Era pequenino e manso de movimento e fala, como se temesse de alguma forma perturbar o campo vibratório das outras pessoas. Olharia as coisas uma última vez, coisas comuns: sofá, cadeira, mesa. Talvez não: estaria completamente cego no momento de tirar uma por uma as peças de roupa. Teria os olhos voltados para o outro lado, como quem sobe uma colina e, quase no topo, já consegue divisar algumas formas, uma moita, cumes de formigueiros, umas roxuras de flores rasteiras espalhadas no caminho de descida. Lento, lento. A lenta nudez, depois os dedos preparando o nó. Então o gesto de enfiá-lo pela cabeça, feito uma coroa - a coroa de loros que não teve ou desistiu de esperar - um tanto ridícula, excessivamente larga, que a corda descesse arranhando leve a ponta do nariz, o queixo. Ajustaria delicadamente o laço no pescoço, preparando a gravata para a festa -seria uma festa? - do outro lado. Não diria nada, embora na noite, às vezes, quando vinha, revelasse certas palavras fragmentadas, incompletas, no código baço dos que se foram, que se perdiam para sempre no mundo dos sonhos esquecidos, enquanto ele tentava inutilmente recompô-las na manhã seguinte. Mas não, não diria nada. Não se diz mais uma palavra quando, de muitas formas nunca claras o suficiente para que os outros entendam, tudo já foi dito. Então um impulso com o corpo, como quem vai voar, suspenso na forca. Depois, os dias quentes demais, o vento do mar espalhando o cheiro de podridão, misturado ao próprio cheiro, uma forte maresia soprava seu fedor de morte e fuga entre as curvas das areias nas dunas da praia remota.) <br />
- Hein? <br />
- As árvores, eu disse. Os cinamomos, você sabe. Já começaram a soltar aquele cheiro adocicado? <br />
- Não reparei. <br />
- Repara, então. Repara por mim. Depois me conta. <br />
- Mas não se conta um cheiro. <br />
- Explica, então. Você explica? <br />
- Explico, conto. Mas livre-se deles. <br />
- Livrar-se, você me ensina o jeito? <br />
(Chegava com a noite, ela também, a moça loura e magra, cabelos finos como os de uma inglesa. A medida que o escuro se insinuava para dentro do quarto, o branco da roupa dela tornava-se mais nítido, quase fosforescente, sempre no canto esquerdo, rondando janelas. Nunca vinham juntos. E não sabia se o espantava mais a lentidão dele ou a pressa dela. Em qualquer dos dois, o ato já estava pronto. Executá-lo não seria mais do que colocar em prática marcações longamente ensaiadas na cabeça. Com ela, havia três momentos bem destacados, mas tão rápidos que poderiam parecer um só, se a cada noite ela não os repetisse, câmara lenta, um por um. Primeiro, a porta fechada. Em seguida, a gilete no pulso. Quando o sangue começava a escorrer, e percebia-se um fio longo esticando-se vermelho pela roupa branca - parecia uma menina assim, de relance, assustada com a primeira menstruação. Entre esse momento e o outro, havia aquele, muito pequeno, em que ela parava à janela, olhando fixo. E como nele, o outro que também vinha, não saberia nunca se contemplava as coisas pela última vez - os automóveis, o cimento das ruas com suas cintilações de calor, algumas poças de luz, miragens, as cabeças escuras das pessoas sobre roupas coloridas e pares de pernas embaixo delas, indo e vindo de lugares aos quais ela nunca mais iria - ou se voltava os olhos para o lado de lá de todas as coisas, onde talvez pudesse distinguir vagamente, difuso como um rosto atrás de vidraças em dia de chuva, um par de olhos conhecidos, algum sorriso. Não: nenhum sorriso. Lábios e olhos duros. O ato de colocar- se em pé no parapeito, um segundo antes sempre pareciam à beira do vôo. Te estreito - ela repetia -, te estreito e me precipito. Em seguida, o salto, a queda, barulho de ossos partidos, os gritos, a sirene e a correria das gentes pelas calçadas sujas de Copacabana.) Pediu: <br />
- Venha me ver qualquer dia. <br />
- Você sabe que é proibido. - De água, de sol, a voz parecia agora nublada por qualquer sombra como um cansaço. Pensou primeiro, e depois, mais duramente: uma impaciência, uma distância, uma fadiga de repetir sempre as mesmas coisas, às cinco e quinze da tarde. <br />
Prometeu: <br />
- Eu vou ficar bem. <br />
- Claro que vai. <br />
- Um dia eu volto. <br />
- Claro que volta. Venha ver os cinamomos. <br />
- Eu não tenho culpa. <br />
- Claro que não. <br />
- Eles estão ficando cada vez mais vagos. Como uma dessas neblinas na serra. Numa manhã de inverno, quando o sol começa a furar as nuvens. - Tinha começado a mentir, tão intensamente que talvez falasse a verdade. Quase conseguia vê-los, os corpos mais e mais esgarçados enquanto falava. - Estão ficando ralos, meio transparentes. As vozes cada vez mais fracas. Quase nem consigo entender o que dizem. Mal completam os movimentos, são como desenhos a tinta num papel molhado. Se apagando, mas tão lentos: não sei até quando resisto. <br />
- Até quando for preciso. Estarei aqui. <br />
- Talvez dependa de mim. <br />
- Tudo tem seu tempo. Há o tempo deles, também. Eu sou a ponte para você, você é a ponte para eles. <br />
- Tenho medo que você falhe. Porque, se você falhar, eu falho também. E eu não posso. <br />
- Eu não vou falhar. Não porque não posso, mas porque não quero. <br />
- É como um pacto? <br />
- Se você quiser. <br />
Precisava acreditar na outra voz: era só o que tinha. Mas não conseguia impedir-se de ver alguém lá de fora puxando-a apressado pelo braço - bares, cinemas, encontros, esquinas - para mergulharem juntos naquela vertigem de caras vivas, palavras dispersas, talvez meio vadias, mas sempre envolventes, sorrateiras, a afastá-lo - a ele, a ela, à outra voz - cada vez mais de si mesmo. Um dia seria para sempre: e eu só tenho esse centro talvez escuro de mim, onde me agarro. Nesse outro dia, não haveria nada ao redor, exceto as grades. Quis alertá-lo para a necessidade de resistirem juntos nessa ponte frágil. Até um dia qualquer de sol, se você me esperar lá fora. <br />
De repente, agora, como antes, pressentindo o toque do telefone, alguma coisa começava a contorcer-se por dentro dele, no aviso da partida. Quis retê-la ainda, à outra voz, com alguma história. Os chineses, lembrou, os chineses mentiam aos gritos sobre a qualidade da colheita, para enganar e afugentar os deuses maus. Mas nunca achava que tivesse o direito de atraí-la, à outra voz, para o escuro onde estava. Percebeu mais claro que se afastava quando tentou recompor o rosto a quem pertencia a outra voz, sem conseguir. Debatia-se no lago, afundando cada vez que tentava voltar à tona. O rosto aproximava-se e afastava-se, cortado pelo movimento sinuoso dos peixes que faziam seus contornos oscilarem junto com as ondas, por um momento feito de água também. Guiava-se pela voz, um cego. Quis gritar por socorro, mas a água entrava-lhe boca adentro. Engolia as palavras proibidas, com gosto de algas secas. <br />
Antes que desligasse, a outra voz teve tempo de dizer: <br />
- Amanhã eu volto a ligar. <br />
Passou os dedos devagar sobre o telefone mudo. Estava frio. Já não havia sonoridades vivas fugindo pelos furinhos do fone para aquecer e colorir o quarto. Todo o resto ia-se embora com a outra voz, o mundo inteiro que habitava dentro dele. Esse era o momento mais difícil: entre o abandono da voz e a espera deles. Ana, Carlos. Era breve. Anoitecia cedo naqueles dias de começo de inverno. Podia ver o escuro espalhando-se lento na parede oposta à janela aberta, tão lenta- mente que talvez pudesse, as mãos nas grades, espantá-lo com um grito. <br />
Mas sabia que o escuro, ao contrário dos deuses chineses, não tem medo de gritos. Nem se deixa enganar. <br />
Ao invés de deixar as costas escorregarem pela parede, igual a todos os dias, até sentar-se ao chão, os braços em torno dos joelhos, para depois balançar-se suavemente, muitas vezes, preferiu caminhar até a janela. Um sino tocou longe, quase às seis da tarde. Cerrou os dentes, voltou-se para dentro, disposto a enfrentá-los quando viessem novamente, trazidos pela noite. Fechou os olhos. Enquanto esperava, contra o fundo infinito das pálpebras, com muito esforço, entre formas e fantasmas, conseguiu divisar, cada vez mais nítido, qualquer coisa como os dedos abertos de uma mão estendida em direção a ele. <br />
Não me abandone, pediu para dentro, para o fundo, para longe, para cima, para fora, para todas as direções. E curvou a cabeça como quem reza. Para que a mão pudesse tocá-lo, inaugurando finalmente a luz. Mesmo dentro do escuro, alguma espécie de luz. Talvez como aquela que habitava a outra voz, tão viva e cada vez mais remota. Todos os dias, por volta das cinco e quinze da tarde. Porque queria - e queria porque queria - a luz da outra voz, não a escuridão deles: escolheu. </div>Unknownnoreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-16282308.post-39788362767542252832011-09-27T11:06:00.000-03:002011-09-27T11:06:03.728-03:00SAUDADES DE AUDREY HEPBURN<div style="text-align: justify;">(NOVA HISTÓRIA EMBAÇADA)</div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;">“Como Billie Holiday <br />
I’m alone in the desolate dark” </div><div style="text-align: justify;">(Ricardo Redisch: Quem Se Debate É Afo-gado) </div><div style="text-align: justify;"><br />
PERDEU-SE dele logo após encontrá-lo, numa véspera de São João. Não sabia que ia perdê-lo, não sabia sequer que iria encontrá-lo. Não sabia também da véspera - junho, São João. Mas foi assim que aconteceu. Não estava um pouco bêbado, nem tinha fumado ou cheirado absolutamente nada - o que talvez justificasse, tantas negações, encontrá-lo assim, de repente e também perdido entre a Pantera Loura Disposta a Tudo Por um Status Mais Elevado, a Lésbica Publicamente Assumida e o Patriarca Meio Sórdido Fugido Das Páginas De Satyricon. Perdidos, perderam-se, perdeu-se - e foi pelos viadutos que se perdeu. Um livro nas mãos, debatendo-se para não ser afogado, indeciso entre voltar e seguir em frente, porque havia fogueiras pela noite, embora ainda não soubesse delas. Consultando efemérides mais tarde, descobriria que a Lua, às vésperas do minguante, transitava por Peixes - o que explicaria, mas só em parte, nubladas espiritualidades, presságios ilusórios, embaçamentos. Ilusão, Netuno. </div><div style="text-align: justify;">Era quarta-feira, usava uma guia de Xangô, vermelha e branca. A mesma que tempos depois arrebentaria num estalo inesperado, ao tirar a última peça de roupa para deitar-se ao lado de um outro qualquer. Sem medo da morte, porque esta quase história pertence àquele tempo em que amor não matava. Sabia do clima de bolero desse Um Outro Qualquer, mas foi assim que foi. Nu, apoiado no cotovelo, o Outro Qualquer esperou sem entender, citando Marx e falando em baixo- espiritismo, até que ele juntasse uma a uma as contas vermelhas e brancas espalhadas pelo chão para colocá-las sobre a mesa, repetindo um dia eu jogo no mar, na água corrente da chuva. Estavam no meio do campo, a lenha da fogueira crepitando como num romance inglês já tinha queimado toda e precisavam esquentar os corpos com línguas e dedos para fingir que matavam a sede, o frio e o engano. <br />
O indicador de unha suja de tinta de máquina de escrever percorre os trinta dias do mês de junho no Almanaque do Pensamento, procurando assim: 20, Sábado - Ciríaco, Florentina; 21, Domingo - Luiz Gonzaga, Márcia; 22, Segunda - Tomás, Joana; 23, Terça - José, Agripina; 24, Quarta - São João Batista, Faustino. Pelo viaduto, lembrou do assalto, um ano atrás, navalha sevilhana - clac, a grana, cara. Talvez por isso ele agora se interrompe para ir até o banheiro, onde olha a cara no espelho sem ver precisamente nada, fora os dois vincos cada vez mais fundos ao lado da boca, marcas de Ogum, então lava devagar as mãos com sabonete alma-de-flores, passa água de alfazema, respira, esperando que o telefone toque para salvá-lo pelo menos momentaneamente desse momento que não decifra nem adjetiva. O telefone não toca e, sem garantias, ele continua a lembrar. Tão perigoso, mesmo passado. <br />
Um halo luminoso, mentiria se dissesse agora qualquer coisa do tipo, a tentação é forte: havia como um halo luminoso sobre o viaduto onde, perdido, caminhava sem poder escolher o lugar para onde ia. Porque os viadutos, você sabe, conduzem a um só lugar, independente de você querer ou não ir para lá. Faz algum tempo, não lembrava de halos nem de luzes. Lembra realmente só que voltou atrás, em busca de um café, um bar, um cigarro, talvez um conhaque para ajudar a compreender o que acontecia. Mas nada acontecia. Só restava tomar um táxi, dar o endereço, um livro nas mãos, comentar o tempo, a crise, espiar putas, michês, travestis pelas esquinas, vontade bandida que mal se esboça, depois a avenida reta, com luminoso de coca-cola, melita e galaxy, dobrar à esquerda, dobrar à direita, always in front of: reclamar, pagar, descer. <br />
(Anotaria mais tarde, na mesma noite, antes de dormir, talvez enganado, e totalmente óbvio: a vida é dinâmica.) <br />
Foi então que viu a fogueira de véspera de São João. Ao lado da fogueira, dois rapazes acendiam um enorme balão vermelho e branco. De Xangô, reconheceu. No carrinho de pipocas, o homem do realejo tocava uma musiquinha de caixinha de música. Mas não havia papagaio nem macaco com caneco na mão nem periquito tirando sortes - encontrarás-teu-amor-numa-tarde-de-domingo-do-signo-de-Libra. Deve ter piscado, porque além de dinâmica, folclórica e levemente frenética, naquele momento a vida lhe pareceu também excessivamente colorida, com tanta gente se mexendo e dizendo coisas como que bom que você pintou o astral tá ótimo bebe alguma coisa, cara. Beijou a Psicanalista Conflituada Com o elitismo da própria profissão, mas só apertou a mão, sem mais envolvimentos, do estudante de Pós-Graduação indeciso em assumir sua evidente homossexualidade, trocou duas ou três palavras, bastante amáveis, com o escritor que conseguiu mais sucesso na Itália que no Brasil. Depois ficou por ali, aceitando tudo que passasse nas bandejas opíparas - pinhões, quentões, curaus, pamonhas. Tudo de junino que você puder imaginar, haja. <br />
Agora ele esvazia lento o cinzeiro no cestinho indígena, enquanto observa a expressão da mulher frente ao cálice de absinto na reprodução ordinária de Degas, e pensa que pensa ou deveria pensar ou é como se pensasse qualquer coisa assim: porque é desse jeito mesmo que as pessoas se comportam quando não decifram nos olhos do outro nenhuma promessa ou convite. Melhor: como nada no olho ou no gesto ou no campo vibratório dele denunciasse/revelasse que estava à procura de alguém para dividir a cama nas próximas horas da noite quase fria, portanto propícia a esses lances, era automaticamente deixado em paz. Pior: de lado. Deixado de lado, junto à fogueira, um livro que leria depois, para encontrar versos como uma conversa que esquenta até os ossos sem dizer precisamente nada,* não agora, enquanto ele era pouco mais que uma câmera registrando silenciosa, impessoal, todos aqueles urbanos excessos juninos.<br />
<br />
FLASH-BACK:</div><div style="text-align: justify;"> Escreviam nomes em pedacinhos de papel umedecido, que colavam nas bordas da bacia de ágata. Então um barquinho de papel acabava por aportar lentamente num dos nomes: Naira, Roselene, Juçara, Ilone, Dulcinha, Valéria, Marília, Vera. Naquele tempo, já sabia? Paulo Antonio tinha uma sobrancelha fora de linha, invadindo a testa em direção ao cabelo. Nelson falava chiado, sardas, bunda arrebitada. Pingaria vinte e um pingos de vela acesa na água da bacia, até formar-se uma letra, a inicial: M, de Marcos ou Maria; C, de Clara ou Celso; R, de Ricardo ou Regina. Pularia a fogueira num pé só, pisasse nas brasas mijaria na cama. Meia- noite em ponto, debruçaria n poço, uma vela acesa na mão, para ver o futuro. Caixão de defunto: morte certa. Vestido de noiva: casamento breve. Uma rosa: amor novinho. À meia- noite, olhou. Não viu nada. Só o fundo escuro do poço com reflexos vadios, estrelas, fogueiras, o pulo de alguns sapos, tchuáááááá, círculos concêntricos, cheiro de limo. Era assim, o futuro. Depois estradas, bandeiras, prisões, exílios, porradas, viadutos, portas fechadas, revelações, divãs, pântanos, arco-íris. Tantos, muitas - e ninguém. A arraia pariu sete filhinhos com ferrõezinhos aguçados prontos para ferrar na hora que o anzol a arrancou do fundo do rio Uruguai para </div><div style="text-align: justify;">(*) Ricardo Redisch: quem se ddebate é afogado. </div><div style="text-align: justify;">jogá-la no fundo da chalana. Manchar os panos em degradée de laranja, então prendê-lo nas oito madeirinhas claras, com pregos miúdos e linha amarela. Do Flipperama ao lado do Jeca à esquina da Praça da República: mil possibilidades, todas furtivas. Agora, talvez mortais. Jogarei seis vezes as moedas do I Ching para encontrar Fogo sobre Fogo, o Esplendor. Tudo confirmará. Mas nada acontecerá. Ah: conheço essas rimas em á. E depois delas, passaram-se anos. Aqueles, em que se perderam, sem terem chegado a se encontrar.</div><div style="text-align: justify;">Apertou o livro entre dedos subitamente frios, depois colocou-o no colo para ajoelhar-se e estender as mãos em direção ao fogo. Eu parado na porta às quatro da manhã. Você indo embora. Eu me perdendo então desamparado entre cinzeiros cheios e garrafas vazias. Você indo embora. Eu indeciso entre beber um pouco mais ou procurar uma beata em plena devastação ou lavar copos bater sofás guardar discos mastigar algum verso adoçando o inevitável amargo despertar para depois deitar partir morrer dormir sonhar quem sabe. Você indo embora. Acordar na manhã seguinte com gosto de corrimão de escada na boca: mais frustração que ressaca, desgosto generalizado que aspirina alguma cura. Tocaria, o telefone? Você indo embora, fotograma repetido. Na montagem, intercalar. Você indo embora você indo embora. <br />
Crepitava, a lenha cre-pi-ta-va como num romance inglês. Um halo luminoso. Na fogueira, quem sabe dentro dela, memórias manchadas de adrenalina, que tudo vinha num excesso de cafés e agostos. Já que não tentaria o suicídio pela quinta vez - nem sequer con-se-cu-ti-va, enumerou -, já que fora dispensado após tantos anos de análise, já que a crise permanente parecia ser a forma mais estável de sobreviver, já que ninguém lembrara de assassiná-lo nem pedi-lo em casamento, já que podia olhar em volta e em menos de um minuto escolher alguém para conversar dizendo coisas como você anda sumido(a), e aí, conta mais, diga lá, toma outra - em nome disso, prosseguia, embora sem saco. <br />
Ai São João, Xangô menino/ na fogueira de São João/quero ser sempre o menino, Xangô/ na fogueira e na razão* - cantarolou em silêncio. E o balão foi subindo, sem garoa caindo, vermelho e branco, enquanto todos aplaudiam com caras de loucos fatigados da própria loucura iluminada pelas chamas da fogueira. Aplaudiu também, axé! Foi então que a moça ao lado falou que precisava ir embora, dois filmes na tevê com Audrey Hepburn. (Flash-back: Nara Claudina dizia Puber, Carlos Renato corrigia: Ré-p-bãrnnn. Numa tarde tão verde de Aquário, quantos anos antes de enforcar-se no banheiro? Certamente muitos, pois se naquele tempo, naquela tarde, até os vestidos, além de plissados, tinham bolinhas e alcinhas.) Maxilares agudos, Audrey, olhos enormes, constantemente arregalados, uma gazela de pescoço longo, pés muito finos e compridos, delicadamente calçados em sapatinhos Chanel, e tailleur, sempre tailleur bege-clarinho, verde- água, mãos de dedos sem fim, unhas sem pintura. Anastásia, a princesa esquecida. Nas matinês do cinema Imperial. <br />
Belga, afirmou, tenho certeza: era belga. Bélgica, capital Bruxelas, onde fomos presos - e tão louco agora qualquer coisa lembrar outra coisa, cada vez mais, enquanto o tempo avança - por nossos cabelos compridos, nossas roupas coloridas, uma cidade de ternos cinzentos e sapatos pretos bico fino de verniz, sem lugar para a nossa loucura. Tudo faz muito tempo: agora você me manda cartões do interior da Noruega enquanto enfrento cotidianos demônios tropicais com sal grosso, guias, axés, varinhas de incenso, alecrim, arruda, manjericão, rosas de Oxum: ora-yê-yê-ô! Estou certo de que não foi lá, mas na Holanda, que atravessamos a pé entre tulipas tão reluzentes que pareciam sintéticas. E - céus! - talvez o fossem. Havia uma ponte, depois um trem atrasado, também um sol de agosto sobre nossas cabeças. Não haveria espaço para Audrey lá, entre tantas torres, tantas praças, tantas pontes, eu vi. Mas se te torturas tanto a cada manhã, desligando sem sentir o despertador para que não te jogue brusca</div><div style="text-align: justify;"> (*) Caetano Veloso e Gilberto Gil: São João, Xangô menino</div><div style="text-align: justify;">mente no centro de um mais um dia a ser preenchido unicamente pelo que conseguires inventar, por que não participar então de um curso qualquer de inverno? Algo como “Mandalas Alquímicos e a Arquitetura das Catedrais Góticas”, “Prefixos Sânscritos na Obra de Guimarães Rosa”, ou ainda “Premonições Pós-Modernas no Cinema de J. B. Tanko”. Ah descer a rua Augusta a cento e vinte por hora, altas botas, argola de calipso no convés da caravela, jaqueta de couro negro, madrugadas, temporais nas descargas abertas das motocicletas. Ninguém ouvirá o ruído seco de teus saltos batendo no cimento das calçadas sujas. E nem sequer é Gervaise, a Flor do Lodo, inculta e bela... <br />
Quando a moça levantou para ir embora, ele finalmente tomou coragem, bebeu outro gole de quentão e perguntou: <br />
- Você sabe o que realmente aconteceu quando a rainha da Transilvânia tomou de leve o queixo dela na mão cheia de anéis e disse: “Charming, very charming”? <br />
Modesta, a moça baixou os olhos. <br />
- Foi isso mesmo o que Audrey fez - esclareceu. <br />
E foi embora antes dela: no sex, baby. Caído na esquina, o balão incendiava lento. Amanhã, dois meses atrás ou doze, dependendo do ponto de vista, conferiu: exatamente vinte e cinco, quinta-feira, dia de Oxóssi, Guilherme e Lucia. <br />
Mas só muito mais tarde, como um estranho flash-back premonitório, no meio duma noite de possessões incompreensíveis, procurando sem achar uma peça de Charlie Parker pela casa repleta de feitiços ineficientes, recomporia passo a passo aquela véspera de São João em que tinha sido permitido tê-lo inteiramente entre um blues amargo e um poema de vanguarda. Ou um doce blues iluminado e um soneto antigo. De qualquer forma, poderia tê-lo amado muito. E amar muito, quando é permitido, deveria modificar uma vida - reconheceu, compenetrado. Como uma ideologia, como uma geografia: palmilhar cada vez mais fundo todos os milímetros de outro corpo, e no território conquistado hastear uma bandeira. Como quando, olhando para baixo, a deusa se compadece e verte uma fugidia gota do néctar de sua ânfora sobre nossas cabeças. Mesmo que depois venha o tempo do sai, não do mel.<br />
Não havia ânforas, não havia néctar. Desilusão ainda mais cruel, embora provisória, no tempo de sal: não havia deusas. Mas depois de cravar fundo na própria superfície escura a ponta da agulha de diamantes, para libertar o Longo Solo Gemido de Sax, enfim, sempre podia ir até a cozinha e, distraído que não choraria sequer uma lágrima pela noite – e que bonita foi aquela noite - em que se encontraram e se perderam para sempre, repetir, e ninguém compreenderia, eu avisei, repetir num suspiro molhado de lembranças em que ninguém dá jeito: ah quantas, mas quantas, muitas, tantas Para saudades daquela moça magra chamada Audrey Hepburn.</div>Unknownnoreply@blogger.com4tag:blogger.com,1999:blog-16282308.post-55806472482359557592008-08-26T15:12:00.000-03:002008-08-26T15:16:50.814-03:00MARINHEIRO<div align="justify"><em><span style="color:#cc0000;">Para<br />Rubens Rodrigues Tôrres Filho e o Marinheiro real, onde quer que navegue<br /><br />Vede, vede, é dia já... Vede o dia... Fazei tudo por reparardes só no dia, no dia real, ali fora... Vede-o, vede-o... Ele consola... Não penseis, não olheis para o que pensais... Vede-o a vir o dia... Ele brilha como ouro, numa terra de prata. As leves nuvens arredondam-se à medida que se cobrem... Se nada existisse, minhas irmãs?... Se tudo fosse, de qualquer modo, absolutamente coisa nenhuma?<br />Fernando Pessoa: O marinheiro</span></em></div><div align="justify"><em></em></div><div align="justify"><em></em></div><div align="justify">1<br />Me veio numa tarde de sábado. Não de agosto, como os antigos, embora comigo mesmo costumasse repetir que os agostos haviam invadido setembro, avançado sobre outubro até descobrir o novembro que ia em meio. Me veio numa tarde de sábado, em novembro. Em comum com os agostos de antes, a chuva. E bateu à porta, essa mesma que pintei inteira de amarelo para dar uma ilusão de luz às sombras desta casa. Tenho que ser preciso, tenho que refazer, e para isso preciso contar o que fazia antes.<br />Eu pintava os vidros das janelas com arabescos coloridos das tintas que saio às vezes para comprar. A casa é um pequeno sobrado com poucas vidraças, numa ruazinha toda feita de sobrados pequenos apertados entre outros sobrados pequenos, portanto, não há muitas vidraças, já que os dois lados estão inteiramente comprimidos entre duas outras casas. As vidraças da frente, na parte de baixo apenas uma janela e uma porta, dessas com um retângulo vertical de vidro, para que se possa ver o rosto de quem chega, antes de abri-la, estavam completamente pintadas. São formas quase sempre abstratas, uns círculos, uns triângulos, só de vez em quando intercaladas por outras mais precisas, um olho aberto, um peixe, uma estrela, em tons principalmente de roxo e amarelo.<br />Gosto de permanecer ali na sala em raros dias iluminados, sobretudo ao cair da tarde, quando os últimos raios de sol varam os vidros para espalhar cores sobre os objetos. São muitos objetos, tantos que freqüentemente penso que daqui a algum tempo será difícil movimentar-me aqui dentro, no espaço que se reduz, quase todos feitos por mim mesmo. Como já disse, pouco saio, uma certa renda sobre alguns imóveis deixados por meus pais me permite passar aqui dias inteiros, fazendo coisas com as mãos. Descobri faz algum tempo que as mãos se opõem à cabeça, e quando você movimenta aquelas, esta pode parar. Não sei se é uma grande descoberta, talvez não, mas de qualquer forma gosto quando a cabeça pára o maior tempo possível, caso contrário enche-se de temores, suspeitas, desejos, memórias e todas essas inutilidades que as cabeças guardam para deixar vir à tona quando as mãos estão desocupadas. Ocupo-as então, fazendo coisas que depois disponho pelos cantos.<br />Há longas tiras de pano colorido ou papel crepom penduradas do teto, pelas portas pendem cortinas, longos fios de contas ou sementes enfiadas em cordões que balançam emitindo sons nas poucas vezes em que abro as janelas para que entre o vento, restos de manequins, braços e pernas e troncos e cabeças que costumo recolher nas latas de lixo quando saio a caminhar, nas horas em que não há mais ninguém nas ruas, e cacos de louça, garrafas cheias de água de muitas cores, pedaços de caixotes que também pinto para que não pareçam demasiado crus, e ainda recortes de figuras ou velhas fotografias que vou colando pelas paredes, montes de palha, fitas, flores secas, sobretudo rosas, sobretudo vermelhas, cujas pétalas depois de mortas ganham uma tonalidade de sangue coagulado. Isso me pacifica.<br />Naquela tarde, porque chovia e não havia luz suficiente para que eu pudesse permanecer na sala, vendo as cores dos vidros desdobradas em outras sobre os objetos, tinha caminhado pela casa toda procurando algo para fazer. Cheguei a pensar em pintar as vidraças na porta do andar inferior, a que dá para o pátio interno, mas só depois de preparadas as tintas, as águas, os pincéis, percebi que não gostaria de permanecer ali sentado, vendo as poucas plantas incharem com a água da chuva, o caminho de pedras que leva até o tanque cobrindo-se de folhas caídas.<br />Foi então que subi para o quarto da frente, no andar superior, decidido a pintar os vidros que dão para a rua. Ë uma dessas janelas em forma de guilhotina, dividida em duas partes, cada uma delas com dois vidros retangulares, separados por uma tira estreita de madeira. Fiquei indeciso entre qual das quatro partes pintar primeiro, e acho que começava a escolher o segundo vidro, a contar de baixo para cima, pois é justamente o que dá para a casa em frente, e mais de uma vez surpreendi os vizinhos olhando aqui para dentro, as luzes apagadas, esperando descobrir qualquer coisa na minha vida que eles não compreendem.<br />Não sei quem são os vizinhos. Vejo alguns rapazes, algumas moças, mas tantos e sempre tão diferentes — na verdade não sei se diferentes ou os mesmos, apenas não presto muita atenção neles cada vez que os vejo, porque não me interessam. Como supunha que eu também não interessaria a eles. As cidades grandes como esta têm dessas coisas — você não precisa simular interesse algum pelas pessoas em volta, elas não exigem mais que um bom-dia, boa-tarde, boa-noite, às vezes nem isso, silêncio nas horas em que se costuma fazer silêncio, ruído nas horas em que usualmente se faz ruído. Não faço ruídos nem mesmo nessas horas: eliminei máquinas, televisões, rádios, embora goste de música. Mas quando quero ouvi-la, canto para mim mesmo quase sem voz um som irregular, cheio de altos e baixos, que vem do fundo da garganta, sem palavras. Talvez seja essa ausência de ruídos que os interessa, os vizinhos, ou quem sabe os intriga a muralha de vidros coloridos interposta entre o de-dentro de minha casa e o de-fora dela, não sei. Rindo um pouco comigo mesmo, porque a pintura do segundo vidro na janela do quarto dificultaria ainda mais a observação da minha vida, eu me preparava para começar o trabalho quando alguma coisa no segundo quarto me chamou.<br />Não sei mais há quanto tempo mantenho vazio o segundo quarto. Desde que se foi, não o que chegou na tarde de sábado, mas um outro que viveu ali faz algum tempo. Também não sei quando. Para isso teria que saber também a minha própria idade, mas não posso sabê-la desde que rasguei todos os documentos e começaram esses estranhos buracos na memória, ocultando lembranças importantes para deixar emergir outras ao acaso, como cenas isoladas, sem importância alguma, mas de extraordinária nitidez. Uma delas, que me enche de pânico cada vez que volta, sem que eu tenha controle algum sobre o seu aparecer ou desaparecer, é a imagem de uma mão humana segurando fortemente o ponto central entre duas asas brancas, tão brancas e grandes que imagino pertencerem a um cisne, uma garça ou outra dessas aves de pernas compridas que vivem nos banhados. As grandes asas brancas sem mancha alguma debatem-se com fúria e impotência enquanto essa mão as prende firmemente. Não chego a ver inteiramente os dedos, mergulhados nas penas. Vejo somente as falanges, depois as costas de uma mão grande, morena, forte, cheia de veias azuis estufadas de sangue pelo esforço. Talvez seja uma mão masculina, pois as bordas externas estão cobertas por uma vaga penugem escura, mas sempre penso que poderia também pertencer a uma dessas mulheres rudes do campo, não sei. Quase consigo ouvir os gritos da ave. Quando a lembrança é mais demorada, algumas penas voam em todas as direções. Tão nítidas que, se eu abrisse os olhos, imagino que poderia vê-las, as penas caindo pelos cantos, sobre meu corpo, sobre os objetos. Mas nunca abro.<br />De alguma forma essa cena costumava retornar com mais freqüência quando me olhava ao espelho, e foi talvez um pouco por isso que resolvi eliminá-los de casa. Sem querer vejo às vezes minha própria imagem refletida em alguma das vidraças ou no fundo de um copo, mas desvio logo os olhos. Mesmo assim posso perceber uma sombra difusa, parece cinza e longa. De certa forma, então, o que poderia dizer de mais exato se quisesse descrever a mim mesmo, seria algo assim: sou cinza e longo. Ou: é cinza e longo o que de mim obliquamente se reflete em certos vidros.<br />Mas falava no segundo quarto. Tentando agora recompor tudo que se passou antes da chegada dele naquele sábado de novembro, me ocorre que talvez tenha sido um rumor leve como o debater de asas que me levou até lá. Abandonei as tintas e caminhei em direção à porta. Desde que se foi, o outro, nunca mais consegui ultrapassar esse limite. Da porta que não ultrapasso posso ver as rachaduras nas quatro paredes, o piso riscado, a janela de vidraças sem pintura voltada para o pátio. Quase sempre vou me curvando lentamente para o chão enquanto tento virar do avesso um desses buracos na memória. E procuro, então, em vez do escuro, trazer de volta certa claridade e dentro dela a face, o jeito, quem sabe mesmo a voz ou o cheiro que o outro teve quando ocupou o segundo quarto e de certa forma também um determinado espaço nisso que, talvez impreciso, costumo chamar de a minha vida. Nunca consigo. Quando toco depois no meu próprio rosto e, no limite dos dedos, percebo sulcos fundos ou bruscas protuberâncias na superfície da pele, pergunto se não teriam nascido ou pelo menos começado a afundar depois daquela partida. Parece-me agora, tanto tempo depois, que as partidas-dolorosas, as amargas- separações, as perdas-irreparáveis costumam lavrar assim o rosto dos que ficam. E do buraco negro da memória que ocupa agora o espaço anteriormente ocupado por essa pessoa — sim, era uma pessoa que não lembro —, em vez de faces, jeitos, vozes, nomes, cheiros, formas, chegam-me somente emoções con fusa ou palavras como estas — doloroso, amargo, irreparável.<br />Eu estava então ali parado na porta aberta do quarto vazio, cheio de rachaduras nas paredes, piso riscado, vidros nus, já a me curvar em direção ao assoalho para tentar lembrar quando de repente tive certeza de que esse outro me abandonara no que eu poderia chamar de: a metade de minha vida. Portanto a idade que tenho agora, ou que tinha naquele sábado, deveria ser exatamente o dobro a idade contada a partir daquela perda. E de alguma forma, por ser justamente naquele sábado de chuva, em novembro, na tarde, essa perda — ou partida, ou ausência, ou separação, ou como queiram chamá-la — atingia seu justo dobro. Alguma coisa tinha sido inteiramente paga, como um ciclo se fecha, um trânsito ou uma lunação acabam, dando origem a outra que será completa até o seu reinício. Eu poderia pensar que a partir de então conseguiria entrar naquele quarto, vedar as rachaduras das paredes, pintar meticulosamente os vidros, enchê-lo de trapos e papéis e palha e cascas e flores secas, como as outras peças da casa, acabando com o seu deserto. Me ocorre, essa é outra coisa que poderia dizer de mim mesmo, quisesse ser preciso — além de cinza e longo —, tenho um quarto vazio por dentro. Pensando nisso, poderia quem sabe me sentir mais inteiro, como se à medida que fosse me apropriando de cada peça da casa, uma por uma, como quem finca uma bandeira em território novo, me tornasse também dono de novos territórios de mim mesmo. Mas não sei se saberia o que fazer com essa inteireza, possivelmente não me sentiria mais feliz com isso. Então para quê? fui pensando ali parado, sem querer admitir que por trás desses pensamentos escorria um outro, uma cobra silenciosa entre juncos de beira de rio, em mais uma das imagens que a memória costuma devolver inesperada. Sobre a grama verde-claro, úmida, entre juncos na beira do rio, desliza uma cobra que quase não consigo ver, tão misturada está a cor de sua pele à cor da grama e dos juncos. Não vejo também sua cabeça, nem a cauda. Somente a metade escorregadia, lentíssima, amassando suave a grama, contornando viscosa as hastes esguias dos juncos.<br />Enquanto meu corpo se curvava em direção ao piso, temi que voltassem as asas, a cobra. Mas chovia tanto que o ruído dos pingos abafaria por completo não só aquele quieto rastejar como também o debater violento das asas brancas. No entanto, o que vinha à tona, mais sinuoso que o movimento da cobra, mais branco que as asas, era um pensamento tão disparatado que eu não tinha coragem de dar-lhe forma.<br />Eu não queria mais ter esperanças, essa coisa gentil. Isso que chamo de minha vida, ou o que restava dela, e não deveria ser muito porque o passeio dos dedos pelo rosto revela sulcos cada vez mais fundos, estava creio que deliberadamente reduzido àquele subir e descer escadas, mexer nas tintas, recortar papéis, pintar vidraças, enfiar contas, caminhar às vezes pelas ruas esvaziadas de gentes tarde da noite. Eu tinha escolhido assim, num remoto dia qualquer em que deixei de acreditar, não lembraria quando, e isso era para sempre tanto quanto pode ser para sempre o que por estar vivo tem um coração que bate mas, imprevisto e fatal, um dia deixará de bater. Por não querer mais depositar esperanças em nada que pudesse vir de fora, já que de dentro nada mais viria, estava certo, além dessas imagens assustadoras da memória, curvei-me até o chão, uma das mãos na cabeça, como se segurasse o ponto de encontro entre duas asas, a outra procurando o assoalho, como se mergulhasse numa touceira espessa de juncos, até encontrar a grama molhada de beira de rio, tocando a pele fria daquela cobra.<br />Foi principalmente para não gritar — acabo sempre fazendo coisas para não gritar, como contar esta história —, já que o grito faria ruído e o ruído abalaria os vizinhos, esses mesmos que entram e saem, e com isso, se soubessem de mim que sou cinza e longo, e possivelmente sabem, pois deve ser justamente essa a silhueta que vêem através das vidraças, que tenho um quarto vazio, isso não descobririam, desde que jamais entrarão em minha casa, saberiam também que dou gritos em horas inesperadas. Para que ninguém soubesse mais nada de mim, deixei que ganhasse forma e viesse lentamente à tona aquele pensamento. Que não era exatamente um pensamento, mas algo mais fundo, como uma anunciação, um pressentimento. Alguma coisa muito dentro de mim dizia algo informe, sem palavras, que poderia talvez ser expresso como — o outro voltará.<br />Paro um pouco, agora. Fiquei exausto tentando dizer sem conseguir. Não sei se me estendo demasiado assim, mas é desse jeito que tudo surge, com enorme esforço para brotar, e brotando turvo, emaranhado, confuso. Contar é desemaranhar aos poucos, como quem retira um feto de entre vísceras e placentas, lavando-o depois do sangue, das secreções, para que se torne preciso, definido, inconfundível como uma pequena pessoa. O que conto agora é uma pequena pessoa, tentando nascer.<br />Talvez num novo outro, o outro antigo voltará. Foi assim que me veio — cobra, ave — na tarde de novembro. Mas em vez dessas imagens ou de outras, que também vêm às vezes, o que chegou junto com as palavras claras como se ditadas por alguém visível, tangível, solto dentro de casa, foi um cheiro a princípio sem nome. Um cheiro grosso, nem bom nem mau, um cheiro vivo de coisa em constante movimento, um cheiro vivo de coisa grande viva cheia de miúdas infinidades de outras coisas também vivas dentro dela. Custei a reconhecê-lo, há muito tempo não o vejo, e é mais difícil talvez identificar um cheiro ou um gosto de algo distante do que uma imagem. Não havia imagem. Era como o vento. Ardia na pele, feito tivesse sal. Tinha sal, esse vento que não era vento.<br />Era um cheiro de mar, reconheci por fim.<br />Talvez num novo outro, o outro antigo voltará. Junto com as palavras claras vinha um cheiro vivo de mar. Parado ali no chão, eu sentia que dentro de mim alguma coisa nova estava nascendo. Ou pressagiava o que viria também de fora e seria completo, pois são completas as coisas quando acontecem depois de anunciadas por dentro, criando um estado capaz de receber o que virá de fora. Como um telegrama, um telefonema, um aviso qualquer previamente anunciando a chegada, para que se possa arrumar a casa, tirar a poeira dos cantos, preparar a cama, trocar lençóis, limpar pratos, poltronas, recebendo o hóspede ao mesmo tempo desejado e inevitável.<br />Começava a anoitecer quando levantei do chão e voltei ao meu quarto. Em cima da cama estavam as tintas com que começaria a pintar os vidros. O cheiro de mar era tão intenso que pensei em abrir a janela para que o ar circulasse melhor, afastando-o dali. Com aquele cheiro suspenso, a casa parecia uma ilha, um navio seminaufragado, um farol. Foi quando levei as mãos à parte de baixo da guilhotina para erguê-la, que eu o vi dobrando a esquina para aproximar-se da casa. Continuava chovendo sem parar, a luz do crepúsculo por trás das gotas de chuva tornava ainda mais vagos os contornos dos objetos. Mesmo assim tive certeza.<br />As mãos nos bolsos, vestido de branco, o marinheiro dobrava lentamente a esquina da rua, como se não se importasse com a chuva.<br />Na casa em frente havia música e movimento. Por um momento então quis me enganar imaginando que ele bateria naquela porta, não na minha. Porque eu não conhecia nenhum marinheiro, porque eu não recebia visitas, porque há muito tempo havia afastado disso que chamo a minha vida toda e qualquer pessoa que pudesse bater à porta numa tarde de sábado assim inesperada, porque nesta cidade sequer existe mar, porque afinal o resto do caminho não só estava traçado como era inabalável. Entre aqueles trapos, aquelas contas, aquelas cores, sem nunca ver de perto um outro rosto humano, a não ser numa cruzada ocasional tarde da noite, pelas ruas, com algum desconhecido sem importância, sem encarar de frente sequer meu próprio rosto, a tal ponto me desgostavam o humano de mim e dos outros, próximos ou distantes, e de todos. Dentro do marinheiro que vinha pela chuva havia uma coisa humana ameaçadora, estrelada, dobrando a esquina, ignorando as luzes, a música, os movimentos da casa em frente para atravessar a rua e, detendo-se sob minha janela, bater à porta.<br />O cheiro de mar tornou-se mais forte quando ouvi as primeiras batidas. Contraí os olhos feridos pelo ar subitamente mais salgado. Com as duas mãos espalmadas contra o vidro, eu estava suspenso entre algo que começava a fechar-se e algo que terminava de abrir-se. As batidas continuavam. Eu precisava fazer alguma coisa, talvez descer as escadas, abrir a porta, deixar que entrasse. Ao fazer qualquer uma dessas coisas teria de aceitar que algo se fechara, e abrir a porta para que o marinheiro entrasse seria também permitir que esse outro algo terminasse de abrir-se, me levando para um caminho imprevisto.<br />Como eu demorava a atender, lá embaixo ele recuou um pouco e olhou para cima. Então me viu. Ele viu meu rosto, esse mesmo que já não sei a forma. Eu vi seu rosto que não identifiquei, molhado pela chuva, esperando uma resposta.<br />Tive medo que as asas ou a cobra pudessem me impedir de começar a descer as escadas. Mas nada aconteceu. Em vez dessas, uma nova visão me tomou no primeiro degrau. De um espaço aberto como o convés de um navio eu podia ver na linha do horizonte, atrás de outro navio seminaufragado entre rochas de coral vermelho, uma ilha pedregosa com uma baía de areias tão claras que brilhavam na luz do sol. Havia sol também, descobri enquanto avançava, não só porque as areias brilhavam mas porque brilhava também a água do mar, cheia de cintilações como diamantes miúdos na crista das ondas quebrando na praia da ilha. Mais além da praia percebi sobre uma elevação um farol apagado, porque era dia, erguendo-se quase desafiador contra o céu, continuei a ver, inteiramente azul, sem nenhuma nuvem. O ar tão limpo que pisquei, retinas machucadas pelo excesso de luz.<br />Quando tornei a abrir os olhos, tinha acabado de descer a escada e olhava uma silhueta esbranquiçada atrás dos roxos-amarelos pintados no pequeno retângulo vertical de vidro da porta de entrada. Pensei em abri-lo, para entender o rosto que vinha antes de permitir sua entrada. Não consegui. Quase cego pelo verde do mar, pelo cristal branco da areia, pelo azul do céu que acabara de ver, pela transparência do ar, estendi a mão, dei a volta na chave e abri a porta. </div><div align="justify"></div><div align="justify"><br />II<br />— Abraça tua loucura antes que seja tarde demais — ele disse, e seus olhos tinham a cor do mar. Tinham a cor exata de quem por muito tempo, todas as horas, todos os dias de muitos meses e anos, olhou detidamente o mar, acompanhando o vôo das gaivotas, interrompendo-se em rochedos, nivelando-se ao movimento incessante das ondas. Verdes de um verde movediço entre o denso do vidro e o suave da hortelã recém-plantada, líquidos como água móvel, interior de gruta, rasos de pedras claras. Visíveis, os olhos vivos do marinheiro me olhavam molhados pela chuva, vértice de um novo movimento para onde eu convergia inteiro.<br />Para olhá-lo, também eu precisava de certa loucura. Essa, que me indicava. A mesma a que me tenho negado em susto, atravessando cotidianos de monótonos côncavos deliberados, movendo-me pelos labirintos coloridos desses interiores sempre previstos, embora absurdos. Não havia sol naquela tarde, nem cores caindo sobre os objetos. Eu não estava distraído nem tinha disfarce algum quando ele me olhou. Ele não tinha nenhum disfarce quando eu o olhei. Mas não devia me permitir escorregar naquele mergulho de peixes quem sabe vorazes, isso só compreendo agora, e com esforço, sete dias depois de sua partida, uma garrafa de vinho tinto, a chuva se foi, restaram o frio e a umidade que amolece papéis e vontades, aberta ao lado da janela escancarada para a noite enorme lá fora, onde ruge uma cidade estufada de rumores e procuras. Preciso dizer neste momento, embora talvez não caiba aqui. Ainda que me tenha isolado assim drástico, ainda que elabore dentro de mim e da casa pacientes, irrefutáveis justificativas para ter cerrado as portas ao de fora, o humano que afastei através dos vidros coloridos, esse humano dói, palpita, ofega, tem ritmos suarentos fora de mim.<br />À minha frente, porta entreaberta, gotas da chuva caindo sobre sua roupa branca como se eu tivesse acendido uma vela com o pavio voltado para baixo, o marinheiro me olhava.<br />— O quê? — perguntei. Só compreendo agora, talvez não pudesse aceitar o convite. Perguntei como quando você diz acho que vai chover ou está frio hoje, ou me dá um cigarro, qualquer outra coisa assim sem importância, pressupondo que eu e ele nos movimentaríamos ainda segundo os ritmos mecânicos, na dança urbana dos passos ensaiados de além dos vidros pintados de roxo-amarelo. Mas ele repetiu claro:<br />— Abraça tua loucura antes que seja tarde demais.<br />— De onde você veio? — perguntei ainda, a mão na porta me separando dele.<br />— Vim da tua visão anterior — ele afastou as tiras coloridas que pendiam da porta. Gentilmente, mas seguro, afastou também meu braço, não como se pedisse licença para entrar num lugar que não lhe pertencia, mas ocupando o espaço que lhe era destinado. E repetiu: — Venho de tua visão imediatamente anterior a esta de agora, embora eu não seja uma visão.<br />— Quando eu descia as escadas?<br />Fechei a porta às suas costas.<br />— Quando você descia as escadas. Daquele navio atracado na baía. Aquela de areias brancas ofuscantes, a praia daquela baía, naquela ilha. Você não viu que daquela praia partia uma estrada, subindo pelas rochas até o farol?<br />Perguntei se não queria sentar.<br />— Estou muito molhado — disse, afastando um monte de palha para ajeitar-se entre algumas almofadas. Tinha pernas longas, sapatos cobertos de uma lama escura onde havia alguns talos de grama grudados, vi quando estendeu os pés, eu parado no espaço à sua frente.<br />— Você andou na grama?<br />— Andei. Logo após a areia branca da baía, havia uma grama alta. E mais adiante, um rio.<br />— E você viu então uma cobra deslizando entre juncos, na beira do rio?<br />— Sim, uma cobra verde. Dessas que não fazem mal a ninguém.<br />— Você a matou?<br />— Não mato o que não ameaça. Nem o que vive. Eu apenas passei.<br />— E a ave? Viu também a ave?<br />— Estava no meio do caminho. Me limitei a afas tá-la.<br />— Segurando naquele ponto exato onde as asas encontram uma com a outra?<br />— E onde mais? — puxou o cachimbo do bolso, com a mão direita. Bateu-o três vezes, boca para baixo, contra a palma da mão esquerda. — Apanhei muita chuva. Tem alguma bebida forte?<br />— Os marinheiros costumavam beber rum — eu disse, enquanto ele levantava a mão espalmada em frente ao meu rosto. Era uma mão grande, morena, forte, cheia de veias azuis salientes pelo esforço, as bordas externas cobertas por uma vaga penugem escura.<br />— Isso é lenda — de um pacote de fumo tirado do outro bolso ele enchia lentamente o cachimbo. Teve uma espécie de sorriso. Um brilho de ouro no fundo de sua boca, eu vi. — Bebo qualquer coisa. Desde que seja forte.<br />Entrei pelo pequeno corredor para ir à cozinha apanhar a garrafa de conhaque. Havia como uma vertigem na minha cabeça, mas meus gestos eram precisos. Atravessei o corredor, a segunda sala, alcan1 cei a cozinha, onde tirei de um armário a garrafa e F dois cálices. Eram cálices perfeitos, desses levemente ovalados, a boca mais estreita que a base bojuda. Tenho uma bandeja azul, não é uma bandeja especial, mas é bonita, de vidro azul, e brilha, sobre a qual dispus a garrafa com os dois cálices. Em certos dias de luz como aquele sábado não era, costumo colocar a bandeja azul ao sol, quando há, para que sua cor reflita os raios amarelos. Mudam de cor, dançam, circulam pela casa toda, pelo pátio, rebrilham, os raios. Com a bandeja nas mãos, voltando à sala, queria dizer a ele que estava atravessando a casa com o melhor que tinha nas mãos: uma bandeja de vidro azul, uma garrafa de conhaque e dois cálices perfeitos.<br />Cruzava de volta a segunda sala, depois o corredor, quando me chegou uma nova visão. Ela não voltou, depois que ele se foi. Portanto o que tive daquela visão foi apenas o que houve naquele momento.<br />Atrás de uma janela de vidraças divididas em vários pedaços miúdos estava o rosto de uma moça. Ela tinha uma das mãos, talvez a esquerda, aberta e apertada contra a vidraça. O outro braço suponho que estivesse caído ao longo do corpo, porque de onde estava não conseguia vê-lo. Uma franja espessa cobria sua testa, e entre o cabelo cortado na nuca e o rosto lavado eu podia ver um brinco cintilando. Um único brinco longo talvez com uma pérola ou um diamante suspensos na extremidade de um fio de ouro, e de alguma forma o sol ou outro tipo de luz, não das estrelas, porque não seria suficiente, embora bonito, devia bater contra a vidraça, pois a ponta do brinco, a pérola, ou a esmeralda, ou o diamante, ou o rubi, cintilavam, estrela mínima de sete pontas. Prefiro pensar agora que era um rubi, tinha brilho vermelho como de um Cristo flagelado que vi certa vez num museu, faz muitos anos. Chorava, o Cristo. Essa lágrima de sangue era um rubi. Do lado direito da boca da moça, um leve vinco, como esses de quem apenas tem vontade de sorrir ou por alguma razão precisa esconder uma espécie de divertida amargura. Mas no canto esquerdo, havia apenas dureza. Ou vazio. Ou nada disso, não importa.<br />Fui me libertando aos poucos da visão. Como quem atravessa uma cortina de contas penduradas, dessas que se enovelam no corpo, com movimentos brandos, de ombros, cintura, pescoço, aos poucos os fios se desembaraçando dos membros. Um dos olhos dela sorria cúmplice. O outro criticava, cínico. Quando depositei a bandeja azul aos pés dele — tinha descalçado os sapatos, sustentava o calcanhar de um dos pés sobre os dedos do outro, as mãos cruzadas atrás da nuca —, perguntou servindo-se:<br />— Quem era ela?<br />— Ela quem?<br />— A moça na janela.<br />Eu me acomodei nas almofadas à sua frente. Minhas pernas ficaram estendidas ao lado das dele. Devagar enchi nossos cálices. Não tínhamos pressa. Estava anoitecendo. Chovia. Era sábado, era novembro. Atrás de qualquer palavra que disséssemos havia outras mais tranqüilas, porque tínhamos conseguido atravessar quase mais um ano inteiro — eu, ele, todos —, e tinha sido duro, mesmo que nem eu nem ele nem ninguém depois de um tempo fôssemos capazes de distingui-lo especialmente dos anteriores, tão iguais a esse que passava. Mas estávamos ali, como dois sobreviventes — para usar a linguagem que ele provavelmente teria, se falássemos disso — de um naufrágio. Ou para usar a minha própria linguagem, essa de gente que vive amontoada entre outras gentes, mesmo quando se retira, porque a vida incha lá fora, invadindo as janelas fechadas, sobreviventes de uma série descolorida de fracassos iguais e mesmas tentativas, idênticas queixas, esperas inúteis, mágoas inconfessáveis de tão miúdas. Eu podia falar lento, deixando o que dizia escorregar da garganta para a língua, da língua em movimento contra o céu da boca para os lábios, que com o ar soprado entre os dentes formaria palavras um pouco ao acaso, sem muita importância, dizendo coisas como:<br />— A moça. A moça na janela.<br />— Sim, a moça na janela — bebeu mais um gole, me olhou atento.<br />— Eu a tive um dia — fui dizendo sem dificuldade, exatamente como previra. De algo profundo como o estômago ou os intestinos subia pelo peito, atravessava longos canais escuros, atingia a língua, debruçava-se sonoro, quem sabe incompreensível, para o outro. Era assim, conversar, fui redescobrindo enquanto contava:<br />— Não sei se era ela. Uma moça pálida. Tinha algumas sardas nos ombros. Essas manchas castanhas, às vezes avermelhadas. Ela as tinha, nos ombros. Sei porque via sempre seus ombros nus. — Toquei no pé dele, as meias brancas molhadas de chuva. — Eu a tocava assim, nos pés. E apertava. Ela sempre me sorria. Gostava de pintar a boca de vermelho forte. Você consegue imaginá-la? Muito branca, aquelas sardas nos ombros, a boca pintada de vermelho forte. Gostava de vestir-se de preto, também. Embora eu costumasse dizer que não era bom, absorvia vibrações, todas as vibrações, as energias. Boas, más, todas. Então a boca pintada de vermelho forte vivo ressaltava ainda mais. Qualquer coisa vermelho vivo, a boca, entre o preto do vestido e o branco da pele.<br />Ele tornou a encher o cálice.<br />— Você gostava dela?<br />— O que é coisa, gostar?<br />—Você sabe.<br />— Acho que sim. Embora não parecesse. Tanto, tanto tempo.<br />Bebi mais. Que não tinha importância. Gostar, o passado, a moça, os pés. Eu não podia ter memórias. Acho que disse isso em voz alta. Ou não era preciso, porque ele falou:<br />— Por que não ter memórias?<br />Os buracos negros, eu quis dizer. Mas fiquei quieto, desejando apenas ter um disco qualquer de cítara tocando para que nesse momento pudéssemos interromper a conversa para prestar atenção num acorde qualquer entre duas cordas, mais um silêncio que um som. Sempre podíamos ouvir a chuva, seu bater compassado na vidraça. Ou acompanhar com os olhos as gotas escorrendo atrás do roxo e do amarelo. De pontos diferentes, às vezes duas gotas deslizavam juntas para encontrarem-se em outro ponto, formando uma terceira gota maior. Mas talvez ele achasse tedioso esse tipo de diversão.<br />— Ter memórias — repeti.<br />Mas não era aquela moça, nem aquela a tarde, que tudo que foi de mim perdeu-se no inatingível centro obscuro desses buracos. Começava a ficar tonto com a bebida. Quis dizer a ele que a cidade não tinha mar, que eu apenas pretendia pintar a segunda vidraça de baixo para cima, para que os vizinhos não conseguissem espiar a minha vida. Quando pensei nisso tive a sensação esquisita de estar girando dentro e junto com uma agitada roda colorida. Subia e baixava — eu, a Roda da Fortuna — nos braços às vezes de um demônio sombrio vestido de negro, às vezes de um arcanjo dourado, em susto, em prazer, em nojo, em delírio. Quis dizer a ele que me havia afastado assim para que a Roda rodasse distante de mim, sem me envolver em seus volteios vertiginosos.<br />— Vim de longe — ele disse. — Eu vim de fora de ti.<br />Quis dizer-lhe ainda que longe estava eu, embora na rua de casas lado a lado, apertadas umas contra as outras feito pessoas com frio, mas por algum motivo precisei levantar. De repente fiquei no meio da sala, o cálice cheio numa das mãos, a outra solta no ar, esboçando um gesto que não era capaz de fechar.<br />Ouça, tentei.<br />E não sabia como continuar. Passa-me agora pela cabeça que os vizinhos poderiam reclamar das luzes nas janelas escancaradas, da energia excessiva saindo pelas janelas escancaradas. Bêbada, confusa, farpada. Mas não consigo me deter. Embora não conheça o ponto onde devo chegar, é para lá que me dirijo cego, aos trancos. Pouco importa o que poderia me afastar desta tentativa quem sabe inútil de recuperá-lo, ou o que trouxe consigo desde que veio e se foi. Perdi meu equilíbrio quando veio, e mentia meu equilíbrio antes que viesse.<br />Olhava para mim, ali estendido sobre almofadas. Um vinco, eu via atentamente, um vinco partindo seu lábio inferior, quase emendado com outro que subia da extremidade do queixo até a borda do lábio inferior, onde o vinco anterior unia os dois num só, duas gotas de chuva se encontrando. Acho que o aceitei inteiramente nesse momento, ao perceber os contornos do rosto que me olhava com estranheza, como pedindo explicações ou tentando explicar a mim mesmo para mim, que não me via.<br />— Você tem grades nos olhos — disse. Acendeu o cachimbo. Um perfume adocicado misturou-se ao cheiro de mar. — Elas estão quase sempre abertas. Não são suficientemente estreitas para prender alguém ou alguma coisa. Houve um dia em que você deixou alguém fugir por entre as grades.<br />Voltei a sentar. Lembrei do segundo quarto no andar de cima. Cruzei as pernas na frente dele. Queria vê-lo melhor, embora já o tivesse visto. Um marinheiro, confirmei sem compreender. Tirara os sapatos, o chapéu, vestia-se de branco, estava deitado nas almofadas à minha frente. Então transformou-se. Sei que é brusco dizer assim, mas foi exatamente assim. Gostaria de ter certeza de que realmente o vira deitar alguma coisa como um pó ou comprimidos na minha bebida, tisanas, antes de transformar-se. Mas não seria verdadeiro.<br />Eu estava um pouco tonto. As luzes da rua tinham começado a acender. Anoitecia. O roxo-amarelo dos vidros ganhou um brilho artificial quando me levantei para acender a vela no castiçal de cerâmica. Tenho horror a essas luzes que desvendam os poros abertos das pessoas, revelando sujeiras escondidas, mesmo que há muito tempo não as veja. Protegi a chama entre as palmas das mãos, mas quando me voltei para perguntar-lhe qualquer coisa como o que ou onde ou quando ou quem — ele era um grande gato cinzento me olhando com olhos verdes sobre a almofada cor de vinho. Espreguiçou-se lento, curvando as costas enquanto alongava à frente a pequena pata de unhas distendidas para depois cravá-las superficialmente, com tédio, com distraído gozo, na carne da almofada. Quando tornei a me abaixar, debruçando-me sobre ele, roçou o dorso quente contra as costas frias da minha mão. Apertei as frontes e os olhos com a outra mão. Ao retirá-la, o marinheiro me olhava.<br />— Tive outra visão — eu disse.<br />— Não foi uma visão. Sou muitos. — Sorriu. — Onde é o banheiro?<br />Acompanhei-o escada acima. Pelo corrimão, podia ver: aquela mão saindo de sob a manga branca era a mesma que segurava as asas da ave no ponto onde se uniam. Escurecia. Quis avisá-lo de que passaríamos pelo quarto vazio, e me debati, asas seguras no limite da entrada, tentando dizer-lhe que tinha sido ali. Então olhei para dentro e vi um anjo de grandes asas brancas e pés descalços sobre o piso riscado.<br />— Me olhas com olhos tristes — eu disse.<br />— Porque já me fui e nada do que poderias fazer agora eu conseguiria fazer novamente, então sinto pena — disse o anjo fechando as asas sobre o rosto magro.<br />Pairava sobre brasas incandescentes espalhadas pelo piso do quarto. Para não pisá-las com seus pés brancos precisava agitar as asas com algum esforço, mantendo-se em levitação, acima do fogo. Ele batia as asas suspenso sobre as brasas, um pouco ridículo. Tive vontade de rir, mas como uma ventania súbita tivesse invadido a casa, eu disse que tinha velas e mostrei a porta do banheiro.<br />Conhecia aqueles ventos. Armavam-se de repente além do contorno dos edifícios que eu via da janela do segundo quarto, depois desabavam paredes adentro, soprando por todos os cantos os fiapos dos montes de palha, as contas, as tiras coloridas. Dentro do banheiro havia uma moça de ombros nus cobertos de sardas, olhos pintados de preto, boca muito vermelha, seios expostos como duas pêras maduras, as pontas levemente avermelhadas de onde sobressaía o bico mais escuro que devia prendê-los à árvore. Quis tocá-los. Cheguei a estender a mão. Foi quando vi a cauda úmida de peixe emergindo da banheira para elevar-se, verde brilhante escamoso contra os azulejos brancos. Ela sorria para mim, sereia, me convidando, Ulisses. Como uma visão, mas eu sabia que não era nenhuma das imagens libertadas do buraco negro da memória. Quando tentei tocar seus seios claros, respingados de sardas, senti o vento das asas batendo do anjo preso no segundo quarto a me comprimir contra a parede de corredor estreito, e logo depois o interior sedoso de uma capa negra com dois caninos agudos de vampiro dentro de lábios descorados abertos num meio sorriso, aproximando-se lento das veias da minha garganta. Quis senti-lo assim, macio assassino penetrante agudo suculento afundar os caninos na minha carne. Cheguei a inclinar de leve a cabeça sobre o ombro, oferecendo o pescoço para que me tivesse mais fácil.<br />O vinho está quase no fim. A manhã vem vindo, não sei se conseguirei continuar contando. Naquele momento meu sangue escorreria para dar-lhe vida, essa mesma que não sei para onde levo, entre tantas quinas. Sinto frio, me debruço. O hálito gelado dele se aproxima das minhas veias, mas basta que eu suspire para que se transforme num cãozinho miúdo, inofensivo, descendo os degraus em direção à sala. Afago-o com as pontas distraídas dos dedos, manchas pretas sobre o dorso branco. Reconheço, estou em desequilíbrio, estou me distanciando cada vez mais. Faço este esforço até quem sabe alcançar um ponto tão remoto que não saberei jamais encontrar o caminho de volta, se existe um, e penso que não.<br />Ao pé da escada ele me espera, braços abertos, parado sobre o tapete. Tem o peito largo, sinto, ao afundar de encontro a ele essa parte minha sem forma a que acostumei chamar de face, seus braços podem dobrar-se apertando minhas costas enquanto sinto seu cheiro, esse cheiro espesso de sal, algas, corais, medusas, águas-marinhas. Quero perder-me nele, como o que nunca terei, mas quando fecho também meus braços em torno de suas costas, aproximando-o de mim para que nossos dois corpos se confundam, para que nossos cheiros se misturem, para que pelo menos por um segundo sejam, eu, ele, uma coisa única, minhas mãos apertam o caule estreito e áspero de uma palmeira. Um vento qualquer faz com que seus galhos balancem. Quando balançam então é como se eu visse o céu, planetas, cometas, constelações, objetos não-identificados, essa palmeira nua estendida contra um céu cheio de estrelas, lunar crescente às tuas costas, quero dizer, Aldebarã logo abaixo, Vega à esquerda, Arcturus acima, basta estender a mão. Resta no ar o sal perdido de uma distante maresia, no limite dos dedos, e em cada uma das extremidades uma estrela de sete pontas iluminadas, dez rubis incendiados como a lágrima na face do Cristo que perdi no dia em que a luz cessou.<br />Na base da escada, no centro da sala. Anoiteceu. Encosto o topo de minha cabeça de ralos cabelos contra o tronco seco da palmeira. Depois choro. Quase sem som. Como nas canções de miúdos arquejos, um estremecimento que faz o peito vibrar, elevando-se até os ombros. Sobe pela garganta, atinge os lábios, alcança a testa comprimida contra a palmeira como se quisesse ferir ou perfurar a si mesma. Ergo meus braços. Mesmo na ponta dos pés não consigo alcançar as palmas altas que balançam ao ritmo do vento vindo talvez de outras terras, mas certamente do mar presente nesse ar salgado que me faz contrair os olhos como antes, quando descia as escadas para abrir a porta.<br />Eu estava parado no patamar da escada quando ele me disse:<br />— Tenho sete formas. Navegue.<br />Abraçou-me. Tinha cheiro de mar. Do mar que não há nesta cidade.<br />Pedi que ficasse, como não ficou o outro. Mas não o suportaria, acrescentei a seguir. Sorriu. Como se nada do que eu pudesse dizer fosse capaz de modificar sua partida. Ainda chove, tentei dizer. Não importa, será melhor assim, repetia sua mão estendida. Passou-a devagar na minha face. Eu era uma coisa pequena, rastejante e sem Deus, caminhando no escuro lamacento à procura apenas de qualquer gesto como o toque de uma mão humana, devagar na minha face. Ele tocou. Calçou os sapatos, apanhou o chapéu. Eu quis dizer que poderia ocupar o segundo quarto — a segunda cama, a segunda vida — talvez para sempre. Eu estava tão vivo que qualquer outra coisa também viva e próxima merecia minha mão estendida, oferecendo. Estendi a mão. Ele não podia acei tá-la<br />Eu não devia estendê-la.<br />— O navio demora pouco no porto — disse antes de partir. — Um marinheiro desce, olha a terra, às vezes deposita algo, e logo torna a partir.<br />Seus olhos tinham a r do mar. Tinham a cor exata de quem por muito tempo, todas as horas, durante todos os dias de muitos meses e anos, olhou detidamente o mar. Conquistara esse verde móvel, inquieto, esse vagar. Tocou de leve minha mão estendida. E se foi. Ainda chovia. Fechei a porta às suas costas. Por entre os roxos e amarelos da pequena vidraça vertical, podia perceber a silhueta de alguém se afastando. Dentro de uma noite de sábado, não de agosto. Era novembro. Bebi outro gole de conhaque. Fui escorregando para o fundo, no meio das almofadas. Amanhecia. Na casa em frente, os ruídos tinham silenciado. Seria um longo domingo. Não estava triste, mesmo assim recomecei a chorar enquanto ouvia outra vez o aviso guardado para sempre na memória das paredes:<br />— Abraça tua loucura antes que seja tarde demais. </div><div align="justify"></div><div align="justify"><br />III<br />Faz hoje sete dias que se foi. Acabei de contar os sete traços de tinta preta que fui fazendo, um por um, cada noite depois de sua partida, exatamente naquela vidraça que eu tinha pensado em começar a pintar quando chegou, no meio da chuva. Completei o sétimo há pouco. São seis traços irregulares, quase ideogramas chineses, e um bem definido — um risco reto, seco, sem hesitações nem adornos, o último. Atrás dos sete traços posso ver a rua deserta e, do outro lado, a casa onde sem parar entram, saem pessoas. Pela porta aberta, quando terminei o sétimo risco imaginei ver uma noiva subindo as escadas, com outras moças se aglomerando embaixo, como se ela fosse jogar o buquê. Ouvi uns risos de criança, tinir de copos, champanhes. Bons augúrios, pensei. Mas não prestei muita atenção, nem me alegrei. Não tenho certeza do que imagino ter visto. Preferi olhar para além da casa, para além da rua.<br />O sol acabou de se pôr. Nestes sete dias, a chuva foi parando aos poucos. Ficou apenas o cinza. Há muitas nuvens no céu, sobre os edifícios. São essas nuvens que estão agora muito coloridas, azuis profundos invadindo o roxo para transformar-se em laranja, em dourado na altura do que deve ser o horizonte.<br />Os raios suspensos sobre a cidade. Se descesse ao andar inferior poderia talvez ver como antes esses raios soltos de luz varando os roxos, os amarelos pintados nos vidros da porta de entrada para misturar as cores sobre os objetos. Poucas vezes desci, depois que se foi.<br />Na verdade, não sei ao certo como atravessei os primeiros destes últimos sete dias. Talvez tenha dormido ou me movimentado dentro de alguma daquelas visões do buraco negro, porque lembro de uma espécie de névoa rompida de vez em quando por algum ruído, alguma forma. Talvez não tenham sido visões, mas sonhos, se realmente dormi. De qualquer forma, não eram exatamente iguais às visões de antes da vinda dele, nada de cobras ou aves ou partes isoladas de corpos, como mãos ou rostos. Havia pessoas inteiras dentro dessa névoa, mesmo que eu não conseguisse vê-las, ainda que não possuíssem corpos. Uma dessas pessoas atravessava a meu lado um longo corredor, um corredor inteiro recoberto de mosaicos bizantinos, em cima, embaixo, dos lados, cada um com um desenho diferente. Nesses mosaicos quem sabe houvesse cobras, juncos, asas, grama, até mesmo marinheiros, porque o corredor se estendia feito dentro da própria memória, com todos os detalhes de cada uma das inúmeras lembranças. Seria possível permanecer durante muito tempo olhando detidamente cada um deles. Mas da extremidade vedada onde eu estava, com essa pessoa a meu lado, conseguia ver a extremidade aberta do outro lado, onde estava a luz.<br />Havia urgência em chegar à luz. Havia uma urgência no ar que não era exatamente minha nem da pessoa que estava comigo, mas qualquer outra coisa assim, difícil dizer, um imperativo moral ou ético chegar do outro lado, do lado de lá, do lado da luz. Eu não me movia, embora localizasse no ar, entre as figuras dos mosaicos coloridos, esse impulso de me dirigir para lá. A outra pessoa também não se movia. Eu tinha perfeita consciência dela a meu lado. Não voltava a cabeça para vê-la. Estava perfeitamente consciente da presença dela a meu lado, e sabia que ela estava também perfeitamente consciente não só da minha presença a seu lado mas também da necessidade de atravessarmos o corredor em direção à luz. Talvez ficássemos ali parados para sempre, se eu não começasse a prestar atenção nos desenhos. Até o momento em que comecei a me curvar para observar um deles mais atentamente porque havia um poço, um poço desenhado no mosaico, um poço de pedras com uma data remota inscrita provavelmente com um prego sobre uma das pedras, e quase tenho certeza do ano, 1919— tinha consciência somente de uma série de formas e cores à minha volta, como se estivesse dentro de um caleidoscópio imóvel.<br />Fui dobrando lentamente o corpo em direção ao poço. Sabia que poderia penetrar nele ou naquele tempo ou naquela memória que ele representava, poderia penetrar em qualquer uma das milhares de outras figuras do corredor. E da mesma forma como sabia que devia caminhar em direção à luz, sabia também que não podia me permitir mergulhar nos mosaicos, porque desse mergulho emergiria de volta para o mesmo corredor, e após outro mergulho tornaria a ser devolvido àquele corredor, sala infinit de espelhos, assim para sempre, para sempre estaria perdido entre representações de coisas que se tinham perdido no tempo, e por perder-se no tempo tinham perdido junto a sua própria existência. Não eram reais, aquelas cenas gravadas nos mosaicos. Eu não podia permitir a mim mesmo continuar me perdendo no que deixara de ser. Sabia de tudo isso enquanto me curvava em direção ao poço, mas não conseguia recuar, hipnotizado. Foi então que a outra pessoa me tocou no ombro. Alguma coisa no toque dela me dizia exatamente o mesmo que eu acabara de pensar, me arrancava da beira do mergulho. De alguma forma, instaurava entre nós o compromisso — solene, severo — de chegar à luz na extremidade do corredor.<br />Nós começamos a caminhar. Primeiro com certa pressa, depois mais lentamente. Se caminhássemos depressa as formas e as cores nos mosaicos se enovelariam umas nas outras, provocando uma espécie de tontura viscosa, colorida. Alguém de fora dali girava nas mãos o imenso caleidoscópio dentro do qual estávamos presos, fazendo a copa de uma árvore esfiapar-se em várias pontas, e de cada uma dessas pontas nascerem imagens díspares feito uma maçã meio mordida, uma peça de dominó ou xadrez, um bibelô antigo em forma de bailarina, saltando sobre um abismo ao lado do qual estavam duas crianças guardadas por um anjo negro e nu. Para que as formas não se misturassem assim, evitando a náusea, a surpresa, a confusão, começamos a caminhar mais devagar, um passo após o outro. Não sei quanto tempo durou. Penso agora que talvez exatamente os cinco primeios dias destes sete últimos, porque quando tento lembrar de tudo que se passou desde então qualquer imagem que volta parece ter feito parte dos mosaicos daquele corredor. Mesmo quando eu subia ou descia escadas para ir à cozinha comer ou beber alguma coisa, não sei se eu mesmo não estaria sendo apenas mais uma daquelas figuras.<br />Nem saberei.<br />Mas houve um momento em que alcançamos a Luz. Digo assim — a Luz — porque não havia nada nela. Era uma luz clara sem cor nem objetos, absolutamente limpa se comparada à infinidade de formas de onde estávamos vindo. Havia espaço ali. Um largo espaço com uma luz clara. Acho que senti medo, tive vontade de voltar atrás, sabia como me movimentar facilmente entre as figuras dos mosaicos, diminuindo, aumentando o passo para que as imagens não se misturassem, mergulhando numa ou noutra que me remeteria a outros tempos para depois me devolver ao corredor, assim por diante, tanto quanto eu quisesse, o tempo todo que me restava nisso que costumo chamar de a minha vida. Esbocei um movimento para voltar atrás, mas a outra pessoa novamente me tocou no braço antes de desaparecer junto com o corredor. Eu fiquei só.<br />Agora eu não vinha nem ia para parte alguma. Estava parado no centro da grande luz clara e limpa sem poder voltar atrás. Isso era tudo. Eu precisava me movimentar dentro dela. Era com esse movimento dentro dela que alcançaria outras figuras, talvez as dos mosaicos, que não seriam figuras pois não teriam acontecido num tempo passado, mas coisas reais que estariam acontecendo agora, num tempo presente. Não mais como se estivesse dentro de um caleidoscópio, e sim como se possuísse o grande poder de construí-lo eu mesmo, escolhendo cada conta, cada pedacinho de vidro ou papel que colocaria ali dentro. Ou nem isso. Como se não mais existissem caleidoscópios.<br />Como se eu fosse ao mesmo tempo diretor, ator, autor e platéia de um espetáculo que ainda não começara a acontecer. Como se não fosse um espetáculo, porque nada estava previsto e não houvera ensaio algum, como se eu jamais pudesse ter certeza se alguém decorara a sua própria fala ou estava se apropriando da fala de outro ou inventando alguma para não permanecer parado e mudo. Embora não fosse um espetáculo, não podia parar, e a essa fala de outro que era de outro alguém, ou invenção, eu precisaria responder imediatamente, não podia parar, ainda que parasse não pararia, mesmo que meu papel fosse o de um cego ou mudo ou paralítico, de alguma maneira teria que reagir ao que aconteceria à minha volta. E o que aconteceria à minha volta aconteceria de qualquer jeito. A minha não-participação seria ainda uma forma de participar, permitindo que tudo acontecesse sem interferir.<br />Antes de dar um passo, eu estava exausto daquele jogo tão absurdo que qualquer nova regra podia ser inventada na hora. Não sabia se saberia jogá-lo. Nem se queria.<br />Aldebarã, Vega, Arcturus — repeti. Então olhei para cima e vi uma nuvem. Foi a primeira coisa que vi dentro da luz clara. Nesse momento soube que haveria outras, à medida que avançasse ou simplesmente permanecesse ali. A nuvem aos poucos ganhou cor, um tom de rosa, acho. Depois moveu-se, como nos dias de vento. Acompanhando a nuvem com o olhar, na direção do vento fui encontrando gradualmente, fotografia revelada cada vez mais nítida, na linha do horizonte uma ilha pedregosa com uma baía redonda de areias tão claras que brilhavam na luz do sol. Era do sol a luz que banhava a ilha, a praia, descobri, e mais além, sobre uma elevação, um farol apagado, porque era dia. Aquele farol se acenderia todas as noites, jorrando luz no espaço. Meus olhos já não tinham grades. Comecei a caminhar em direção ao que via, dentro da grande luz além do corredor.<br />Iniciaria pelo andar inferior, decidi quando acabei de pintar o quinto risco negro que assinalava o princípio do quinto dia. Foi essa a única ordem imposta no que faria. Depois disso andei muito tempo pela casa recolhendo as tiras de pano e papel penduradas, as cortinas, os fios enfiados de contas, tapetes, restos de manequins, cacos de louças, caixotes, fotografias, almofadas, montes de palha, pétalas secas de flores, ampulhetas, os livros todos, copos, móveis, um por um — tudo. Atravessava a segunda sala para depositá-los no pequeno pátio, à medida que agia a casa começava a parecer cvasta&a ÔT 112728 tormenta, depois foi ficando mais limpa, inteiramente limpa, enquanto aumentava a montanha de objetos no pátio. Sabia que me restavam três dias inteiros. Se não houvesse concluído o trabalho ao fim deles permaneceria parado na grande luz, à mercê do que aconteceria em volta. Era tempo suficiente, embora fossem muitos objetos.<br />Gastei o primeiro dos últimos três dias esvaziando o andar inferior. Gastei o segundo esvaziando meu próprio quarto, mais cheio de objetos que qualquer outro. Acrescentei à montanha de detritos no pátio também as roupas todas que tinha, todos os papéis, o baú com as cartas que costumava receber, antes, talismãs, caixas, fetiches. Na metade do terceiro e último dia — hoje — esvaziei o banheiro. Mantive apenas esta roupa branca que uso, um tubo de tinta negra e um pincel para fazer o sétimo traço na vidraça.<br />Acabo de fazê-lo, há pouco. A casa inteira está deserta. A casa inteira agora é igual ao segundo quarto. Despi-la assim nestes sete dias acabou por revelar as rachaduras das paredes, as manchas, as falhas do reboco, o piso riscado. É uma casa verdadeira agora, e muito velha. Uma casa que não teria conserto, tão irremediáveis e obscenas são sua velhice e nudez. Arranquei seus disfarces um a um, como se arrancasse os mosaicos daquele corredor. Na montanha do pátio não há só móveis, lençóis, papéis, há também poços, maçãs meio mordidas, peças de xadrez, unicórnios, anjos da guarda, caleidoscópios, vampiros, centauros, cristais, baralhos, mandalas. Posso entrar sem medo no segundo quarto. Ele tornou-se como o resto da Casa, ou o resto da sa tor’zou-’e como ele, você ambos tornaram-se o que sempre foram, assim sem disfarces, e nada tenho a temer de paredes vazias. Me pergunto se alguém os amaria assim, tão nus. Não sei responder. Posso não sentir nada vendo a perna alongada de uma bailarina emergindo da confusão de trapos, o rosto pintado de um manequim sobre os restos do fogão, o gelo transformado em água escorrendo pelo quadro onde, forçando os olhos, consigo divisar a mão erguida de um homem empunhando uma espada, em luta com uma espécie de demônio de asas.<br />O movimento na casa da frente começou a diminuir. Estou parado no topo da escada com o galão de gasolina numa das mãos, a caixa de fósforos na outra. Conto os degraus, ao descer. Dezenove, o Sol. Na sala, os vidros pintados ainda defendem a casa do olhar dos outros, se alguém se interessasse em olhá-la. Tão vazia que já não oferece nada à curiosidade de ninguém. E tão completamente real, penso sem querer, atravessando a primeira sala para penetrar na outra, depois na cozinha. Quase todo o pátio está tomado pela montanha de detritos. Acabou de anoitecer. As nuvens se foram. O céu está completamente limpo. Há algumas estrelas sobre a minha cabeça.<br />Quem sabe Aldebarã, Vega, Arcturus.<br />Com cuidado, com carinho, vou derramando gasolina sobre todos os objetos. Agora já não há dor nenhuma em lembranças de emoções como partidas, quartos vazios, separações. Não tenho mais emoção alguma. Sou só um corpo dotado de movimentos que vai derramando meticuloso a gasolina sobre os objetos. Tudo isso leva muito tempo. Não há nenhum centímetro dessa estranha montanha que não esteja impregnado até o fundo. Depois sento no chão, olho. Poderia chorar, ou pensar qualquer coisa funda, viva, forte. Não choro. Nem penso nada. Sou só um corpo sentado no chão de um pátio dentro de uma cidade qualquer, olhando para uma montanha de objetos encharcados de gasolina. Fico tempo assim, eu.<br />Às vezes uma estrela cadente cruza o céu em direção ao horizonte. Poderia fazer pedidos, mas nada tenho a pedir. Sentado no chão, permaneço ouvindo os barulhos da noite de sábado além dos muros. Espero paciente que se dissolvam aos poucos, que a cidade reste quieta enquanto as estrelas mudam de lugar sobre minha cabeça. Minha mente está tão alerta que é como se pairasse acima da dormência que se infiltra nos membros. Sei que eles reagirão ao primeiro comando. Quando tudo está finalmente quieto e uma pálida luz esverdeada começa a anunciar o amanhecer, faço contas lentas para verificar se a constelação do Escorpião começa a se erguer no Oriente. Então levanto, estendo pernas e braços lentamente numa dança para desentorpecer os músculos. Só depois de sentir o sangue renovado fluindo quente nas veias, risco um fósforo e trago a chama até bem perto dos olhos. As pupilas se contraem, antes de jogá-la sobre o monte de detritos. Não chego a ver o fogo. Atravesso correndo as portas abertas do interior da casa. Alcanço a rua.<br />No fim da rua, olho para trás e vejo as chamas subindo nos fundos daquela que eu chamava de a minha casa. Os cálculos estavam corretos, confirmo, quando volto a cabeça para o Ocidente e vejo as Plêiades e a constelação de Orion prestes a desaparecer. O céu está cada vez mais claro. Alguns pássaros começam a cantar. Tenho vontade de cantar também. Um canto feito de palavras, não como o antigo.<br />Daqui a pouco vai amanhecer. Há um vago cheiro de mar solto nas ruas.<br />Hesito um pouco na esquina. Antes de me pôr a caminho, abro devagar e completamente os braços para depois fechá-los arredondados, tocando suavemente as pontas dos dedos de uma das mãos nas pontas dos dedos da outra. Como se faz para abraçar uma pessoa. Mas não há nada entre meus braços além do ar da manhã. Suspiro, sorrio, desfaço o abraço.<br />Então, com as mãos vazias, finalmente começo a navegar</div>ludelfuegohttp://www.blogger.com/profile/08109557533556971820noreply@blogger.com37