Aquela noite, à hora de costume, ao voltar para casa Ele virou várias vezes a chave na fechadura e não conseguiu abrir a porta. Fazia frio, Ele estava com dor de barriga: não tinha agasalho e, por razões que o psiquiatra ainda não descobrira, só conseguia freqüentar seu próprio banheiro. Ele morava sozinho e só tinha aquela chave. Ele deu algumas voltas na calçada, olhou para cima como se acreditasse em Deus, e tentou novamente. Ele tentou mais de dez vezes, mas não conseguiu abrir a porta. Afastou-se um pouco para pensar e, olhando bem para a casa, concluiu que talvez não fosse aquela. Mas. Ele não se enganava: nunca. E tentou reorganizar os detalhes na memória: o gramado seco que fora jardim um dia entre o muro baixo e descascado e a porta de madeira escura. E o muro não era tão baixo nem tão descascado nem a grama tão seca nem tão escura a madeira da porta.

Ele ficou um pouco confuso e voltou até a parada de ônibus para refazer o itinerário, embora morasse naquela zona havia mais de quinze anos e nunca tivesse errado o caminho, mesmo aos sábados, quando bebia duas — no máximo três — doses de uísque nacional. Na parada de ônibus estava o mesmo negro alto que ali ficava todas as noites (Ele ouvira os vizinhos comentarem que o negro era passador de fumo). Mas ficou aliviado ao ver que a parada continuava a mesma, com o poste de luz amarela e a placa meio torta para o lado esquerdo, sem falar no negro alto encostado no poste, os olhos empapuçados. Mas, olhando bem, a luz era um pouco mais forte, embora o poste fosse mais alto, e a placa continuava despencada, mas para o lado direito — e o negro. O negro não era tão alto, nem estava encostado no poste, nem tinha os olhos empapuçados. Ele pensou que talvez não tivesse prestado bem atenção no negro e que o poste, a luz e a placa podiam ter sido modificados por um-daqueles-serviços-públicos-sempre-tão-deficientes, e o negro, o negro podia ser outro, ou ter sido sempre aquele, afinal, prestava bem atenção nas coisas apenas uma vez, a primeira, depois passava adiante, a memória confirmando (quinze anos). E nunca tinha se enganado, nunca. Então chegou perto do negro e olhou-o de cima a baixo sem dizer nada, até o negro perguntar devagar-e-muito-gentil se queria alguma coisa. Ele disse que não, que muito obrigado, que não fumava, mas não conseguiu parar de olhar para o negro que continuava olhando gentilmente para ele e agora começava a sorrir com uns-dentes-claros-muito-bons. Um pouco desorientado, Ele bateu com dois dedos no chapéu de feltro e foi andando pelo itinerário que devia ser o mesmo.

Quase na esquina da rua que devia ser a sua começou a ouvir uns passos atrás dos seus, e olhou, e era o negro que vinha vindo lentamente, as mãos nos bolsos e aquele sorriso gentil nos lábios grossos. Ele pensou rapidamente em coisas como assaltos, assassinatos, banditismos os mais variados, mas bastava chegar à esquina, dobrar à esquerda e mais dois passos: estaria chegando em sua casa de muro-baixo-meio-descascado-separado-da-madeira-escura-da-porta-pela-grama-áspera-quase-morta. Para certificar-se, olhou para cima, para a placa da rua, uma placa velha, de letras brancas sobre um fundo azul-marinho: e estava lá: Rua das Hortênsias. Suspirou aliviado, um segundo, depois ficou pensando quase com certeza que a rua era das Rosas, não das Hortênsias. Foi aí que o negro chegou bem perto dele e parou. Ele perguntou por favor, onde ficava a Rua das Rosas? e o negro sorriu sacana dizendo que não tinha fósforos. Sem outra saída, Ele virou à esquerda, embora a rua não fosse a das Rosas, e apressou o passo, e o negro também apressou o passo, e só se ouvia o som de quatro pés batendo rápidos na rua de casas antigas, sem rosas nem hortênsias.

Na frente da casa que devia ser a sua, Ele parou para enxugar o suor que escorria da testa, embora fizesse frio, ainda há pouco, e lembrou com pavor que na esquina o negro apertara qualquer coisa no bolso, uma coisa longa, provavelmente uma faca, e tremeu, e pensou em correr, mas o negro tinha chegado perto e não havia jeito de fugir sem mostrar que estava com medo. Ele sorriu nervoso apontando a casa e disse que não era a sua, que a chave não servia. O negro não disse nada. Ele ficou olhando a ponta dos sapatos e lembrou de perguntar que bairro era aquele, e perguntou. Mas o negro sorriu daquele jeito sacana outra vez e apertou no bolso a coisa longa — certamente uma faca — e disse que também não sabia, nem que cidade, quanto mais o bairro, nem que país, e riu, e foi chegando muito perto. Ele olhou em volta, tentando reconhecer a rua de casas velhas, como quinze anos antes, quando olhara pela primeira vez, a memória confirmando todos os dias: as casas velhas, os paralelepípedos meio desfalcados, uma árvore na esquina, não lembrava bem se um salgueiro, um plátano ou uma casuarina, algumas hortênsias, ou rosas, ou petúnias. Mas isso não importava mais: não havia salgueiros nem plátanos nem casuarinas em nenhuma das quatro esquinas, e as casas eram novas, e os paralelepípedos corretos, sem falhas nem buracos, e nem hortênsias nem rosas nem petúnias. Mesmo assim resolveu abrir o portão e entrar, quase obrigado, porque o negro estava muito perto, com a coisa longa prestes a sair do bolso para entrar no seu peito, como nos jornais. E entrando rapidamente pelo jardim bem cuidado, Ele foi dizendo sem olhar para trás que desculpasse, que não tinha dinheiro, que era fim de mês, que dentro de uma semana quem sabe, no máximo duas. O negro sorria muito próximo repetindo que não tinha importância não, não tinha, prazer era prazer, e Ele já estava quase encurralado contra a porta, uma chave inútil nas mãos. Colocou-a novamente na fechadura e foi virando várias vezes, sem resultado, o rosto contra a madeira clara da porta e a pressão aguda da certamente uma faca do negro contra as suas nádegas.

Foi então que Ele decidiu perder mesmo a calma, a barriga doía muito e o frio estava apertando, e bateu disposto a gritar se fosse preciso. O negro recuou um pouco, mas Ele sorriu tranquilizador, não podia mostrar medo, e o negro voltou a aproximar-se enquanto Ele batia batia batia. Até que uma luz acendeu dentro de casa e Ele ouviu o barulho de uma chave útil dando voltas na fechadura para abrir a porta que mostrou uma cabeça despenteada de mulher loura. Ele pensou em explicar que não sabia como: a casa não era sua, nem a parada do ônibus, nem a rua, hortênsias, rosas, petúnias, salgueiros, plátanos, casuarinas, talvez nem o bairro ou a cidade — ou o mundo, até, não era aquele. Embora Ele não se enganasse, nunca. Mas a mulher não pedia nenhuma explicação: sorria da mesma forma do negro e escancarava a porta sem dizer nada. Ele enxergou a escada no fundo do corredor e começou a correr para lá. Ao fim do primeiro lance, ouviu os passos do negro e da mulher correndo atrás dele. A escada escura não terminava nunca, a mão ia tocando a poeira pelo corrimão, a barriga doía e seus ouvidos ouviam seis pés, inclusive os dele, batendo contra os degraus, cada vez mais rapidamente. A escada escura: a escada escura não terminava nunca. Ele sentia mãos estendidas atrás dele, quase a tocá-lo, como num complô, pensou em voltar-se e sorrir para tranquilizá-los, mas estava escuro, de nada adiantaria, o chapéu caiu numa curva, a escada era cheia de curvas, e Ele ouviu o som fofo do feltro pisado por quatro pés, um após o outro, e alguns palavrões, mas depois viu uma pequena luz no fim de um longo corredor. E foi correndo cada vez mais velozmente em direção à luz, até chegar bem perto e ver que era uma vidraça e, feito um automóvel desgovernado, não pôde deter os passos e então sentiu a carne varando os vidros, a barriga solta, o frio um pouco mais intenso, depois, um segundo antes de cair sobre a grama ressecada e áspera do jardim, olhou bem para uma porta de madeira escura, e um muro baixo, meio descascado, e as casas velhas em torno, e os paralelepípedos no meio da rua, com algumas hortênsias, e uma árvore qualquer na esquina, não sabia bem se salgueiro, plátano ou casuarina, mas não tinha importância, a chave servia, Eu, pensou antes da dor da faca entrando em sua nuca despenteada: Eu sempre disse que nunca me enganei.

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| Por ludelfuego | 26.4.07 | 00:51.

10 Responses to “SIM, ELE DEVE TER UM ASCENDENTE EM PEIXES”

  1. # Blogger caeiro

    cara, que texto impressionante. pintura expressionista, aquele caos mal contido expressando beleza.  

  2. # Anonymous Anônimo

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    PS.: tu escreve bem mesmo!  

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