Sobe, desce escadas; fecha, abre janelas; as escadas acabam na porta do quarto, as janelas se abrem sobre a parede cinza do edifício em frente. Qualquer dia entra janela adentro, ninguém pode fazer coisa alguma. Jogada na cama, dedilha o tédio abaixo do umbigo: inspirar contando até oito, segurar a respiração contando até oito, expirar contando até oito, segurar a respiração contando até oito. Mais uma vez, outra mais. Sete vezes. Con-cen-tra-ção. Hare Krishna. Krishna Hare. (Lulu casou com Jaime, lua-de-mel em Foz do Iguaçu. Betinha ganha três milhões por mês, secretária executiva. Norminha se forma psicóloga este ano.) Seis-sete-oito. Honeymoon. Até a moça gorda da farmácia, empregadosa, você pode discar pra mim? Tenho horror de telefone. Alô? É da Rádio ltaí? Aqui é a Dorvalina do Menino Deus, queria oferecer pro Jorge do 9º. batalhão "Daria tudo pra você estar aqui", com Wanderley Cardoso. Tudo. Tudinho. Ah. Até o espelho, meu Deus, o cabelo já não tem o mesmo brilho, e essas marquinhas nos cantos dos olhos quando sorri? fora o que não aparece, os seios, meu Deus, os seios despencando, gordurinhas nas dobras da cintura, tenho vinte e nove anos, e mais, e mais: as outras marcas, as de dentro. Devia começar a usar óculos, prender o cabelo, cores mais discretas, marrom, cinza, gelo. Brigitte Bardot tem quarenta anos, eu adoro vermelho. Mas. Abre portas, a sacada sobre o gramado, pelo menos essa grama verde batida de sol, na casa ao lado alguém ouve música italiana: sapore di sale sapore di mare roberta ascoltami mio cuore, tanto tempo, meu Deus como a gente se trai nessas memórias. Mas a margarida. Desce para o jardim, o vento Norte, a casa quieta, sábado de tarde, abriu! é a primeira desta primavera, pólen solto no ar. Observa bem de perto. A margarida não é igual às outras margaridas. A margarida tem uma pétala encravada no centro, por que você não abriu para fora como as outras? ficar aí nesse centro amarelo: a margarida atrofiada, a margarida aleijada. O vento Norte joga os cabelos na cara, os homens da construção ao lado, assim pode observá-los melhor entre os fios, melhor, ninguém suspeita. Novembro novembro. O calção branco, as coxas fortes, os pêlos da barriga afundando no volume dentro do calção branco: Densidades Inimagináveis. O pensamento espástico. Sabe o que é espástico? É o que tem uma deficiência nervosa qualquer, eu também não sei direito: o espástico joga pernas & braços em todas as direções, sem o menor controle. Ah. Menina, o que foi que aconteceu com você? O que foi que fizeram com você? Eu não sei, eu não entendo. Roubaram a minha alegria, Tiamelinha quando foi pra clínica só dizia isso: roubaram a minha alegria, é tudo uma farsa, aquele olho desmaiado, é tudo uma farsa, roubaram a minha alegria. A primavera, o vento, esperei tanto por essa margarida, e veja só. Atrofiada. Aleijada. As pedras frias do chão da cozinha, rolar nua neste chão, qualquer dia faço uma loucura, faz nada, você está nessa marcação faz mais de dez anos. Mais de dez anos. A gente se entrega nas menores coisas. O cabelo enorme de Luzinha, você tá marcando, garota. (Jaime Jaime Jaime, como é que você foi casar com a Lulu, com aqueles dentões? Vai ser horrível, não vai dar certo.) Um chá, um chá às vezes resolve, funcho, capim-cidró, macela. Deve ter lua cheia hoje, fico meio enlouquecida. Inspirar, expirar, contando até oito. Papai, eu estou louca pirada que nem Tiamelinha, acho tudo uma farsa, roubaram a minha alegria, papai. Durmo durmo durmo, batem na porta mas nunca é ninguém, aconteceu alguma coisa comigo, eu não era assim, esses calores, quem sabe alguns trabalhos caseiros? cozinhar costurar bordar tricotar, essas coisas. Você não quer voltar a estudar? era tão inteligente, parecia até que tinha uma certa queda para história. Joana Angélica, Maria Quitéria, Anita Garibaldi, essas machonas todas. Papai, meu pai, quero lamber o suor do meio das coxas daquele moço de calção branco da construção aí da frente. Desculpe, é o meu pensamento espástico, a lua cheia, não sou dessas, papai. Agora já não dá mais, Luzinha, troppo tarde, se continuo assim vou parar numa clínica ou tento o suicídio. Tenta nada, você não tem coragem, e tentar pra quê? pra chamar a atenção dos outros? pra dizer como-sou-infeliz-ninguém-me-entende? Bobeira, garota, você quer, arrumo umas pancas aí numas bocas e você sai dando. Tem tudo que quer e fica aí se queixando, parece uma tia velha solteirona, queria ver você dar duro, trabalhar oito horas por dia, sustentar mãe-entrevada-&-pai-alcoólatra, trabalhar, quem sabe? Você não sabe datilografia estenografia inglês correspondência? Secretária executiva, nas férias você vai pro Rio, Montevideu, Buenos Aires, com o tempo pode ir até a Paris fazer compras. Socorro. Um tiro no ouvido. Pior, pior ainda: envelhecer devagarinho, secar feito passa sem que ninguém tenha cravado os dentes na minha polpa macia. Poesia, quem sabe escrever sonetos soluciona? À tardinha a sombra dos mamoneiros se reflete na parede cinza do edifício em frente. Mas isso não dá um poema. À tardinha. Inspirar, expirar. Hare Rama. Rama Krishna. Rubras cascatas no céu, Luzinha é quem tem razão, sair dando por aí, mas Tiamelinha foi pra clínica de puro desgosto, Luzinha toma droga, pega qualquer macho. Bem que ela faz. Cala a boca, menina, quer matar seu pai do coração? A escada serve para subir e descer, a janela para abrir e fechar: o corpo serve só para doer, dolorir, vinte e nove anos, quase trinta, que horror, eu não resistirei, depois trinta e um, aí as cores discretas, aí os trabalhos caseiros, e eu que adoro vermelho. (Jaime Jaime Jaime, você não devia ter feito isso comigo), tomar banho e ficar na sacada sem olhar os pêlos molhados de suor do peito do moço da construção em frente, esperando o quê? esperando quem? Aqui-e-agora, Luzinha me empresta cada livro, aqui-e-agora, esses pássaros idiotas sobrevoando essa ilha de loucos, aqui-e-agora, não consigo mais ler essa porcaria, espástica, es-pás-ti-ca, proparoxítona é que tem acento na antepenúltima? o póster de Burt Reynolds, que vontade, Densidades Inimagináveis, nem lembro mais, venha comigo, aqui-e-agora, cinco-seis-sete-oito: por favor, por favor POR FAVOR : crave seus dentes na minha polpa maciaaaaaaaaaaaah.

| Por ludelfuego | 26.4.07 | 00:53.

15 Responses to “ATÉ OITO, A MINHA POLPA MACIA”

  1. # Blogger Cuekjam

    Este comentário foi removido pelo autor.  

  2. # Anonymous Anônimo

    de que livro vem esse texto?  

  3. # Blogger caeiro

    cara, sabe o que isso parece? jazz. virtuosismo sem hora marcada, pelos cantos, transbordando. e difícil. muito bom.  

  4. # Blogger Luciano Costa

    cara, muito bom. não conhecia o blog. estive lendo os textos, genial. vou continuar acessando.  

  5. # Blogger Glasgow 0

    VAI ESCREVER BEM ASSIM LÁ EM CALCUTÁ!!!!!!!!!!!!  

  6. # Blogger chenlina
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