ERAM cinco e quinze da tarde. Sabia mesmo sem olhar o relógio, mesmo que nesse dia nem houvesse sol, para poder acompanhar a mancha clara de luz reduzindo-se cada vez mais na parede em frente à janela aberta, enquanto a noite chegava. E eles viessem, com a noite. Mas tinha medo de pensar nisso, então supunha que sabia por uma espécie de vibração no ar, assim como se as coisas, aquelas coisas de fora, tivessem um movimento especial, feito um leve arfar, todos os dias, passados quinze minutos das cinco horas, à tarde. Só que as coisas não se moviam. Talvez quem sabe na superfície ou dentro de seu corpo, contrair de vísceras, dilatação da pupila, um palpitar mais acelerado no coração, miúdas gotas de suor na palma das mãos - breve susto na alma.
De qualquer forma, sabia - de onde quer que viesse o aviso. Sabia tanto que, igual às outras vezes, colocou a mão sobre o telefone um pouco antes que tocasse. E antes ainda sequer de começar a esperar, porque eram cinco e quinze, ele estremeceu ao ouvir o toque, quase sorrindo para dentro, para si, porque de alguma forma era como se o toque fosse produzido apenas pela vibração de seus dedos suspensos sobre o aparelho. Tivesse o poder de, à distância, magnetizar a mão de outra pessoa, induzindo o dedo indicador naquela mão daquela outra pessoa a discar seus seis ou sete números para chamá-lo. Mas já não tinha poder algum, se é que tivera um dia. E achava que não, além desse de agora: manter as pontes pelo tempo necessário e impreciso.
Só atendeu depois do telefone tocar três vezes.
Luminosa e viva, a outra voz, cheia de cristais agudos. Pedrinhas moídas de gelo batendo nas bordas de vidro de um copo. Tão reluzentes que piscou os olhos sem querer, ofuscado. Olhava pela janela, a sombra na parede oposta. Precisava de tempo, nessa transição entre as trevas do interior da caverna e o campo eletrizado de luz. Zona de penumbra, embora soubesse, acostumando retinas viciadas, perguntou lento:
- Quem está falando? - e repetiu duas, três vezes, até que a voz parasse de falar sobre qualquer coisa que ele não entendia direito, qualquer coisa daquelas lá de fora, inteligíveis somente para quem estava lá, no meio do vivo, sem começo nem fim, nem dirigida especialmente a ele, interferência numa linha cruzada.
- Não está me reconhecendo? Sou sempre eu.
Afastou um pouco o fone do ouvido - tão alta, a outra voz. Não que fosse desagradável, nem estridente demais. Ao contrário: fugindo assim pelos furinhos do fone, o som parecia espalhar-se por todos os cantos do quarto estreito. Batia nas paredes, eco refletido, derramada sobre todos os objetos, envolvendo-os em finos tecidos sonoros, dissolvia o mofo, coloria a sombra, ensolarada. Asa de cigarra, manhã de janeiro. O quarto escuro brilhou, esmaltado pela voz de ouro. Por favor, quis pedir, me leva daqui, preciso de ajuda antes que seja tarde demais. Mas não era permitido. Rígidos rituais solenes, escondidos atrás das fórmulas de cortesia, às cinco e quinze da tarde. E a dor feito buraco de traça disfarçado sob castiçais. Tornou a aproximar o fone do ouvido, com carinho e cuidado.
- O que é que houve? Você não está bem?
De qualquer forma, sabia - de onde quer que viesse o aviso. Sabia tanto que, igual às outras vezes, colocou a mão sobre o telefone um pouco antes que tocasse. E antes ainda sequer de começar a esperar, porque eram cinco e quinze, ele estremeceu ao ouvir o toque, quase sorrindo para dentro, para si, porque de alguma forma era como se o toque fosse produzido apenas pela vibração de seus dedos suspensos sobre o aparelho. Tivesse o poder de, à distância, magnetizar a mão de outra pessoa, induzindo o dedo indicador naquela mão daquela outra pessoa a discar seus seis ou sete números para chamá-lo. Mas já não tinha poder algum, se é que tivera um dia. E achava que não, além desse de agora: manter as pontes pelo tempo necessário e impreciso.
Só atendeu depois do telefone tocar três vezes.
Luminosa e viva, a outra voz, cheia de cristais agudos. Pedrinhas moídas de gelo batendo nas bordas de vidro de um copo. Tão reluzentes que piscou os olhos sem querer, ofuscado. Olhava pela janela, a sombra na parede oposta. Precisava de tempo, nessa transição entre as trevas do interior da caverna e o campo eletrizado de luz. Zona de penumbra, embora soubesse, acostumando retinas viciadas, perguntou lento:
- Quem está falando? - e repetiu duas, três vezes, até que a voz parasse de falar sobre qualquer coisa que ele não entendia direito, qualquer coisa daquelas lá de fora, inteligíveis somente para quem estava lá, no meio do vivo, sem começo nem fim, nem dirigida especialmente a ele, interferência numa linha cruzada.
- Não está me reconhecendo? Sou sempre eu.
Afastou um pouco o fone do ouvido - tão alta, a outra voz. Não que fosse desagradável, nem estridente demais. Ao contrário: fugindo assim pelos furinhos do fone, o som parecia espalhar-se por todos os cantos do quarto estreito. Batia nas paredes, eco refletido, derramada sobre todos os objetos, envolvendo-os em finos tecidos sonoros, dissolvia o mofo, coloria a sombra, ensolarada. Asa de cigarra, manhã de janeiro. O quarto escuro brilhou, esmaltado pela voz de ouro. Por favor, quis pedir, me leva daqui, preciso de ajuda antes que seja tarde demais. Mas não era permitido. Rígidos rituais solenes, escondidos atrás das fórmulas de cortesia, às cinco e quinze da tarde. E a dor feito buraco de traça disfarçado sob castiçais. Tornou a aproximar o fone do ouvido, com carinho e cuidado.
- O que é que houve? Você não está bem?
- Estou - disse devagar. Impossível dizer “tenho medo” ou alguma coisa dessas - pessoal, assustadora. Levou a mão livre ao coração. Suspirou, entre duas batidas. - Não houve nada. Estou bem.
- Tive a impressão que você não estava ouvindo. A voz de rio, água deslizando entre pedras lisas, clarinhas, alguma flor amarela, respingos na corola, repetiu, o tronco áspero que arranhava a garganta dele mesmo, pedindo passagem - e o fio do telefone ligando as duas vozes sobre a cidade, às cinco e quinze de cada tarde - preciso tempo.
- O quê?
- Tempo. Preciso sempre de um certo tempo, desde o momento em que você começa a falar até.
A voz riu. Levemente cúmplice, quase terna, visitante habitual e complacente das escadarias dentro dele, poeiras, sótãos, teias de aranha visguentas dificultando o caminho, e de repente a queda brusca no meio de um corredor conhecido, embora ele não tivesse terminado de falar.
- Até poder falar. Ë a minha voz. Fica assim como se eu não tivesse controle nenhum sobre ela. Eu me desacostumo de falar. Parece depois que vem de longe, que não é minha. Nunca aconteceu isso com você?
- Sempre se pode cantar. Ou ler um livro em voz alta. Você não tem nenhum livro aí?
- Você sabe que não - começou a dizer. Mas um ruído de avião ou automóvel do outro lado do fio interrompeu por um momento o som. Uma nuvem cobria o sol. Havia ruídos lá, e movimentos, trepidâncias, pulsações: podia senti-los a atravessar a linha, irrequietos, quase vivos, para saírem do fone, junto com a voz, retorcendo-se pelos cantos do quarto. Nenhum interesse além das grades da janela, das quais se afastariam com nojo. Esse nojo curioso, apiedado, por um bicho numa jaula.
- Quero que você fique bom logo - a outra voz disse. E parecia verdade. Só de ouvi-la, tinha vontade de debruçar-se à janela para cumprimentar alguém que estendesse roupas lá embaixo, sem medo dos dentes arreganhados. Não havia varais. Do outro lado da janela, apenas o muro de cimento, alto como uma parede, a aridez do pátio coberto de lajes, sem plantas. E as grades, antes, para barrar previamente o salto que ainda não dera. (Do lado de lá, a moça sorriu mais com os olhos azuis atrás de óculos redondos do que com a boca pequena, lábios polpudos, bem desenhados. Como costumava sorrir. Esboçou no ar um movimento para ampará-la - vacilava tanto nos últimos tempos, desde que desaprendera a ficar em pé, ou desinteressara-se disso, concentrada na aprendizagem de outros equilíbrios mais delicados. Ela esquivou-se suave, mas firme, como a dizer que agora já não importava, qualquer ajuda e’ inútil depois da travessia decidida: te estreito, te estreito e me precipito.*) Quis repetir isso ao telefone, para avisar à voz, mansa chantagem. Só conseguiu dizer:
- Obrigado.
Por trás da palma da mão contra o peito, por trás do pano da camisa, entre massas de carne entremeadas de músculos, nervos, gorduras, veias, ossos, o coração batia disparado. Você vai me abandonar - repetiu sem som, a boca movendo-se muito perto do fone - e eu nada posso fazer para impedir. Você é meu único laço, cordão umbilical, ponte entre o aqui de dentro e o lá de fora. Te vejo perdendo-se todos os dias entre essas coisas vivas onde não estou. Tenho medo de, dia após dia, cada vez mais não estar no que você vê. E tanto tempo terá passado, depois, que tudo se tornará cotidiano e a minha ausência não terá nenhuma importância. Serei apenas memória, alívio, enquanto agora sou uma planta carnívora exigindo a cada dia uma gota de sangue para manter-se viva. Você rasga devagar seu pulso com as unhas para que eu possa beber. Mas um dia será demasiado esforço, excessiva dor, e você esquecerá como se esquece um compromisso sem muita importância. Uma fruta mordida apodrecendo em silêncio no prato.
- Tive a impressão que você não estava ouvindo. A voz de rio, água deslizando entre pedras lisas, clarinhas, alguma flor amarela, respingos na corola, repetiu, o tronco áspero que arranhava a garganta dele mesmo, pedindo passagem - e o fio do telefone ligando as duas vozes sobre a cidade, às cinco e quinze de cada tarde - preciso tempo.
- O quê?
- Tempo. Preciso sempre de um certo tempo, desde o momento em que você começa a falar até.
A voz riu. Levemente cúmplice, quase terna, visitante habitual e complacente das escadarias dentro dele, poeiras, sótãos, teias de aranha visguentas dificultando o caminho, e de repente a queda brusca no meio de um corredor conhecido, embora ele não tivesse terminado de falar.
- Até poder falar. Ë a minha voz. Fica assim como se eu não tivesse controle nenhum sobre ela. Eu me desacostumo de falar. Parece depois que vem de longe, que não é minha. Nunca aconteceu isso com você?
- Sempre se pode cantar. Ou ler um livro em voz alta. Você não tem nenhum livro aí?
- Você sabe que não - começou a dizer. Mas um ruído de avião ou automóvel do outro lado do fio interrompeu por um momento o som. Uma nuvem cobria o sol. Havia ruídos lá, e movimentos, trepidâncias, pulsações: podia senti-los a atravessar a linha, irrequietos, quase vivos, para saírem do fone, junto com a voz, retorcendo-se pelos cantos do quarto. Nenhum interesse além das grades da janela, das quais se afastariam com nojo. Esse nojo curioso, apiedado, por um bicho numa jaula.
- Quero que você fique bom logo - a outra voz disse. E parecia verdade. Só de ouvi-la, tinha vontade de debruçar-se à janela para cumprimentar alguém que estendesse roupas lá embaixo, sem medo dos dentes arreganhados. Não havia varais. Do outro lado da janela, apenas o muro de cimento, alto como uma parede, a aridez do pátio coberto de lajes, sem plantas. E as grades, antes, para barrar previamente o salto que ainda não dera. (Do lado de lá, a moça sorriu mais com os olhos azuis atrás de óculos redondos do que com a boca pequena, lábios polpudos, bem desenhados. Como costumava sorrir. Esboçou no ar um movimento para ampará-la - vacilava tanto nos últimos tempos, desde que desaprendera a ficar em pé, ou desinteressara-se disso, concentrada na aprendizagem de outros equilíbrios mais delicados. Ela esquivou-se suave, mas firme, como a dizer que agora já não importava, qualquer ajuda e’ inútil depois da travessia decidida: te estreito, te estreito e me precipito.*) Quis repetir isso ao telefone, para avisar à voz, mansa chantagem. Só conseguiu dizer:
- Obrigado.
Por trás da palma da mão contra o peito, por trás do pano da camisa, entre massas de carne entremeadas de músculos, nervos, gorduras, veias, ossos, o coração batia disparado. Você vai me abandonar - repetiu sem som, a boca movendo-se muito perto do fone - e eu nada posso fazer para impedir. Você é meu único laço, cordão umbilical, ponte entre o aqui de dentro e o lá de fora. Te vejo perdendo-se todos os dias entre essas coisas vivas onde não estou. Tenho medo de, dia após dia, cada vez mais não estar no que você vê. E tanto tempo terá passado, depois, que tudo se tornará cotidiano e a minha ausência não terá nenhuma importância. Serei apenas memória, alívio, enquanto agora sou uma planta carnívora exigindo a cada dia uma gota de sangue para manter-se viva. Você rasga devagar seu pulso com as unhas para que eu possa beber. Mas um dia será demasiado esforço, excessiva dor, e você esquecerá como se esquece um compromisso sem muita importância. Uma fruta mordida apodrecendo em silêncio no prato.
(*) Ana Cristina César: inéditos e dispersos
- Hein?
- Nada. Não disse nada.
- Tive a impressão de ter ouvido você falar. Muito baixo. Pensei que fosse com eles.
- Quem?
- Você sabe. Como é que você os chama?
- Ana, Carlos. Eles não estão aqui, agora.
- Eles têm voltado?
- Todas as noites.
(Paciente, determinado, o rapaz esperava a festa acabar. Tão determinado que, se alguém o olhasse mais atento, certamente perceberia alguma forma mais precisa nos movimentos, agora sem hesitação nenhuma, talvez na voz mais dura, um brilho estranho nos olhos. As contas, afinal, estavam feitas: não restara saldo. Um por um, esperava que todos se fossem. Limparia cinzeiros, depois, na casa vazia, recolheria migalhas da festa pelos cantos da sala para jogá-las no lixo. Talvez espiasse a noite de verão, parado à porta, sozinho com sua escolha, e respirasse muito fundo, ainda uma vez, deixando o cheiro denso do mar entontecer um pouco mais a cabeça cansada de tantos cansaços de tantos anos. Tão miúdos que nem percebera o peso. Era pequenino e manso de movimento e fala, como se temesse de alguma forma perturbar o campo vibratório das outras pessoas. Olharia as coisas uma última vez, coisas comuns: sofá, cadeira, mesa. Talvez não: estaria completamente cego no momento de tirar uma por uma as peças de roupa. Teria os olhos voltados para o outro lado, como quem sobe uma colina e, quase no topo, já consegue divisar algumas formas, uma moita, cumes de formigueiros, umas roxuras de flores rasteiras espalhadas no caminho de descida. Lento, lento. A lenta nudez, depois os dedos preparando o nó. Então o gesto de enfiá-lo pela cabeça, feito uma coroa - a coroa de loros que não teve ou desistiu de esperar - um tanto ridícula, excessivamente larga, que a corda descesse arranhando leve a ponta do nariz, o queixo. Ajustaria delicadamente o laço no pescoço, preparando a gravata para a festa -seria uma festa? - do outro lado. Não diria nada, embora na noite, às vezes, quando vinha, revelasse certas palavras fragmentadas, incompletas, no código baço dos que se foram, que se perdiam para sempre no mundo dos sonhos esquecidos, enquanto ele tentava inutilmente recompô-las na manhã seguinte. Mas não, não diria nada. Não se diz mais uma palavra quando, de muitas formas nunca claras o suficiente para que os outros entendam, tudo já foi dito. Então um impulso com o corpo, como quem vai voar, suspenso na forca. Depois, os dias quentes demais, o vento do mar espalhando o cheiro de podridão, misturado ao próprio cheiro, uma forte maresia soprava seu fedor de morte e fuga entre as curvas das areias nas dunas da praia remota.)
- Hein?
- As árvores, eu disse. Os cinamomos, você sabe. Já começaram a soltar aquele cheiro adocicado?
- Não reparei.
- Repara, então. Repara por mim. Depois me conta.
- Mas não se conta um cheiro.
- Explica, então. Você explica?
- Explico, conto. Mas livre-se deles.
- Livrar-se, você me ensina o jeito?
(Chegava com a noite, ela também, a moça loura e magra, cabelos finos como os de uma inglesa. A medida que o escuro se insinuava para dentro do quarto, o branco da roupa dela tornava-se mais nítido, quase fosforescente, sempre no canto esquerdo, rondando janelas. Nunca vinham juntos. E não sabia se o espantava mais a lentidão dele ou a pressa dela. Em qualquer dos dois, o ato já estava pronto. Executá-lo não seria mais do que colocar em prática marcações longamente ensaiadas na cabeça. Com ela, havia três momentos bem destacados, mas tão rápidos que poderiam parecer um só, se a cada noite ela não os repetisse, câmara lenta, um por um. Primeiro, a porta fechada. Em seguida, a gilete no pulso. Quando o sangue começava a escorrer, e percebia-se um fio longo esticando-se vermelho pela roupa branca - parecia uma menina assim, de relance, assustada com a primeira menstruação. Entre esse momento e o outro, havia aquele, muito pequeno, em que ela parava à janela, olhando fixo. E como nele, o outro que também vinha, não saberia nunca se contemplava as coisas pela última vez - os automóveis, o cimento das ruas com suas cintilações de calor, algumas poças de luz, miragens, as cabeças escuras das pessoas sobre roupas coloridas e pares de pernas embaixo delas, indo e vindo de lugares aos quais ela nunca mais iria - ou se voltava os olhos para o lado de lá de todas as coisas, onde talvez pudesse distinguir vagamente, difuso como um rosto atrás de vidraças em dia de chuva, um par de olhos conhecidos, algum sorriso. Não: nenhum sorriso. Lábios e olhos duros. O ato de colocar- se em pé no parapeito, um segundo antes sempre pareciam à beira do vôo. Te estreito - ela repetia -, te estreito e me precipito. Em seguida, o salto, a queda, barulho de ossos partidos, os gritos, a sirene e a correria das gentes pelas calçadas sujas de Copacabana.) Pediu:
- Venha me ver qualquer dia.
- Você sabe que é proibido. - De água, de sol, a voz parecia agora nublada por qualquer sombra como um cansaço. Pensou primeiro, e depois, mais duramente: uma impaciência, uma distância, uma fadiga de repetir sempre as mesmas coisas, às cinco e quinze da tarde.
Prometeu:
- Eu vou ficar bem.
- Claro que vai.
- Um dia eu volto.
- Claro que volta. Venha ver os cinamomos.
- Eu não tenho culpa.
- Claro que não.
- Eles estão ficando cada vez mais vagos. Como uma dessas neblinas na serra. Numa manhã de inverno, quando o sol começa a furar as nuvens. - Tinha começado a mentir, tão intensamente que talvez falasse a verdade. Quase conseguia vê-los, os corpos mais e mais esgarçados enquanto falava. - Estão ficando ralos, meio transparentes. As vozes cada vez mais fracas. Quase nem consigo entender o que dizem. Mal completam os movimentos, são como desenhos a tinta num papel molhado. Se apagando, mas tão lentos: não sei até quando resisto.
- Até quando for preciso. Estarei aqui.
- Talvez dependa de mim.
- Tudo tem seu tempo. Há o tempo deles, também. Eu sou a ponte para você, você é a ponte para eles.
- Tenho medo que você falhe. Porque, se você falhar, eu falho também. E eu não posso.
- Eu não vou falhar. Não porque não posso, mas porque não quero.
- É como um pacto?
- Se você quiser.
Precisava acreditar na outra voz: era só o que tinha. Mas não conseguia impedir-se de ver alguém lá de fora puxando-a apressado pelo braço - bares, cinemas, encontros, esquinas - para mergulharem juntos naquela vertigem de caras vivas, palavras dispersas, talvez meio vadias, mas sempre envolventes, sorrateiras, a afastá-lo - a ele, a ela, à outra voz - cada vez mais de si mesmo. Um dia seria para sempre: e eu só tenho esse centro talvez escuro de mim, onde me agarro. Nesse outro dia, não haveria nada ao redor, exceto as grades. Quis alertá-lo para a necessidade de resistirem juntos nessa ponte frágil. Até um dia qualquer de sol, se você me esperar lá fora.
De repente, agora, como antes, pressentindo o toque do telefone, alguma coisa começava a contorcer-se por dentro dele, no aviso da partida. Quis retê-la ainda, à outra voz, com alguma história. Os chineses, lembrou, os chineses mentiam aos gritos sobre a qualidade da colheita, para enganar e afugentar os deuses maus. Mas nunca achava que tivesse o direito de atraí-la, à outra voz, para o escuro onde estava. Percebeu mais claro que se afastava quando tentou recompor o rosto a quem pertencia a outra voz, sem conseguir. Debatia-se no lago, afundando cada vez que tentava voltar à tona. O rosto aproximava-se e afastava-se, cortado pelo movimento sinuoso dos peixes que faziam seus contornos oscilarem junto com as ondas, por um momento feito de água também. Guiava-se pela voz, um cego. Quis gritar por socorro, mas a água entrava-lhe boca adentro. Engolia as palavras proibidas, com gosto de algas secas.
Antes que desligasse, a outra voz teve tempo de dizer:
- Amanhã eu volto a ligar.
Passou os dedos devagar sobre o telefone mudo. Estava frio. Já não havia sonoridades vivas fugindo pelos furinhos do fone para aquecer e colorir o quarto. Todo o resto ia-se embora com a outra voz, o mundo inteiro que habitava dentro dele. Esse era o momento mais difícil: entre o abandono da voz e a espera deles. Ana, Carlos. Era breve. Anoitecia cedo naqueles dias de começo de inverno. Podia ver o escuro espalhando-se lento na parede oposta à janela aberta, tão lenta- mente que talvez pudesse, as mãos nas grades, espantá-lo com um grito.
Mas sabia que o escuro, ao contrário dos deuses chineses, não tem medo de gritos. Nem se deixa enganar.
Ao invés de deixar as costas escorregarem pela parede, igual a todos os dias, até sentar-se ao chão, os braços em torno dos joelhos, para depois balançar-se suavemente, muitas vezes, preferiu caminhar até a janela. Um sino tocou longe, quase às seis da tarde. Cerrou os dentes, voltou-se para dentro, disposto a enfrentá-los quando viessem novamente, trazidos pela noite. Fechou os olhos. Enquanto esperava, contra o fundo infinito das pálpebras, com muito esforço, entre formas e fantasmas, conseguiu divisar, cada vez mais nítido, qualquer coisa como os dedos abertos de uma mão estendida em direção a ele.
Não me abandone, pediu para dentro, para o fundo, para longe, para cima, para fora, para todas as direções. E curvou a cabeça como quem reza. Para que a mão pudesse tocá-lo, inaugurando finalmente a luz. Mesmo dentro do escuro, alguma espécie de luz. Talvez como aquela que habitava a outra voz, tão viva e cada vez mais remota. Todos os dias, por volta das cinco e quinze da tarde. Porque queria - e queria porque queria - a luz da outra voz, não a escuridão deles: escolheu.
- Nada. Não disse nada.
- Tive a impressão de ter ouvido você falar. Muito baixo. Pensei que fosse com eles.
- Quem?
- Você sabe. Como é que você os chama?
- Ana, Carlos. Eles não estão aqui, agora.
- Eles têm voltado?
- Todas as noites.
(Paciente, determinado, o rapaz esperava a festa acabar. Tão determinado que, se alguém o olhasse mais atento, certamente perceberia alguma forma mais precisa nos movimentos, agora sem hesitação nenhuma, talvez na voz mais dura, um brilho estranho nos olhos. As contas, afinal, estavam feitas: não restara saldo. Um por um, esperava que todos se fossem. Limparia cinzeiros, depois, na casa vazia, recolheria migalhas da festa pelos cantos da sala para jogá-las no lixo. Talvez espiasse a noite de verão, parado à porta, sozinho com sua escolha, e respirasse muito fundo, ainda uma vez, deixando o cheiro denso do mar entontecer um pouco mais a cabeça cansada de tantos cansaços de tantos anos. Tão miúdos que nem percebera o peso. Era pequenino e manso de movimento e fala, como se temesse de alguma forma perturbar o campo vibratório das outras pessoas. Olharia as coisas uma última vez, coisas comuns: sofá, cadeira, mesa. Talvez não: estaria completamente cego no momento de tirar uma por uma as peças de roupa. Teria os olhos voltados para o outro lado, como quem sobe uma colina e, quase no topo, já consegue divisar algumas formas, uma moita, cumes de formigueiros, umas roxuras de flores rasteiras espalhadas no caminho de descida. Lento, lento. A lenta nudez, depois os dedos preparando o nó. Então o gesto de enfiá-lo pela cabeça, feito uma coroa - a coroa de loros que não teve ou desistiu de esperar - um tanto ridícula, excessivamente larga, que a corda descesse arranhando leve a ponta do nariz, o queixo. Ajustaria delicadamente o laço no pescoço, preparando a gravata para a festa -seria uma festa? - do outro lado. Não diria nada, embora na noite, às vezes, quando vinha, revelasse certas palavras fragmentadas, incompletas, no código baço dos que se foram, que se perdiam para sempre no mundo dos sonhos esquecidos, enquanto ele tentava inutilmente recompô-las na manhã seguinte. Mas não, não diria nada. Não se diz mais uma palavra quando, de muitas formas nunca claras o suficiente para que os outros entendam, tudo já foi dito. Então um impulso com o corpo, como quem vai voar, suspenso na forca. Depois, os dias quentes demais, o vento do mar espalhando o cheiro de podridão, misturado ao próprio cheiro, uma forte maresia soprava seu fedor de morte e fuga entre as curvas das areias nas dunas da praia remota.)
- Hein?
- As árvores, eu disse. Os cinamomos, você sabe. Já começaram a soltar aquele cheiro adocicado?
- Não reparei.
- Repara, então. Repara por mim. Depois me conta.
- Mas não se conta um cheiro.
- Explica, então. Você explica?
- Explico, conto. Mas livre-se deles.
- Livrar-se, você me ensina o jeito?
(Chegava com a noite, ela também, a moça loura e magra, cabelos finos como os de uma inglesa. A medida que o escuro se insinuava para dentro do quarto, o branco da roupa dela tornava-se mais nítido, quase fosforescente, sempre no canto esquerdo, rondando janelas. Nunca vinham juntos. E não sabia se o espantava mais a lentidão dele ou a pressa dela. Em qualquer dos dois, o ato já estava pronto. Executá-lo não seria mais do que colocar em prática marcações longamente ensaiadas na cabeça. Com ela, havia três momentos bem destacados, mas tão rápidos que poderiam parecer um só, se a cada noite ela não os repetisse, câmara lenta, um por um. Primeiro, a porta fechada. Em seguida, a gilete no pulso. Quando o sangue começava a escorrer, e percebia-se um fio longo esticando-se vermelho pela roupa branca - parecia uma menina assim, de relance, assustada com a primeira menstruação. Entre esse momento e o outro, havia aquele, muito pequeno, em que ela parava à janela, olhando fixo. E como nele, o outro que também vinha, não saberia nunca se contemplava as coisas pela última vez - os automóveis, o cimento das ruas com suas cintilações de calor, algumas poças de luz, miragens, as cabeças escuras das pessoas sobre roupas coloridas e pares de pernas embaixo delas, indo e vindo de lugares aos quais ela nunca mais iria - ou se voltava os olhos para o lado de lá de todas as coisas, onde talvez pudesse distinguir vagamente, difuso como um rosto atrás de vidraças em dia de chuva, um par de olhos conhecidos, algum sorriso. Não: nenhum sorriso. Lábios e olhos duros. O ato de colocar- se em pé no parapeito, um segundo antes sempre pareciam à beira do vôo. Te estreito - ela repetia -, te estreito e me precipito. Em seguida, o salto, a queda, barulho de ossos partidos, os gritos, a sirene e a correria das gentes pelas calçadas sujas de Copacabana.) Pediu:
- Venha me ver qualquer dia.
- Você sabe que é proibido. - De água, de sol, a voz parecia agora nublada por qualquer sombra como um cansaço. Pensou primeiro, e depois, mais duramente: uma impaciência, uma distância, uma fadiga de repetir sempre as mesmas coisas, às cinco e quinze da tarde.
Prometeu:
- Eu vou ficar bem.
- Claro que vai.
- Um dia eu volto.
- Claro que volta. Venha ver os cinamomos.
- Eu não tenho culpa.
- Claro que não.
- Eles estão ficando cada vez mais vagos. Como uma dessas neblinas na serra. Numa manhã de inverno, quando o sol começa a furar as nuvens. - Tinha começado a mentir, tão intensamente que talvez falasse a verdade. Quase conseguia vê-los, os corpos mais e mais esgarçados enquanto falava. - Estão ficando ralos, meio transparentes. As vozes cada vez mais fracas. Quase nem consigo entender o que dizem. Mal completam os movimentos, são como desenhos a tinta num papel molhado. Se apagando, mas tão lentos: não sei até quando resisto.
- Até quando for preciso. Estarei aqui.
- Talvez dependa de mim.
- Tudo tem seu tempo. Há o tempo deles, também. Eu sou a ponte para você, você é a ponte para eles.
- Tenho medo que você falhe. Porque, se você falhar, eu falho também. E eu não posso.
- Eu não vou falhar. Não porque não posso, mas porque não quero.
- É como um pacto?
- Se você quiser.
Precisava acreditar na outra voz: era só o que tinha. Mas não conseguia impedir-se de ver alguém lá de fora puxando-a apressado pelo braço - bares, cinemas, encontros, esquinas - para mergulharem juntos naquela vertigem de caras vivas, palavras dispersas, talvez meio vadias, mas sempre envolventes, sorrateiras, a afastá-lo - a ele, a ela, à outra voz - cada vez mais de si mesmo. Um dia seria para sempre: e eu só tenho esse centro talvez escuro de mim, onde me agarro. Nesse outro dia, não haveria nada ao redor, exceto as grades. Quis alertá-lo para a necessidade de resistirem juntos nessa ponte frágil. Até um dia qualquer de sol, se você me esperar lá fora.
De repente, agora, como antes, pressentindo o toque do telefone, alguma coisa começava a contorcer-se por dentro dele, no aviso da partida. Quis retê-la ainda, à outra voz, com alguma história. Os chineses, lembrou, os chineses mentiam aos gritos sobre a qualidade da colheita, para enganar e afugentar os deuses maus. Mas nunca achava que tivesse o direito de atraí-la, à outra voz, para o escuro onde estava. Percebeu mais claro que se afastava quando tentou recompor o rosto a quem pertencia a outra voz, sem conseguir. Debatia-se no lago, afundando cada vez que tentava voltar à tona. O rosto aproximava-se e afastava-se, cortado pelo movimento sinuoso dos peixes que faziam seus contornos oscilarem junto com as ondas, por um momento feito de água também. Guiava-se pela voz, um cego. Quis gritar por socorro, mas a água entrava-lhe boca adentro. Engolia as palavras proibidas, com gosto de algas secas.
Antes que desligasse, a outra voz teve tempo de dizer:
- Amanhã eu volto a ligar.
Passou os dedos devagar sobre o telefone mudo. Estava frio. Já não havia sonoridades vivas fugindo pelos furinhos do fone para aquecer e colorir o quarto. Todo o resto ia-se embora com a outra voz, o mundo inteiro que habitava dentro dele. Esse era o momento mais difícil: entre o abandono da voz e a espera deles. Ana, Carlos. Era breve. Anoitecia cedo naqueles dias de começo de inverno. Podia ver o escuro espalhando-se lento na parede oposta à janela aberta, tão lenta- mente que talvez pudesse, as mãos nas grades, espantá-lo com um grito.
Mas sabia que o escuro, ao contrário dos deuses chineses, não tem medo de gritos. Nem se deixa enganar.
Ao invés de deixar as costas escorregarem pela parede, igual a todos os dias, até sentar-se ao chão, os braços em torno dos joelhos, para depois balançar-se suavemente, muitas vezes, preferiu caminhar até a janela. Um sino tocou longe, quase às seis da tarde. Cerrou os dentes, voltou-se para dentro, disposto a enfrentá-los quando viessem novamente, trazidos pela noite. Fechou os olhos. Enquanto esperava, contra o fundo infinito das pálpebras, com muito esforço, entre formas e fantasmas, conseguiu divisar, cada vez mais nítido, qualquer coisa como os dedos abertos de uma mão estendida em direção a ele.
Não me abandone, pediu para dentro, para o fundo, para longe, para cima, para fora, para todas as direções. E curvou a cabeça como quem reza. Para que a mão pudesse tocá-lo, inaugurando finalmente a luz. Mesmo dentro do escuro, alguma espécie de luz. Talvez como aquela que habitava a outra voz, tão viva e cada vez mais remota. Todos os dias, por volta das cinco e quinze da tarde. Porque queria - e queria porque queria - a luz da outra voz, não a escuridão deles: escolheu.
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