Escrito em 1991, este conto orginalmentepre_ tendia ser uma reescritura de A Pequena Sereia, de Andersen. Com Os sapatinhos vermelhos (de Os dragões não conhecem o paraíso), mais outras histórias até agora apenas em projeto, formaria um livro chamado Malditas fadas, só com versões de Andersen para adultos”: Com este mesmo título e pequenas modificações, foi publicado no jornal Nicolau.
Viu os frutos do pomar amadurecerem e serem colhidos, viu a neve derreter-se nas montanhas. Mas nunca mais viu o príncipe.
(Andersen: A Pequena Sereia)
Veio num sonho, certa noite. Ela o amava. Ele a amava também. E ainda que essa coisa, o amor, fosse complicada demais para compreender e detalhar nas maneiras tortuosas como acontece, naquele momento em que acontecia dentro do sonho, era simples. Boa, fácil, assim era. Ela gostava de estar com ele, ele gostava de estar com ela. Isso era tudo. Dormiam juntos, no sonho, porque era bom para um e para outro estarem assim juntos, naquele outro espaço. Não vinha nada de fora, nem ninguém. Deitada nua no ombro também nu dele, não havia fatos. Dormiam juntos, apenas. Isso era limpo e nítido no sonho que ela sonhou aquela noite.
Deitada no ombro dele, ela via seu rosto muito próximo. Esse era o sonho, nada mais. E isso, mais tarde saberia, era o único fato do sonho inteiro: via o rosto dele muito próximo. Como um astronauta prestes a desembarcar veria a face da lua, mal reconhecendo o Mar da Serenidade perdido em poeira cinza, assim ela o via naquela proximidade excessiva, quase inumana de tão próxima. Fechasse os olhos — mas não os fecharia, pois já estava dormindo — guardaria contra as pálpebras cerradas um por um dos traços dele. Crateras miúdas com negros fios de barba despontando duros de dentro delas, molhadas gretas polpudas além das quais brilhava o branco duro dos dentes.
Coisas assim, ela via. E de olhos abertos, embora fechados, pois sonhava, protegia-o, protegiam- se no meio da noite. Tão simples, tão claro. E de alguma forma inequívoca, para sempre. Talvez ele tivesse passado um dos braços em tomo da cintura dela, quem sabe ela houvesse deitado uma das mãos sobre o ombro dele, erguendo os dedos até que tocassem no lóbulo de sua orelha. Em todos os dias que se seguiram à noite daquele sonho, e foram muitos, honestamente não saberia localizar outros detalhes. Pois enquanto dormia, naquela noite, tudo era só e apenasmente isso: dormiam juntos.
No centro da noite, no meio do sonho, no outro espaço.
Quase meio-dia da manhã seguinte, e ela não teria sequer a quem telefonar contando. Contando o que, perguntou-se, se nem havia o que contar propriamente? Lavou pratos e copos da noite anterior, folheou jornais, tanta miséria remota, e bocejou então andando pelo apartamento de solteira, metade do corpo ainda dentro do sonho onde ele também habitara. Despistou dois, três telefonemas, desmarcou alguma coisa pela tarde, outra pela noite. Queria ficar dentro de si, e nem importava quem exatamente era ela agora, assim vadia e meio à mercê, pensando só nele. No homem, no sonho. Morta de saudade, quase três da tarde deitou-se na cama ainda meio morna, e fumando na penumbra cortada pelas cintilações da curva da tarde, sentiu falta. Não de alguém morto ou perdido para sempre em viagem, em rompimento definitivo, não essa falta. Outra, nem falta nem saudade, mas coisa parecida e oca, o que ela sentia às três da tarde, fumando no quarto escuro. E sabia que de alguma forma ele continuava ali. Miúdas crateras, gretas polpudas. Em algum ponto da cama, do quarto, da mente, do espaço.
Embalada pelos ruídos da rua, dormiu até quase sete entre sonhos onde ele não surgia, perambulando por histórias que não o traziam de volta. Lavou o rosto, esquentou o frango no microondas, passou café, acendeu um cigarro espiando chatices na tevê — e tcomou a dormir. Custou um pouco. Foi quando, caindo em tentação, tentou quase desesperada lembrar-se — daquela vez, naquela noite — se ele teria mesmo passado um dos braços pela sua cintura, e se esse braço teria pêlos densos, mas macios de tocar, e se a mão dele realmente fechara-se exata e solidária e carinhosa naquele ponto secreto onde, constrangida, ela admitia ter mesmo algumas gordurinhas, e se a mão dela estaria assim meio pousada nos pêlos do peito dele, distendendo dois, três dedos até tocar no lóbulo da orelha. Colado ao rosto, alguém dissera, muita espiritualidade. Ou o contrário? Budas, Cristos, Oxalás, invocou no escuro que ainda guardava certo cheiro do sono anterior onde, nu e homem, ele habitara ao lado dela. Mas sabia que tudo isso — as invenções recentes sobre o outro espaço — era puro artifício.
Sem artifícios, acordou na manhã seguinte. Vazias, ela e a manhã. E procurou o telefone para contar às amigas. “Premonição”, disse uma, “você vai encontrar alguém”; “transporte astral”, disse outra, “você deve tê-lo realmente encontrado numa outra dimensão”; “ah, mera projeção de carências atávicas”, disse mais uma, “no fundo pura falta de sexo”. Algum dia, ela desesperançava, em algum lugar, planejou em seguida, noutro espaço, por trás de tudo, num mundo paralelo, quem sabe: ah, sim, que certamente tornaria a encontrá-lo numa interfreqüêncía de rádio ou televisão, num reflexo do espelho. E às quatro da manhã a surpreenderam com um prato de macarrão frio sobre os joelhos, os olhos postos vesgos nos riscos magnéticos horizontais da tela da tevê. Ele não estava lá. Nos dias seguintes, mesmo aceitando todos os janta-res e cedendo a todos os cinemas e shoppings e pizzarias, pois ele poderia também estar no real — ele também não estava lá. Nem aqui. Em nenhum lugar onde fosse, de fora ou de dentro, nos dias seguintes ao dia em que estivera deitada no ombro dele tão proximamente nu também, no fundo de um sonho, conseguia reencontrá-lo. Pois havia outros detalhes, semanas depois ainda tentava lembrar. Havia um cheiro, por exemplo. Tênue, quase perverso. Intimidade úmida, limpa, nas dobras da carne suada, preservada na própria pele. Feito égua no escuro do quarto, escancarava narinas farejando o macho que a cavalgaria. Deu para pesquisar colônias masculinas, aspirar camisas entreabertas dos homens pelos ônibus, nas filas de bancos e correios, elevadores, essência entre os pêlos, primeiro suor após o banho, reconheceria quando o encontrasse. O cheiro cru, original. Não encontrou. Dilatava as narinas em lugares públicos cheios de homens suados — mas nenhum cheiro era o dele. Rememorava meticulosa: de baixo para cima, rosto pousado no peito dela, assim o vira naquela única vez. E embora o ângulo distorcido, porque era tudo o que tinha, tentava recompô-lo meses — e distorções — depois. Miúdas crateras, fios negros duros de barba despontando — apegava-se à certeza do negros como se fincasse bandeira em território conquistado — e depois as gretas polpudas de um lábio inferior atrás do qual brilhavam alvos dentes brancos. Alvos, repetia. Revistou revistas procurando semelhanças, Gibsons, Hanks, Lamberts, e esforçando o olhar para além dos (cones imaginava identificar um sobrecílio, um pômulo, mas se passara tanto tempo que talvez, a original, a única, que não saberia seria ainda uma memória ou sua Primeira Invernada. Insistia: cílios longos macios. Sem vírgulas longos macios os cílios do homem que a amava e que ela amava também naquela noite e para sempre no meio de um sonho ficando antigo demais e meio disperso.
Invenções Desesperadas, pois, passou a fazer, Íntimas Orgias Imaginárias. Fossas nasais abertas onde ela passava a ponta da língua localizando certo remoto gosto salgado, e a outra mão dela, não aquela pousada no peito dele, mas esta uma que descia à toa pelos pêlos, enroscando-se até a cintura e então o umbigo súbito em certa barriga perdoada, porque ela o amava, e penetrava no umbigo com a ponta da unha vermelha, antes de mergulhar na mata mais abaixo, aquele homem que não era sequer perfeito e por isso mesmo belo, porque a amava e ela a ele, e isso era para sempre apesar do fugaz. Passaram-se meses, ela não o esquecia.
Toda noite, acompanhada ou não — pois ao fim e ao cabo achava, digamos, saudável manter uma vida real-objetiva enquanto ele continuava a acontecer dentro de si, no outro espaço, sem que ninguém soubesse —, abria-se só para ele. E quando os outros reais, objetivos, debruçavam-se sobre ela, virava-os de costas na cama — boca arriba, repetia, como se fora argentina, boca arriba — e encostando o rosto em seus peitos tentava retomar aquele mesmo ângulo entrevisto à beira do pescoço úmido, íntimo, único. Mas nunca outros homens foram, eram nem seriam aquele, e ela sabia que de maneira alguma poderiam ser, ainda que fingisse com o máximo de empenho. Pois, por trás do sonho, resistia o chamado real-impiedoso.
Porra caralho buceta, repetia sozinha. Bruta, vulgar. Afinal, não era essa a forma de procurá-lo, jamais no chamado real-impiedoso. Então voltava a deitar em horas absurdas e a dormir para tentar encontrá-lo no país onde habitava, e nem sabia que reino mais, tão diverso do dela. Todas as noites, um segundo antes de afundar, pensava — onde quer que você esteja, meu príncipe, em qualquer região da minha mente, no mínimo interstício, na fímbria do pensamento, frincha da memória, dobra da fantasia, faixa vibratória passada presente futura, aqui vou eu ao seu encontro, meu bem amado. E nada. Mesmo que alimentasse o hábito de materializar anjos e fadas sentados à beira de sua cama a perguntarem gentis o que desejava mais profunda e loucamente entre todas as coisas da vida inteira, o que mais queria de tudo que existe no universo infinito — e respondesse sempre, singela e sincera: tornar a encontrá-lo —, nunca mais voltou a vê-lo. Nem no sonho, nem na vida. Inúteis cartomantes, trânsitos, runas, ebós. O Valete de Copas traria carta de amor assim que Netuno abandonasse a oposição de Vênus na casa do karma, Peorth anunciaria o reencontro das coisas perdidas se Oxum aceitasse as rosas amarelas jogadas na cachoeira. Nessa região movediça da qual não desacreditava de todo, pois, afinal, fora onde o conhecera — ele também não estava. Delirava insone: quando eu voltar princesa e você gladiador entre feras, quem sabe na arena; quando emergir do fundo das águas para espiar teu reino terrestre e verde, à superfície, quando eu talvez sereia, mulher-maravilha, pastora e astronauta navegando em abismos — quem, quem sabe quando?
Por enquanto, arduamente. era só um cheiro de homem nu flutuando no escuro do quarto, quentura de bicho vivo pulsando junto à quentura de bicho vivo dela. Outra coisa, noutro lugar. Que não ficava aqui, nem lá. Talvez se morresse. O problema é que a vida era agora e era aqui. E além de não estar nem no aqui nem no agora, ele não partia.
Não se matou. Não seria capaz, resistia sempre à ilusão de encontrá-lo um dia. Por isso mesmo houve outros, claro. Algumas iluminações, encontros quase agradáveis até. O engenheiro divorciado, um professor de olhos verdes. Mas aprendeu a ir dormir sempre o mais cedo que pode, pois é nessa faixa que ele habita, ela sabe, a contemplá-la mesmo de olhos fechados. E de tudo que foi restando nesses anos todos, continua sabendo que sabe que fica lá o lugar onde poderia encontrá-lo outra vez. Do outro lado, onde com os olhos abertos ela vê com os olhos fechados e inteiramente nua, encostada ao ombro dele, que dorme inteiramente nu também, mas a vê-la dentro do sono.
Arfam levemente os dois. Ela dorme segura protegida no ombro dele que a protege seguro. Mesmo dormindo, mesmo do lado de cá. E isso é para sempre, por mais que o tempo passe e a afaste cada vez mais dele, que continua eterno naquele segundo em que o viu. E isso ninguém roubará, repete-se, mesmo levando em conta todos aqueles meses de enganos vis que continuam e continuarão a vir depois daquele sonho.
Eu te amo, repete sozinha para o escuro toda noite, pouco antes de seu corpo dissolver-se na espuma do sono, eu te amo. E se pudessem saber, os outros, todos saberiam que isso não deixa de ser uma vitória. Certa espécie de vitória. Mas tão dúbia que parece também uma completa derrota.
Viu os frutos do pomar amadurecerem e serem colhidos, viu a neve derreter-se nas montanhas. Mas nunca mais viu o príncipe.
(Andersen: A Pequena Sereia)
Veio num sonho, certa noite. Ela o amava. Ele a amava também. E ainda que essa coisa, o amor, fosse complicada demais para compreender e detalhar nas maneiras tortuosas como acontece, naquele momento em que acontecia dentro do sonho, era simples. Boa, fácil, assim era. Ela gostava de estar com ele, ele gostava de estar com ela. Isso era tudo. Dormiam juntos, no sonho, porque era bom para um e para outro estarem assim juntos, naquele outro espaço. Não vinha nada de fora, nem ninguém. Deitada nua no ombro também nu dele, não havia fatos. Dormiam juntos, apenas. Isso era limpo e nítido no sonho que ela sonhou aquela noite.
Deitada no ombro dele, ela via seu rosto muito próximo. Esse era o sonho, nada mais. E isso, mais tarde saberia, era o único fato do sonho inteiro: via o rosto dele muito próximo. Como um astronauta prestes a desembarcar veria a face da lua, mal reconhecendo o Mar da Serenidade perdido em poeira cinza, assim ela o via naquela proximidade excessiva, quase inumana de tão próxima. Fechasse os olhos — mas não os fecharia, pois já estava dormindo — guardaria contra as pálpebras cerradas um por um dos traços dele. Crateras miúdas com negros fios de barba despontando duros de dentro delas, molhadas gretas polpudas além das quais brilhava o branco duro dos dentes.
Coisas assim, ela via. E de olhos abertos, embora fechados, pois sonhava, protegia-o, protegiam- se no meio da noite. Tão simples, tão claro. E de alguma forma inequívoca, para sempre. Talvez ele tivesse passado um dos braços em tomo da cintura dela, quem sabe ela houvesse deitado uma das mãos sobre o ombro dele, erguendo os dedos até que tocassem no lóbulo de sua orelha. Em todos os dias que se seguiram à noite daquele sonho, e foram muitos, honestamente não saberia localizar outros detalhes. Pois enquanto dormia, naquela noite, tudo era só e apenasmente isso: dormiam juntos.
No centro da noite, no meio do sonho, no outro espaço.
Quase meio-dia da manhã seguinte, e ela não teria sequer a quem telefonar contando. Contando o que, perguntou-se, se nem havia o que contar propriamente? Lavou pratos e copos da noite anterior, folheou jornais, tanta miséria remota, e bocejou então andando pelo apartamento de solteira, metade do corpo ainda dentro do sonho onde ele também habitara. Despistou dois, três telefonemas, desmarcou alguma coisa pela tarde, outra pela noite. Queria ficar dentro de si, e nem importava quem exatamente era ela agora, assim vadia e meio à mercê, pensando só nele. No homem, no sonho. Morta de saudade, quase três da tarde deitou-se na cama ainda meio morna, e fumando na penumbra cortada pelas cintilações da curva da tarde, sentiu falta. Não de alguém morto ou perdido para sempre em viagem, em rompimento definitivo, não essa falta. Outra, nem falta nem saudade, mas coisa parecida e oca, o que ela sentia às três da tarde, fumando no quarto escuro. E sabia que de alguma forma ele continuava ali. Miúdas crateras, gretas polpudas. Em algum ponto da cama, do quarto, da mente, do espaço.
Embalada pelos ruídos da rua, dormiu até quase sete entre sonhos onde ele não surgia, perambulando por histórias que não o traziam de volta. Lavou o rosto, esquentou o frango no microondas, passou café, acendeu um cigarro espiando chatices na tevê — e tcomou a dormir. Custou um pouco. Foi quando, caindo em tentação, tentou quase desesperada lembrar-se — daquela vez, naquela noite — se ele teria mesmo passado um dos braços pela sua cintura, e se esse braço teria pêlos densos, mas macios de tocar, e se a mão dele realmente fechara-se exata e solidária e carinhosa naquele ponto secreto onde, constrangida, ela admitia ter mesmo algumas gordurinhas, e se a mão dela estaria assim meio pousada nos pêlos do peito dele, distendendo dois, três dedos até tocar no lóbulo da orelha. Colado ao rosto, alguém dissera, muita espiritualidade. Ou o contrário? Budas, Cristos, Oxalás, invocou no escuro que ainda guardava certo cheiro do sono anterior onde, nu e homem, ele habitara ao lado dela. Mas sabia que tudo isso — as invenções recentes sobre o outro espaço — era puro artifício.
Sem artifícios, acordou na manhã seguinte. Vazias, ela e a manhã. E procurou o telefone para contar às amigas. “Premonição”, disse uma, “você vai encontrar alguém”; “transporte astral”, disse outra, “você deve tê-lo realmente encontrado numa outra dimensão”; “ah, mera projeção de carências atávicas”, disse mais uma, “no fundo pura falta de sexo”. Algum dia, ela desesperançava, em algum lugar, planejou em seguida, noutro espaço, por trás de tudo, num mundo paralelo, quem sabe: ah, sim, que certamente tornaria a encontrá-lo numa interfreqüêncía de rádio ou televisão, num reflexo do espelho. E às quatro da manhã a surpreenderam com um prato de macarrão frio sobre os joelhos, os olhos postos vesgos nos riscos magnéticos horizontais da tela da tevê. Ele não estava lá. Nos dias seguintes, mesmo aceitando todos os janta-res e cedendo a todos os cinemas e shoppings e pizzarias, pois ele poderia também estar no real — ele também não estava lá. Nem aqui. Em nenhum lugar onde fosse, de fora ou de dentro, nos dias seguintes ao dia em que estivera deitada no ombro dele tão proximamente nu também, no fundo de um sonho, conseguia reencontrá-lo. Pois havia outros detalhes, semanas depois ainda tentava lembrar. Havia um cheiro, por exemplo. Tênue, quase perverso. Intimidade úmida, limpa, nas dobras da carne suada, preservada na própria pele. Feito égua no escuro do quarto, escancarava narinas farejando o macho que a cavalgaria. Deu para pesquisar colônias masculinas, aspirar camisas entreabertas dos homens pelos ônibus, nas filas de bancos e correios, elevadores, essência entre os pêlos, primeiro suor após o banho, reconheceria quando o encontrasse. O cheiro cru, original. Não encontrou. Dilatava as narinas em lugares públicos cheios de homens suados — mas nenhum cheiro era o dele. Rememorava meticulosa: de baixo para cima, rosto pousado no peito dela, assim o vira naquela única vez. E embora o ângulo distorcido, porque era tudo o que tinha, tentava recompô-lo meses — e distorções — depois. Miúdas crateras, fios negros duros de barba despontando — apegava-se à certeza do negros como se fincasse bandeira em território conquistado — e depois as gretas polpudas de um lábio inferior atrás do qual brilhavam alvos dentes brancos. Alvos, repetia. Revistou revistas procurando semelhanças, Gibsons, Hanks, Lamberts, e esforçando o olhar para além dos (cones imaginava identificar um sobrecílio, um pômulo, mas se passara tanto tempo que talvez, a original, a única, que não saberia seria ainda uma memória ou sua Primeira Invernada. Insistia: cílios longos macios. Sem vírgulas longos macios os cílios do homem que a amava e que ela amava também naquela noite e para sempre no meio de um sonho ficando antigo demais e meio disperso.
Invenções Desesperadas, pois, passou a fazer, Íntimas Orgias Imaginárias. Fossas nasais abertas onde ela passava a ponta da língua localizando certo remoto gosto salgado, e a outra mão dela, não aquela pousada no peito dele, mas esta uma que descia à toa pelos pêlos, enroscando-se até a cintura e então o umbigo súbito em certa barriga perdoada, porque ela o amava, e penetrava no umbigo com a ponta da unha vermelha, antes de mergulhar na mata mais abaixo, aquele homem que não era sequer perfeito e por isso mesmo belo, porque a amava e ela a ele, e isso era para sempre apesar do fugaz. Passaram-se meses, ela não o esquecia.
Toda noite, acompanhada ou não — pois ao fim e ao cabo achava, digamos, saudável manter uma vida real-objetiva enquanto ele continuava a acontecer dentro de si, no outro espaço, sem que ninguém soubesse —, abria-se só para ele. E quando os outros reais, objetivos, debruçavam-se sobre ela, virava-os de costas na cama — boca arriba, repetia, como se fora argentina, boca arriba — e encostando o rosto em seus peitos tentava retomar aquele mesmo ângulo entrevisto à beira do pescoço úmido, íntimo, único. Mas nunca outros homens foram, eram nem seriam aquele, e ela sabia que de maneira alguma poderiam ser, ainda que fingisse com o máximo de empenho. Pois, por trás do sonho, resistia o chamado real-impiedoso.
Porra caralho buceta, repetia sozinha. Bruta, vulgar. Afinal, não era essa a forma de procurá-lo, jamais no chamado real-impiedoso. Então voltava a deitar em horas absurdas e a dormir para tentar encontrá-lo no país onde habitava, e nem sabia que reino mais, tão diverso do dela. Todas as noites, um segundo antes de afundar, pensava — onde quer que você esteja, meu príncipe, em qualquer região da minha mente, no mínimo interstício, na fímbria do pensamento, frincha da memória, dobra da fantasia, faixa vibratória passada presente futura, aqui vou eu ao seu encontro, meu bem amado. E nada. Mesmo que alimentasse o hábito de materializar anjos e fadas sentados à beira de sua cama a perguntarem gentis o que desejava mais profunda e loucamente entre todas as coisas da vida inteira, o que mais queria de tudo que existe no universo infinito — e respondesse sempre, singela e sincera: tornar a encontrá-lo —, nunca mais voltou a vê-lo. Nem no sonho, nem na vida. Inúteis cartomantes, trânsitos, runas, ebós. O Valete de Copas traria carta de amor assim que Netuno abandonasse a oposição de Vênus na casa do karma, Peorth anunciaria o reencontro das coisas perdidas se Oxum aceitasse as rosas amarelas jogadas na cachoeira. Nessa região movediça da qual não desacreditava de todo, pois, afinal, fora onde o conhecera — ele também não estava. Delirava insone: quando eu voltar princesa e você gladiador entre feras, quem sabe na arena; quando emergir do fundo das águas para espiar teu reino terrestre e verde, à superfície, quando eu talvez sereia, mulher-maravilha, pastora e astronauta navegando em abismos — quem, quem sabe quando?
Por enquanto, arduamente. era só um cheiro de homem nu flutuando no escuro do quarto, quentura de bicho vivo pulsando junto à quentura de bicho vivo dela. Outra coisa, noutro lugar. Que não ficava aqui, nem lá. Talvez se morresse. O problema é que a vida era agora e era aqui. E além de não estar nem no aqui nem no agora, ele não partia.
Não se matou. Não seria capaz, resistia sempre à ilusão de encontrá-lo um dia. Por isso mesmo houve outros, claro. Algumas iluminações, encontros quase agradáveis até. O engenheiro divorciado, um professor de olhos verdes. Mas aprendeu a ir dormir sempre o mais cedo que pode, pois é nessa faixa que ele habita, ela sabe, a contemplá-la mesmo de olhos fechados. E de tudo que foi restando nesses anos todos, continua sabendo que sabe que fica lá o lugar onde poderia encontrá-lo outra vez. Do outro lado, onde com os olhos abertos ela vê com os olhos fechados e inteiramente nua, encostada ao ombro dele, que dorme inteiramente nu também, mas a vê-la dentro do sono.
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Eu te amo, repete sozinha para o escuro toda noite, pouco antes de seu corpo dissolver-se na espuma do sono, eu te amo. E se pudessem saber, os outros, todos saberiam que isso não deixa de ser uma vitória. Certa espécie de vitória. Mas tão dúbia que parece também uma completa derrota.
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