"Está tudo planejado:
se amanhã o dia for cinzento,
se houver chuva
se houver vento,
ou se eu estiver cansado
dessa antiga melancolia
cinza fria
sobre as coisas
conhecidas pela casa
a mesa posta
e gasta
está tudo planejado
apago as luzes, no escuro
e abro o gás
de-fi-ni-ti-va-men-te
ou então
visto minhas calças vermelhas
e procuro uma festa
onde possa dançar rock
até cair"

da Revista Bravo! fev 2006

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| Por Lara | 20.6.07 | 23:58.

A primeira vez que a viu foi rapidamente, entre um tropeço e uma corrida para não perder o ônibus. Mesmo assim, teve certeza de que havia sido feita apenas para ele. No ônibus, não houve tempo para pensá-la mais detidamente, mas, no dia seguinte, saindo mais cedo do trabalho, parou em frente à vitrine para observá-la. Era nada menos que perfeita na sua cor vagamente indefinível, entremeada de pequenas formas coloridas, em seu jeito alongado, na consistência que pressentia lisa e mansa ao toque. Disfarçado, observou o preço e, em seguida, retomou o caminho. Cara demais, pensou, e enquanto pensava decidiu não pensar mais no assunto.
Quase conseguiu — até o dia seguinte quando, voltando pela mesma rua, tornou a defrontar-se com ela, no mesmo lugar, sobre um suporte de veludo vermelho, escuro, pesado. Um suporte digno de tanta dignidade, pensou. E imediatamente soube que já não poderia esquecê-la. No ônibus, observou impiedoso as gravatas dos outros homens, todas levemente desbotadas e vulgares em suas colorações precisas, sem a menor magia. Pelo vidro da janela analisou sua própria gravata, e decepcionou-se constatando-a igual a todas as outras. Em casa, atarefado na cozinha, dispondo pratos, panelas e talheres para o próprio jantar, conseguiu por alguns momentos não pensar — mas um pouco mais tarde, jornal aberto sobre os joelhos, olhar perdido num comercial de televisão, surpreendeu-se a fazer contas, forçando pequenas economias que permitissem possuí-la. Na verdade, era mais fácil do que supunha. Alguns cigarros a menos, algumas fomes a mais. Deitado, a cama pareceu menos vazia que de costume. Na manhã seguinte, tomou a decisão: dentro de um mês, ela seria sua. Passou na loja, mandou reservá-la, quase envergonhado por fazê-la esperar tanto. Que ela, sabia, também ansiava por ele.
Trinta dias depois ela estava em suas mãos. Apalpou-a sôfrego, enquanto sentia vontade de usar adjetivos pomposos e cintilantes, de recriar toda a linguagem para comunicar-se com ela — o trivial não seria suficientemente expressivo, nem mesmo o meramente correto seria capaz de atingi-la: metafísicas, budismos, antropologias. Permaneceu deitado durante muito tempo, a observá-la sobre a colcha azul. Dos mais variados ângulos, ela continuava a mesma, terrivelmente bela, vaga e inatingível — mesmo ali, sobre a cama dele, mesmo com a nota de compra e o talão de cheques um pouco mais magro ao lado. Olhava os sapatos, as meias, a calça, a camisa — e não conseguia evitar uma espécie de sentimento de inferioridade: nada era digno dela. Um pouco mais tarde abriu o guarda-roupa e então deixou que um soluço comprimisse subitamente seu peito de coração ardente, como duas mãos que apertassem para depois libertá-lo em algumas lágrimas desiludidas. Não era possível. Não podia obrigá-la, tão nobre, a servir de companhia àqueles ternos, sapatos e camisas antigos, gastos, vulgares, cinzentos. Foi depois de olhar perdido para o assoalho que teve como um repente de lucidez. Então encarou agressivo a impassibilidade da gravata e disse:
– Você é minha. Você não passa de um objeto. Não importa que tenha vindo de longe para pousar entre coisas caras na vitrine de uma loja rica. Eu comprei você. Posso usá-la à hora que quiser. Como e onde quiser. Você não vai sentir nada, porque não passa de um pedaço de pano estampado. Você é uma coisa morta. Você é uma coisa sem alma. Você...
Não conseguiu ir adiante. A voz dele estremeceu e falhou bem no meio de uma palavra dura, exatamente como se estivesse blasfemando e Deus o houvesse castigado. Um Deus de plástico, talvez de acrílico ou néon. Olhou desamparado para o sábado acontecendo por trás das janelas entreabertas e, sem cessar, para a colcha azul sobre a cama, logo abaixo da janela e, mais uma vez, para a gravata exposta em seu suporte de veludo pesado, vermelho.
Ele enxugou os olhos, encaminhou-se para a estante. Abriu um dicionário. Leu em voz alta:
Gravata S. f: lenço, manta ou fita que os homens, em trajes não-caseiros, põem à roda do pescoço e por cima do colarinho da camisa, atando-a adiante com um nó ou laço. Golpe no pescoço, em algumas lutas esportivas. Golpe sufocante, aplicado com o braço no pescoço da vítima, enquanto um comparsa lhe saqueia as algibeiras.
Suspirou, tranqüilizado. Não havia mistério. Colocou o dicionário de volta na estante e voltou-se para encará-la novamente. E tremeu. Alguma coisa como um pressentimento fez com que suas mãos se chocassem de repente num entrelaçar de dedos. E suspeitou: por mais que tentasse racionalizá-la ou enquadrá-la, ela sempre ficaria muito além de qualquer tentativa de racionalização ou enquadramento. Mas não era medo, embora já não tivesse certeza de até que ponto o olhar dele mesmo revelava uma verdade óbvia ou uma outra dimensão de coisas, inatingível se não a amasse tanto. Essa dúvida fez com que oscilasse, de tal maneira precário que novamente precisou falar:
– Você não passa de um substantivo feminino — disse, e quase sem sentir acrescentou - ... mas eu te amo tanto, tanto.
Recompôs-se, brusco. Não, melhor não falar nada. Admitia que não conseguisse controlar seus pensamentos, mas admitir que não conseguisse controlar também o que dizia lançava-o perigosamente próximo daquela zona que alguns haviam convencionado chamar loucura. E essa era a primeira vez que se descobria assim, tão perto dessas coisas incompreensíveis que sempre julgara acontecerem aos outros — àqueles outros distanciados, melancólicos e enigmáticos, que costumava chamar de os-sensíveis —jamais a ele. Pois se sempre fora tão objetivo. Suportava apenas as superfícies onde o ar era plenamente respirável, e principalmente onde os sentidos todos sentiam apenas o que era corriqueiro e normal sentir. Subitamente pensava e sentia e dizia coisas que nunca tinham sido suas.
Então, admitiu o medo. E admitindo o medo permitia-se uma grande liberdade: sim, podia fazer qualquer coisa, o próximo gesto teria o medo dentro dele e portanto seria um gesto inseguro, não precisava temer, pois antes de fazê-lo já se sabia temendo-o, já se sabia perdendo-se dentro dele — finalmente, podia partir para qualquer coisa, porque de qualquer maneira estaria perdido dentro dela.
Todo enleado nesse pensamento, tomou-a entre os dedos de pontas arredondadas e colocou-a em volta do pescoço. Os dez dedos esmeraram-se em laçadas: segurou as duas pontas com extremo cuidado, cruzou a ponta esquerda com a direita, passou a direita por cima e introduziu a ponta entre um lado esquerdo e um lado direito. Abriu a porta do guarda-roupa, onde havia o espelho grande, olhou-se de corpo inteiro, as duas mãos atarefadas em meio às pontas de pano. Sentia-se aliviado. Já não era tão cedo nem era mais sábado, mas se se apressasse podia ainda quem sabe viver intensamente a madrugada de domingo. Vou viver uma madrugada de domingo — disse para dentro, num sussurro. — Basta apertar. Mas antes de apertar uma coisa qualquer começou a acontecer independente de seus movimentos. Sentiu o pescoço sendo lentamente esmagado, introduziu os dedos entre os dois pedaços de pano de cor vagamente indefinível, entremeado por pequenas formas coloridas, mas eles queimavam feito fogo. Levou os dedos à boca, lambeu-os devagar, mas seu ritmo lento opunha-se ao ritmo acelerado da gravata, apertando cada vez mais. Ainda tentou desvencilhar-se duas, três, quatro vezes, dizendo-se baixinho do impossível de tudo aquilo, o pescoço queimava e inchava, os olhos inundados de sangue, quase saltando das órbitas. Quando tentou gritar é que ergueu os olhos para o espelho e, antes de rodar sobre si mesmo para cair sobre o assoalho, ainda teve tempo de ver um homem de olhos esbugalhados, boca aberta revelando algumas obturações e falhas nos dentes, inúmeras rugas na testa, escassos cabelos despenteados, duas pontas de seda estrangeira movimentando-se feito cobras sobre o peito, uma das mãos cerradas com força e a outra estendida em direção ao espelho — como se pedisse socorro a qualquer coisa muito próxima, mas inteiramente desconhecida.
In O ovo apunhalado

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| Por Lara | 18.6.07 | 10:29.

A VERDADEIRA
ESTÓRIA DE SALLY CAN DANCE
(AND THE KIDS)
HISTÓRIA

EPIGRAPHE:
Os discos voadores (OVNIs) existem e são pilotados por seres procedentes de outros pla­netas, esta a conclusão a que chegou o gover­no dos EUA, o qual lançará uma campanha com a finalidade de preparar o mundo para aceitar os visitantes extraterrestres.
From Almanaque do Correio do Povo 1975, p. 21

INTRODUCTION TO HELL

La madrecita empezó a hablar machucado, q nem se podia sequer tentar conversar naquele hogar, q estavam todos locos, no começo Sally até deu força, pêro la ma­drecita empezó a hablar cada vez más machucado y con más frecuencia, então Sally deu um pontapé no cuzco (era un perrito de estimação, peruano autêntico) q costuma­va se roçar en sus legs y gritou q cachorro tinha q ser tra­tado na porrada, senão vira bicha, sacou, madrecita? La madrecita dijo q não entendia cockney y q cada vez fica­va más difícil, y diga-se a favor de Sally q nessa época ela tentou de muitos ways, cuando la barra pesava mucho apanhava o café ou o prato de comida (as peleias eram always na hora das refeições) y subia para su habitación, donde se quedava ouvindo Bob Dylan (sobretudo "Hurrycane" y fumando horrores, hasta q la madrecita rides again: q Sally estava mui magra, q essa mania de não comer car­ne, não q eu tenha nada contra, pêro mira: yo comi car­ne más de cinquenta anos y aqui estoy guapa.
Sally encarava dura a violência carnívora da madreci­ta emputecida, mas preferia always não ser agressiva, mas dizer o q pensava realmente com maiúsculas (era tão pre­tensioso pensar q pudesse um day dizer realmente tudo q pensava com maiúsculas) — enfim, Sally calava. Só q nos últimos tempos, vinha observando sem tomar nenhuma decisão about that, mas nos últimos tiempos vinha calan­do demás.
One day Sally enlouqueceu y sem querer falou para her brother-sister q era apenas una sombra y the brother-sister of Sally foi correndo contar todo para la madrecita y una hermosa mañana when Sally was posta em repouso entre sus almohadas indianas ouvindo justamente "Here comes the sun" (little darling), inequívoco sinal de su baja voltagem moral necessitada de brilhos ou something up cuando la madre adentro abruptamente en su habitación y con la fala mazia mazia y una tisana de bergamoteira q Sally até curtiu because tinha lido q bergamoteira bajava a pressão botava down-down y cuando estava in the better of the party traduzindo para la madrecita la segunda parte da letra de "Eleanor Rigby" eis senão q dois homens (zarrões) puseram la puerta abajo enfiaram Sally numa T-shirt de fuerza y carregaram-na para una clínica psiquiátrica es decir para un hospício já que Sally não trabalhava y portanto não descontava inps além disso era maior de idade y su madre una pobre viúva ai ai coitada de mim ai de mim ai de mim no hospício após una terapiazita rápida à base de eletrochoques neozine artani & insulina,
Sally finalmente retornou aos braços da sociedade q a ge­rara inteiramente recuperada y hoy es un elemento útil à coletividade trabajando oito horas por dia no bnh don­de já conseguiu financiamento para una quitinete y pro­vendo satisfatoriamente segundo relatório da assistente social las modestas necessidades de su perra madrecita.

THE END
(exit)

INTERMEZZO

§ 1. Sally não declarou to her brother-sister ser ape­nas una sombra.
§ 2. La madrecita no se adentro en su habitación.
§ 3. Sally não degustou a tisana de bergamoteira (on­de havia sido colocado forte soporífero).
§ 4. Nem tampouco todo o resto, inclusive hospí­cio, bnh, quitinete etc. etc. Mas é preciso então q se diga qual foi


A VERDADEIRA ESTÓRIA DE SALLY CAN DANCE
(AND THE KIDS)
HISTÓRIA

Obs. a) Se você achar q é invenção, assinale com um x o primeiro . Se você achar q é real, assinale com um x o segundo .
Obs. b) Assinalar este ou aquele não modificará coisa nenhuma no desenrolar dos phatos, mas achamos q, em se tratando esta de uma obra aberta e essencialmente co­municativa, o leitor deveria participar nem q seja modes­tamente de sua confecção. Then, let's go there:


KATHYVS APRIL ENTERPRISES PRESENTS:
THE TRUTH ABOUT SALLY CAN DANCE {and The Kids)

with:
Sally Can Dance
The Kids: Mike Pocket-Knife
Joe Golden-Vain
Peter Syringe
Bill Puzzled-Mind
and:
La madrecita
The brother-sister
Dois homens (zarrões)
Juliana de Oloxá
Valdomiro Jorge
Uma jaguatirica
Don Juan (copyright Carlos Castañeda)
Trapezista Gilda (copyright Jane Araújo)

special guest star:
Selma Jaguarassu

music by:
Lou Reed
Bob Dylan
Beatles
Ney Matogrosso
Rolling Stones and
Rádio Continental

our thankfulnesses to:
Jornalista Jaime Gargioni
Martin Scorsese
Esquina maldita (Alaska, Marius, Copa-70,
Universitário)
12ª. Delegacia de Polícia
Samantha Jones
Fugitiva Maria da Graça Medeiros
Frota de táxis Mahatma Gandhi
Psicanalista R. D. Laing
Cia. Jornalística Caldas Júnior
Editoras Vozes e do Brasil S/A
(q nos forneceram preciosíssimos elementos)



BEGIN THE BEGINNER

No princípio era o verbo. Isto é: Sally falava muito. Isso no princípio. Después veio aquele negócio da madrecita empezando a hablar machucado y Sally, q no fundo sempre foi apenas una lovely teenager, seguindo os conselhos de sua amiga Gilda, adestrava-se em equilibrismos a ponto de, antes de optar definitivamente pelo silêncio y portanto tornar-se una sombra, conseguir manter duas discussões simultâneas com la madrecita y the brother-sister, sustentando pontos de vista absolutamente contraditórios, sem q nenhum de los dos percebesse. Acabavam todos gritando muy alto y quebrando a primeira coisa quebrável q estivesse à mão, hasta el vecino de abajo reclamar, first, logo após, por ordem: o da esquerda, o da direita y el de arriba, q não reclamou porque o apartamento de Sally and the family, sem ser de cobertura — q la madrecita (como já foi dito) no tenía recursos —, ficava no último andar. Veio o síndico, porteiro, polícia, y foi então q Sally, sem pensar nisso, um dia, lendo A política da experiência, de R. D. Laing, encontrou este trecho: A sanidade parece repousar amplamente, hoje, na capacidade para adaptar-se ao mundo exterior — o mundo interpessoal e o reino das coletividades humanas. Como esse mundo exterior humano está quase completamente separado do interior, toda percepção pessoal já apresenta graves riscos. Mas desde que a sociedade, sem saber, encontra-se esfaimada pelo que há de interior, as exigências para se evocar a sua presença de maneira "segura'', de modo que não seja preciso ser levada a sério, etc. são tremendas, e a ambivalência igualmente intensa. Não admira que seja tão grande o número de artistas que naufragaram nesses rochedos nos últimos 150 anos — Hölderlin, John Clare, Rimbaud, Van Gogh, Nietzsche, Antonin Artaud. Os que sobreviveram possuem qualidades excepcionais — capacidade para o segredo, o disfarce, a astúcia.
Nesse momento, presa de estranha emoção, opressa sob o sentimento de algo q desconhecia, qual asa negra acariciando suas espáduas juvenis, Sally cerrou abruptamente o volume finamente encadernado em percaline. Nervosamente, suas mãos buscaram um cigarro à cabeceira. Com dedos trêmulos, acendeu, tragou (sugere-se aqui uma tomada bem lenta: a atriz deve passar inteiramente para o público a sua ansiedade, através de gestos como, por exemplo, roer as unhas ao mesmo tempo em q fuma, mordendo os lábios e piscando inúmeras vezes). Releu, atónita: capacidade para o segredo? o disfarce? a astúcia? Com um felino impulso, pôs-se em pé e esgueirou-se sorrateira hasta la habitación de sua perra madrecita y experimentou la peruca verde (q te quiero idem). I can get no satisfaction, resmungou, descalçando os tênis para envergar as sandálias douradas de altíssimas plataformas y o longo de cetim púrpura. Lixou cuidadosamente, poliu y pintou as uñas, colocando um pouco de purpurina antes (Se você quiser um esmalte diferente, jogue dentro do vidrinho purpurina e duas bolinhas de ferro — para misturarem bem. Agite antes de usar.
From "Dicas que facilitam a vida", Capricho nº. 381, 18 de junho de 1975, p. 73) e olhou-se no espelho.


FLASH-BACK {Sally meets The Kids)


Sally vem caminhando por uma avenida deserta. Está amanhecendo. Não há automóveis, nem ninguém mais, exceto Sally. Ela vem devagar, jeans arremangados até os joelhos, cabelo em rabo-de-cavalo, camisa xadrez, descalça, um tamanco em cada mão. Detém-se para observar melhor algo dentro de uma lata de lixo. Nesse momento, por trás da mesma lata de lixo, aparece a cara de um cachorro buldogue. Sally recua. O buldogue encara-a fixamente. Sally não faz nenhum movimento brusco. Seus olhos se esgazeiam, seus lábios fremem nos cantos. O buldogue continua saindo de trás da lata de lixo. Depois do pescoço, seu corpo vai-se estreitando e ganhando escamas, até revelar-se uma serpente inquieta, com a cauda terminando em ferrão. Sally recua ainda mais. O buldogue retira a máscara. É Mike Pocket-Knife, signo Scorpio, líder dos Kids, q gosta de usar fantasias quando a barra pesa. — S. i. m. p. — ele saúda (Sociedade Itinerante Meio Pirada, ou abreviatura de "Simpathy for the Devil", segundo os arquivos da Underground Press).
— S. i. m. p. — responde Sally. E deixa cair o tamanco esquerdo. Com estrondo. Acaba de conhecer The Kids.


TERCIOPELO DE MI VIDA

Peruca verde, longo de cetim púrpura, unhas cintilantes, sandálias douradas de altíssimas plataformas, Sally miro at herself in the glass. Passou lentamente las manos pelos quadris, o vestido realçando um pouco o busto quase inexistente. Agora, pensou excitada, agora sim deveriam entrar os dois homens (zarrões). Depois lembrou q essa história dos homens (zarrões) tinha sido deixada pra lá. Then mudou de assunto y walked to su habitación. Empty hogar. The brother-sister of Sally ainda não chegara do IPV (Instituto Pré-Vestibular), onde fazia cursinho para economês, embora suas aptidões fossem mais para a área humanística, q ele(a) rejeitava violentamente por recear ser tachado(a) de homossexual (bicha ou sapatão) pelo Corner's Club, entidade da qual era sócio(a) benemérito(a). La madrecita tinha ido levar sete velas negras, sete charutos, sete cocadas, uma garrafa de pinga (Três Fazendas), uma folha de papel celofane e um cordeiro para mãe Juliana de Oloxá, deus dos lagos (Obatalá, o Céu, uniu-se a Odudua, a Terra, e dessa união nasceram Aganju e lemanjá, respectivamente Fogo e Água. lemanjá desposou seu irmão Aganju, de quem teve um filho, Orungan. Apaixonou-se este por sua mãe lemanjá, nascendo então os seguintes filhos, todos divindades: Dada, deus dos vegetais; Xangô, deus do trovão; Ogun, deus do ferro e da guerra; Olokun, deus do mar; Oloxá, deus dos lagos; Oyá, deusa do rio Níger; Oxun, deusa do rio Oxun e mãe da cantora Clara Nunes; Obá, deusa do rio Obá; Orixá Okô, deus dos caçadores; Oké, deus dos montes; Ajê Xaluga, deus da riqueza; Xapanan (Shankpanna), deus da varíola; Orun, o Sol; Oxu, a Lua — from Almanaque do Correio do Povo 1975, p. 137). Ainda sobre esse assunto diga-se, sob pena de não revelar toda a áspera verdade: a) Sally vezenquando admirava em silêncio as rivelinianas coxas of her brother-sister, depois crispava a mão direita sobre a testa e exclamava: — Ai de mim! Não somos deuses!; b) mais informações sobre a mitologia ioruba tinham-lhe sido fornecidas por su mejor friendship, Selma Jaguarassu. Y acá, infelizmente para a disponibilidade de tempo do(a) caro(a) leitor(a), mas perfeitamente de acordo com nossa intenção de esclarecer definitivamente toda a verdade about Sally (and The Kids), devemos fazer um parágrafo para a

INTRODUÇÃO A SELMA (Flash-back nº. 2)

Sally met Selma no primeiro FICNA (Festival de Cinema Nacional de Altamira). Quando abriu as janelas de sua suite, um pouco aborrecida com a voracidade dos mosquitos, q não a deixara repousar más q três míseras horas, o calor viscoso da selva grudando o tule da camisola contra el cuerpo, viu primeiro a jaguatirica de estimação do boy afastando-se da piscina com água azul importada de Amaralina (era-lhe permitido — à jaguatirica — desfrutar de um banho antes do despertar dos hóspedes) y, logo a seguir, sem tener tiempo para pensar, on the grass: uma esplêndida mulata de enormes cabelos desgrenhados enfeitados por uma selvagem flor vermelha. Era Selma, soube ao primeiro olhar. Selma olhou para ela. "Devo estar medonha' ', pensou Sally sorrindo com a boca fechada para ocultar o aparelho nos dentes. Tão logo a viu, com gestos bruscos, Selma jogou longe a parte superior do maiô tigrado, colocou-se subitamente em pé, apanhou o primeiro cipó y desapareceu na selva com um rugido estarrecedor.
Sally desceu as stairs, tomo de la parte superior do maiô y comprimiu-a ardentemente contra o ventre. Selma, Selma Jaguarassu, the queen of the jungle, estava here/now, em carne (farta) y ossos (poucos), tinha visto com sus próprios ojos, pensou ajeitando os óculos de lentes um y meio no esquerdo y três y un cuarto no direito. A la noche, cuando tentava dormir, después de ter assistido à pré-estréia de Quem muito dá um dia se escracha, ainda intrigada com a lúcida colocação sócio-político-existencial, se bem que um tanto niilista, do jovem diretor Valdomiro Jorge, com quem tomara gin-fizz no grill-room do Altamira's Palace Hotel até as três da matina, tentando provar-lhe exatamente o contrário da proposição da controvertida obra, ou seja: que seria perfeitamente posible dar ainda muitíssimo mais (caso houvesse demanda) sem chegar contudo never a escrachar-se, hipótese contra a qual o rebelde Valdomiro Jorge, na ânsia kierkegaardiana de organizar o Kaos, não poderia jamais concordar, caso contrário precisaria abdicar de todas as suas concepções cinematógrafo-sócio-político-existenciais — enfim: tentava dormir, por la noche, cuando um rumor violento fez com que soerguesse o busto no leito. As narinas frementes, ali estava a voluptuosa Selma Jaguarassu:
SELMA (com um rugido agreste): Vim buscar a parte superior do meu maio tigrado.
SALLY (desabotoando lentamente a camisola de tule): Está em meu corpo. (Sussurrando) lt's in my body. (Gemendo) Está en mi cuerpo.
SELMA (rosnando e cingindo a cintura da donzela num feroz amplexo): S. i. m. p.!
Obs.: (Nesta altura, para evitar — embora inevitáveis — futuros problemas com a conhecida firma distribuidora dos afamados Cintos de Castidade Mental S.S., a câmera pode (deve) desviar-se dos corpos suados para el reloj de cabeceira e fixá-lo durante o tempo necessário. A trilha sonora deve manter, em contraponto, suspiros y gemidos very hots com o tique-taque cibernético del reloj — se possível, digital, y se possível, ainda, sugere-se que desperte com a interpretação de Ney Matogrosso para "Trepa no coqueiro", finalizando então a tomada).
Después desse curioso phato, tornaram-se amigas inseparáveis, univitelinas, embora por vezes tivessem alguns choques ideológicos. Profundamente latina, sometimes Selma criticava acerbamente o vocabulário y los maneirismos anglo-saxões de Sally, citando como argumento as seguintes palavras de Ruy Barbosa: Uma raça cujo espírito não defende o seu solo e o seu idioma entrega a alma ao estrangeiro, antes de ser por ele absorvida, y llegando mismo a lamentá-la como vítima-símbolo da violação de nossa cultura y do escapismo da juventude; ao passo que Sally, embora admirasse a Selma más q a su própio ego, obtemperava ser essa atitude, a essa altura do campeonato, inteiramente utópica & reacionaria, citando Mick Jagger (it 's only rock and roll, but I like it) y chamando-a de vestal de um deus morto, festiva, careta y otros adjetivos menos publicáveis. Como não eram dogmáticas, concluíam q, embora estivessem no mesmo barco, as maneiras de remar podiam perfeitamente ser diferentes. Além do q, acrescentavam em coro, acariciando os mútuos seios, o barco estava inapelavelmente furado. Y todo bien. Or not. Separaram-se con los ojos marejados de lágrimas amargas: Selma ofereceu sua casinha palafita às margens do Maicuru, margem esquerda do Amazonas, y Sally su departamento na av. João Pessoa, Porto Alegre, 90 000.


DECISÃO FATAL

Ahora, in front of the glass, peruca verde etc. etc, Sally pensava justamente em Selma. Não tinha mais nobody-nadie a quem recorrer. Localizou o Comando Geográfico em su mind, discou o código da América do Sul e, rapidamente, traçou o roteiro. Do Maicuru poderia, fácil e clandestinamente, atingir o Suriname; do Suriname alcançaria Trinidad, passando por Tobago, Granada, St. Vin-cent, Barbados, Martinica, Dominica, Guadalupe, Antigua y Barbuda, hasta Puerto Rico, República Dominicana, Haiti, Cuba — Cuba não ("este passaporte não é válido para Cuba", lembrou), melhor desviar pelas Bahamas, hasta Nassau y la Florida, onde poderia vender algum artesanato aos veranista y llegar finalmente a El Paso, onde Don a esperaria com uma cesta de flores de peyote ainda frescas, como de costume.
Selma naturalmente não a acompanharia, fiel a su luxuriante y úmido amazonic dream. Sally não se atrevia a partir sozinha. Roeu algumas unhas antes de a luz fazer-se em su cabeza y recordar-se — of course! — dos Kids. Como pudera olvidá-los? Ligou imediatamente para o IAPI, pediu para falar com Mike Pocket-Knife. Ele atendeu prontamente, dizendo q estava à espera (havia uma insólita relação telepática entre os dois). Ela perguntou se seu passaporte mais o dos outros Kids estavam em ordem. Ele disse q não, mas podia conseguir alguns no mercado negro em questão de quarenta minutos. Ela perguntou se estariam a fim de acompanhá-la numa pequena trip. Expôs-lhe o tra(pro)jeto. Sem manifestar nenhum entusiasmo, ele disse secamente q sim. Providenciaria os papéis para todos, daria uma revisada nas motos, compraria um novo blusão de coiro y la aguardaria dentro de dos horas na saída da freeway próxima à Rodoviária. Sally desligou. Conhecia-o sobejamente bem para saber q não blefava.

EPILOGUS

Os dados estavam lançados. Arrancou nervosamente a peruca verde, verteu solvente nas unhas, espatifou o longo de cetim púrpura y as sandálias-douradas-de-altíssimas-plataformas, tomou da mochila no guarda-roupa y jogou inside: 1 par de jeans boca justa outro boca larga (não sabia como estava a moda no Caribe); 1 pandeiro com fitas; l foto de Mercedes Sosa (presente para Selma); l seringa nova (presente para Mike); 1 pôster de Mick Jagger; l fita magnética com o último LP de Rita Lee; 1 recorte de uma entrevista com Denise Bandeira; l túnica indiana; 1 vidrinho de patchuli, pela metade; 1 exemplar de Be Here Now; 1 par de tênis e 1 bustier de lamê prateado q comprara no verão passado em Buenos Aires. Rodou por alguns segundos pelo quarto, antes de atinar com o sleeping-bag y a barraca Priscilla detrás de la puerta. Después, foi até o banheiro, apanhou o batom ciclamen e riscou fuerte no espelho: Sally doesn't live here anymore. Cheirou duas ou três carreiras e, antes de sair, ainda teve tempo de jogar contra os ladrilhos a velha seringa manchada de sangre. No elevador, cruzou com la madrecita.
— lt's ali right, man — disse batendo a porta. — I'm only bleeding.
— Já te disse mais de mil vezes que não entendo inglês, Maria Suely — resmungou la madre.

THE END (exit)


CONSIDERAÇÕES FINAIS

§ 1. About Selma: sabe-se q atualmente percorre a bacia amazônica colhendo grandes aplausos da crítica especializada, sob o pseudônimo de Jacira, a Fera Equatorial, engajada como trapezista no Gran Circus Life Circus Est, de propriedade da trapezista Gilda, com quem, comenta-se, mantém conturbado envolvimento sáphico.
§ 2. About the brother-sister: foi aprovado(a) em décimo quarto lugar no vestibular para o Curso Superior de Economês da UNISINOS. Tanto ele(a) como la madrecita concordam q assim foi mejor para todos.
§ 3- About Sally (and The Kids): recentemente foram vistos fazendo auto-stop on the road between Tucson y Dallas. Mike Pocket-Knife usava uma fantasia de Besta do Apocalipse, com o número 666 aplicado sobre o sexo volumoso; Pete Syringe trazia o braço direito na tipóia e Sally usava um penteado mula-manca, sapatos salto-agulha e saia godê-ponche. Nada mais se soube.

MORAIS OPTATIVAS

(Assinale com um x a sua preferida ou acrescente na linha pontilhada a sua sugestão)
D Bevette piú latte.
D La dicha es una arma caliente.
D Quem não dormiu no sleeping-bag, nem sequer sonhou.
D Brazilian are, before anything, a strong people.
D Je suis comme je suis.
D The dream is really over.
D Não é nada disso.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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| Por Lara | 10.6.07 | 14:50.


Para Lucienne Samôr

Eu tava atormentando as formigas com uma varinha embaixo da goiabeira quando a Malu veio me dizer que o Bituca ia fugir com o circo. Eu fingi que não acreditei. Disse que o Bituca só falava aquilo pra incomodar ela, que ela vivia andando atrás dele que nem carrapato e ele não via um jeito de se ver livre. E menti que o Bituca tinha me dito que se ela contasse aquilo pra qualquer pessoa ele ficava de mal com ela pra toda a vida. O Bituca era meu amigo, eu sabia tudo o que ele pensava e fazia. A Malu saiu correndo meio chorando, e de repente me deu cansaço de estar ali, a tarde toda, atormentando aquelas formigas tontas com a varinha. Eu tinha que falar com o Bituca.
A tarde tava muito quente, eu acho que era janeiro, e eu fui caminhando pela sombra até a casa dele. Só que quase não tinha sombra, era pouco depois do meio-dia e o chão tava tão quente que eu precisava caminhar me equilibrando no garrão. Quando cheguei na casa do Bituca a mãe dele me disse que ele não tava. Eu perguntei se ela não sabia onde ele andava e ela disse que não, mas se eu encontrasse com ele era para dizer pra ele ir já para casa tomar banho e que se a calça nova tivesse esbragalada ele ia levar uma tunda de laço. Eu disse que tava bem, e fui saindo, quando eu já tava quase no portão me deu vontade de perguntar se ela sabia que ele ia fugir com o Grande Circo Robatini, cheguei a ficar de boca aberta, daí eu pensei bem depressa e achei que não devia perguntar aquilo, seria como se eu traísse o Bituca. E ele era meu amigo. Aí eu disse que era sede, que o sol tava muito quente, e a dona Laurita foi muito boazinha, falou que ia buscar um copo de água gelada. Eu tava mesmo com muita sede, mas quando ela voltou com o copo eu já tinha corrido até a esquina. É que eu não aguentaria não dizer nada enquanto ela ficava ali, encostada na porta, me olhando de dentro daquele vestido de florzinha azul. Eu sabia que a dona Laurita não ia gostar de saber que o filho dela ia fugir, mas ela tava sendo tão boazinha comigo que eu até ficava com vontade de ser bom também. Só que se eu fosse bonzinho com ela eu estaria traindo o Bituca, e essas coisas todas faziam uma baita bagunça na minha cabeça, então eu saí correndo pra ir até o circo. Fazia tanto calor que eu tive vontade de dizer Kimota!, me transformar no Jack Marvel Jr. e ir voando até lá. Eu sabia que não adiantava, mas disse assim mesmo — Kimota! Shazam! —, não aconteceu nada e eu tive que ir caminhando naquele baita sol.
Eles tavam desmontando tudo quando cheguei lá, eles iam embora aquela noite. Tinha uma porção de cordas e caixotes e ferros e umas coisas que eu não me lembro. Uns homens sem camisa já tinham baixado a lona e bem no meio tinha ficado um círculo sem capim, tava cheio de garrafa, ponta de cigarro, papel de chocolate, pacotinho de pipoca vazio, um monte de porcaria. Tinha cheiro de bosta de cavalo e só fazia sombra do outro lado das carrocinhas onde moravam os borlantins. Aquele solaço tava me doendo na cabeça e aquele cheiro de bosta quente e suor de cavalo, catinga de macaco, de leão e de gente grande me dava vontade de vomitar. Tinha uma porção de homens mexendo naqueles troços todos e uns piás espiando e fui me chegando sem coragem de perguntar pelo Bituca. Aí de repente eu vi ele na sombra duma carrocinha, ao lado da palmeira, conversando com Rúbia, a trapezista. O Bituca já era grande, mas a tal de Rúbia tava dando sorvete na boca dele, que nem um bebezinho. Eu cheguei e disse sem respirar:
— Bituca, a tua mãe disse pra tu ir já pra casa tomar banho e que se tu esbragalar a calça nova ela te dá uma tunda de laço.
Acho que ele não ficou muito contente de me ver, porque me olhou daquele jeito enviesado que ele só olhava quando não tava gostando de alguma coisa, vezenquando ficava até meio vesgo. Aí a Rúbia foi e perguntou se eu não queria um pedacinho de sorvete e falou que eu não devia andar descalço e sem chapéu naquela mormaceira. Eu olhei bem pra ela e disse que não, que muito obrigado, que não carecia. Foi difícil olhar bem pra ela porque ela era muito bonita, toda loirosa e perfumada, e eu ficava sempre pensando como ela conseguia fazer aquele rebuceteio com as mãos quando estava lá em cima, antes de se jogar no ar, com o maio de lantejoulas brilhantes. As mãos dela eram muito brancas e tinham umas unhonas vermelhas, as mais compridas que eu já tinha visto. Ela falou que eu era muito educado, e foi amassando o copinho de sorvete com aquelas unhonas vermelhas, e fez um barulhinho assim: crrráááác! — e nessa hora eu senti ainda mais sede e mais calor e fiquei com um ódio da Malu ter me dito aquele troço, e até pareceu que tava bom lá, na sombra, embaixo da goiabeira, mexendo com as formigas. Aí a Rúbia pegou uma Cinelândia com a Ava Gardner na capa e começou a folhear, fazendo aquele rebuceteio com as mãos antes de virar cada página. Ela era ainda mais bonita que a Ava, mesmo sem o furinho no queixo. Eu fiquei por ali, estralando as juntas dos dedos como o Bituca tinha me ensinado, e a Rúbia foi e pegou um maço de Hudson com ponta do bolso e deu um pro Bituca, pegou outro e me ofereceu, eu disse que não, obrigado, e ela perguntou se eu tinha fogo, e eu disse que não, e quase ia dizendo obrigado de novo quando o Bituca falou que ia buscar uma coisa e já voltava e me pegou com força pelo braço e foi me puxando pra perto da jaula do leão.
— Bituca — eu disse —, a Malu me contou que tu vai fugir com o circo.
Ele disse que ia mesmo e pediu o fogo pra um homem sem camisa que vinha passando. Eu nunca tinha visto o Bituca fumar antes. Vinha uma catinga forte da jaula do leão e eu ainda tava sentindo aquele perfume forte que a Rúbia usava, a catinga era nojenta, o perfume até que era gostoso, mas os dois juntos mais a fumaça do cigarro que o Bituca jogava na minha cara tavam me enjoando ainda mais o estômago.
— Bituca, a dona Laurita vai sentir a tua falta.
— Que me importa — ele falou, e jogou mais fumaça na minha cara. — Agora vou ser borlantim e ninguém tem nada com a minha vida.
— Não joga fumaça na minha cara — eu pedi. — Eu também vou sentir a tua falta.
— Por que tu não vem junto?
— Tu tá falando sério?
— Claro que tô.
Eu não sei se era aquele monte de cheiros misturados na minha barriga ou o convite do Bituca — mas naquela hora eu cheguei a ter uma tonturinha e quase me encostei na jaula catinguenta.
— Eu não posso.
— Como não pode? Tu não é diferente de mim. A gente tem a mesma idade, tá na mesma aula. Como é que eu posso e tu não? Tu tem medo?
— Eu não tenho medo de nada. Mas eu não posso.
— Pode sim. Eu falo com a Rúbia, ela deixa tu ir no carrinho dela. Já falei com ela. Vamos nós três.
— Nós três quem?
— Eu, a Rúbia e o Saul. Naquele carrinho rosa lá.
Eu olhei pro lado do carrinho. A Rúbia tinha acendido o Hudson e tava de prosa com um sujeito musculoso, de barriga cabeluda e cabeça raspada, meio parecido com o Lothar, encostado na palmeira. Ela usava um short vermelho bem curtinho, que nem o da Nyoka, a Rainha das Selvas, e de longe parecia ainda mais bonita que na parte onde a mocinha morre, em O céu uniu dois corações, que a dona Laurita chorou e disse que ela podia ser uma desfrutável e andar retocando com todo o regimento, mas que era tão boa atriz quanto a Loretta Young. E a dona Laurita entendia de artistas. A Rúbia se abanava com a Cinelândia e apontava pra nós, eu e o Bituca.
— Me dá o cigarro — pedi.
Dei uma tragada forte e fiquei olhando pro Bituca, soltando fumaça pelas ventas. A calça nova dele tava toda esbragalada e xexelenta. Puxa, ele era meu amigo e eu acreditava nele. O Bituca era bacana, nunca tinha me dito uma mentira. Eu tive vontade de ficar ali com ele, de ir embora no carrinho rosa, com Rúbia, Bituca e o domador parecido com o Lothar. Mas a tragada que dei no cigarro terminou de me esculhambar o estômago. Eu disse pra ele que tinha de ir embora. Ele segurou de novo no meu braço.
— Mas tu jura que não vai contar nada pra ninguém?
Eu pensei na dona Laurita, com aquele vestido de florzinha azul, depois pensei na Malu, com a perna fina e o carpim sempre escorregando, e pensei também em mim mesmo, atormentando as formigas. Eu só fazia essas besteiras — cravava espinho de bergamoteira no bumbum delas, matava passarinho com bodoque, jogava sal em les ma, fazia círculo de fogo em volta de escorpião e lacraia — quando o Bituca não tava comigo. Quando a gente andava junto ele inventava teatrinho de caixa de sapato, subia em árvore, fugia pra brincar no rio, me emprestava gibi, me dava figurinha do ídolos da tela e tudo. Eu ia sentir uma baita falta dele. Mas eu disse que não, eu disse depressa que não, porque a minha barriga tava toda remexida e eu não queria vomitar ali mesmo, na frente de todos os borlantins, da Nyoka e do Lothar, lá na sombra da palmeira, olhando pra gente, eles iam me achar nojento. Ele me fez jurar que não ia contar nada pra ninguém e eu jurei três vezes, por esta luz que me alumia. Daí ele me estendeu a mão e falou que quando o Grande Circo Robatini voltasse de novo à cidade eu fosse falar com ele, que me arrumava entrada de graça e eu ia poder sentar lá na frente, nas cadeiras acolchoadas e não nos poleiros onde a gente sempre ficava com a dona Laurita e a Malu. Quando ele falou isso tive certeza de que o Bituca era mesmo meu amigo e tive vontade de abraçar ele, mas precisei sair correndo pra não vomitar ali mesmo, na frente do domador com a cabeça raspada e da Rúbia com aquela Cinelândia e aquele Hudson nas mãos de unhonas vermelhas.
Só fui vomitar lá adiante, quase no portão da minha casa, embaixo das unhas-de-gato. Aí quando eu entrei na cozinha a minha mãe viu que eu tava muito branco e perguntou o que eu tinha. Eu disse que não era nada, mas ela viu que a minha camisa tava toda respingada de vômito e a minha boca fedendo que nem a jaula do leão. E quando eu pensava nisso mais me dava vontade de vomitar, e eu vomitei, me lembrando do perfume da Rúbia, da cabeça do Lothar, do Hudson com ponta, do cheiro de bosta quente de cavalo. A mãe me botou na cama, chamou o médico e o meu pai e ficaram os três fazendo uma porção de perguntas. Mas eu não traí o Bituca. Menti que tinha comido pitanga verde e ficado no sol quente, eles podiam me matar que eu não ia dizer nada nunca. Não consegui dormir direito, e no dia seguinte eles não me deixaram sair da cama e eu fiquei o dia inteiro lendo gibi, tomando guaraná com bolachinha champanhe e pensando num jeito de perguntar pelo Bituca sem que eles desconfiassem. Mas de tardezinha bateram na porta do quarto e o Bituca entrou com uma porção de gibis embaixo do braço.
— Me disseram que tu tava doente e eu trouxe isso daí pra tu ler — ele disse, jogando os gibis em cima da cama.
— Ué, tu não ia fugir com o circo?
Ele não respondeu, perguntou se podia beber um pouco de guaraná e comer bolachinha champanhe. Eu disse que podia, vi que ele não queria falar e não insisti, fiquei fingindo que tava muito interessado nos gibis que ele tinha trazido, mas eu já tinha lido quase todos, menos um Mandrake e um Durango Kid, que eu nem gostava muito, só correria e tiroteio. Aí de repente ele disse furioso:
— Aquela vaca!
— Quem? A Malu? Ela falou alguma coisa?
— A Malu não falou nada. Vaca é a Rúbia, que ficou o tempo todo dizendo que ia me levar junto, passando a mão na minha cabeça, me dando cigarro e sorvete, falando que ia me ensinar a pular do trapézio, a andar com um pé só naqueles cavalinhos. Depois, na hora agá, tirou o corpo fora, falou que o Saul não queria que eu fosse, que eu era menor.
— Menor do que ele?
— Não, bocó. Menor de idade. — Tirou um Hudson do bolso e acendeu com raiva.
— Cuidado — eu avisei. — Se a minha mãe entrar de repente não vai gostar de te ver fumando.
— Que me importa — ele falou. E ficou fumando e tomando guaraná. — Agora é muito tarde. Eu já tô viciado pra sempre. E tô desiludido da vida, posso fumar quanto quiser.
Ele parecia muito triste, dum jeito que eu nunca tinha visto. O tempo todo me olhava com aquele olho enviesado, meio vesgo. Eu deixei ele ir bebendo o guaraná e comer mais da metade do pacote de bolachinha. Depois mostrei pra ele o almanaque novo do Superman que o meu pai tinha trazido, perguntei se ele já tinha lido e ele falou que não gostava do Superman. Eu falei que no dia seguinte, quando eu melhorasse, a gente podia ir tomar banho no Uruguai. Ele disse que achava que amanhã ia chover. Eu disse que não fazia mal, que se chovesse mesmo, e não tava com jeito, a gente podia chamar a Malu e brincar de teatro no porão a tarde inteira, ela sabia A ré misteriosa de cor e salteado. Ele disse que já tava cheio de teatro, que tinha rato no porão, que a Malu era uma chata de perna fina, que A ré misteriosa era muito besta. Eu suspirei e disse que tinha conseguido a June Allyson, a Debbie Reynolds e a Fada Santoro pro álbum de ídolos da tela dele. Ele disse que não tava mais colecionando figurinha e daí a gente ficou calado uma porção de tempo. Era quase de noitezinha, e a essa hora a radiola do circo começava a tocar Recuerdos de Ypacaray, que era sempre a primeira música e vezenquando a Rúbia cantava no Big Show de domingo. Mas agora o circo tinha ido embora e o silêncio era muito grande. Ele devia estar pensando o mesmo que eu, porque de repente apagou o cigarro, jogou a ponta pela janela, acendeu outro e ficou abanando a fumaça com o almanaque do Superman. Eu pensei que se ele não gostava mais mesmo daqueles brinquedos todos eu ia ter que passar o resto da minha vida atormentando formigas embaixo da goiabeira. E quase fiquei doente de novo, só de pensar. O Bituca era bacana, era meu amigo — e eu precisava consolar ele de qualquer jeito. Então eu disse:
— Não fica assim, Bituca. O Robatini não é o único circo do mundo. Ano que vem chega outro e daí tu foge com ele. Pode ser até que dessa vez eu tome coragem e vá junto contigo.
— O ano que vem — ele resmungou, olhando enviesado e soltando a maldita fumaça do maldito Hudson bem na minha cara —, o ano que vem. Falta muito pro ano que vem. Eu devia era ter fugido com o Robatini mesmo. Mas agora é muito tarde.
— Mas vem outro — eu insisti. — E aí eu vou junto contigo.
— Não. É muito tarde. E não é só o circo. Aquela vaca da Rúbia. Mulher nefasta, me apunhalando cobardemente pelas espáduas (ele vezenquando falava que nem nas peças — acho que era influência da Rúbia e do Saul). Tu é muito jovem pra entender minha desdita.
Ele tomou o último gole de guaraná. Depois apagou e jogou o outro Hudson pela janela e disse que ia dar uma volta. Antes que ele fosse embora eu ainda tentei dizer mais alguma coisa. Acho que ia falar na Rúbia. Mas ele me olhou torto e antes de bater a porta repetiu que era muito tarde, que agora era tarde demais. Eu abri o almanaque do Superman, tentei ler mas não consegui. Naquela tarde eu tava achando a Mirian Lane, o Perry White e o Jimmy Olsen bestas demais por não descobrirem nunca que o Clark Kent é o Super-Homem.
In Pedras de Calcutá

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| Por Lara | 2.6.07 | 22:51.


por Caio Fernando Abreu
O Estado de São Paulo, 23/4/87

O lançamento do Nau confirma aquela sensação de que há, mesmo, algo novo no ar.

Para quem conhece os discos dos grupos Fellini, Violeta de Outono, Patife band, ou espera as gravações do Luni, de Os Mulheres Negras, ou das cantoras como Ná Ozetti, Suzana Salles, Caludia Wonder, Laura Finocchiaro - o lançamento do Nau (CBS) deixa bem claro que alguma coisa está acontecendo na música paulistana. Uma coisa nova e vigorosa, sintonizada ao mesmo tempo com o pop internacional e brasileiro - nesse caminho capaz de ligar The Smiths a Rita Lee, Cazuza e Talking Heads. Saídos dos porões do underground da cidade, recém eles começaram a chegar às gravadoras. Por parte destas, prudentemente, é claro. Por parte deles, de peito aberto.
Peito aberto porque trazem uma nova estética. Pouco importa que essa estética seja ou não comercial - importa mais jogar para fora a voz dessa geração feita jovem no meio da nuvem de Chernobyl e do vírus da Aids. Pouco importa ainda se essa estética (pós-tudo?) for cansada. O disco do nau é lindo - e transpira cansaço. seja através das letras ("Nos perdemos entre contos/ poeira de máquinas/ multidões se atropelando/ num mundo sem espaço" - em Novos Pesadelos; ou "A vida passa num piscar de olhos/ a vida pára num sinal escuro/ e eu queria ter as soluções" - em Balada) ou das guitarras de Zique, do contrabaixo de Beto Birger e a bateria de Mauro Sanchez. Não um cansaço apático, mas cheio de lucidez e ansiedade criativa: "Eu quero beber/ tirar minha roupa mostrar tudo/ tudo vir a saber" em O Que Eu Quero é Você.
Do meio do som limpo, preciso, sensual (remetendo às vezes tanto aos bons solos de guitarra dos anos 60 quanto àquele som aparentemente monótono dos Smiths) - emerge a voz gemida de Vange Leonel. E no pós-tudo dessa estética marcada pelo neo-existencialismo dark, vale imitar com bom humor a voz de Vandreléia ( em Bom Sonho) ou dilacerar a garganta feito a louca musa Janis Joplin. Apoiada no feeling do blues, nesse repertório que passeia pelo funk, pelo heavy-metal, ou pela valsa, incorporando todas as influências, Vange pode cuspir palavras como uma roqueira ou sussurrar macio feito uma Maísa renascida meio punk. Talvez ela seja a melhor intérprete dessa nova geração - e para concordar com isso basta ouvir o longo lamento de Nada.
Talvez esse primeiro trabalho do Nau se ressinta um pouco da repetição. Não é aquele tipo de disco que você vira e revira na vitrola. Angustia. Há sempre um clima imposto, geralmente dramático (como na linda Linha Esticada, de Laura Finocchiaro e Cilmara Bedaque) e nem sempre suportável. Mas o vigor e a sinceridade explosiva de Zique, Beto, Mauro e principalmente de Vange Leonel tornam o nau obrigatório. No mínimo, para quem quiser confirmar aquela desconfiança de que tem, mesmo, algo acontecendo.

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| Por Lara | | 14:23.