Para
Ilone Madalena Dri Almeida,
 minha primeira leitora.


 “ No ginásio, em Santiago, tive a sorte de ter um professor de Português muito bom José Cavalcanti Jr. Certa vez ele realizou um concurso de romances, e este meu foi o vencedor. Foi em 1962, eu tinha 13 ou 14 anos. O sucesso foi enorme: as meninas faziam fila para ler (só havia uma cópia, escrita em caderno Avante com caneta Parker 51). É evidente que a história cheia de clichês, influenciada por radionovelas, fotonovelas e melodramas mambembes do Circo- Teatro Serelepe, não presta, mas talvez possa render algumas risadas. Anos mais tarde, foi a base para Luiz Arthur Nunes e eu escrevermos a peça teatral A maldição do Vale Negro. Não mudei absolutamente nada do original: a graça aqui, creio, está justamente no tosco e no tolo.”


CAPÍTULO 1

Adriana estava sentada em uma poltrona, folheando um livro sem muito interesse. Suas roupas eram modestas, mas não pobres, tinha longos cabelos negros que nunca prendia e seus olhos também eram negros, dando-lhe uma expressão triste que jamais se apagava, nem mesmo quando ela sorria. Subitamente, uma batida à porta. Adriana assustou-se, mas logo levantou correndo para abrir, não sem antes arrumar os cabelos com as delicadas mãos.
— Boa-noite, Adriana — disse o homem a quem a jovem atendeu.
— Oh, Fernando! — falou ela, com sua voz quente e vibrante. — Fernando, tenho tanta coisa para contar...
O homem entrou. Estava ricamente vestido, mas seu rosto era vulgar. Tinha a testa muito larga, contrastando com os olhos miúdos e vivos que examinavam a moça com avidez. Adriana fê-lo sentar e, tomando as mãos dele entre as suas, levou-as à boca, roçando-as suavemente com os lábios.
— Querido — ela disse comovida —, há mais uma estrela no céu, há mais um anjinho aos pés da Virgem Maria...
— Que significa isso, Adriana? — perguntou Fernando, com o largo sobrecenho franzido.  A moça, surpreendida com a reação, não conseguiu falar e fez um quase imperceptível aceno com a cabeça. Por fim conseguiu balbuciar timidamente algumas palavras.
— S-sim, Fernando... Agora poderemos nos casar e... então nós iremos viver no seu castelo, Fernando... no castelo de Saint-Marie... nós e nosso filhinho...
Fernando, furioso, deu-lhe um empurrão gritando:
— Idiota! Você pensava que eu, o senhor de Saint-Mame, iria casar-me com você? Com você, uma zinha qualquer? Mulheres iguais a você, Adriana, encontram-se aos montes em qualquer lugar, mulheres que com um gesto oferecem-se a qualquer homem!
Adriana estava em pé. Sua aparência tão doce transformara-se em uma máscara onde se estampavam simultaneamente o ódio, o desespero e o desprezo. Levantando a cabeça, ela olhou fixamente para Fernando e em voz rouca, entrecortada pelas lágrimas, gritou-lhe:
— E homens iguais a você, Fernando de SaintMarie, não se encontram todos os dias. Homens que em sua suja alma não têm um pingo de moral, uma gota de honra nem de dignidade. Homens que não pensam nas mulheres puras e honradas que sacrificam-lhes toda a sua pureza para que eles satisfaçam os seus desejos sexuais, desejos de bestas. E depois de saciados não hesitam em abandonar uma pessoa que sofreu todos os seus sofrimentos, deixando também o sangue de seu sangue, a carne de sua carne que germinou no ventre de quem o amou. Você, Fernando, estava num alto pedestal. Por você eu abandonei tudo, mas agora o pedestal caiu e o ídolo caiu ao chão esfacelando-se.
Cinicamente, o homem contemplava Adriana. Por fim levantou-se, furioso com as últimas palavras da jovem e, dando-lhe uma violenta bofetada, atirou- a ao chão.
— Prostituta! — gritou. — Prostituta é a palavra que serve para você, Adriana!
Em seguida tirou algumas notas da carteira e atirou-as no rosto de Adriana, lavado em sangue e lágrimas.
— Infeliz! — gritou a moça. — Hei de vingar-me, e minha vingança será terrível, Fernando de Saint-Marie. Hei de ving...
Com um gemido, Adriana perdeu os sentidos. Fernando apanhou o chapéu e o sobretudo e saiu assobiando.
Pouco depois, a moça voltou a si do desmaio e arrastando-se penosamente pelo tapete manchado de sangue conseguiu chegar a uma mesinha, sobre a qual estava uma imagem da Virgem com Jesus ao colo. Erguendo o belo rosto para a imagem, Adriana juntou as mãos pálidas e rogou:
— Virgem Santíssima, o que mais quero na vida é que meu filho nasça. Por favor, Senhora, deixe-o nascer... deixe-o nascer...
E proferindo essas palavras caiu novamente des maiada.


CAPÍTULO II

Ali, nas montanhosas escarpas dos Pirineus, erguia-se o imponente castelo Saint-Marie, nome que também designava a família possuidora do castelo. À frente do casarão havia uma alameda que, descendo as escarpas dos Pirineus, encontrava a estrada que levava até um pequeno povoado. Dos lados e atrás do castelo existiam terríveis precipícios e, alguns quilômetros depois, um regatozinho onde as lavadeiras trabalhavam.
Vamos encontrar Fernando de Saint-Marie, o futuro proprietário do castelo, subindo pela alameda que conduzia à morada. Neste instante ele batia à porta com a pesada e severa aldrava em forma de cabeça de leão.
Uma criadinha apressou-se a abrir. Fernando entregou-lhe o sobretudo, o chapéu, e entrou na imponente mansão. Logo à frente da porta havia uma escadaria que, mais acima, dividia-se em duas. O futuro senhor de Saint-Marie subiu essas escadas com passadas fortes, que retumbavam no silêncio do castelo. Tomou a escada da direita e subiu até um amplo living onde se encontravam cinco pessoas.
Uma delas era a Senhora Ilsa de Saint-Marie, mulher de sessenta anos, de fisionomia bondosa e acolhedora. A outra era Eleonora, parente longínqua da fami’lia e que há quatro anos vivia ali, desde que completara quinze anos. Era uma jovem magra, assustada, mas não era feia. Tinha cabelos louros presos num coque e dois olhos enormes e azuis. A outra pessoa na sala, além do avô de Fernando e do mordomo Jacques, era a governanta Amália, uma mulher orgulhosa e vaidosa e que, apesar de ter mais de quarenta anos, nunca se casara, por isso tornando-se amarga e triste. Foi ela quem criou Fernando desde que este nasceu.
Dona Ilsa de Saint-Marie virou-se para o filho com a fisionomia alegre. Com dificuldade levantou- se da poltrona para beijar Fernando:
— E então — perguntou —, como foi seu passeio? — Mas sem dar tempo ao moço de responder, continuou: — Não sei por que esses passeios noturnos, nunca gostei deles. Você sabe, meu filho, que não somos vistos com bons olhos na vila...
— Deixe o rapaz sossegado, Dona Ilsa! — exclamou Amália. — Ele já é um homem, sabe o que faz!
Fernando estava alheio a essas conversas. Lembrava das palavras de Adriana ao sair da casa dela.
Eleonora, noiva de Fernando, amava-o muito, mas ao mesmo tempo sentia certo medo dele. Agora estava triste, pois o rapaz não lhe dirigira um olhar sequer desde que chegara. Adiantou-se intimidada, tomou a mão da Senhora Ilsa e levou-a aos lábios.
— Até logo, titia — disse. — Vou para meus aposentos, se me permite.
A velha Senhora de Saint-Marie tinha um sorriso malicioso nos lábios quando perguntou:
— Já, Eleonora? Não vai conversar um pouco com seu noivo? Ou será que vocês estão brigados?
A tímida jovem murmurou um trêmulo não e saiu quase correndo da sala.
— E você, Amália — continuou Dona Ilsa —, já encontrou a moça que precisava para ajudá-la no serviço?
— Não — foi a seca resposta da governanta. — Mas mandei avisar no povoado.
Fernando avançou e, dando um beijo na enrugada face da mãe, disse:
— Vou seguir o exemplo de Eleonora, mãe. Também vou deitar-me. Estou muito cansado.
Fernando retirou-se. E Amália fez o mesmo, seguida pela Senhora Ilsa e pelo mordomo que empurrava a cadeira de rodas do Senhor de Saint-Marie.
O silêncio caiu sobre o castelo de Saint-Marie.


CAPÍTULO III

Em seus aposentos, Fernando tinha os pensamentos voltados para Adriana:
— “O que pensará ela fazer? Qual será a sua vingança? Ah, mas eu não deveria estar receando alguma coisa da parte de uma mulherzinha vulgar e inculta, apesar de muito bela... Mais bela que minha noiva Eleonora...”
Esse último pensamento de Fernando ocorreu-lhe sem que o quisesse. Mas, na verdade, não se podia comparar a beleza de Adriana à de Eleonora. Uma era ardente, sensual, um verdadeiro vulcão prestes a explodir; a outra, tímida, frágil e delicada. Duas mulheres totalmente opostas uma da outra.
— “E se ela contar à minha mãe que eu, o futuro Senhor de Saint-Marie, sou o pai de seu filho?”

Perto dali, Eleonora tinha seus pensamentos voltados para Fernando. Abraçada ao macio travesseiro, imaginava por que motivo o jovem não retribuía seu amor:
— “Será que ele ama outra, meu Deus? Mas quem, quem poderia ser? Fernando quase não sai do castelo, passa os dias trancado no escritório. E quando sai” — pensava ela com amargura — “...quando sai não se digna a lançar-me um olhar, um gesto, um nada. E eu... eu o amo tanto, tanto... Daria a minha vida para vê-lo feliz...” E enterrando a loura cabeça no travesseiro, ela começou a soluçar baixinho, deixando as lágrimas correrem livremente. Por fim, receando que a cruel Amália a ouvisse, silenciou e adormeceu.

Lá embaixo, no povoado, Adriana tinha pensamentos muito diferentes dos da doce Eleonora:
— “Fernando odeia-me... e eu também o odeio. Não sei como pude entregar minha virgindade a um homem mau que só tem pensamentos voltados para o dinheiro. Preciso vingar-me, preciso fazê-lo sofrer tudo o que estou sofrendo... Sei que Amália, a governanta do castelo, andou pela vila anunciando que necessitava de uma ajudante. Pois bem, eu me empregarei no castelo até que meu filho nasça e então me vingarei de você, Fernando de Saint-Marie. Você há de pagar bem caro o que me fez!” E Adriana cerrou com ódio os punhos. Quando os abriu, tinha as mãos crispadas e no rosto uma expressão de fúria. Foi com dificuldade que conseguiu acalmar-se para poder dormir.

Mas voltemos ao castelo de Saint-Marie, justamente no momento em que um grito horrendo feriu os ares. Passos ressoaram pelos corredores. Era Amália dirigindo-se ao quarto de Eleonora, de onde partira o grito. Entrou e deparou com a moça sentada na cama, com uma expressão de horror no rosto.
— Que aconteceu? — perguntou a governanta.
— Foram eles — respondeu Eleonora com uma expressão de loucura — ... foram os fantasmas... eu os vi... ali, na janela... vultos brancos movimentando-se no ar...
— Essa é a maldição que pesa sobre nós, os SaintMarie — disse a voz da Senhora Ilsa, que acabara de entrar.
Eleonora rompeu a chorar e, enquanto Dona lisa a consolava, Amália falou com desprezo:
— Maldição, fantasmas... Fantasmas não existem, minha cara Eleonora. Você sonhou. Ou então...
Notando a pausa feita pela governanta, a Senhora Ilsa procurou completar, perguntando friamente:
— ... ou então o quê, Amália?
— Ou então Eleonora está enlouquecendo — concluiu Amália, saindo do aposento.
Eleonora levantou a cabeça e disse quase gri tando:
— Eu sei que não sou louca! Eu os vi... Ali, ali... Eram brancos... sim, muito brancos... e dançavam...
Dona Ilsa encostou a mão na testa da jovem. Estava quente, sim, muito quente. Mas a bondosa senhora não se assustou, e ali permaneceu embalando a pobre moça até que ela dormisse e então, na ponta dos pés, apagou a luz e retirou-se para seus aposentos. E a noite cheia de mistérios e segredos envolveu o castelo até o romper de um novo dia.


CAPÍTULO IV

A manhã já chegou àquela região da França. O dia amanheceu tão bonito que parecia quase impossível existirem ódios naquela linda região. No povoado, as donas de casa já andavam pelas ruas carregando sacolas, todas cumprimentando-se alegremente. Longe da vila, na fonte, as lavadeiras trabalhavam enquanto cantarolavam canções regionais. Quase todos estavam contentes. Somente no imponente castelo dos Saint-Marie é que parecia não haver uma janela ou porta abertas que pudessem permitir a entrada da felicidade.
No castelo, todos já estavam em pé, à exceção do idoso Senhor Danilo de Saint-Marie, que era paraiftico e não se encontrava disposto a levantar-se.
No saguão da morada, a orgulhosa governanta Amália conversava com uma jovem totalmente vestida de preto. Era Adriana.
— Então? — perguntou a governanta. — Você sabe o que tem a fazer aqui?
— Não, senhora — respondeu Adriana. — Apenas sei que desejava uma ajudante, não sei o que tenho a fazer.
— Não é muita cousa. Apenas fiscalizar o trabalho das criadas e servir o café da Senhora lisa, do Senhor Danilo, de Eleonora e de Fernando.
— Adriana não se mostrou nervosa nem mesmo quando ouviu Amália dizer o nome de Fernando. Ela imaginava o que faria o rapaz quando a visse.
— E então? Aceita? Além de seu salário, terá casa e comida.
— Oh, sim, senhora. Permita que eu me retire para ir ao povoado buscar minhas roupas?
A governanta fez um gesto indiferente, e Adriana retirou-se. Amália não simpatizara com a moça, e não procurou esconder isso. Pouco depois a Senhora lisa entrou no recinto acompanhada de Eleonora. Seu rosto estava alegre e, sacudindo no ar um envelope, disse à governanta:
— Amália, imagine o que diz aqui! George acabou seus estudos e vem morar conosco, não é maravilhoso?
Amália não concordava, ela nunca gostara de George, o outro filho de Dona Ilsa. Sempre mostrara clara preferência por Fernando.
Eleonora ainda não conhecia George, por isso mostrava-se animada. Sua paiidez habitual quase a abandonara. Mas fingindo mostrar-se interessada, Amália indagou:
— E quando ele chega?
— Hoje mesmo, Amália — respondeu a Senhora Ilsa. — Após o meio-dia. Não esqueça de arrumar o quarto dele. A propósito, já conseguiu a ajudante?
— Sim. É jovem ainda e muito bonita, por isso creio que não goste de trabalhar.
A Senhora Ilsa ergueu uma sobrancelha, ela conhecia Amália há quase vinte anos e notou que esta não simpatizara com Adriana. Sabia que teria que suportar intrigas e mentiras da parte da governanta para que se zangasse com a moça.
Eleonora pensava em seu noivo. Sabia que ele estava trancado no escritório, como sempre, de onde só sairia para o almoço, mas mesmo assim perguntou, timidamente:
— E... Fernando?
— Ora — foi a resposta impertinente de Amália — está no escritório. Onde mais poderia estar, minha cara Eleonora?
A jovem corou, baixando os olhos, e a governanta deu um sorriso maldoso. Ela considerava Fernando quase como propriedade sua, e não admitia que lhe tomassem seu afeto. Ficou alguns instantes parada e depois, pedindo licença, saiu dali.
A Senhora Ilsa e Eleonora também se retiraram para o jardim e o saguão ficou vazio.
Em seu escritório, no meio de uma papelada, Fernando escrevia nervosamente. Ele procurava concentrar-se no trabalho sem conseguir, seu pensamento fugia para Adriana. Levantou-se e passeou de um lado para outro fumando, fumando incessantemente, depois chegou à janela e ficou a olhar para fora. Assim permaneceu algum tempo, até que um carro parou no jardim e prendeu-lhe a atenção. De dentro do carro desceu uma moça morena, vestida de preto.
Os olhos de Fernando não conseguiam acreditar no que viam, mas era verdade, a terrível verdade. Aquela moça é Adriana! Fernando sentiu-se cambalear e precisou sentar. Passou a mão pela testa e sentiu o suor escorrendo-lhe pelo rosto.


CAPÍTULO V

Adriana caminhava rapidamente pelos longos corredores do castelo, nas mãos uma pequena valise onde estavam guardadas suas poucas roupas. Neste momento, ela passava justamente pelo escritório de Fernando quando a porta se abriu.
— Adriana — disse Fernando, agarrando a jovem pelo braço. — Adriana, o que é que você está fazendo aqui?
A moça assustou-se, mas recobrou a calma e fitou friamente aquele homem. Deu um safanão no braço e disse:
— Estou empregada aqui, Fernando, e aqui ficarei até o meu filho nascer.
Adriana deu uma entonação especial às três últimas palavras, e gozou com o desespero de Fernando.
— Mas você.., você não vai... — gaguejou ele. — Não, Fernando. Não vou contar nada à sua mãe. Por enquanto, não. E agora largue-me, tenho o que fazer.
E a moça, com um gesto de desprezo, retirou- se caminhando de cabeça erguida.
As horas passaram-se. No grande salão, todos, menos o Senhor Danilo de Saint-Marie, estavam reunidos para o almoço. Adriana servia a mesa. A Senhora Ilsa mostrava-se muito excitada, pois George poderia chegar a qualquer momento. Subitamente uma batida na porta fez a Senhora levantar-se.
— É George, eu sei! Meu coração diz que é ele! — Dona Ilsa fez questão de abrir ela mesma a porta. Ali estava parado umjovem moreno, alto, vestido com cuidado, e seus olhos inteligentes tinham um tom esverdeado. Dona Ilsa abriu a pesada porta e o rapaz atirou-se nos seus braços.
Depois ele cumprimentou Amália, Fernando, Eleonora e... Adriana. Nestas duas últimas, o seu olhar parou, ele não as conhecia. Eleonora estendeu-lhe a mão e disse:
— Eu sou Eleonora, George.
O jovem beijou-lhe a mão, mas seus olhos não se desviaram de Adriana.
— Quem é essa moça? — perguntou.
— Oh — Amália apontou Adriana —, é a minha nova ajudante. Começou a trabalhar hoje. George sorriu para Adriana, simpatizara com ela. A moça retribuiu-lhe o gesto, sorrindo timidamente.
E ficariam ali a fitar-se se Dona Ilsa não os interrompesse.
— Venha, George — disse ela —, você deve estar cansado. Vamos até o seu quarto.
Adriana ficou parada, seu coração batendo descompassadamente. Sentia algo que não podia definir, como uma vontade louca de correr, de olhar o céu, o sol, as flores. Mas a fria Amália interrompeu os seus pensamentos perguntando:
— Adriana, você não vai servir Fernando?
A moça estremeceu e pegou uma vasilha. Fernando notara como ela ficou impressionada com o seu irmão, e uma onda de ciúme, de ódio, de rancor invadiu-lhe o coração. Sim, ele não conseguia esconder seus sentimentos: Fernando amava Adriana.

A tarde passou sem novidades até a hora do jantar, quando todos voltaram a reunir-se em volta da mesa.
— E George? — perguntou Amália.
— George está muito cansado — respondeu a Senhora lisa. — Ele ficou em seus aposentos. Adriana vai levar-lhe o jantar.
Adriana estremeceu, mas pegou uma bandeja e, subindo as escadas, bateu à porta do quarto do rapaz.
— Entre — disse ele.
Adriana entrou. O rapaz estava deitado lendo um livro, mas, ao vê-la, passou a mão pelos cabelos e colocou o livro sobre a mesinha de cabeceira.
— Vim trazer-lhe a janta, senhor George.
A moça colocou a bandeja sobre a mesa. Ao fazer isso, seus olhos encontraram-se com os de George. Este, sentando-se na cama, perguntou:
— Por que está tremendo, Adriana?
— Por nada — disse ela nervosamente. — Sou uma tola.
— Sabe que é muito bonita?
Adriana corou, mas nada respondeu e, abrindo a porta, saiu do quarto. Seu coração voltara a florir: Adriana sentia que encontrara o seu verdadeiro amor
e estava feliz. Ela amava George como nunca tinha amado ninguém. Era um sentimento puro, calmo, belo, muito diferente da violenta paixão que sentira por Fernando.


CAPÍTULO VI

Amanheceu mais um dia na França. Lá no alto, no castelo dos Saint-Marie, a vida de intrigas, ciúmes e desconfianças continuava. Ainda não eram nove horas e todos continuavam em seus aposentos, à exceção da governanta Amália, que dava ordens na cozinha, e de Adriana. Adriana já levou o lanche a todos, menos a Eleonora e a George, e o de Fernando, Amália fez questão de levar.
Neste momento Adriana subiu para servir George. A bandeja tremia em suas mãos e o seu coração batia nervosamente. Ela contou lentamente os degraus até chegar lá em cima e bateu à porta, depois entrou sem esperar resposta.
— Bom-dia, senhor George.
— Bom-dia, Adriana. Sabe que esta noite sonhei com você? Ora, não precisa ficar vermelha assim...
Adriana baixou a cabeça e murmurou:
— Senhor George, eu... eu sou apenas uma criada, nada mais que isso.
George a olhou sorrindo, mas não se conteve e disse:
— Adriana, sabe que a amo? — A moça ergueu o rosto muito pálido e ficou a olhar o másculo rosto do rapaz. Mas eis que surgiu como um turbilhão e, sem que ela pudesse explicar como, seus lábios encontraram-se com os de George e um doce beijo os uniu. — Adriana, desde que a vi senti que minha vida ia mudar. Eu a amo muito... muito...
Enlevada, Adriana repetiu as últimas palavras do rapaz:
— Eu o amo muito... muito... — Mas subitamente lembrou-se que já pertencera a outro, e afastou-se bruscamente, saindo do quarto a correr. Chegando às escadas, começou a chorar, mas secou as lágrimas com as mãos e desceu.
Enquanto isso, na cozinha, uma mão segura um pequeno frasco e despeja um pó branco no café destinado à Eleonora.

A manhã passou tranqüilamente. No almoço, Adriana procurou evitar que seu olhar se encontrasse com o de George, mas ficou tão nervosa que derramou um prato de sopa, levando uma repreensão da dura Amália. Findo o almoço, a Senhora Ilsa propôs um passeio pelos campos, mas somente Eleonora e George animaram-se com a idéia. E os três convidaram Adriana para acompanhá-los.
Saíram a caminhar. Adriana acompanhava a Senhora Ilsa; mais à frente George caminhava com Eleonora, olhando de vez em quando, furtivamente, para trás.
— Adriana — disse a Senhora Ilsa, arquejando —, acho que não posso mais, vamos sentar um pouco?
A jovem sorriu e procurava ajudar Dona lisa quando tudo escureceu, e ela precisou segurar na mão da velha senhora para não cair.
— O que houve, Adriana? — perguntou Dona Ilsa. — Está se sentindo mal?
— Oh, não — respondeu a moça, passando a mão pela testa —, foi apenas uma tontura... Já passou...
Dona Ilsa notou a palidez da jovem e procurou dar à voz um tom normal quando disse:
— Minha filha, sou velha e experiente, não procure esconder nada de mim. Eu sei o que há. Você... você vai ter um filho, não é isso?
Adriana não respondeu, desejaria estar muito longe dali, desejaria não ter que contar sua amarga história à bondosa Senhora Ilsa. Pensando nisso, começou a chorar convulsivamente.
— Chore, minha filha, chore que isso só lhe fará bem. Mas não se preocupe, não a mandarei embora. O seu filho terá um lar.
A moça levantou os olhos cheios de gratidão e abraçou Dona Ilsa. Nesse momento, Fernando assomou à janela do castelo e ficou intrigado ao ver aquela inesperada cena. Vendo aquilo, George e Eleonora também voltaram-se, e o rapaz perguntou, trêmulo:
— O que houve com Adriana, mamãe?
— Houve que... que Adriana vai ser mãe...
— ... vai ser mãe?! —repetiram Eleonora e George
A Senhora lisa acenou com a cabeça e, abraçada a Adriana, voltou-se e começou a caminhar de volta ao castelo dos Saint-Marie.


CAPÍTULO VII

Mais uma noite cobriu a França e todo o Ocidente. Os cães e lobos começaram a entoar sua costumeira canção à lua que, naquele dia, nega-se a aparecer e com ela, também as estrelas. O céu estava sem nuvens, negro, totalmente negro, e a angústia parecia pairar sobre o mundo, principalmente na velha mansão da tradicional família dos Saint-Marie, onde um manto de desgraça envolvia tudo. Aos lados e atrás do castelo, os ameaçadores precipícios dos Pirineus aumentavam a tristeza do cenário.
A refeição notuma estava sendo servida. Ao redor da mesa agrupa-se toda a família, até mesmo o Senhor Danilo, que se sentia melhor. Amália, a fria governanta, também está à mesa, pois é quase uma Saint-Marie. Adriana servia os pratos, ajudada por uma criada macilenta que parecia estar sempre receando uma repreensão.
— Toda a famflia reunida, hein? — disse George, tentando alegrar o ambiente.
Amália teve vontade de dar uma de suas costumeiras respostas. Chegou a abrir a boca para falar, mas a Senhora Ilsa, como que prevendo o que ela diria, lançou-lhe um olhar e o silêncio se restabeleceu. A suave Eleonora olhava Fernando que, calado como sempre, não lhe prestava atenção. A jovem reprimiu  um soluço e levou o garfo aos lábios, mas uma garra de ferro pareceu comprimir-lhe a garganta. Ela soltou um gemido que se transformou num grito lancinante e depois tombou.
— Eleonora! — gritou Dona Ilsa, levantando-se.
— Eleonora, o que houve? — falou George, auxiliando ajovem a levantar-se. E voltando-se para Adriana, pediu: — Adriana, pegue um copo d’água, depressa, por favor!
Todos estavam nervosos e falavam ao mesmo tempo, apressadamente. Amalia esquivou-se e subiu as escadarias quase correndo. O terror e a alegria estampavam-se ao mesmo tempo em seu rosto perverso.
— Outra vez — gemeu Eleonora —, outra vez...
— Mas por Deus — gritou George borrifando-lhe as faces com água —, o que aconteceu?
— Confie em nós, minha filhinha — pediu a Senhora Ilsa. — Diga-nos o que aconteceu.
Até mesmo Fernando aproximou-se e tomou a mão da moça. Eleonora sorriu, dizendo depois:
— Foi só um mal-estar... Não se preocupem, já estou bem...
O velho Senhor Danilo de Saint-Marie aproximou-se em sua cadeira de rodas e falou tremulamente:
— Minha filha, ouça um conselho ditado por um homem velho e experiente. O que você tem sempre aconteceu com as noivas dos Saint-Marie, algumas chegaram a morrer antes de casar e...
Com lágrimas nos olhos azuis, Eleonora gritou:
— E... Continue, por favor, diga que estou enlou quecendo!
O velho sorriu mostrando as gengivas murchas e descoradas:
— Não, Eleonora, não é isso... É a maldição dos Saint-Marie! Por causa dela estamos todos refugiados neste castelo, reduzidos a este mísero grupo. Nós... que já dominamos quase toda a França!
— Então é isso — gritou Eleonora. — É a maldição de que nunca quiseram falar!
Dona Ilsa procurava acalmar a jovem acariciando-lhe as louras mechas do cabelo. Fernando aproximou-se do velho senhor e perguntou:
— E o que o senhor aconselha?
O velho deu um sorriso enigmático e disse:
— Casar-se, casar-se o quanto antes... Antes que sua noiva seja levada pela morte!
E afastou-se rindo alto. Enquanto isso, Amália regressou fingindo um nervosismo que estava longe de sentir. A Senhora Ilsa ergueu-se, tinha o ar solene, o ar que adotava nos momentos importantes.
— Pois o casamento deve realizar-se o quanto antes — disse. — No máximo, dentro de um mês.
Fernando fez um gesto de pouco caso, que feriu Eleonora, feliz com a realização de seu sonho. A um canto, Adriana sentia-se mais do que nunca como uma simples criada, como uma mulher ultrajada que procura vingar-se. Sem querer, olhou ternamente para George e, para sua surpresa, o rapaz lhe devolveu o olhar. Olhar esse que não passou despercebido. Amália o notou. A família ainda ficou reunida mais algum tempo a conversar, a fazer planos para o casamento de Fernando e Eleonora. Mas logo recolheram-se, e todas as luzes se apagaram.

CAPÍTULO VIII

Adriana caminhava pelos longos corredores do castelo. A escuridão a assustava, e só ao lembrar-se que tem que subir ao último andar, onde fica seu quarto, tem um arrepio de medo. Agora ela passava pelo quarto da Senhora Ilsa Saint-Marie, logo além ficavam os aposentos de George. Mas de repente parou, e foi com espanto na voz que perguntou:
— George! O que está fazendo aqui?
— Adriana — disse o rapaz num sussurro —, não posso mais... Eu a amo muito, temos que nos casar!
Espantadíssima, Adriana só conseguiu gaguejar:
— E-eu t-também... amo você, George... mas você sabe que... q-que eu...
— Sim, eu sei que você vai ter um filho, Adriana. Mas creia, eu a amo muito e isso não faz diferença. Sei que você ainda conserva a pureza da alma e se cometeu alguma... alguma loucura.., foi num momento de embriaguez, num momento de paixão.
O rapaz falava ansiosamente, olhando bem dentro dos negros e tristes olhos da infeliz Adriana. Esta sussurrou:
— George, nosso amor é puro, sim, mas nunca seria feliz. Sempre haverá aquela sombra em meu passado... e você não sabe quem é o pai de meu filho...
— Adriana, não me torture... Nós poderemos esquecer isso, e o pai de seu filho, o canalha que a maculou, não se interporá jamais entre nós. Quando a criança nascer nós já estaremos casados!
Adriana pensou na felicidade de que poderia usufruir. O futuro estava em suas mãos, e por um instante ela quase esqueceu por que estava ali.
— Não, George, eu o amo também... mas tenho outro objetivo em mente. Só poderemos casar quando eu já o tiver alcançado, e isso será muito breve, creia-me.
George espantou-se com o tom em que eram ditas aquelas palavras, e mais estupefato ficou quando Adriana saiu a correr, sem lhe dar explicações. Mas ele conseguiu alcançá-la.
— Adriana, não sei que objetivo será esse. Mas quero que me prometa o seguinte: dentro de um mês, no casamento de meu irmão, anunciaremos o nosso noivado, está bem?
A jovem concordou com a cabeça. Sim, que melhor vingança poderia desejar? O despeito e o ciúme de Fernando ao saber que ela, Adriana, seria uma Saint-Marie, e que o seu filho poderia ser o senhor de tudo um dia. Mas não apenas por isso casaria com George, não: ela também o amava. Com um beijo rápido, despediu-se de George e foi para seu quarto. O resto da noite passou com o horror de costume. Isto é, os fantasmas apareceram novamente para Eleonora, que outra vez gritou, pedindo socorro. Todos acudiram a seus gritos, e a Senhora Ilsa, olhando pelo janelão, nada conseguiu ver, embora desejasse estar enganada. A Senhora lisa julgava, assim como todos os outros, que a pobre moça estava mesmo ficando louca.

E as horas, os dias, as semanas passaram rapidamente. Agora faltam apenas dois dias para o enlace de Eleonora e Fernando, e também para o noivado de George e Adriana. Cerca de vinte empregados movimentavam-se pelo castelo arrumando, limpando, enfeitando. Apesar dos protestos de Amália, a Senhora lisa fazia questão de que fosse realizada uma festa de arromba.
Passou-se mais um dia. À noite, Eleonora teve novamente suas visões, e no dia seguinte, à hora do almoço, recusou o alimento. A Senhora lIsa, Adriana e George mostravam-se preocupados com a jovem, que definhava a olhos vistos.
Mas o tempo é inexorável, e o sol descambou mais uma vez.


CAPÍTULO IX

Finalmente chegou o esperado dia. Desde cedo Adriana estava em pé, e não só ela, Amália, George, a Senhora Ilsa, Fernando e até o Senhor Danilo de Saint-Marie fizeram questão de madrugar. Eieonora, por insistência de Dona Ilsa, permanecia em seus aposentos.
Deitada em seu leito, Eleonora pensava: — “Afinal chegou o dia, o grande dia de meu casamento. Eu devia estar feliz, mas não sei por que não estou. Sinto algo... algo que me diz que Fernando não é como eu penso... Oh, mas como sou tola, pensando sempre em coisas tristes.” E tentou mudar seus pensamentos, mas não o conseguiu. Permaneceu então deitada até que uma batida à porta a sobressaltasse. Era Adriana, com uma cestinha de onde retirou uma escova e um pente.
— Bom-dia, Eleonora, vim prepará-la para a ce rimônia.
Eleonora olhou para o vestido de noiva sobre uma poltrona. Era lindo, sim, lindíssimo e muito antigo: fora usado pela primeira Saint-Marie e seria usado pela última, rezava a tradição da família. A moça tentou levantar-se, mas estava muito fraca e quase não conseguia sair da cama. Adriana ajudou a moça a vestir-se e começou a passar-lhe o pente pelos louros cabelos, enquanto conversava alegremente. De súbito, Eleonora perguntou-lhe:
— Adriana, por que você está sempre vestida de preto? Morreu alguém de sua família?
Adriana teve um sobressalto, e foi com a voz repassada de tristeza que respondeu:
— Não, minha amiga, não morreu ninguém de minha família, pois já não a tenho. O que não existe mais é... um ídolo ou um homem que do mais alto degrau passou para o mais baixo... e acabou esfacelando-se e misturando com a poeira do chão...
Eleonora não entendeu mas, percebendo que o assunto entristecia Adriana, calou-se.

As horas passaram. A Senhora Ilsa veio bater à porta do quarto de Eleonora.
— Eleonora, minha filha, apresse-se! Só estamos esperando por você.
Adriana abriu a porta e a noiva saiu do recinto, belíssima, parecendo um anjo caído há pouco do céu. A Senhora lisa extasiou-se com a beleza da jovem e George, que passava por ali, soltou um assobio de entusiasmo.
— Você está lindíssima, prima! E você, Adriana, não vai se arrumar também?
A moça fez um aceno com a cabeça e saiu em direção a seu quarto. Dona lisa e George acompanharam a frágil Eleonora até a capela dos Saint-Marie, onde já estavam os convidados. A aparição da noiva fez um murmúrio de admiração erguer-se no ar. George estava impaciente e, quando viu Adriana entrar, puxou-a para o altar e disse:
— Senhores, em breve outro casamento realizar-se-á aqui. Tenho o prazer de comunicar-vos que estou noivo da senhorita Adriana Legrange!
Um murmúrio ergueu-se novamente. Todos estavam espantados com George de Saint-Marie casar-se com uma pobretona, além de tudo no estado em que se encontrava. Mas Dona Ilsa mostrou-se feliz, e não se cansava de beijar e abraçar a noiva. Todos da família aprovavam o casamento, apenas Fernando parecia descontente e Amália mordia os lábios de despeito.
A cerimônia começou. Transcorreu tudo normalmente e, depois de realizado o casamento, todos dirigiram-se para o castelo, onde um lauto almoço será servido aos convidados. Adriana já não era mais uma criada, mas a noiva de George. Todos pareciam tranqüilos e felizes, mas eis que um horrendo grito interrompeu a tagarelice das mulheres.
— Vejam! — gritou um convidado, apontando um vulto branco que despencava no precipício.
Uma mão invisível pareceu tapar a boca de todos. Um silêncio mortal envolveu o castelo de SaintMarie. O vulto branco era Eleonora.
— Eleonora! — gritou a Senhora lisa. — Eleonora, minha filha querida!
E fez menção de jogar-se também no precipício. Fernando conseguiu segurá-la a tempo. Entre lágrimas, George balbuciou:
— Ela era um anjo, e os anjos não pertencem à Terra.


CAPÍTULO X

Após o frustrado casamento de Fernando, uma profunda mudança ocorreu em Saint-Marie. A Senhora lisa tcomou-se uma mulher triste e caiada, a maior parte do dia rezando na pequena capela ou no túmulo de Eieonora. Amália tcomou-se ainda mais fria e insensível, parecendo intimamente muito satisfeita. Adriana agora já não era apenas uma criada, não mais servia à mesa ou tirava o pó dos móveis, e ocupava seu tempo a fazer roupas para o filho. George continuava a ser aquele rapagão alegre, mas sua alegria às vezes parecia forçada. Fernando não mudou: a morte de Eleonora não o comoveu absolutamente. Mas tomemos uma noite da mansão e vejamos o que acontece. Adriana não conseguia dormir, revirando-se na cama. Subitamente olhou para a janela e viu vultos brancos esvoaçando. “Fantasmas”, pensou ela, e de sua garganta saiu um grito aterrorizado.
Quase imediatamente surgiram a Senhora lisa, Amália e George.
— Ali... — disse ela, trêmula — ...ali na janela... os fantasmas... — E rompeu num choro convulsivo.
— É a maldição — disse soturnamente Amália. Ela está noiva de um Saint-Marie e...
Dona Ilsa interrompeu a governanta para consolar Adriana.
— Não chore, filhinha — disse ternamente —, isso não é bom no seu estado, não se preocupe.
George também consolava Adriana:
— Querida, acalme-se, pense em nosso filho.
A moça ficou satisfeita ao ouvir o nosso, e acalmou-se, adormecendo novamente.

Como Amália estava sozinha para atender toda a mansão, uma nova criada substituiu Adriana. No seu primeiro dia, levou o café da manhã para a moça.
— Bom-dia — disse Adriana —, vejo que é nova aqui. Como se chama?
— Lili, madama — respondeu a figurinha magra e irrequieta. — Mas se quiser pode me chamar de Noeli, que é meu verdadeiro nome, eu porém prefiro...
— Sei, sei — respondeu Adriana, rindo da maneira truncada da mocinha falar. — Dê-me o café, Lili.
A empregadinha, sempre rindo muito, perguntou:
— Eo seu nome, madama? Não é a Dona Driana?
— Adriana — corrigiu a moça —, mas dê-me logo o café e deixemos de tagarelar.
— Sim senhora, olha, eu trouxe até um pão com mantêga pra madama tão bonita.
—Manteiga, Lili, manteiga.
Adriana tomou seu café, depois entregou a bandeja a Liii, que saiu do quarto muito espevitada. O dia estava lindo. A Senhora lisa levantou-se muito cedo e foi fazer sua visita matinal ao túmulo de Eleonora. Adriana saiu a passeio com George, só voltando ao meio-dia. Ao sentar-se à mesa, Amália fitou-a com olhos estranhos. Subitamente a moça soltou um grito e caiu ao chão desfalecida.
— Adriana! — gritou George desesperado. — Oh, não! Está acontecendo com ela o mesmo que com Eleonora!
— Minha querida — disse Dona lisa maternalmente
—, tome este copo d’água e logo ficará boa.
Fernando retirou-se bruscamente da saia. Amália disse, vitoriosa:
— É a maldição! Dela ninguém escapa, ninguém!
O Senhor Danilo de Saint-Marie aconselhou:
— Vocês têm que casar-se logo, antes que o precipício chame Adriana, como fez com Eleonora.
O velho senhor era muito respeitado, sua sugestão era a única aconselhável. Ficou decidido então que a cerimônia seria logo realizada, um casamento simples, quase em segredo.

No dia seguinte George foi ao povoado arrumar os papéis necessários para o casamento. Adriana ficou no castelo, tricotando e conversando com Liii, a criadinha, com quem fez grande amizade. Amália caminhava sozinha pelos corredores. Suas passadas retumbavam no silêncio, ela parecia preocupada com alguma cousa.
Ao anoitecer, George voltou ao castelo, cansado, mas feliz. Dentro de uma semana será realizado o casamento.

CAPÍTULO XI

Passaram-se cinco dias de tensão em Saint-Marie. Adriana tinha visões e desmaios cada vez mais freqüentes. Certa noite ouviu-se um grito louco no castelo, mas não vinha dos aposentos de Adriana, e sim do quarto de Amália.
Todos correram para lá. A peça estava cheia de fumaça negra, uma língua de fogo lambia o teto.
— Tia Amália! — gritou Fernando penetrando no aposento. — Tia Amália, onde está a senhora?
Nesse momento ouviu-se um estrondo na parte norte da mansão, aquela parte do castelo acabara de ruir.
Subitamente uma horrenda gargalhada assustou a todos. Amália, correndo pelos corredores com um toco de vela na mão, parecia totalmente louca. Com uma expressão de fúria, ela gritou:
— Eleonora morreu! E Adriana morrerá também! Os Saint-Marie morrerão todos! Eu os matarei um a um! Sempre fui tratada como uma criada, mas me vingarei! Hei de matar a todos, todos!
George agarrou a infame governanta e puxou-a para fora da mansão. Adriana, a Senhora lisa e Danilo de Saint-Marie, com sua cadeira de rodas empurrada pelo mordomo Jacques, seguiram atrás. Lili já se encontrava lá fora.
— Jacques — pediu George —, segure Amáiia enquanto vou buscar Fernando.
E entrou novamente no castelo envolto em nuvens de fumaça. Adriana gritou por ele, mas o corajoso rapaz não a atendeu.
— George — chorava Dona Ilsa —, George, não... Perdi minha querida Eleonora, Fernando e agora George. Não, meu Deus, é demais para mim.
— Acalme-se, filha — disse o idoso Senhor Danilo. — George voltará e trará Fernando também.
Dona Ilsa chorava desconsoladamente. Adriana não sabia o que fazer. Amália acalmou-se, e lágrimas caíam-lhe dos olhos enquanto pronunciava palavras desconexas.
— Veneno, veneno... meu amor... Eleonora... Fernando... eu me vingarei... o pó... sim, o pó está lá dentro... deixem-me buscar o pó... os lençóis... os fantasmas... a maldição... ninguém escapa da maldição...
E sacudia a cabeça desgrenhada violentamente.
Nesse momento um formidável estrondo retumbou no silêncio da noite. O castelo de Saint-Marie já não existia. E... George?
— George! — gritou Adriana. — George, querido, onde está você?
Um grito respondeu ao chamado de Adriana: era George, curvado sobre o corpo inanimado de Fernando. Adriana correu para lá. Ao ver a moça Fernando sussurrou:
— Adriana... você... você me perdoa?
Adriana limpou com o lenço o sangue que escorria do peito de Fernando, acenando com a cabeça. “Sim”, murmurou, mas o homem já nada escutava. Fernando de Saint-Marie estava morto.
A Senhora lIsa chorava mansamente enquanto acariciava os cabelos do rapaz.
— O que é que você perdoa, Adriana?
— Fernando era o pai de meu filho — murmurou Adriana. E ante os olhos estupefatos dos outros a moça desfiou a sua longa e triste história. Dona Ilsa a abraçou, dizendo entre lágrimas:
— Você é uma Saint-Marie, Adriana. — E virando para Amália, perguntou friamente: — E você, o que tem a dizer?
Amália não oferecia mais resistência, e respondeu:
— Eu amava Fernando e odiava todos os SaintMarie. Por isso suspendia lençóis à janela do quarto de Eleonora, e depois de Adriana. Uma negra velha da aldeia deu-me um pó branco que eu colocava nos alimentos de Eleonora e de Adriana, daí provinham os desmaios e tonturas.
— Terminou? — perguntou George, espantado com a revelação.
— Sim, terminei.
Lili comentou:
— Puxa, que mulher ruim!
Jacques, o mordomo, levou Amália ao povoado para deixá-la na delegacia.
— Perdi Eleonora — lamentava-se Dona Ilsa —, e agora perdi também Fernando...
— Não chore, mamãe — disse George. — A senhora ganhou uma filha.
Dona Ilsa levantou os olhos cheios de lágrimas para Adriana, procurando sorrir.
— Está feliz? — perguntou George a Adriana.
— Oh, George! — soluçou a moça. — Como posso estar feliz? Não mereço o seu amor. O meu coração estava cheio de ódio por Fernando, eu só pensava em vingança. Você me perdoa?
Como resposta, o rapaz abraçou-a e deu-lhe um leve beijo nos lábios. Talvez agora eles possam ser felizes, a pérfida Amália não fará mal a mais ninguém.
A aurora já põe os dedos cor-de-rosa no puro azul do firmamento. Contra o horizonte destaca-se a outrora mansão dos Saint-Marie, agora transformada em ruínas. Mais atrás vê-se a silhueta de dois jovens abraçados, parecendo uma promessa de esperança e fé no futuro.


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| Por Caio Fernando Abreu | 17.9.13 | 19:52.

50 Responses to “A maldição dos Saint-Marie”

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