Para Grace Giannoukas e Marcos Breda
NAQUELE verão, quando a Mãe avisou que o primo Alex vinha passar o fim de semana conosco na casa da praia alugada, eu não gostei nem um pouco. Não por causa dele, que eu mal lembrava a cara direito, podia até ser qualquer outro primo, tio, avô. Mais por minha causa mesmo, que tinha começado a crescer para todos os lados, de um jeito assim meio louco. Pernas e braços demais, pêlos nos lugares errados, uma voz que desafinava igual de pato, eu queria me esconder de todos. Só tardezinha saía de casa, na hora que as empregadas domésticas - as dosas, o Pai dizia - estavam voltando da praia. Então caminhava quilômetros na beira do mar, me rolava na areia, vez enquando chorava e repetia: pequeno monstro, pequeno monstro, ninguém te quer. Não suportava ninguém por perto. Uma Mãe insistindo o tempo inteiro pra tu ires à praia na mesma hora que todo mundo normal vai e um Pai que te olha como se tu fosses a criatura mais nojenta do mundo e só pensa em te botar no quartel pra aprender o que é bom - isso já é dose suficiente para um verão. Como se não bastasse a minha desgraça, agora ia ter que dividir meu quarto com o tal de primo Alex. E não queria que ninguém ouvisse minha voz de pato grasnando, visse meus braços compridos demais, minhas pernas de avestruz, meus pêlos todos errados.
Fiz cara feia, a Mãe nem ligou. Falou que ele vinha e pronto, que tinha estudado muito o ano todo, passado no vestibular não sei de que e precisava descansar e tal e tudo e que ela devia aquela obrigação à tia Dulcinha coitada tão só e que além do mais o Alex era um bom rapaz tão esforçado o pobre. Isso eu odiava mais que tudo: aqueles bons rapazes tão esforçados e de óculos sempre saindo com sacolas de lona na hora do almoço para comprar cervejas e coca-colas e cigarros pra todo mundo, ajudando a lavar pratos e jogando aquelas chatíssimas canastras sobre o cobertor verde na ponta da mesa. Empurrei a compota de pêssego argentino, a calda virou na toalha, armei a tromba. Esse era meu jeito de dizer: não careço nem ver a cara dele para ter certeza que é um coió.
Quase dormindo, mais tarde, naquela mesma noite que a Mãe avisou que oprimo Alex vinha, eu tentava lembrar a cara dele e não conseguia. Na verdade, não conseguia lembrar a cara de ninguém desde uns dois anos atrás, desde que eu tinha começado a ficar meio monstro e os parentes se cutucavam quando eu passava, davam risadinhas, falavam coisas baixinho, olhando disfarçado pra mim. Eu tinha horror deles, que achavam que sabiam tudo sobre mim. Sabiam nada, sabiam bosta do meu ódio enorme por um por um de cada um deles, aquelas barrigonas, aqueles peitos suados, pés cheios de calos. Eu nunca ia ser igual a eles - pequeno monstro, seria sempre diferente de todos. Era assim mesmo que ia me comportar com o primo Alex, decidi: pequeno monstro cada vez mais monstro, até ele não agüentar mais um minuto e dar o fora pra sempre. Fiquei olhando com força pro colchão sem lençol da cama ao lado onde ele ia dormir, até encher o colchão com todo o meu ódio, pra ele se sentir mal e ir embora no mesmo dia.
No dia que era o dia que ele vinha - e eu sabia porque a Mãe não falava outra coisa, arrumou lençóis limpos na cama ao lado, mandou eu empilhar os gibis, guardar no guarda- roupa a roupa da guarda da cadeira -, saí de casa um pouco mais cedo e fiquei caminhando séculos na praia. Eu gostava de ir até aquele farol no caminho de Cidreira, onde tinha umas dunas e era bom ficar deitado na areia, olhando o mar sem fim. Vez enquando passava um navio, eu perguntava pra onde vai? pra onde vai? Bem besta mesmo, não pensava o lugar, só perguntava assim: pra onde vai, sem pensar o nome nem nada. Depois pensava também se eu saísse agora reto daqui e entrasse no mar e que nem Jesus Cristo fosse capaz de pisar sobre as águas e fosse andando sempre em frente sem parar - ia dar onde? Achava que na África, na Índia, sei lá. Em algum lugar, ia dar. Longe dali, de Tramandaí. Aí começou a sair do mar uma lua cheia bem redonda, e eu primeiro fiquei tentando ver nela São Jorge e o dragão, depois lembrei que era besteira, coisa de criança, e pensei crateras, desertos, quase via, Mar da Serenidade. Ou era Fertilidade? Fui olhando as coisas, me atrolhando por ali, até que de repente tinha anoitecido total, e eu tinha que voltar pra merda daquela casa com aquele Pai e aquela Mãe. Ainda por cima, fui lembrando no caminho, cada vez mais puto, e por causa disso caminhava mais devagar ainda e ficava cada vez mais noite, agora com aquele tal de primo Alex lá, enfiado no meu quarto.
Passaram uns bagaceiras com violão e uma garrafa de cinzano, abraçados, cantando uma música de parque. Desviei deles, fui enfiando os pés na água morna do mar, de cabeça baixa pra não mexerem comigo. Vez enquando olhava pra trás e só ouvia aquelas vozes bem de bagaceiras mesmo, cada vez mais longe, cantando a noite tá tão escura/ a lua fez feriado/ estou sofrendo a tortura/ de não sentir-te ao meu lado. Bestas, pensei, porque a lua não tinha feito feriado coisa nenhuma, feriado era lua nova, não aquela luona enorme, redonda, amarela, bem ali em cima do mar e da cabeça da gente. Quando eu. já tinha caminhado um pouco em direção ao norte, e os bagaceiras tinham sumido, olhando por cima do ombro direito pensei quem sabe agora, saindo reto aqui eu dou justo ali, no sulzinho da África, cabo das Tormentas. Ou era o da Boa Esperança? Aí de repente despencou uma baita estrela cadente, quase do tamanho da lua, tão grande que cheguei a parar pra ouvir o tchuááááááááááááááá da estrela caindo dentro do mar. Não aconteceu nada, então falei bem alto, imitando aquela vozinha de taquara rachada da dona Irineide, professora de Geografia: bó-li-dos, isso que o populacho chama de estrelas cadentes na verdade são bó-li-dos. Me senti muito culto e tudo, mas meio sem graça, daí lembrei que podia fazer um pedido, ou três, não sei bem, a gente podia. Então peguei e fiz. Que já que o primo Alex tinha mesmo que estar lá naquela merda de casa - e era impossível pedir que não viesse, porque já tinha vindo - que pelo menos ele fosse legal e não me enchesse o saco.
Bem devagarinho, fui me distraindo com essas coisas pelo caminho. Daí me atrasei tanto que, quando cheguei em casa, estava armado um começo de alvoroço. O Pai já estava de chinelo e pijama, me chamou de desgranido e disse que ia me proibir de ir à praia a essa hora de louco e eu respondi que se me proibisse de ir nessa hora eu ia ficar no quarto trancado e não ia em hora nenhuma nunca mais, e a Mãe falou baixo, mas eu escutei, é a idade não liga, não implica com o guri, criatura, e me deu uma janta meio fria com milho duro e eu cheguei a abrir a boca pra falar que não era cavalo quando ela disse que o primo Alex já tinha chegado e estava dormindo, podre da viagem. Nem precisava dizer nada: sentado na ponta da mesa, eu já tinha visto aquela campeira xadrez pendurada numa guarda de cadeira. Mesmo que não pudesse ver nada, farejava um cheiro no ar. Nem bom nem mau, cheiro de gente estranha recém-chegada de viagem. Polvadeira, bodum, sei lá. Quase não consegui comer, de tanto ódio. O Pai foi dormir azedo, falando que no quartel eu ia ver. A Mãe ficou mexendo no rádio, mas só dava descarga no meio dumas rádios castelhanas êle-êrre-uno-êle-êrre-dôs. Nada de Elvis, que eu gostava e ela fingia que não, só Gardel, que ela gostava e eu tinha certeza que não. Falei que ia dormir também, a Mãe botou a mão no meu ombro e muito séria pediu pra mim prometer que ia ser educado com o primo Alex coitado que o pai dele tinha morrido e a tia Dulcinha passava muito trabalho e coisa e tal. Até prometi, não custava nada. Mas fiquei torcendo os dedos, rezando prela não repetir que ele era um bom rapaz tão esforçado o pobre, senão meu ódio voltava. Ela acabou falando, bem na hora que Gardel cantava sabia que nel mundo no cabía toda la humilde alegría de mi pobre corazón, e eu fui dormir com muito ódio. Dela, do Pai, do primo Alex, da tia Dulcinha, dos bagaceiras da praia, do Gardel, de tudo.
Tirei a areia dos pés no bidê, lavei a cara e fiquei parado na frente do espelho. Pequeno monstro, falei. Mais de uma vez, três, doze, vinte, eu repetia sempre, me olhando no espelho antes de dormir: pequeno, pequeno monstro, ninguém, ninguém te quer. Mijei, escovei os dentes, gargarejei. Me deu vontade de vomitar, sempre me dava. Mas não vomitei, nunca vomitava. Tive vontade de me encolher ali mesmo, embaixo da pia, feito cusco escorraçado, e dormir até a manhã seguinte, para que todos vissem como eu era desgraçado. Meu quarto agora não era mais só meu, não podia ficar lendo até tarde nem nada, luz acesa até altas: a droga do primo Alex estava lá, e eu tinha prometido ser bem educado com ele, coitado.
Aquele quarto que agora não era mais meu, mas. meu e do tal de primo Alex, ficava na parte de trás da casa de tábuas, numa espécie de puxado, ao lado de um banheiro que antes dele chegar também era só meu, mas agora era meu e dele, que nojo. Apaguei a luz, parei na porta do banheiro e fiquei remanchando um pouco por ali, parado no corredor escuro, antes de entrar. Eu tinha que estar preparado para enfrentar aquele tapume de óculos, que certamente - eu conhecia bem essa gente - tinha deixado seus óculos sebentos na minha mesinha de cabeceira, e aqueles vulcabrás nojentos com umas meias duras no garrão saindo pra fora e um fedor de chulé no ar, escarrapachado na cama, roncando e peidando feito um porco. Que ódio, que ódio eu sentia parado naquele biricuete escuro entre o banheiro e o quarto que não eram mais meus.
Abri a porta devagarinho. A janela-guilhotina estava levantada, a luz apagada. Não tinha nenhum fedor no ar. A luz da lua entrando pela janela era tão clara que eu fui me guiando pelo escuro até a minha cama, sem precisar estender a mão nem nada. Sentei, levei a mão até a mesinha de cabeceira e apalpei: não tinha nenhum óculos em cima dela. Só meu livro Tarzan, o Invencível, da coleção Terramarear. Pelo menos isso, pensei: a trolha não usa óculos. Fiquei de cueca, camiseta, me deitei. Não tinha nenhum barulho de ronco, nenhum cheiro de peido no ar, só aquele perfume meio enjoativo do jasmineiro ali no pátio ao lado. Os meus olhos foram se acostumando mais no escuro, e eu comecei a olhar para a cama onde o primo Alex estava deitado, do outro lado do quarto.
A luz da lua batia direto nele. Ele estava deitado por cima do lençol, completamente pelado. Meus olhos se acostumavam cada vez mais, e eu,podia ver o primo Alex virado sobre o lado direito, as duas mãos juntas fechadas no meio das pernas meio dobradas. Ele parecia muito grande, tinha que encolher um pouco as pernas, senão os pés batiam lá na guarda do fim da cama-patente. Ele tinha muitos pêlos no corpo, a luz da lua batendo assim neles fazia brilhar as pontas dos pêlos. Ele tinha a cara virada de lado, afundada no travesseiro, eu não podia ver. Via aqueles pêlos brilhando - uns pêlos nos lugares certos, não errados, que nem os meus - descendo para baixo do pescoço, pelo peito, pela barriga, escondidos e mais cerrados naquele lugar onde ele enfiava as mãos, depois espalhados pelas pernas, até os pés. Os pés encolhidos do primo Alex eram muito brancos, o pai dele tinha morrido, ele tinha estudado o ano inteiro e passado no vestibular não sei de quê, lembrei. E não fazia barulho nenhum quando dormia, coitado.
Fiquei deitado na minha cama, olhando para ele. Depois de um tempo, comecei a ouvir a respiração dele e fui prestando atenção na minha própria respiração, até conseguir que ela ficasse igual à dele. Eu respirava, ele respirava. Eu cruzei as mãos no peito e encostei a cabeça na guarda da cama para poder olhar melhor. Ele tinha cruzado as mãos no meio das pernas decerto para dormir melhor, o pobre, podre da viagem. Fiquei olhando pra ele, respirando devagar, no mesmo ritmo. Bem devagar, para não acordá-lo. Não sei por quê, mas de repente todo o meu ódio passou. Ali deitado, olhando pro primo Alex dormindo inteiramente pelado, embaixo daquela lua enorme, o cheiro enjoativo dos jasmins entrando pela janela aberta, me dava uma coisa assim que eu não entendia direito se era tontura, sono, nojo ou quem sabe aquele ódio se transformando devagarzinho em outra coisa que eu ainda não sabia o que era.
De manhã, fiquei na cama até quase meio-dia. Escutei uns barulhos de gente acordando, mas não me mexi nem olhei, virado pra parede. Aí vieram outros barulhos, descarga de privada, torneira aberta, colher batendo em xícara na cozinha, a voz da Mãe dizendo que eu era assim mesmo, dormia até o cu fazer bico, e uma voz mais grossa, que não era a do Pai, falando outra coisa que não consegui ouvir. Depois uns barulhos de porta batendo, e silêncio. Eu sabia que eles tinham ido todos pra praia, e pensei em me levantar pra mexer um pouco nas tralhas do primo Alex, ninguém ia ver. Mas comecei a cair naquela coisa que eu chamava de entre-sono, porque não era bem um sono. Meu pau ficava tão duro que chegava a doer, toda manhã, então eu apertava ele contra o lençol, parecia que tinha uma coisa dentro que ia explodir, mas não explodia, tudo começava a ficar quente dentro e fora de mim, enquanto eu pensava numas coisas meio nojentas. Não sabia direito se eram mesmo meio nojentas - um peito da negra Dina que eu vi uma vez na beira do tanque, uns gemidos de gente e rangidos de cama no quarto do Pai e da Mãe. Eu não sabia quase nada dessas coisas. Mas era justo nelas que ficava pensando sempre no entre-sono, o pau apertado contra o colchão, até tudo ficar mais sono do que entre. Daí eu caía fundo no poço sem me lembrar de mais nada. Só saí da cama quando a Mãe bateu na porta e falou que estava quase na mesa. Olhei pra cama do primo Alex, toda desarrumada, e pensei que o idiota devia estar na sala, sentado como se a casa fosse dele, tomando cerveja com o Pai. Enfiei a bermuda, lavei a cara no banheiro e remanchei o mais que pude, pra não ver a cara de ninguém nem ninguém ver a minha. Mas quando saí e fui entrando pela casa, só tinha a Mãe remexendo na cozinha e o Pai sentado no degrau da varanda, lendo O Correio do Povo. Olhei em volta, não tinha nenhum sinal do primo Alex além da campeira xadrez desde a noite passada ali naquela guarda de cadeira. Não perguntei nada, fiquei sentado na ponta da mesa, riscando a toalha com a ponta da faca. Até que a Mãe disse: - O Alex se encantou com a praia. O pobre nunca tinha visto o mar. Precisava ver, parecia uma criança. Ficou lá, não teve jeito de querer voltar. Bem feito, pensei, vai ficar vermelho que nem um camarão. E de noite vai ter que passar talco nas costas e pasta de dente no nariz e ficar se rebolcando na cama sem conseguir dormir, porque quando a gente tá assim queimado até lençol dói na pele. Vai gemer e encher o saco a noite inteira e amanhã ou depois vai começar a descascar feito cobra trocando de pele até queimar tudo de novo e a pele ficar grossa que nem couro e ele começar a se sentir o máximo, de mocassim, calça branca e camisa banlon vermelha, todo queimado e idiota idiota idiota. Fui pensando nessas coisas enquanto a Mãe servia a comida e o Pai nem olhava direito pra mim, só lia o jornal, sacudia a cabeça e dizia barbaridade-mas-que-barbaridade, e eu nem conseguia comer direito nem sentir muito ódio. Que era mais um exercício de ruindade minha pensar aquelas coisas, precisava treinar todo dia pra não perder o jeito de ser pequeno monstro. Tomei quase um litro de quis- suco de groselha, puro açúcar, me deu um asco na boca do estômago, empurrei o prato, sem fome. Disse que não estava me sentindo muito bem, e o Pai falou também pudera, o lorde, dormindo feito um condenado, vai acabar tuberculoso, a Mãe falou deixa o guri, também que implicância, ele falou que era por isso mesmo que eu estava assim baseado, que ela parecia uma escrava minha, ela disse que tinha alugado aquela casa na praia pra ver se descansava um pouco, não pra ele infernizar ainda mais a vida dela, que já era um martírio - e os dois estavam começando a gritar cada vez mais alto quando eu aproveitei e peguei e fugi pro quarto sem ninguém ver.
O quarto virava um forno depois do almoço. O sol batia no telhado de zinco, ficava tudo fervendo. Pensei que se eu ficasse ali todo aquele maldito quissuco ia começar a ferver na minha barriga, até sair uma espuma vermelha pela boca e cair no chão babujando e me batendo pelas paredes. Podia ser que pelo menos assim alguém no mundo prestasse atenção em mim. Peguei o livro de Tarzan, passei pela cozinha, onde eles continuavam berrando, fui deitar na rede embaixo dos ema- momos onde batia uma fresca. Mas mesmo ali, na sombra boa, não conseguia parar de pensar que a minha vida era um inferno. E que se um dia eu saísse mesmo caminhando reto por cima do mar, mesmo que não pisasse sobre a bosta das águas que nem Jesus Cristo, ia ser ótimo pra todo mundo se eu afundasse de uma vez e ninguém me encontrasse nunca mais afogado para sempre no fundo do mar igual ao Titanic. Tentei ler, mas aquela lenga-lenga dos sacerdotes nas cavernas de Opar estava me enchendo um pouco o saco.
Uma cara morena, de cabelo preto, me espiava por cima da rede. Uma cara morena muito próxima, um cheiro forte de suor e de mar. Quase gritei, porque logo que abri os olhos e dei com aquela cara e aquele cheiro não lembrei que tinha deitado ali na rede, depois do almoço. Acho que estava sonhando com Jad-bal-ja, o leão de ouro, e foi nisso que pensei quando vi aquela cara morena me espiando por cima da rede. Mas toda morena, meio de cigano, não era cara de leão - era a cara do primo Alex, de sobrancelhas pretas bem cerradas grudadas em cima do nariz. Ele sorriu pra mim, mas a cara estava perto demais, não consegui sorrir de volta nem nada, por educação que fosse. Desviei os olhos para o livro de Tarzan no meu colo, depois franzi as sobrancelhas pra ver se ele se tocava. Mas parece que não se tocou. Empurrou a rede, se afastou um pouco e ficou me olhando enquanto eu balançava feito um idiota, com ele me olhando de braços cruzados e pernas abertas.
- A tia disse que tem um chuveiro aqui fora - ele falou com uma voz meio rouca, mais grossa que a do Pai, e muito educada. - Pra mim tirar a areia antes de entrar em casa. Onde que é?
- Ali, ó - eu apontei o fundo da casa. Ele me olhou mais um pouco, os braços cruzados. Eu só podia ver a cara dele com os cabelos duros de sal e areia e uns pedaços de corpo que subiam e desciam, com o balanço da rede, as pernas abertas. Pelo menos não Jsa calção-saia, pensei, aqueles calções de náilon todos largões que estava na cara que uma pessoa que usava um calção desses nunca tinha ido à praia na vida, calção de baiquara. Mas o dele era preto, bem decente até.
- Tu não gosta de ir à praia? - ele perguntou. - A tia...
- Não - eu falei. E já sabia: a Mãe tinha dito que eu não gostava de ir à praia, que não falava com ninguém, que dormia até a hora do almoço, que ficava trancado no quarto, que dava pontapés na porta e tudo, tudo ela decerto já tinha contado pra ele: que eu era um monstro. Depois achei que ele não tinha culpa, coitado, ela é que ficava falando sem parar, e tentei ser mais educado: - Só gosto de tardezinha, na hora do pôr-do-sol.
- Ah - ele disse. E achei bacana ele não dizer mais nada, que eu devia acordar mais cedo, aproveitar o sol e todas aquelas besteiras. Eu não conseguia olhar direito pra ele, aí estendi uma perna, finquei os dedos do pé na grama e fiz a rede parar de balançar. Então olhei. Ele tornou a rir, uns dentes muito brancos - ou só pareciam muito brancos porque ele estava supermoreno. Não tinha ficado nem um pouco vermelho do sol. Passou as mãos pelo peito, pela barriga, pelas pernas, a areia caiu no chão. A voz da Mãe gritou lá de dentro pra ele ir almoçar. Eu abri o livro, fiz que ia começar a ler, aí ele riu de novo e foi caminhando devagar pro chuveiro. Parecia um leão, mesmo moreno, pensei, andando daquele jeito, meio de lado. Eu comecei a ler.
Seus musculosos dedos de aço firmaram-se no centro de uma das barras. De costas para mim, embaixo do chuveiro, as costas dele eram retas, largas, com um pequeno triângulo de pêlos crespos e pretos mais largos onde subiam para a cintura, mais estreitos quando desciam em direção à bunda. Ele abriu o chuveiro, soltou um grito quando a água gelada começou a cair. Com a mão esquerda segurou na outra e, apoiando um dos joelhos de encontro à porta, vagarosamente dobrou o cotovelo direito. Cada braço dele era assim quase da grossura da minha coxa. A água começou a levar embora a areia da praia, e agora eu podia ver melhor o corpo dele, escondido embaixo da camada de areia. Eu não conseguia parar de olhar. Ondulando como aço plástico, os músculos de seu antebraço e os bíceps cresceram até que gradualmente a barra arqueou na sua direção. Ele virou de frente, com as duas mãos afastou o calção e avançou um pouco o corpo, para a água bater na barriga e descer por dentro do calção. Enfiou as mãos por dentro do calção, depois olhou pra mim, entre as gotas do chuveiro, e virou a cabeça, cuspindo água. O homem-macaco sorriu, enquanto agarrava de novo na barra de ferro. Quando ele fechou o chuveiro, sacudindo os cabelos molhados, quando as gotas do cabelo dele respingaram na minha cara e a Mãe tornou a chamar lá de dentro - de repente e sem querer eu fechei com força o livro, pulei pra fora da rede e saí correndo em direção à porta da casa.
Pelo resto daquele dia, não consegui fazer mais nada. Até parece que nos outros dias eu fazia alguma coisa mais, além de me atrolhar pelos cantos, morto de calor, dormir ou caminhar vadio pela praia. Pois nem isso consegui. Me deu assim um disparo no coração, feito susto que não era bem susto, porque não tinha medo de nada. Ou tinha: medo de uma coisa sem cara nem nome, porque não vinha de fora, mas de dentro de mim. Uns frios, mesmo parado embaixo do sol de rachar, olhando minha sombra achatada igual à de um marciano monstro verde, e uns calorões, mesmo atrás da casa onde até lesma tinha, de tão úmido. Eu só sabia que por nada desse mundo queria ficar perto do primo Alex.
Escondido, vi quando ele entrou no quarto e encostou a persiana da janela, porque decerto ia tirar uma sesta. Todos tiravam sesta no mundo, menos eu, pequeno monstro. Fiquei acompanhando com a ponta do dedo um rastro prateado de lesma, naquele lugar frio atrás da casa, até passar um tempo. E, quando saí no sol outra vez, vi que o tempo tinha passado, porque a minha sombra já não estava tão achatada nem tão monstra. Então cheguei bem devagarinho perto da janela do quarto e, sem barulho nenhum, empurrei a persiana. De leve, como se fosse um vento. Ele estava nu, de costas para a janela. Um pouco mais abaixo daquele triângulo de pelos crespos e pretos na cintura, o calção tinha deixado uma marca branca, que parecia mais branca ainda, agora que o vermelho do sol começava a acender. Ele estava deitado em cima do braço esquerdo. O braço direito dele, que eu só podia ver até a metade, estava dobrado na cintura, desaparecia na frente do corpo. E se mexia. Todo parado o primo Alex, só mexia o braço direito que eu não via inteiro, porque ele estava de costas para mim. Cada vez mais depressa, eu tranquei a respiração, o queixo apoiado na janela, e cada vez mais depressa, até que ele primeiro gemeu baixinho, depois mais alto, suspirou, o corpo inteiro tremendo, virou de bruços na cama e afundou a cara no travesseiro. O braço direito caiu ao lado da cama. Da ponta dos dedos dele, que quase tocavam o chão, escorria uma gosma meio branca, meio prateada, que foi deixando no piso um rastro igual ao das lesmas nos fundos da casa.
Ainda era muito cedo, mas fui caminhar na praia. Saí correndo pela areia em direção ao farol, e quando vi que não tinha mais ninguém por perto comecei a gritar: Sumatra Tantor Zanzibar Bukula Mensahib Nikima Jad-bal-ja. Umas coisas assim, que nem música. Podia até cantar, e cantei. Cada vez que um dos pés batia na areia eu gritava Sumatra ou Bukula ou Nikima, parecia louco de hospício. Não conseguia parar. Só parei quando o coração disparou demais, e minha cara ficou lavada de suor, bem na frente do farol. Então olhei em volta, vi que não tinha ninguém, e fiz uma coisa que nunca tinha feito antes. Tirei a bermuda e a camisa, larguei na areia e fui entrando na água completamente pelado.
Abri as duas pernas, os dois braços, me joguei no meio da espuma. Dei de bunda na areia do fundo do mar, mas não doeu. Aí me virei de bruços e comecei a esfregar meu pau completamente duro na areia molhada molinha. Ficava cada vez mais duro, parecia que tinha uma coisa que queria sair de dentro dele, um fio prateado brilhante. Mas não saía nada, a areia ardia, o sal queimava. Aí eu peguei e abri a minha bunda com as duas mãos bem no lugar onde as ondas arrebentavam, e fiquei assim, deixando as ondas arrebentarem e a espuma morna do fim da tarde entrar pela minha bunda aberta. Foi me dando uma tontura, eu sem querer pensei no braço direito do primo Alex, cada vez mais depressa, parecia assim que ia explodir alguma coisa. Não explodiu nada, eu cravei as unhas no braço, falei quinze vezes pequeno-monstro-pequenomonstro-ninguém-te-quer e não sabia mais o que fazer da vida, daquele medo ou coisa que queria porque queria sair de dentro de mim sem encontrar o jeito.
Meu coração batia batia quando cheguei em casa. A Mãe já estava botando a mesa da janta. Vai lavar as mãos, o Pai falou sem me olhar, ele nunca me olhava. Deixei a água correr sem me olhar no espelho. Quando voltei, o primo Alex já estava sentado, riscando o xadrez da toalha com a ponta serrilhada da faca. Eu não olhei pra ele, mas mesmo sem olhar dava pra ver que ele tinha vestido uma camisa branca de banlon bem alvinha e penteado o cabelo. Eu não queria olhar pra ele. Mas aí a Mãe foi colocar o ovo e o bife no meu prato e o Pai falou tira as aspas do prato, guri, também que cosa, parece um bugre. Eu fiquei vermelho de vergonha dele falar assim daquele jeito comigo na frente do primo Alex, e sem querer ergui a cabeça, levantei os olhos. Ele apertou aquelas sobrancelhas pretas grudadas em cima do nariz e piscou pra mim. Como se a gente tivesse um segredo. Fiquei ali feito besta olhando de vez em quando pra ele. Ele sempre olhava de novo pra mim por cima da jarra de quissuco que na janta era de laranja, não de groselha. Vez enquando piscava, vez enquando ria, sem ninguém ver. Como se tivesse uma coisa que só acontecia entre ele e eu. Uma coisa que era um pouco essa vontade minha de ficar olhando sem parar pra ele? Podia ser essa vontade, misturada com .aquele medo, aquele braço se mexendo cada vez mais depressa, aquele fio prateado de gosma brilhante estendido no chão. Parecido com a calda da compota de pêssego que outra vez eu virei na toalha quando a Mãe parou um pouco de falar e, antes que o Pai me chamasse de porco, perguntou assim:
- Tu não quer convidar o Alex pra dar uma volta na praça e tomar um chope no centro?
Ficaram os três me olhando. Passei o dedo na calda do pêssego, e lambi bem devagar quando olhei pro primo Alex e convidei:
- Vamos?
Ele sustentou o olhar. E disse que sim.
Azul, mas não era bem bem azul. Isso eu só vi na metade da primeira cerveja. Azul-escuro que clareava aos poucos, meio esbranquiçada nas partes em que encostava no corpo. Nos joelhos, na bunda, na frente onde roçava no volume do pau, atrás do fecho. Tinha fecho ecler que nem saia de mulher, em vez de botão igual à minha. Já tinha visto umas assim, mais em filme de mocinho, e só umas poucas nuns caras meio metidos ali na praia mesmo. Dava um jeito especial na pessoa. Um jeito bonito, um jeito moderno. Eu não tinha falado quase nada, mas depois daquele gole de cerveja tomei coragem e disse:
- Bacana a tua calça.
- Ë Lee - ele disse. - Americana, importada.
- Onde a gente compra?
- Só de contrabando. Quer que te consiga uma?
Perguntei se era difícil, ele disse que tinha jeito, conhecia um faixa em Porto. Depois falou que novinha não era tão legal, mas a gente podia desbotar com queboa no tanque. Melhor desbotar sozinha mesmo, só que levava tempo. Perguntei se a dele era desbotada de queboa ou de tempo. Ele estava distraído, não ouviu. Tirou o maço de Minister do bolso, perguntou se eu queria um. Falei que não, se o Pai soubesse. Ele acendeu, jogou a fumaça pra cima, erguendo um pouco a cabeça. De novo, eu pensei no leão de ouro. Acho que eu estava ficando meio borracho com aquela cerveja toda, porque de repente fiquei outra vez olhando sem conseguir parar o primo Alex sentado ali ao meu lado na mesinha da calçada do bar. Ele parecia enorme, ele parecia brilhante, ele parecia bonito. Sem fazer nenhum esforço pra parecer nada, ele não era exibido. Acho que ele nem sabia direito o jeito que ele mesmo era. Ficava ali sentado do meu lado como se fosse um cara comum, fumando, bebendo cerveja e rindo de vez em quando pra mim. Achei que todo mundo que passava e nas outras mesas ficava olhando pra ele e pensando mas quem será esse moço. De repente me deu assim como uma vaidade daquelas pessoas todas estarem me vendo ali, ao lado dele, e aí aconteceu uma coisa maluca. Por um segundo, parei de me sentir monstro.
Olhei para o meu braço na mesa. Meu braço um pouco fino demais, moreno de sol. Mas parecia bonito também. Eu olhei a minha mão morena, quase sem pêlos, depois levei ela até o cabelo e pensei que podia deixar ele crescer um pouco, que nem o do primo Alex. E quando levei a mão desse jeito na cabeça, percebi que as minhas costas estavam muito curvadas para a frente, como se eu quisesse sempre defender do mundo alguma coisa funda escondida no meu peito. Então forcei os ombros para trás, e não estava me sentindo nem um pouco monstro quando olhei de novo para o primo Alex e vi a lua cheia subindo por trás da cabeça dele e do telhado da Taberna do Willy. O garçom chamou ele de senhor quando perguntou se queria outra cerveja. Ele tinha um jeito de quem sabe sentar num bar, aquele jeito que eu ia ter um dia. Ele perguntou se eu também queria, eu disse que sim, apesar de estar meio borracho. Ele encheu o meu copo até transbordar. Enquanto eu passava o dedo na espuma, ele falou assim:
- A tia me contou que anda preocupada contigo. - Eu pensei que saco, ela já andou enchendo os ouvidos dele, agora vai ficar dando opinião, conselho e tudo. Mas ele não deixou eu dizer nada. Só falou: - Ela diz que acha que tu anda muito sozinho. Que tu não tem nenhum amigo.
Foi o que bastou. Quando ele falou isso - como num Shazam! ao contrário, que ao invés do cara virar super, ficava ainda mais coió -, eu comecei a me sentir monstro de novo. Coitado coitado coitado de mim, pensei, o meu olho ficou cheio de lágrima de pura pena de mim mesmo, todo troncho. Estava meio enjoado daquela cervejada toda, tive vontade de me levantar e dizer que ia embora já pra casa. Aío primo Alex disse:
- Falei pra ela que é da idade. Que passa. Que eu mesmo era assim que nem tu, meio arisco. Mas passa, tu vai ver que passa.
Eu quase disse que tinha certeza que, comigo, não ia passar nunca. Que ia ficar para sempre e até o fim do mundo assim pequeno, pequeno monstro nojento, diferente de todas as outras pessoas, todo mundo rindo baixinho, falando coisas quando eu passava. Mas ele disse:
- Eu sou teu amigo.
Parei outra vez de me sentir monstro. Nunca ninguém tinha me dito isso antes. Foi aí que as coisas começaram a acontecer muito depressa, me deu vontade de rir, comecei a falar sem parar, ele começou a falar sem parar também no curso dele de Medicina, nas coisas todas que ia estudar, umas coisas da cabeça das pessoas, de nome complicado, psico não sei o quê, nuns livros duns caras de nome complicado também, duns discos, duns filmes, e disse que ia me dar umas coisas pra mim ler, pra mim ouvir, pra mim gostar, e eu fiquei pensando que não ia dar porque eu ficava o ano todo lá naquele cafundó do Passo da Guanxuma e ele em Porto Alegre e perigava então, até a gente não se ver nunca mais, e comecei a ficar triste, aí ele contou que a Mãe tinha falado que andava pensando em me mandar estudar em Porto Alegre, e primeiro me deu um baita cagaço, depois foi me vindo uma coragem boa e uma alegria no coração, ia ser que nem filme, andar de bonde sozinho do centro até o tal de Partenon, onde ele falou que morava, e eu ia lá todo domingo de tardezinha, ficava no quarto dele ouvindo na eletrola aqueles discos que ele disse que ia me mostrar, eu com a minha calça lee igualzinha à dele, no começo desbotada de queboa mesmo, depois desbotada do tempo, do sol, da chuva, e todo mundo olhava quando a gente entrava junto no cinema e falavam baixinho de um jeito diferente, porque eu não era mais monstro, só porque a gente era bonito junto, só por isso falavam e apontavam, eu e o primo Alex, caminhando de tardezinha por uma praça ou numa calçada mesmo ali daquele lugar onde eu nunca tinha ido chamado Partenon, e Partenon era quase tão bonito e longe quanto Sumatra, Zanzibar, Uganda, e eu criei coragem e falei pra ele que queria ser músico, fazer rock que nem o do Elvis, que eu sabia de cor uns pedacinhos dumas músicas em inglês mesmo e ele cantou rindo it ‘s now or never, só um pedaço, depois passou a mão no meu cabelo e disse que eu tinha que deixar um topete crescer pra cair na testa quando eu fizesse yeah remexendo as cadeiras, e só de sarro eu fiz yeah yeah yeah, e ele morreu de rir e eu morri de rir também, e ele pediu outra cerveja e eu acendi um cigarro e tossi tossi e ele bateu nas minhas costas, as pessoas em volta olhavam, e ele começou a contar que depois de formado ia viajar muito de navio pelo mundo inteiro, e eu perguntei se Zanzibar também e ele morreu de rir de novo e falou que sim, se eu queria ir junto com ele pra Zanzibar, lógico eu disse e fiquei imaginando tudo enquanto ele contava que ia ser um grande médico desses modernos que curam a cabeça dos outros pra deixar todo mundo feliz o tempo todo pra sempre sem nenhuma culpa, ele disse, ele era tão bonito, todo mundo em volta olhava, eu ria, ele ria, e a gente estava ficando cada vez mais bêbado quando eu tentei levantar pra ir ao banheiro e quase caí em cima da mesa. Então ele me segurou pelo braço, e rindo sem parar falou que tava na hora de ir embora se não o Pai e a Mãe iam ficar umas feras.
A gente só parou de rir no caminho da porta de casa até o quarto, pro Pai e a Mãe não acordarem. Passado de meia-noite, Alex viu no pulso. Ele acendeu a luz, se jogou na cama e continuou rindo. Eu fechei a porta, me joguei ria cama e continuei rindo. Vez enquando a gente olhava um pro outro e ria mais ainda. Um tempão assim, feito dois mangolões. A barriga doía de tanto rir, eu falei que ia no banheiro mijar e já voltava. Demorei um pouco, parecia que tinha bebido um açude inteiro. Quando voltei, ele tinha tirado toda a roupa e estava deitado de costas na cama. Tu vai te gripar, pensei em dizer. Só pensei, em seguida vi que não tinha vento nem nada. E fui andando pra minha cama enquanto olhava pra calça lee, a camisa banlon, o mocassim e a cueca dele jogados no chão, sem saber direito o que fazer com a janela aberta, a lua cheia e o primo Alex completamente pelado na cama ao lado. Tentei não olhar pra ele. Mas ele olhava bem pra mim quando falou estranho, como se o que quisesse dizer não fosse o que estava dizendo:
- Tá muito quente, tu não acha?
- É - eu disse. E aí não consegui mais parar de olhar pra ele. Fui ficando meio descarado e comecei a olhar mesmo, porque tinha vontade e era bom de olhar. Desci os olhos pelo peito dele, acompanhando aqueles pêlos que se amontoavam lá em cima, pouco embaixo do pescoço, em volta das mamiquinhas cor-de-rosa, depois se estreitavam enquanto desciam pela barriga e ficavam assim um fiozinho crespo, até começarem a encrespar mais e a aumentar de novo, no meio das pernas. Ele estava com a mão no meio das pernas, lá onde os pêlos encrespavam mais.
- Eu te espiei dormindo hoje de tarde - contei.
- Eu vi - ele disse. - Eu não estava dormindo, eu estava batendo punheta.
Me deu um vermelhão. Desviei os olhos para o livro de Tarzan, o Invencível, na cabeceira. Em cima duma árvore, Tarzan apontava uma flecha para um bwana falando com dois negros pigmeus na frente de uma barraca. E se ele disparar a flecha? pensei.
- Tu já esporrou? - ele perguntou.
- Não - eu disse. - Nunca, nem sei como é que se faz.
- Quer que eu te ensine? - Estava rindo outra vez. Aquela cabeça de leão de ouro, dentes muito brancos.
- Quero - eu disse.
Ele tirou a mão do meio das pernas, bateu na cama ao lado dele e chamou:
- Senta aqui, eu te mostro como é. Tira a roupa e senta do meu lado.
Tirei, joguei no chão, em cima da roupa dele. Depois sentei na cama dele, só de cueca. Uma cueca feia, toda esbragalada, não era que nem a dele. Ele suava um pouco. O cheiro de suor misturava com o de um perfume que acho que era colônia de barba, mais o do jasmineiro entrando pela janela aberta. Eu podia ouvir o tum-tum do meu coração no peito. Ele estava bem perto de mim. Eu cruzei as pernas, de costas para ele, de frente para a janela.
- Vira pra cá - ele pediu.
Estendeu a mão, tocou no meu joelho. Fui virando, até ficar de frente pra ele. Ele sentou na cama, ficou de frente pra mim, cruzou as pernas também. Ele encostou umas das mãos na minha coxa, depois foi subindo e puxou devagarinho a minha cueca. Estendi a perna para que ele pudesse tirar e jogar no chão, em cima das roupas dele e das minhas. Agora eu também estava completamente nu, de pau tão duro quanto o dele, eu tinha visto. Ele não escondia, não era feio. Quase fiquei com vergonha, mas ele segurava os olhos dele bem dentro dos meus, sem sorrir nem piscar. Ele levou a mão direita até o seu pau duro, enquanto com a mão esquerda pegava a minha mão direita e levava até o meu pau duro. Ele segurou meu braço, mexendo devagar para que eu movimentasse para cima e para baixo, que nem ele fazia. Ele era tão bonito. Ele se torceu e gemeu um pouco. Fechei os olhos: se sair reto daqui sempre em frente vou dar na África, pensei idiota. Aquela coisa querendo explodir vinha subindo de novo. Eu abri mais as pernas, joguei o corpo para a frente. Ele chegou mais perto. Então pegou outra vez no meu, braço, cuspiu na palma da minha mão e levou até o pau dele. Ele cuspiu na palma da mão dele e levou até o meu pau. Quente molhado rijo macio. A cama rangia. Eu cheguei ainda mais perto. Aquela coisa crescia dentro de mim feito louca de atar, como se o meu corpo fosse arrebentar e de dentro dele saíssem balões, bandeirinhas coloridas de Santo Antônio, penduricalhos dourados de árvore de Natal, confete e serpentina de Carnaval, sei lá que mais. Mais depressa, ele disse. Mais depressa, vem junto. Parecia que a gente estava sozinho só os dois num barco solto no mar no meio duma tempestade. Sumatra Tantor Bukula Nikima, eu ia gritar alto quando aquela coisa começou a se juntar dentro de mim feito uma onda que vai se armando longe da praia enquanto a gente espera que ela venha ali na beira sem me importar nem um pouco que o Pai e a Mãe ouvissem e a vizinhança toda e a cidade inteira acordassem. Ele chegou ainda mais perto. Eu colei meu peito no peito dele. Ele afundou a boca na minha enquanto eu sentia a palma da minha mão aos poucos ficar molhada daquele fio de prata brilhante que saía de dentro dele e sabia que de dentro de mim saía também um fio de prata molhado brilhante igual ao que saía de dentro dele.
Vem comigo, ele chamou. E eu fui.
Ele passou as mãos molhadas nas minhas costas. Eu passei as mãos molhadas nas costas dele. Ele afastou a boca da minha, depois deitou a cabeça no meu ombro. Meu coração batia batia, ele podia ouvir. O suor da gente se misturava, O coração dele batia batia, escutei quando deitei a cabeça no seu ombro. Eu fiquei passando as mãos nas costas dele. Elas ficaram todas meladas da água de prata que ele tinha me ensinado a tirar de dentro de mim. Ele não se importava de ficar melado da água de mim. Eu também não me importava de ficar melado da água dele. Nojo nenhum, eu sentia. Ele passou a língua na curva do meu pescoço. Eu enrolei os dedos naquele triângulo de pêlos crespos na cintura dele. Não sei quanto tempo durou. Sei que de repente a gente se afastou e, olhando um pro outro, começamos a rir feito loucos outra vez.
Bem cedo, na manhã seguinte, fomos à praia juntos. Ele me ensinou a mergulhar e a boiar, eu apontei o horizonte e mostrei o caminho da África, das Indias. Depois do almoço, no forno quente do quarto coberto de zinco, ele me ensinou outros caminhos. Na hora de ir embora, de tardezinha, ajudei ele a arrumar suas roupas. Mas não fui até a rodoviária. Espiei da esquina, escondido. Depois corri pela calçada atrás do ônibus, até que ele saísse na janela e gritasse alguma coisa que não entendi direito. Parecia Zanzibar, Partenon, qualquer o coisa assim. Ele ficou abanando até o ônibus fazer a curva, na polvadeira vermelha da estrada de Osório.
À noite, fiquei procurando umas músicas no rádio. Nem Gardel nem Elvis: encontrei Maísa, que o Pai disse que eu não tinha idade pra ouvir. Depravada, falou, e eu não sabia o que isso queria dizer. Na hora de dormir, a Mãe olhou bem pra mim e disse baixinho:
- Parece que tu está sentindo muita falta do Alex. Eu falei que não. E não estava mentindo. Eu sabia que ele tinha ficado para sempre comigo. Ela foi dormir, apaguei o rádio. Sozinho na sala, em silêncio, eu não era mais monstro. Fiquei olhando minha mão magra morena, quase sem pêlos. Eu sabia que o primo Alex tinha ficado para sempre comigo. Guardado bem aqui, na palma da minha mão.
| Por Lara
| 26.8.07 | 15:09.
NAQUELE verão, quando a Mãe avisou que o primo Alex vinha passar o fim de semana conosco na casa da praia alugada, eu não gostei nem um pouco. Não por causa dele, que eu mal lembrava a cara direito, podia até ser qualquer outro primo, tio, avô. Mais por minha causa mesmo, que tinha começado a crescer para todos os lados, de um jeito assim meio louco. Pernas e braços demais, pêlos nos lugares errados, uma voz que desafinava igual de pato, eu queria me esconder de todos. Só tardezinha saía de casa, na hora que as empregadas domésticas - as dosas, o Pai dizia - estavam voltando da praia. Então caminhava quilômetros na beira do mar, me rolava na areia, vez enquando chorava e repetia: pequeno monstro, pequeno monstro, ninguém te quer. Não suportava ninguém por perto. Uma Mãe insistindo o tempo inteiro pra tu ires à praia na mesma hora que todo mundo normal vai e um Pai que te olha como se tu fosses a criatura mais nojenta do mundo e só pensa em te botar no quartel pra aprender o que é bom - isso já é dose suficiente para um verão. Como se não bastasse a minha desgraça, agora ia ter que dividir meu quarto com o tal de primo Alex. E não queria que ninguém ouvisse minha voz de pato grasnando, visse meus braços compridos demais, minhas pernas de avestruz, meus pêlos todos errados.
Fiz cara feia, a Mãe nem ligou. Falou que ele vinha e pronto, que tinha estudado muito o ano todo, passado no vestibular não sei de que e precisava descansar e tal e tudo e que ela devia aquela obrigação à tia Dulcinha coitada tão só e que além do mais o Alex era um bom rapaz tão esforçado o pobre. Isso eu odiava mais que tudo: aqueles bons rapazes tão esforçados e de óculos sempre saindo com sacolas de lona na hora do almoço para comprar cervejas e coca-colas e cigarros pra todo mundo, ajudando a lavar pratos e jogando aquelas chatíssimas canastras sobre o cobertor verde na ponta da mesa. Empurrei a compota de pêssego argentino, a calda virou na toalha, armei a tromba. Esse era meu jeito de dizer: não careço nem ver a cara dele para ter certeza que é um coió.
Quase dormindo, mais tarde, naquela mesma noite que a Mãe avisou que oprimo Alex vinha, eu tentava lembrar a cara dele e não conseguia. Na verdade, não conseguia lembrar a cara de ninguém desde uns dois anos atrás, desde que eu tinha começado a ficar meio monstro e os parentes se cutucavam quando eu passava, davam risadinhas, falavam coisas baixinho, olhando disfarçado pra mim. Eu tinha horror deles, que achavam que sabiam tudo sobre mim. Sabiam nada, sabiam bosta do meu ódio enorme por um por um de cada um deles, aquelas barrigonas, aqueles peitos suados, pés cheios de calos. Eu nunca ia ser igual a eles - pequeno monstro, seria sempre diferente de todos. Era assim mesmo que ia me comportar com o primo Alex, decidi: pequeno monstro cada vez mais monstro, até ele não agüentar mais um minuto e dar o fora pra sempre. Fiquei olhando com força pro colchão sem lençol da cama ao lado onde ele ia dormir, até encher o colchão com todo o meu ódio, pra ele se sentir mal e ir embora no mesmo dia.
No dia que era o dia que ele vinha - e eu sabia porque a Mãe não falava outra coisa, arrumou lençóis limpos na cama ao lado, mandou eu empilhar os gibis, guardar no guarda- roupa a roupa da guarda da cadeira -, saí de casa um pouco mais cedo e fiquei caminhando séculos na praia. Eu gostava de ir até aquele farol no caminho de Cidreira, onde tinha umas dunas e era bom ficar deitado na areia, olhando o mar sem fim. Vez enquando passava um navio, eu perguntava pra onde vai? pra onde vai? Bem besta mesmo, não pensava o lugar, só perguntava assim: pra onde vai, sem pensar o nome nem nada. Depois pensava também se eu saísse agora reto daqui e entrasse no mar e que nem Jesus Cristo fosse capaz de pisar sobre as águas e fosse andando sempre em frente sem parar - ia dar onde? Achava que na África, na Índia, sei lá. Em algum lugar, ia dar. Longe dali, de Tramandaí. Aí começou a sair do mar uma lua cheia bem redonda, e eu primeiro fiquei tentando ver nela São Jorge e o dragão, depois lembrei que era besteira, coisa de criança, e pensei crateras, desertos, quase via, Mar da Serenidade. Ou era Fertilidade? Fui olhando as coisas, me atrolhando por ali, até que de repente tinha anoitecido total, e eu tinha que voltar pra merda daquela casa com aquele Pai e aquela Mãe. Ainda por cima, fui lembrando no caminho, cada vez mais puto, e por causa disso caminhava mais devagar ainda e ficava cada vez mais noite, agora com aquele tal de primo Alex lá, enfiado no meu quarto.
Passaram uns bagaceiras com violão e uma garrafa de cinzano, abraçados, cantando uma música de parque. Desviei deles, fui enfiando os pés na água morna do mar, de cabeça baixa pra não mexerem comigo. Vez enquando olhava pra trás e só ouvia aquelas vozes bem de bagaceiras mesmo, cada vez mais longe, cantando a noite tá tão escura/ a lua fez feriado/ estou sofrendo a tortura/ de não sentir-te ao meu lado. Bestas, pensei, porque a lua não tinha feito feriado coisa nenhuma, feriado era lua nova, não aquela luona enorme, redonda, amarela, bem ali em cima do mar e da cabeça da gente. Quando eu. já tinha caminhado um pouco em direção ao norte, e os bagaceiras tinham sumido, olhando por cima do ombro direito pensei quem sabe agora, saindo reto aqui eu dou justo ali, no sulzinho da África, cabo das Tormentas. Ou era o da Boa Esperança? Aí de repente despencou uma baita estrela cadente, quase do tamanho da lua, tão grande que cheguei a parar pra ouvir o tchuááááááááááááááá da estrela caindo dentro do mar. Não aconteceu nada, então falei bem alto, imitando aquela vozinha de taquara rachada da dona Irineide, professora de Geografia: bó-li-dos, isso que o populacho chama de estrelas cadentes na verdade são bó-li-dos. Me senti muito culto e tudo, mas meio sem graça, daí lembrei que podia fazer um pedido, ou três, não sei bem, a gente podia. Então peguei e fiz. Que já que o primo Alex tinha mesmo que estar lá naquela merda de casa - e era impossível pedir que não viesse, porque já tinha vindo - que pelo menos ele fosse legal e não me enchesse o saco.
Bem devagarinho, fui me distraindo com essas coisas pelo caminho. Daí me atrasei tanto que, quando cheguei em casa, estava armado um começo de alvoroço. O Pai já estava de chinelo e pijama, me chamou de desgranido e disse que ia me proibir de ir à praia a essa hora de louco e eu respondi que se me proibisse de ir nessa hora eu ia ficar no quarto trancado e não ia em hora nenhuma nunca mais, e a Mãe falou baixo, mas eu escutei, é a idade não liga, não implica com o guri, criatura, e me deu uma janta meio fria com milho duro e eu cheguei a abrir a boca pra falar que não era cavalo quando ela disse que o primo Alex já tinha chegado e estava dormindo, podre da viagem. Nem precisava dizer nada: sentado na ponta da mesa, eu já tinha visto aquela campeira xadrez pendurada numa guarda de cadeira. Mesmo que não pudesse ver nada, farejava um cheiro no ar. Nem bom nem mau, cheiro de gente estranha recém-chegada de viagem. Polvadeira, bodum, sei lá. Quase não consegui comer, de tanto ódio. O Pai foi dormir azedo, falando que no quartel eu ia ver. A Mãe ficou mexendo no rádio, mas só dava descarga no meio dumas rádios castelhanas êle-êrre-uno-êle-êrre-dôs. Nada de Elvis, que eu gostava e ela fingia que não, só Gardel, que ela gostava e eu tinha certeza que não. Falei que ia dormir também, a Mãe botou a mão no meu ombro e muito séria pediu pra mim prometer que ia ser educado com o primo Alex coitado que o pai dele tinha morrido e a tia Dulcinha passava muito trabalho e coisa e tal. Até prometi, não custava nada. Mas fiquei torcendo os dedos, rezando prela não repetir que ele era um bom rapaz tão esforçado o pobre, senão meu ódio voltava. Ela acabou falando, bem na hora que Gardel cantava sabia que nel mundo no cabía toda la humilde alegría de mi pobre corazón, e eu fui dormir com muito ódio. Dela, do Pai, do primo Alex, da tia Dulcinha, dos bagaceiras da praia, do Gardel, de tudo.
Tirei a areia dos pés no bidê, lavei a cara e fiquei parado na frente do espelho. Pequeno monstro, falei. Mais de uma vez, três, doze, vinte, eu repetia sempre, me olhando no espelho antes de dormir: pequeno, pequeno monstro, ninguém, ninguém te quer. Mijei, escovei os dentes, gargarejei. Me deu vontade de vomitar, sempre me dava. Mas não vomitei, nunca vomitava. Tive vontade de me encolher ali mesmo, embaixo da pia, feito cusco escorraçado, e dormir até a manhã seguinte, para que todos vissem como eu era desgraçado. Meu quarto agora não era mais só meu, não podia ficar lendo até tarde nem nada, luz acesa até altas: a droga do primo Alex estava lá, e eu tinha prometido ser bem educado com ele, coitado.
Aquele quarto que agora não era mais meu, mas. meu e do tal de primo Alex, ficava na parte de trás da casa de tábuas, numa espécie de puxado, ao lado de um banheiro que antes dele chegar também era só meu, mas agora era meu e dele, que nojo. Apaguei a luz, parei na porta do banheiro e fiquei remanchando um pouco por ali, parado no corredor escuro, antes de entrar. Eu tinha que estar preparado para enfrentar aquele tapume de óculos, que certamente - eu conhecia bem essa gente - tinha deixado seus óculos sebentos na minha mesinha de cabeceira, e aqueles vulcabrás nojentos com umas meias duras no garrão saindo pra fora e um fedor de chulé no ar, escarrapachado na cama, roncando e peidando feito um porco. Que ódio, que ódio eu sentia parado naquele biricuete escuro entre o banheiro e o quarto que não eram mais meus.
Abri a porta devagarinho. A janela-guilhotina estava levantada, a luz apagada. Não tinha nenhum fedor no ar. A luz da lua entrando pela janela era tão clara que eu fui me guiando pelo escuro até a minha cama, sem precisar estender a mão nem nada. Sentei, levei a mão até a mesinha de cabeceira e apalpei: não tinha nenhum óculos em cima dela. Só meu livro Tarzan, o Invencível, da coleção Terramarear. Pelo menos isso, pensei: a trolha não usa óculos. Fiquei de cueca, camiseta, me deitei. Não tinha nenhum barulho de ronco, nenhum cheiro de peido no ar, só aquele perfume meio enjoativo do jasmineiro ali no pátio ao lado. Os meus olhos foram se acostumando mais no escuro, e eu comecei a olhar para a cama onde o primo Alex estava deitado, do outro lado do quarto.
A luz da lua batia direto nele. Ele estava deitado por cima do lençol, completamente pelado. Meus olhos se acostumavam cada vez mais, e eu,podia ver o primo Alex virado sobre o lado direito, as duas mãos juntas fechadas no meio das pernas meio dobradas. Ele parecia muito grande, tinha que encolher um pouco as pernas, senão os pés batiam lá na guarda do fim da cama-patente. Ele tinha muitos pêlos no corpo, a luz da lua batendo assim neles fazia brilhar as pontas dos pêlos. Ele tinha a cara virada de lado, afundada no travesseiro, eu não podia ver. Via aqueles pêlos brilhando - uns pêlos nos lugares certos, não errados, que nem os meus - descendo para baixo do pescoço, pelo peito, pela barriga, escondidos e mais cerrados naquele lugar onde ele enfiava as mãos, depois espalhados pelas pernas, até os pés. Os pés encolhidos do primo Alex eram muito brancos, o pai dele tinha morrido, ele tinha estudado o ano inteiro e passado no vestibular não sei de quê, lembrei. E não fazia barulho nenhum quando dormia, coitado.
Fiquei deitado na minha cama, olhando para ele. Depois de um tempo, comecei a ouvir a respiração dele e fui prestando atenção na minha própria respiração, até conseguir que ela ficasse igual à dele. Eu respirava, ele respirava. Eu cruzei as mãos no peito e encostei a cabeça na guarda da cama para poder olhar melhor. Ele tinha cruzado as mãos no meio das pernas decerto para dormir melhor, o pobre, podre da viagem. Fiquei olhando pra ele, respirando devagar, no mesmo ritmo. Bem devagar, para não acordá-lo. Não sei por quê, mas de repente todo o meu ódio passou. Ali deitado, olhando pro primo Alex dormindo inteiramente pelado, embaixo daquela lua enorme, o cheiro enjoativo dos jasmins entrando pela janela aberta, me dava uma coisa assim que eu não entendia direito se era tontura, sono, nojo ou quem sabe aquele ódio se transformando devagarzinho em outra coisa que eu ainda não sabia o que era.
De manhã, fiquei na cama até quase meio-dia. Escutei uns barulhos de gente acordando, mas não me mexi nem olhei, virado pra parede. Aí vieram outros barulhos, descarga de privada, torneira aberta, colher batendo em xícara na cozinha, a voz da Mãe dizendo que eu era assim mesmo, dormia até o cu fazer bico, e uma voz mais grossa, que não era a do Pai, falando outra coisa que não consegui ouvir. Depois uns barulhos de porta batendo, e silêncio. Eu sabia que eles tinham ido todos pra praia, e pensei em me levantar pra mexer um pouco nas tralhas do primo Alex, ninguém ia ver. Mas comecei a cair naquela coisa que eu chamava de entre-sono, porque não era bem um sono. Meu pau ficava tão duro que chegava a doer, toda manhã, então eu apertava ele contra o lençol, parecia que tinha uma coisa dentro que ia explodir, mas não explodia, tudo começava a ficar quente dentro e fora de mim, enquanto eu pensava numas coisas meio nojentas. Não sabia direito se eram mesmo meio nojentas - um peito da negra Dina que eu vi uma vez na beira do tanque, uns gemidos de gente e rangidos de cama no quarto do Pai e da Mãe. Eu não sabia quase nada dessas coisas. Mas era justo nelas que ficava pensando sempre no entre-sono, o pau apertado contra o colchão, até tudo ficar mais sono do que entre. Daí eu caía fundo no poço sem me lembrar de mais nada. Só saí da cama quando a Mãe bateu na porta e falou que estava quase na mesa. Olhei pra cama do primo Alex, toda desarrumada, e pensei que o idiota devia estar na sala, sentado como se a casa fosse dele, tomando cerveja com o Pai. Enfiei a bermuda, lavei a cara no banheiro e remanchei o mais que pude, pra não ver a cara de ninguém nem ninguém ver a minha. Mas quando saí e fui entrando pela casa, só tinha a Mãe remexendo na cozinha e o Pai sentado no degrau da varanda, lendo O Correio do Povo. Olhei em volta, não tinha nenhum sinal do primo Alex além da campeira xadrez desde a noite passada ali naquela guarda de cadeira. Não perguntei nada, fiquei sentado na ponta da mesa, riscando a toalha com a ponta da faca. Até que a Mãe disse: - O Alex se encantou com a praia. O pobre nunca tinha visto o mar. Precisava ver, parecia uma criança. Ficou lá, não teve jeito de querer voltar. Bem feito, pensei, vai ficar vermelho que nem um camarão. E de noite vai ter que passar talco nas costas e pasta de dente no nariz e ficar se rebolcando na cama sem conseguir dormir, porque quando a gente tá assim queimado até lençol dói na pele. Vai gemer e encher o saco a noite inteira e amanhã ou depois vai começar a descascar feito cobra trocando de pele até queimar tudo de novo e a pele ficar grossa que nem couro e ele começar a se sentir o máximo, de mocassim, calça branca e camisa banlon vermelha, todo queimado e idiota idiota idiota. Fui pensando nessas coisas enquanto a Mãe servia a comida e o Pai nem olhava direito pra mim, só lia o jornal, sacudia a cabeça e dizia barbaridade-mas-que-barbaridade, e eu nem conseguia comer direito nem sentir muito ódio. Que era mais um exercício de ruindade minha pensar aquelas coisas, precisava treinar todo dia pra não perder o jeito de ser pequeno monstro. Tomei quase um litro de quis- suco de groselha, puro açúcar, me deu um asco na boca do estômago, empurrei o prato, sem fome. Disse que não estava me sentindo muito bem, e o Pai falou também pudera, o lorde, dormindo feito um condenado, vai acabar tuberculoso, a Mãe falou deixa o guri, também que implicância, ele falou que era por isso mesmo que eu estava assim baseado, que ela parecia uma escrava minha, ela disse que tinha alugado aquela casa na praia pra ver se descansava um pouco, não pra ele infernizar ainda mais a vida dela, que já era um martírio - e os dois estavam começando a gritar cada vez mais alto quando eu aproveitei e peguei e fugi pro quarto sem ninguém ver.
O quarto virava um forno depois do almoço. O sol batia no telhado de zinco, ficava tudo fervendo. Pensei que se eu ficasse ali todo aquele maldito quissuco ia começar a ferver na minha barriga, até sair uma espuma vermelha pela boca e cair no chão babujando e me batendo pelas paredes. Podia ser que pelo menos assim alguém no mundo prestasse atenção em mim. Peguei o livro de Tarzan, passei pela cozinha, onde eles continuavam berrando, fui deitar na rede embaixo dos ema- momos onde batia uma fresca. Mas mesmo ali, na sombra boa, não conseguia parar de pensar que a minha vida era um inferno. E que se um dia eu saísse mesmo caminhando reto por cima do mar, mesmo que não pisasse sobre a bosta das águas que nem Jesus Cristo, ia ser ótimo pra todo mundo se eu afundasse de uma vez e ninguém me encontrasse nunca mais afogado para sempre no fundo do mar igual ao Titanic. Tentei ler, mas aquela lenga-lenga dos sacerdotes nas cavernas de Opar estava me enchendo um pouco o saco.
Uma cara morena, de cabelo preto, me espiava por cima da rede. Uma cara morena muito próxima, um cheiro forte de suor e de mar. Quase gritei, porque logo que abri os olhos e dei com aquela cara e aquele cheiro não lembrei que tinha deitado ali na rede, depois do almoço. Acho que estava sonhando com Jad-bal-ja, o leão de ouro, e foi nisso que pensei quando vi aquela cara morena me espiando por cima da rede. Mas toda morena, meio de cigano, não era cara de leão - era a cara do primo Alex, de sobrancelhas pretas bem cerradas grudadas em cima do nariz. Ele sorriu pra mim, mas a cara estava perto demais, não consegui sorrir de volta nem nada, por educação que fosse. Desviei os olhos para o livro de Tarzan no meu colo, depois franzi as sobrancelhas pra ver se ele se tocava. Mas parece que não se tocou. Empurrou a rede, se afastou um pouco e ficou me olhando enquanto eu balançava feito um idiota, com ele me olhando de braços cruzados e pernas abertas.
- A tia disse que tem um chuveiro aqui fora - ele falou com uma voz meio rouca, mais grossa que a do Pai, e muito educada. - Pra mim tirar a areia antes de entrar em casa. Onde que é?
- Ali, ó - eu apontei o fundo da casa. Ele me olhou mais um pouco, os braços cruzados. Eu só podia ver a cara dele com os cabelos duros de sal e areia e uns pedaços de corpo que subiam e desciam, com o balanço da rede, as pernas abertas. Pelo menos não Jsa calção-saia, pensei, aqueles calções de náilon todos largões que estava na cara que uma pessoa que usava um calção desses nunca tinha ido à praia na vida, calção de baiquara. Mas o dele era preto, bem decente até.
- Tu não gosta de ir à praia? - ele perguntou. - A tia...
- Não - eu falei. E já sabia: a Mãe tinha dito que eu não gostava de ir à praia, que não falava com ninguém, que dormia até a hora do almoço, que ficava trancado no quarto, que dava pontapés na porta e tudo, tudo ela decerto já tinha contado pra ele: que eu era um monstro. Depois achei que ele não tinha culpa, coitado, ela é que ficava falando sem parar, e tentei ser mais educado: - Só gosto de tardezinha, na hora do pôr-do-sol.
- Ah - ele disse. E achei bacana ele não dizer mais nada, que eu devia acordar mais cedo, aproveitar o sol e todas aquelas besteiras. Eu não conseguia olhar direito pra ele, aí estendi uma perna, finquei os dedos do pé na grama e fiz a rede parar de balançar. Então olhei. Ele tornou a rir, uns dentes muito brancos - ou só pareciam muito brancos porque ele estava supermoreno. Não tinha ficado nem um pouco vermelho do sol. Passou as mãos pelo peito, pela barriga, pelas pernas, a areia caiu no chão. A voz da Mãe gritou lá de dentro pra ele ir almoçar. Eu abri o livro, fiz que ia começar a ler, aí ele riu de novo e foi caminhando devagar pro chuveiro. Parecia um leão, mesmo moreno, pensei, andando daquele jeito, meio de lado. Eu comecei a ler.
Seus musculosos dedos de aço firmaram-se no centro de uma das barras. De costas para mim, embaixo do chuveiro, as costas dele eram retas, largas, com um pequeno triângulo de pêlos crespos e pretos mais largos onde subiam para a cintura, mais estreitos quando desciam em direção à bunda. Ele abriu o chuveiro, soltou um grito quando a água gelada começou a cair. Com a mão esquerda segurou na outra e, apoiando um dos joelhos de encontro à porta, vagarosamente dobrou o cotovelo direito. Cada braço dele era assim quase da grossura da minha coxa. A água começou a levar embora a areia da praia, e agora eu podia ver melhor o corpo dele, escondido embaixo da camada de areia. Eu não conseguia parar de olhar. Ondulando como aço plástico, os músculos de seu antebraço e os bíceps cresceram até que gradualmente a barra arqueou na sua direção. Ele virou de frente, com as duas mãos afastou o calção e avançou um pouco o corpo, para a água bater na barriga e descer por dentro do calção. Enfiou as mãos por dentro do calção, depois olhou pra mim, entre as gotas do chuveiro, e virou a cabeça, cuspindo água. O homem-macaco sorriu, enquanto agarrava de novo na barra de ferro. Quando ele fechou o chuveiro, sacudindo os cabelos molhados, quando as gotas do cabelo dele respingaram na minha cara e a Mãe tornou a chamar lá de dentro - de repente e sem querer eu fechei com força o livro, pulei pra fora da rede e saí correndo em direção à porta da casa.
Pelo resto daquele dia, não consegui fazer mais nada. Até parece que nos outros dias eu fazia alguma coisa mais, além de me atrolhar pelos cantos, morto de calor, dormir ou caminhar vadio pela praia. Pois nem isso consegui. Me deu assim um disparo no coração, feito susto que não era bem susto, porque não tinha medo de nada. Ou tinha: medo de uma coisa sem cara nem nome, porque não vinha de fora, mas de dentro de mim. Uns frios, mesmo parado embaixo do sol de rachar, olhando minha sombra achatada igual à de um marciano monstro verde, e uns calorões, mesmo atrás da casa onde até lesma tinha, de tão úmido. Eu só sabia que por nada desse mundo queria ficar perto do primo Alex.
Escondido, vi quando ele entrou no quarto e encostou a persiana da janela, porque decerto ia tirar uma sesta. Todos tiravam sesta no mundo, menos eu, pequeno monstro. Fiquei acompanhando com a ponta do dedo um rastro prateado de lesma, naquele lugar frio atrás da casa, até passar um tempo. E, quando saí no sol outra vez, vi que o tempo tinha passado, porque a minha sombra já não estava tão achatada nem tão monstra. Então cheguei bem devagarinho perto da janela do quarto e, sem barulho nenhum, empurrei a persiana. De leve, como se fosse um vento. Ele estava nu, de costas para a janela. Um pouco mais abaixo daquele triângulo de pelos crespos e pretos na cintura, o calção tinha deixado uma marca branca, que parecia mais branca ainda, agora que o vermelho do sol começava a acender. Ele estava deitado em cima do braço esquerdo. O braço direito dele, que eu só podia ver até a metade, estava dobrado na cintura, desaparecia na frente do corpo. E se mexia. Todo parado o primo Alex, só mexia o braço direito que eu não via inteiro, porque ele estava de costas para mim. Cada vez mais depressa, eu tranquei a respiração, o queixo apoiado na janela, e cada vez mais depressa, até que ele primeiro gemeu baixinho, depois mais alto, suspirou, o corpo inteiro tremendo, virou de bruços na cama e afundou a cara no travesseiro. O braço direito caiu ao lado da cama. Da ponta dos dedos dele, que quase tocavam o chão, escorria uma gosma meio branca, meio prateada, que foi deixando no piso um rastro igual ao das lesmas nos fundos da casa.
Ainda era muito cedo, mas fui caminhar na praia. Saí correndo pela areia em direção ao farol, e quando vi que não tinha mais ninguém por perto comecei a gritar: Sumatra Tantor Zanzibar Bukula Mensahib Nikima Jad-bal-ja. Umas coisas assim, que nem música. Podia até cantar, e cantei. Cada vez que um dos pés batia na areia eu gritava Sumatra ou Bukula ou Nikima, parecia louco de hospício. Não conseguia parar. Só parei quando o coração disparou demais, e minha cara ficou lavada de suor, bem na frente do farol. Então olhei em volta, vi que não tinha ninguém, e fiz uma coisa que nunca tinha feito antes. Tirei a bermuda e a camisa, larguei na areia e fui entrando na água completamente pelado.
Abri as duas pernas, os dois braços, me joguei no meio da espuma. Dei de bunda na areia do fundo do mar, mas não doeu. Aí me virei de bruços e comecei a esfregar meu pau completamente duro na areia molhada molinha. Ficava cada vez mais duro, parecia que tinha uma coisa que queria sair de dentro dele, um fio prateado brilhante. Mas não saía nada, a areia ardia, o sal queimava. Aí eu peguei e abri a minha bunda com as duas mãos bem no lugar onde as ondas arrebentavam, e fiquei assim, deixando as ondas arrebentarem e a espuma morna do fim da tarde entrar pela minha bunda aberta. Foi me dando uma tontura, eu sem querer pensei no braço direito do primo Alex, cada vez mais depressa, parecia assim que ia explodir alguma coisa. Não explodiu nada, eu cravei as unhas no braço, falei quinze vezes pequeno-monstro-pequenomonstro-ninguém-te-quer e não sabia mais o que fazer da vida, daquele medo ou coisa que queria porque queria sair de dentro de mim sem encontrar o jeito.
Meu coração batia batia quando cheguei em casa. A Mãe já estava botando a mesa da janta. Vai lavar as mãos, o Pai falou sem me olhar, ele nunca me olhava. Deixei a água correr sem me olhar no espelho. Quando voltei, o primo Alex já estava sentado, riscando o xadrez da toalha com a ponta serrilhada da faca. Eu não olhei pra ele, mas mesmo sem olhar dava pra ver que ele tinha vestido uma camisa branca de banlon bem alvinha e penteado o cabelo. Eu não queria olhar pra ele. Mas aí a Mãe foi colocar o ovo e o bife no meu prato e o Pai falou tira as aspas do prato, guri, também que cosa, parece um bugre. Eu fiquei vermelho de vergonha dele falar assim daquele jeito comigo na frente do primo Alex, e sem querer ergui a cabeça, levantei os olhos. Ele apertou aquelas sobrancelhas pretas grudadas em cima do nariz e piscou pra mim. Como se a gente tivesse um segredo. Fiquei ali feito besta olhando de vez em quando pra ele. Ele sempre olhava de novo pra mim por cima da jarra de quissuco que na janta era de laranja, não de groselha. Vez enquando piscava, vez enquando ria, sem ninguém ver. Como se tivesse uma coisa que só acontecia entre ele e eu. Uma coisa que era um pouco essa vontade minha de ficar olhando sem parar pra ele? Podia ser essa vontade, misturada com .aquele medo, aquele braço se mexendo cada vez mais depressa, aquele fio prateado de gosma brilhante estendido no chão. Parecido com a calda da compota de pêssego que outra vez eu virei na toalha quando a Mãe parou um pouco de falar e, antes que o Pai me chamasse de porco, perguntou assim:
- Tu não quer convidar o Alex pra dar uma volta na praça e tomar um chope no centro?
Ficaram os três me olhando. Passei o dedo na calda do pêssego, e lambi bem devagar quando olhei pro primo Alex e convidei:
- Vamos?
Ele sustentou o olhar. E disse que sim.
Azul, mas não era bem bem azul. Isso eu só vi na metade da primeira cerveja. Azul-escuro que clareava aos poucos, meio esbranquiçada nas partes em que encostava no corpo. Nos joelhos, na bunda, na frente onde roçava no volume do pau, atrás do fecho. Tinha fecho ecler que nem saia de mulher, em vez de botão igual à minha. Já tinha visto umas assim, mais em filme de mocinho, e só umas poucas nuns caras meio metidos ali na praia mesmo. Dava um jeito especial na pessoa. Um jeito bonito, um jeito moderno. Eu não tinha falado quase nada, mas depois daquele gole de cerveja tomei coragem e disse:
- Bacana a tua calça.
- Ë Lee - ele disse. - Americana, importada.
- Onde a gente compra?
- Só de contrabando. Quer que te consiga uma?
Perguntei se era difícil, ele disse que tinha jeito, conhecia um faixa em Porto. Depois falou que novinha não era tão legal, mas a gente podia desbotar com queboa no tanque. Melhor desbotar sozinha mesmo, só que levava tempo. Perguntei se a dele era desbotada de queboa ou de tempo. Ele estava distraído, não ouviu. Tirou o maço de Minister do bolso, perguntou se eu queria um. Falei que não, se o Pai soubesse. Ele acendeu, jogou a fumaça pra cima, erguendo um pouco a cabeça. De novo, eu pensei no leão de ouro. Acho que eu estava ficando meio borracho com aquela cerveja toda, porque de repente fiquei outra vez olhando sem conseguir parar o primo Alex sentado ali ao meu lado na mesinha da calçada do bar. Ele parecia enorme, ele parecia brilhante, ele parecia bonito. Sem fazer nenhum esforço pra parecer nada, ele não era exibido. Acho que ele nem sabia direito o jeito que ele mesmo era. Ficava ali sentado do meu lado como se fosse um cara comum, fumando, bebendo cerveja e rindo de vez em quando pra mim. Achei que todo mundo que passava e nas outras mesas ficava olhando pra ele e pensando mas quem será esse moço. De repente me deu assim como uma vaidade daquelas pessoas todas estarem me vendo ali, ao lado dele, e aí aconteceu uma coisa maluca. Por um segundo, parei de me sentir monstro.
Olhei para o meu braço na mesa. Meu braço um pouco fino demais, moreno de sol. Mas parecia bonito também. Eu olhei a minha mão morena, quase sem pêlos, depois levei ela até o cabelo e pensei que podia deixar ele crescer um pouco, que nem o do primo Alex. E quando levei a mão desse jeito na cabeça, percebi que as minhas costas estavam muito curvadas para a frente, como se eu quisesse sempre defender do mundo alguma coisa funda escondida no meu peito. Então forcei os ombros para trás, e não estava me sentindo nem um pouco monstro quando olhei de novo para o primo Alex e vi a lua cheia subindo por trás da cabeça dele e do telhado da Taberna do Willy. O garçom chamou ele de senhor quando perguntou se queria outra cerveja. Ele tinha um jeito de quem sabe sentar num bar, aquele jeito que eu ia ter um dia. Ele perguntou se eu também queria, eu disse que sim, apesar de estar meio borracho. Ele encheu o meu copo até transbordar. Enquanto eu passava o dedo na espuma, ele falou assim:
- A tia me contou que anda preocupada contigo. - Eu pensei que saco, ela já andou enchendo os ouvidos dele, agora vai ficar dando opinião, conselho e tudo. Mas ele não deixou eu dizer nada. Só falou: - Ela diz que acha que tu anda muito sozinho. Que tu não tem nenhum amigo.
Foi o que bastou. Quando ele falou isso - como num Shazam! ao contrário, que ao invés do cara virar super, ficava ainda mais coió -, eu comecei a me sentir monstro de novo. Coitado coitado coitado de mim, pensei, o meu olho ficou cheio de lágrima de pura pena de mim mesmo, todo troncho. Estava meio enjoado daquela cervejada toda, tive vontade de me levantar e dizer que ia embora já pra casa. Aío primo Alex disse:
- Falei pra ela que é da idade. Que passa. Que eu mesmo era assim que nem tu, meio arisco. Mas passa, tu vai ver que passa.
Eu quase disse que tinha certeza que, comigo, não ia passar nunca. Que ia ficar para sempre e até o fim do mundo assim pequeno, pequeno monstro nojento, diferente de todas as outras pessoas, todo mundo rindo baixinho, falando coisas quando eu passava. Mas ele disse:
- Eu sou teu amigo.
Parei outra vez de me sentir monstro. Nunca ninguém tinha me dito isso antes. Foi aí que as coisas começaram a acontecer muito depressa, me deu vontade de rir, comecei a falar sem parar, ele começou a falar sem parar também no curso dele de Medicina, nas coisas todas que ia estudar, umas coisas da cabeça das pessoas, de nome complicado, psico não sei o quê, nuns livros duns caras de nome complicado também, duns discos, duns filmes, e disse que ia me dar umas coisas pra mim ler, pra mim ouvir, pra mim gostar, e eu fiquei pensando que não ia dar porque eu ficava o ano todo lá naquele cafundó do Passo da Guanxuma e ele em Porto Alegre e perigava então, até a gente não se ver nunca mais, e comecei a ficar triste, aí ele contou que a Mãe tinha falado que andava pensando em me mandar estudar em Porto Alegre, e primeiro me deu um baita cagaço, depois foi me vindo uma coragem boa e uma alegria no coração, ia ser que nem filme, andar de bonde sozinho do centro até o tal de Partenon, onde ele falou que morava, e eu ia lá todo domingo de tardezinha, ficava no quarto dele ouvindo na eletrola aqueles discos que ele disse que ia me mostrar, eu com a minha calça lee igualzinha à dele, no começo desbotada de queboa mesmo, depois desbotada do tempo, do sol, da chuva, e todo mundo olhava quando a gente entrava junto no cinema e falavam baixinho de um jeito diferente, porque eu não era mais monstro, só porque a gente era bonito junto, só por isso falavam e apontavam, eu e o primo Alex, caminhando de tardezinha por uma praça ou numa calçada mesmo ali daquele lugar onde eu nunca tinha ido chamado Partenon, e Partenon era quase tão bonito e longe quanto Sumatra, Zanzibar, Uganda, e eu criei coragem e falei pra ele que queria ser músico, fazer rock que nem o do Elvis, que eu sabia de cor uns pedacinhos dumas músicas em inglês mesmo e ele cantou rindo it ‘s now or never, só um pedaço, depois passou a mão no meu cabelo e disse que eu tinha que deixar um topete crescer pra cair na testa quando eu fizesse yeah remexendo as cadeiras, e só de sarro eu fiz yeah yeah yeah, e ele morreu de rir e eu morri de rir também, e ele pediu outra cerveja e eu acendi um cigarro e tossi tossi e ele bateu nas minhas costas, as pessoas em volta olhavam, e ele começou a contar que depois de formado ia viajar muito de navio pelo mundo inteiro, e eu perguntei se Zanzibar também e ele morreu de rir de novo e falou que sim, se eu queria ir junto com ele pra Zanzibar, lógico eu disse e fiquei imaginando tudo enquanto ele contava que ia ser um grande médico desses modernos que curam a cabeça dos outros pra deixar todo mundo feliz o tempo todo pra sempre sem nenhuma culpa, ele disse, ele era tão bonito, todo mundo em volta olhava, eu ria, ele ria, e a gente estava ficando cada vez mais bêbado quando eu tentei levantar pra ir ao banheiro e quase caí em cima da mesa. Então ele me segurou pelo braço, e rindo sem parar falou que tava na hora de ir embora se não o Pai e a Mãe iam ficar umas feras.
A gente só parou de rir no caminho da porta de casa até o quarto, pro Pai e a Mãe não acordarem. Passado de meia-noite, Alex viu no pulso. Ele acendeu a luz, se jogou na cama e continuou rindo. Eu fechei a porta, me joguei ria cama e continuei rindo. Vez enquando a gente olhava um pro outro e ria mais ainda. Um tempão assim, feito dois mangolões. A barriga doía de tanto rir, eu falei que ia no banheiro mijar e já voltava. Demorei um pouco, parecia que tinha bebido um açude inteiro. Quando voltei, ele tinha tirado toda a roupa e estava deitado de costas na cama. Tu vai te gripar, pensei em dizer. Só pensei, em seguida vi que não tinha vento nem nada. E fui andando pra minha cama enquanto olhava pra calça lee, a camisa banlon, o mocassim e a cueca dele jogados no chão, sem saber direito o que fazer com a janela aberta, a lua cheia e o primo Alex completamente pelado na cama ao lado. Tentei não olhar pra ele. Mas ele olhava bem pra mim quando falou estranho, como se o que quisesse dizer não fosse o que estava dizendo:
- Tá muito quente, tu não acha?
- É - eu disse. E aí não consegui mais parar de olhar pra ele. Fui ficando meio descarado e comecei a olhar mesmo, porque tinha vontade e era bom de olhar. Desci os olhos pelo peito dele, acompanhando aqueles pêlos que se amontoavam lá em cima, pouco embaixo do pescoço, em volta das mamiquinhas cor-de-rosa, depois se estreitavam enquanto desciam pela barriga e ficavam assim um fiozinho crespo, até começarem a encrespar mais e a aumentar de novo, no meio das pernas. Ele estava com a mão no meio das pernas, lá onde os pêlos encrespavam mais.
- Eu te espiei dormindo hoje de tarde - contei.
- Eu vi - ele disse. - Eu não estava dormindo, eu estava batendo punheta.
Me deu um vermelhão. Desviei os olhos para o livro de Tarzan, o Invencível, na cabeceira. Em cima duma árvore, Tarzan apontava uma flecha para um bwana falando com dois negros pigmeus na frente de uma barraca. E se ele disparar a flecha? pensei.
- Tu já esporrou? - ele perguntou.
- Não - eu disse. - Nunca, nem sei como é que se faz.
- Quer que eu te ensine? - Estava rindo outra vez. Aquela cabeça de leão de ouro, dentes muito brancos.
- Quero - eu disse.
Ele tirou a mão do meio das pernas, bateu na cama ao lado dele e chamou:
- Senta aqui, eu te mostro como é. Tira a roupa e senta do meu lado.
Tirei, joguei no chão, em cima da roupa dele. Depois sentei na cama dele, só de cueca. Uma cueca feia, toda esbragalada, não era que nem a dele. Ele suava um pouco. O cheiro de suor misturava com o de um perfume que acho que era colônia de barba, mais o do jasmineiro entrando pela janela aberta. Eu podia ouvir o tum-tum do meu coração no peito. Ele estava bem perto de mim. Eu cruzei as pernas, de costas para ele, de frente para a janela.
- Vira pra cá - ele pediu.
Estendeu a mão, tocou no meu joelho. Fui virando, até ficar de frente pra ele. Ele sentou na cama, ficou de frente pra mim, cruzou as pernas também. Ele encostou umas das mãos na minha coxa, depois foi subindo e puxou devagarinho a minha cueca. Estendi a perna para que ele pudesse tirar e jogar no chão, em cima das roupas dele e das minhas. Agora eu também estava completamente nu, de pau tão duro quanto o dele, eu tinha visto. Ele não escondia, não era feio. Quase fiquei com vergonha, mas ele segurava os olhos dele bem dentro dos meus, sem sorrir nem piscar. Ele levou a mão direita até o seu pau duro, enquanto com a mão esquerda pegava a minha mão direita e levava até o meu pau duro. Ele segurou meu braço, mexendo devagar para que eu movimentasse para cima e para baixo, que nem ele fazia. Ele era tão bonito. Ele se torceu e gemeu um pouco. Fechei os olhos: se sair reto daqui sempre em frente vou dar na África, pensei idiota. Aquela coisa querendo explodir vinha subindo de novo. Eu abri mais as pernas, joguei o corpo para a frente. Ele chegou mais perto. Então pegou outra vez no meu, braço, cuspiu na palma da minha mão e levou até o pau dele. Ele cuspiu na palma da mão dele e levou até o meu pau. Quente molhado rijo macio. A cama rangia. Eu cheguei ainda mais perto. Aquela coisa crescia dentro de mim feito louca de atar, como se o meu corpo fosse arrebentar e de dentro dele saíssem balões, bandeirinhas coloridas de Santo Antônio, penduricalhos dourados de árvore de Natal, confete e serpentina de Carnaval, sei lá que mais. Mais depressa, ele disse. Mais depressa, vem junto. Parecia que a gente estava sozinho só os dois num barco solto no mar no meio duma tempestade. Sumatra Tantor Bukula Nikima, eu ia gritar alto quando aquela coisa começou a se juntar dentro de mim feito uma onda que vai se armando longe da praia enquanto a gente espera que ela venha ali na beira sem me importar nem um pouco que o Pai e a Mãe ouvissem e a vizinhança toda e a cidade inteira acordassem. Ele chegou ainda mais perto. Eu colei meu peito no peito dele. Ele afundou a boca na minha enquanto eu sentia a palma da minha mão aos poucos ficar molhada daquele fio de prata brilhante que saía de dentro dele e sabia que de dentro de mim saía também um fio de prata molhado brilhante igual ao que saía de dentro dele.
Vem comigo, ele chamou. E eu fui.
Ele passou as mãos molhadas nas minhas costas. Eu passei as mãos molhadas nas costas dele. Ele afastou a boca da minha, depois deitou a cabeça no meu ombro. Meu coração batia batia, ele podia ouvir. O suor da gente se misturava, O coração dele batia batia, escutei quando deitei a cabeça no seu ombro. Eu fiquei passando as mãos nas costas dele. Elas ficaram todas meladas da água de prata que ele tinha me ensinado a tirar de dentro de mim. Ele não se importava de ficar melado da água de mim. Eu também não me importava de ficar melado da água dele. Nojo nenhum, eu sentia. Ele passou a língua na curva do meu pescoço. Eu enrolei os dedos naquele triângulo de pêlos crespos na cintura dele. Não sei quanto tempo durou. Sei que de repente a gente se afastou e, olhando um pro outro, começamos a rir feito loucos outra vez.
Bem cedo, na manhã seguinte, fomos à praia juntos. Ele me ensinou a mergulhar e a boiar, eu apontei o horizonte e mostrei o caminho da África, das Indias. Depois do almoço, no forno quente do quarto coberto de zinco, ele me ensinou outros caminhos. Na hora de ir embora, de tardezinha, ajudei ele a arrumar suas roupas. Mas não fui até a rodoviária. Espiei da esquina, escondido. Depois corri pela calçada atrás do ônibus, até que ele saísse na janela e gritasse alguma coisa que não entendi direito. Parecia Zanzibar, Partenon, qualquer o coisa assim. Ele ficou abanando até o ônibus fazer a curva, na polvadeira vermelha da estrada de Osório.
À noite, fiquei procurando umas músicas no rádio. Nem Gardel nem Elvis: encontrei Maísa, que o Pai disse que eu não tinha idade pra ouvir. Depravada, falou, e eu não sabia o que isso queria dizer. Na hora de dormir, a Mãe olhou bem pra mim e disse baixinho:
- Parece que tu está sentindo muita falta do Alex. Eu falei que não. E não estava mentindo. Eu sabia que ele tinha ficado para sempre comigo. Ela foi dormir, apaguei o rádio. Sozinho na sala, em silêncio, eu não era mais monstro. Fiquei olhando minha mão magra morena, quase sem pêlos. Eu sabia que o primo Alex tinha ficado para sempre comigo. Guardado bem aqui, na palma da minha mão.
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Eu, verdadeiramente, amo Caio.
E também um Alex.
O primeiro conto é inesquecível...
=)
Tenho lido Caio Fernando freneticamente, e quando peguei os dragões e li esse conto fiquei muito passada... ele tem realmente a capacidade de te reportar a outro lugar, outro tempo... é inevitável não sentir o que sente o personagem... Também fiquei muito impressionada com o "Dama-da-noite" do mesmo livro... Resume as ultimas gerações...
Esse conto é espetacularmente bom.
Em menor escala me identifiquei demais com o personagem. Com o que ele sentia.
Fiquei até sem fôlego quando terminei de ler.
Excelente conto!
Incrivel, há tempos li aqui mesmo esse conto, e a linguagem realmente nos parece a de um adolescente revolts, muito realista.
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