OU AJAX, BRUSH AND RUBBISH
Para Carlos Temple Troya


Meu coração está perdido, mas tenho um mapa de Babylon City entre as mãos. Primeiro dia do fog autêntico. Há um fantasma em cada esquina de Hammersmith,W14. Vou navegando nas waves de meu próprio assobio até a porta escura da casa vitoriana.
- Good morning, Mrs. Dixon! I’m the cleaner!
- What? The killer?
- Not yet, Lady, not yet. Only the cleaner...
Chamo Mrs. Dixon de Mrs. Nixon. É um pouco surda, não entende bem. Preciso gritar bem junto à pérola (jamaicana) de sua orelha direita. Mrs. D(N)ixon usa um colete de peles (siberianas) muito elegante sobre uma malha negra, um colar de jade (chinês) no pescoço. Os olhos azuis são duros e, quando se contraem, fazem oscilar de leve a rede salpicada de vidrilhos (belgas) que lhe prende o cabelo. Concede-me algum interesse enquanto acaricia o gato (persa):
- Where are you from?
- I’m Brazilian, Mrs. Nixon.
- Ooooooouuuuuu, Persian? Like my pussycat! It ‘s a lovely country! Do you like carpets?
- Of course, Mrs. Nixon. I love carpets!
Para auxiliar na ênfase, acendo imediatamente um cigarro. Mas Mrs. Nixon se eriça toda, junto com o gato:
- Take care, stupid! Take care of my carpets! They are very-very expensive!
Traz um cinzeiro de prata (tailandês) e eu apago meu cigarro (americano). But, sometimes, yo hablo también um poquito de español e, if il faut, aussi um peu de français: navego, navego nas waves poluídas de Babylon City, depois sento no Hyde Park, W2, e assisto ao encontro de Carmen Miranda com uma Rumbeira-from-Kiúba. Perhaps pelas origens tropicais e respectivos backgrounds, comunicam-se por meio de requebros brejeiros e quizá pelo tom dourado das folhas de outono (like “Le Bonheur”, remember “Le Bonheur”?), talvez, maybe: amam-se imediatamente. Mas Cármen foge da briga, fiel às suas já citadas origens e repete enl(r)ouquecida, em português castiço, que aquele amor ledo e cego acabaria por matá-la. A Rumbeira-from-Kiúba, cujo nome até hoje não foi devidamente esclarecido (something between Remedios and Esperanza), decide tomar providências no sentido de abandonar a old-fashion e matricula-se no beginner de dança moderna do The Place, Euston, NW1. Para consolar-se de seu frustrado affair, todos os sábados vai a Portobello Rd, W11, onde dedica-se à pesquisa e eventual aquisição de porcelana chinesa. Su pequeña habitación em Earl’s Court Rd, W8, está quase toda tomada. Ainda ontem substituiu o travesseiro por uma caríssima peça da dinastia Ming. Entrementes, Cármen ganha £20 por semana cantando “I-I-I-I-I-I-I like very much” nos intervalos das sessões do Classic, Nothing Hill Gate, W11. Aos sábados compra velhos tamancos de altíssimas plataformas, panos rendados e frutas nas barracas de Portobello - para preencher el hueco de su (c)hambre. Muito tarde da noite, cada uma en sus pequeñas habitaciones, lêem respectivamente Cabrera Infante e a lírica de Camões. Secretamente ambas esperam encontrar-se qualquer Saturday desses, entre lustres art nouveau, roupas de pajem renascentista, couves-de-bruxelas e pastéis da Jamaica, bem em frente ao Ceres, Portobello Rd, W14, onde tudo acontece. Ou quase. Mas secretamente, apenas. Nenhuma falará primeiro. Nenhuma deixará transparecer qualquer emoção por detrás do make-up. It’s so dangerous, money, e, de mais a mais, na Europa é assim, meu filho, trata de ir te acostumando. Pero siempre puede ser que sus ojos digan todo. Como nessas melosas e absurdas histórias de Rumbeiras-from-Kiúba meeting Carmen Miranda pelas veredas outonais do Hyde Park - onde as folhas, a quem interessar (f)possa, continuam caindo.
- I think all Latin-American writers should write in English. Spanish is very difficult. But don‘t worry, dear: Joseph Conrad learned to write only at nineteen...
Bolhas nas mãos. Calos nos pés. Dor nas costas. Músculos cansados. Ajax, brush and rubbish. Cabelos duros de poeira. Narinas cheias de poeira. Stairs, stairs, stairs. Bathrooms, bathrooms. Biobs. Dor nas pernas. Subir, descer, chamar, ouvir. Up, down. Up, down. Many times got lost in undergrounds, corners, places, gardens, squares, terraces, streets, roads. Dor, pain. Blobs, bolhas.
- You‘re not just beautiful. I think you‘ve got something else.
I’ve got something else. Mas onde os castelos, os príncipes, as suaves vegetações, os grandes encontros - onde as montanhas cobertas de neve, os teatros, balés, cultura, História - onde? Dura paisagem, hard landscape. Tunisianos, japoneses, persas, indianos, congoleses, panamenhos, marroquinos. Babylon City ferve. Blobs in strangers’ hands, virando na privada o balde cheio de sifilização, enquanto puxo a descarga para que Mrs. Burnes (ou Lascelley ou Hill ou Simpson) não escute meu grito.
- What’you think about the Women’s Lib?
- Nothing. I prefer boys.
- Chawvinist!
Ela está descalça, embora faça frio. Tem uma saia de retalhos coloridos até quase o chão cheio de lixo. Os cabelos vermelhos de hena, algumas mechas verdes. Nos olhos, um pincel stone traçou enormes asas de purple butterfly. Como se seu rosto fosse um jardim. Empurra um carrinho de bebê vazio e canta. Qualquer coisa assim: “I’m so happy/ I’m so happy/ ‘cause today is The Day/ ‘cause today is a Sunny Day”. É muito jovem, mas a heroína levou embora a rosa de suas faces. O boá azul esvoaça com o vento dos ônibus. Ela sorri ao passar e se detém e faz meia-volta e retira de dentro do carrinho de bebê uma bolsa de vidrilhos e cordões dourados e apanha um vidrinho escuro e salpica algumas gotas de óleo na ponta dos dedos e passa - siowly, siowly - na minha testa, na minha face, no meu peito, nas cicatrizes suicidas de meus pulsos de índio:
- You know and I know that you know. today is just The Day.
Cheira a sândalo, a Oriente. Eu não quero dizer nada, em língua nenhuma, eu não quero dizer absolutamente nada. Eu só sorrio e deixo ela ir embora com seus pés descalços e muito sujos dançando embaixo dos trapos coloridos da saia. Ela canta, ainda, Eu aproximo os pulsos das narinas e aspiro, até o ônibus chegar, eu aspiro. Sândalo, Oriente.
- Won‘t you finish your bloody cigarette?
- Fuck off!
- Very eccentric!
Mrs. Austin aponta as pombas no quintal e diz que não pode morrer, you know?, que tem oitenta anos mas não pode morrer. O que seria das pombas se Mrs. Austin morresse agora? Fico parado na esquina, as mãos cheias de pombas, os pés no jardim dourado de Mrs. Austin, que me deu cinqüenta pence a mais. Elas passam, eles passam. Alguns olham, quase param. Outros voltam-se. Outros, depois de concluir que não mordo, apesar de meu cabelo preto e olho escuro, aproximam-se solícitos e, como nesta ilha não se pode marcar impunemente pelas esquinas, com uma breve curvatura agridem-me com sua British hospitality:
- May I help you? May I help you?
- No, thanks. Nobody can help me.
Something else. Toco o pequeno cacto com os dedos cheios de bolhas rosadas. É um frágil falo verde, coberto de espinhos brancos. Comprimo os espinhos brancos contra a pele rosada das bolhas de meus dedos. Mas nada acontece. Something else. Eu queria tocar “Pour Élise” ao piano, sabia? É meio kitsch, eu sei, mas eu queria, e en el Brazil, cariño, en el otro lado del mar, hay una tierra encantada que se llama Arembepe, y un poco más al sur hay otra, que se llama Garopaba. En estos sitios, todos los días son sunny-days, todos. Mon cher, apanhe suas maracas, sua malha de balé, seus pratos chineses apanhe todos os pedaços que você perdeu nessas andanças e venha para o meu tapete mágico. Te quieres volar conmigo hasta los sitios encantados? Something else. Coño. Aperto minhas bolhas contra o pequeno falo verde. E nada continua acontecendo. Como César Vallejo: “Tenemos en uno de los ojos mucha pena, y tanbién en el otro, mucha pena, y en los dos, cuando miran, mucha pena”. Cármen hesita, o telefone nas mãos. Flash-back:
Cármen-menina hesita com o pintinho do vizinho entre as mãos de unhas verde-menta, esmalte from Biba, High Street Kensington, W8. Quizá Remedios, Soledad o Esperanza. Zoom no olho de cílios de visom. A boca escarlate repete enr(l)ouquecida:
- Pero si no te gusta esa de que te hablo, hay otra más al sur, o más al centro, donde lo quieras, cielo, donde lo quieras, locura. Sometimes, penso que mio cuore es una basura, but “your body hurts me as the world hurts God”. I can’t forget it.
- Look deep on my eyes. Can you see? They ‘re lost. They’re completely lost. And I can do ,nothing.
Caminho, caminho. Rimbaud foi para a África, Virginia Woolf jogou-se num rio, Oscar Wilde foi para a prisão, Mick Jagger injetou silicone na boca e Arthur Miller casou com Norma Jean Baker, que acabou entrando na História, Norman Mailer que o diga. Mrs. Burnes não vem, não vem. Wait her and after call me. Espero, espero. Mrs. Burnes não vem. Amsterdã até que é legal mas nunca vi tanta merda de cachorro na rua. Na Nicarágua um terço da população fala abuara, que é uma língua hindu. No muro perto de casa alguém escreveu com sangue: “Flower-power is dead”. É fácil, magro, tu desdobra numa boa:
primeiro procura apartamento, depois trabalho, depois escola, depois, se sobrar tempo, amor. Depois, se preciso for, e sempre é, motivos para rir e/ou chorar ou qualquer coisa mais drástica, como viciar-se definitivamente em heroína, fazer auto-stop até o Katmandu, traficar armas para o Marrocos ou sempre existe a old-fashion - morrer de amores por alguém que tenha nojo de sua pele latina. Why not?
- Please, can you clean the other side of that door?
Primeiro, a surpresa de não encontrar. Surpresa branca, longa, boca aberta. £10. O aluguel da semana mais um ou dois maços de Players Number Six. Alguns sanduíches e ônibus, porque metrô a gente descola, five na entrada e five, please, na saída. Reviro a bolsa: passaporte brasileiro, patchuli hindu, moedas suecas, selos franceses, fósforos belgas, César Vallejo e Sylvia Plath. Olho no chão. Afasto as pernas das pessoas, as latas de lixo, levanto jornais, empurro bancos. Tenho duas opções: sentar na escada suja e chorar ou sair correndo e jogar-me no Tâmisa. Prefiro tomar o próximo trem para a próxima casa, navegar nas waves de meu próprio assobio e esperar por Mrs. Burnes, que não vem, que não vem.
WHY?
- I beg your pardon?
Sempre anoitece cedo e na sala discutem as virtudes da princesa Anne, alguém diz que o marido sim, é uma tesão, e ouvem rock que fala numa ilha-do-Norte-onde-não-sei-se-por-sorte-ou-por-castigo-dei-de-parar-por-algum-tempo-que-afinal-passou-depressa-como-tudo-tem-de-passar-hoje-eu-me-sinto-como se agora fosse também ontem, amanhã e depois de amanhã, como se a primavera não sucedesse ao inverno, como se não devesse nunca ter ousado quebrar a casca do ovo, como se fosse necessário acender todas as velas e todo o incenso que há pela casa para afastar o frio, o medo e a vontade de voltar. Mas o carrinho de bebê está vazio. A pedra de Brighton parece um coração partido. O tarô esconde a Torre Fulminada. As flores amarelas sobre a mesa branca ainda não morreram. O telefone existe, mas não chama. Na parede tem um mapa-múndi do século não sei quantos. O cacto. A agulha faz a bolha na ponta do dedo de Saturno libertar um líquido grosso e adocicado. Sinto dor: estou vivo. Meu último olhar do dia repousa, como num poema antigo, sobre o uniforme da Terceira Grande Guerra jogado ao chão para a ofensiva da manhã seguinte: tênis francês (trinta francos), blue jeans sueco (noventa coroas), suéter inglês (quatro libras), casaco marroquino (novecentas pesetas). Agora custo um pouco mais caro e meu preço está sujeito às oscilações da bolsa internacional. Quando você voltar, vai ver só, as pessoas falam, apontam: “Olha, ele acaba de chegar da Europa”, fazem caras e olhinhos, dá um status incrível e nesse embalo você pode comer quem quiser, pode crer. Magrinha, você me avisou, eu sei, mas onde estão teus dedos cheios de anéis? Mas na sala, na sala discutem as virtudes do marido da princesa Anne e cantam rock. David Bowie é uma grande mulher, mas meu coração é atlante. Tenho Sol em Virgo, Marte em Scorpio, Vênus em Leo e Júpiter em Sagitarius. Situo,
situo-me. Coloco o despertador para as sete horas, ainda é escuro, os carros ficam cobertos de gelo, apago a luz e puxo o cobertor roxo para cima de mim. E ainda por cima diz alguém longe, ainda por cima no fim do ano tem o cometa. Procuro o fósforo, acendo um cigarro. A pequena ponta avermelhada fica brilhando no escuro. Sorry, in the dark: red between the shadows. Quase como um farol. Sorry: a lighthouse. Magrinha, lá na Bahia, localiza minha pequena luz, estende tua mão cheia de anéis por sobre o mar e toca na minha testa caliente de índio latino- americano e fala assim, com um acento bem horroroso, que Shakespeare se retorça no túmulo, fala assim:
- De beguiner is ólueis dificulti, suiti ronei, létis gou tu trai agueim. Iuvi góti somessingui élsi, donti forguéti iti.
I don‘t forget. Meu coração está perdido, mas tenho um London de A a Z na mão direita e na esquerda um Collins dictionary. Babylon City estertora, afogada no lixo ocidental. But l’ve got something else. Yes, I do.

Lanço o meu olhar sobre o
Brasil e não entendo nada.
Da canção “Negros”, de
Adriana Calcanhoto

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| Por ludelfuego | 19.8.07 | 21:45.