Do corredor os rumores chegavam diluídos, cobertos de cinza caindo mansa sobre os objetos. Vezenquando um rosto desavisado espiava na porta. Ficavam a encarar-se, e nesse duelo -quem saía perdendo? Enquanto examinava o rosto, guardava dentro de si um pensamento intenso, mas inafirrnado em gesto ou palavra. Tinha consciência de estar sendo lento em seu exame, do movimento da mão baixando os óculos, do cigarro batido nas bordas do cinzeiro. E do olhar do outro, também parado, como se dissessem mutuamente me vês? e o que vês em mim? e em que essa visão te acrescenta ou diminui? te causa ódio ou amor ou que outra espécie de sentimento velado? Concordavam mudos, mas não saberiam ir além da primeira pergunta. Não saberiam definir a que espécie de quebrar interior se sujeitavam. Mas sabiam que um ser humano jamais atravessa incólume o círculo magnético de outro. Sabiam, mas sabiam também que, por condicionamento ou medo de verem periclitar a segurança fragilmente estruturada, atenuavam a carga de espanto oferecendo um cigarro ou perguntando se estava tudo bem. Fingindo-se imperturbáveis, não seriam obrigados a reinventar cada encontro ou desencontro. Por mais corajoso que fosse, por mais que se permitisse a queda, o desconhecimento, ainda assim não saberia precisar o movimento. Seria necessário um rótulo qualquer para pacificar-se. E os movimentos nunca vinham puros, em essência: era uma mansa piedade, quebrantada por um vislumbre de amor, ou um ódio com toques de desespero, ou ainda um simples dobrar-se, uma identificação de humano para humano, sem sequer um nome aproximado.

Assim, ele estava no escritório, cumprimentara há pouco a secretária que estava de aniversário, dizendo você é de Virgem, não? é o signo regido por Mercúrio, o planeta da inteligência, as pessoas de Virgem sempre conseguem o que querem embora no começo pareça tudo muito difícil. A moça sorria indefesa, querendo dizer que não tinha culpa nenhuma de estar de aniversário. Para disfarçar, dissera que o relatório estava pronto. De repente se olharam tão desesperadamente sós no corredor cheio de gente, uma ternura quase de cão brincando nos olhos, ele olhou para a ponta dos sapatos, ela batucou de leve na máquina, ele imaginou-a morando numa pensão barata, chegando do trabalho para lavar calcinhas na pia, indo ao cinema com o noivo, contando a ele as miudezas do dia -imagine, hoje o chefe me cumprimentou e até perguntou o meu signo, ele, que nunca tinha falado comigo. Não suportando mais, pergutou-Ihe quantas primaveras, colocando um acento meio trágico na voz. Vinte e quatro, ela respondeu de olhos baixos. E quando chegaram ao ponto de precisar fazer qualquer coisa para quebrar o insuportável momento de ternura, disse brusco você está dispensada por hoje. Seco, praticamente jogando-Ihe no rosto a sua bondade esmagadora, voltou as costas e saiu pisando duro corredor afora. Na mesa, abriu a gaveta para encontrar um velho pacote de bolachas, uma fotografia rasgada e um carretel de linha. Em instantes como esse gostaria de te no rosto uma expressão de ódio tão compacta e definida que ninguém suportasse encará-lo por mais de um segundo. Espiou o vulto refletido na vidraça. Impossível: havia nos olhos tal carga de espanto e indagação que causavam sempre um baixar de olhos, qual quer coisa assim como quem esconde a si própria com medo de ser descoberto. Distraído, tentava aproximações, mas tão inábeis que os outros se encolhi, am, medrosos da segunda intenção que ignorava inexistente. Como chegar para alguém e dizer de repente eu te amo para depois explicar que esse amor independia de qualquer solicitação, que lhe bastava amar, como uma coisa que só por ser sentida e formulada se completa e se cumpre? Pois se ninguém aceitaria ser objeto de amor sem exigências.

Agora esperava o empregado entrar, ouvira a conversa no corredor. A felicidade do outro esperando o momento quase certo, chego pra ele e digo assim eu preciso que o senhor me dê um aumento. Mergulhou na compreensão do sentimento do empregado quase, quase se sentiu pobre, assim, como cinco olhos, um pedindo um bicicleta, outro pedindo um livro, outro pedindo. ..pedindo. ..uma côdea de pão! era assim que lia antigamente nos livros que falavam dos pobrezinhos. E nada o comovia tanto quanto a expressão uma côdea. Imaginava um pobrezinho, a não estendida à espera da casca toda roída. Arrepia-se todo de amor pela humanidade. Quase não importando a si mesmo de tanto amor represado, saía o corredor e dava um berro para o primeiro que saisse. As paredes quase oscilavam, e ninguém, mas ninguém percebia que a sua raiva era um amor muito bem disfarçado, para que ninguém risse, para que ninguém o olhasse surpreso com a grandeza de seu coração. Preparava-se para levantar e berrar quando bateram à porta:

-Entre -disse.

O operário era magro, os maxilares agudos furando as faces, quase bonito teria sido talvez num outro tempo, sem a mulher e os cinco filhos, bebendo e rindo nos puteiros com os companheiros. Puteiro, não -bórdel, corrigiu-se rápido. Bebendo cerveja, naturalmente, e rindo nos bordéis com os companheiros. Ou prostíbulos. As palavras muitas vezes usadas, sem o toque cínico e carregado de sugestões, mesmo um pouco melancólicas no seu ridículo, provocavam uma ternura maior. Piscou para si mesmo. Ah como conhecia as suas próprias fraquezas, como sabia apelar ao que lhe machucava o coração executivo.

Mandou o operário sentar, ofereceu-lhe um cigarro americano, filtro branco. E escutou atento a estória que já conhecia. Batucou nervoso na mesa, esperando que o homem falasse. ..agora. ..já. ..uma côdea de pão. Por inexperiência de lidar com palavras ou por conhecimentos carentes da psicologia dos chefes, o homem manteve-se discreto e objetivo nos fatos. Explicou tudo com muita concisão, o cigarro sublinhando sem melodrama os detalhes mais amargos. Olhava-o pensando no que ele pensaria de si. O homem terminou de falar e encarou-o. Uma pausa de espera estabeleceu-se incômoda entre as paredes. Confiante, o operário percebia suas feições comovidas, o ar exato de quem vai concordar e dar um aumento. Até se atreveu a largar um pouquinho de cinza no chão. Alguém gritou no corredor. Os estilhaços de som vieram arrancá-lo das escuras favelas onde andava compassado, distribuindo côdeas de pão a mil pobres bem pobrezinhos, de bracinhos finos e barrigas estufadas feito criancinhas de Biafra.

Olhou o homem bem nos olhos, bateu o cigarro no cinzeiro -ah se pudesse ver a si mesmo assim, carregado, insuportável de amor, de tanto amor, de puro amor. E disse bem devagar:

-O senhor está despedido
(In O Inventário do Irremediável)

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| Por ludelfuego | 28.12.06 | 15:50.

3 Responses to “AMOR”

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