Para quem tem mais de trinta, trinta e cinco anos, este disco pode ser uma tortura. Não, não é que seja um mau disco. Eu explico. Ou tento
É que fatalmente eu/tu/ele/nós vamos lembrar. E não estou certo se essas lembranças serão boas. Ou se seriam boas, lembradas hoje, você me entende? Porque o tempo passado, filtrado pela memória e refletido no tempo presente — agora —, parece sempre melhor. E terá mesmo sido?
Apenas, quem sabe, porque não havia fadiga lá. Aquela fadiga que se insinua, persistente, entre o ruído das buzinas e das descar­gas abertas nos engarrafamentos de trânsito, todo dia. Ou essa, de atravessar mais uma vez qualquer avenida às seis da tarde para, de repente, olhar a multidão também fatigada e perguntar: mas que cidade, afinal, é esta? E que vida? A quase amável, paciente fadiga de contemplar o grande relógio das repartições e escritó­rios, quase imóvel na sua lentidão, a partir das cinco e a caminho das seis da tarde. Para nos despejar, novamente, nas ruas entupidas de fumaça e desejos bandidos nas esquinas, dentro de carros aper­tados entre outros carros ou de ônibus apinhados — até o interior dos apartamentos, com seus fantasmas emboscados, uns mortos, outros vivos. E então o acúmulo de contas atrasadas, telefonemas ansiosos, telenovelas chatas, quem sabe algum plano, certas fan­tasias. Outra cidade, outro país, outro planeta, outra vida que não esta—uma memória de flores no cabelo e pés descalços, pouco an­tes de o ruído do despertador e de o meu/teu/dele/nosso coração serem os únicos audíveis dentro da escuridão onde afundamos na lama de nossos sonhos mortos.
Mas eu falava — tentava—de um disco. De John Lennon.
Ele foi gravado ao vivo, no Madison Square Garden, em 30 de agosto de 1972. Há quase, portanto, catorze anos. Você tinha quan­tos — quinze, vinte, vinte e cinco? E provavelmente também ima­ginava que, um dia, pudesse não haver mais guerras, nem países, nem ódio entre as pessoas. Um mundo novo, não é isso? Depois houve cinco tiros nas costas, e pouco antes, durante o depois, os mu­ros das cidades pixados com frases como "flower-power is dead". E então uma invasão de cabelos muito curtos, quase raspados, roupas negras, couro justo: a ridicularização de tudo em que você acreditou durante tanto tempo — e largou faculdade, largou família, caiu em bandos pelas estradas para sonhar com essa coisa que não acon­teceu: um mundo novo. O deboche das suas antigas — e perdidas — ilusões. Patrício Bisso só sobe no palco para cantar qualquer coi­sa como "bolsa peruana? Sandália indiana? Hippie! Mata". Eu rio, você ri, ele ri—nós rimos todos juntos. E temos um sutil cuidado em evitar, no vocabulário, no vestuário, qualquer detalhe capaz de nos identificar como sobreviventes daquele tempo. Agora somos mais do que modernos: demi-darks. Não temos fé, nem esperança, nem caridade. Bebemos vodca pura, cheiramos umas. Nunca mais com­pramos uma caixinha de incenso. E a bad-trip pinta sem química.
Tudo isso dói tanto. Eu nunca mais tinha ouvido John Lennon. O tempo corre, a gente vai descobrindo jeitos de se proteger. Elis? Nem pensar: põe aí a Paula Toller. Marc (quem lembra?) Bolan? De jeito nenhum, melhor um Boy George, cara. Let's Roller. It's only rock and roll. Só que eu nem sempre sei se gusto. Mas, por trás das defesas, esse vinco no canto esquerdo da boca continua avançando, cada vez mais fundo, cada vez mais longo. Você tenta reagir, sem di­zer claramente não, pelo amor de Deus, não me dá esse disco pra ouvir, eu não entendo nada de música, eu não conheço John Lennon e nunca ouvi falar em Yoko Ono. Eu não tenho tempo. Não posso parar, nem pensar, nem sentir. Nem lembrar. Eu preciso ganhar di­nheiro. Tenho pressa neste passo alucinado em direção ao buraco negro do futuro.
Mas você acaba aceitando. Agora somos profissionais. Colo­ca no toca-discos, como quem não quer nada. Liga a TV, ao mesmo tempo. E, no meio dos sons que vêm também da rua e dos outros apartamentos, de repente aquela voz tão antiga e conhecida grita:
— Mother!
Aumente o volume. Ou desligue para sempre, você me entende?

O Estado deS. Paulo, 6/4/1986

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| Por Caio Fernando Abreu | 8.8.13 | 17:37.

10 Responses to “Pra machucar os corações”

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