Ah, querida e heavy Sampa: a feiúra desabou sobre você como uma praga bíblica...
Nunca na minha vida casei, mas — imagino — minha relação com São Paulo é igual a um casamento.Atualmente, em crise. Como conheço bem esse laço, sei que apesar das porradas e desacatos, das queixas e frustrações, ainda não será desta vez que resultará em separação definitiva. No máximo, posso dormir no sofá ou num hotel no fim de semana, mas acabo voltando. Na segunda-feira, volto brava e masoquistamente, como se volta sempre para um caso de amor desesperado e desesperançado, cheio de fantasias de que amanhã ou depois, quem sabe, possa ter conserto. Este, amargamente, não sei se terá.
Porque está demais, querida Sampa. E sempre penso que pode ser este agosto, mês especialmente dado a essas feiúras, sempre penso que pode ser o tempo, tão instável ultimamente, sempre penso que pode ser qualquer coisa de fora, alheia à alma da cidade — para que seja mais fácil perdoar, esquecer, deixar pra lá. Não sei se é. As calçadas e as ruas estão esburacadas demais, o céu anda sujo demais, o trânsito engarrafado demais, os táxis tão hostis a pobres pedestres como eu... Cada vez é mais difícil se mexer pelas ruas da cidade — e mais penoso, mais atordoante e feio.
Feio é a palavra mais exata. A feiúra desabou sobre São Paulo feito as pragas desabavam dos céus, biblicamente. Uma feiúra maior, mais poderosa e horrorosa que a das gentes, que a das ruas. Uma feiúra que é talvez a soma de todas as pequenas e grandes feiúras aprisionadas na cidade, e que pairam então sobre ela, sobre nós, feito uma aura. Aura escura, cinza, marrom, cheia de fuligem, de pressa, miséria, desamor e solidão. Principalmente solidão, calamidade pública.
Fico fazendo medonhas fantasias futuristas. Lá pelo ano 2ooo, pegue Blade Runner, elimine Harrison Ford e empobreça mais — muito, muito mais —, encha de mendigos morando pelas ruas. Encha com gangs de pivetes armados até os dentes, assaltando e matando, imagine incêndios incontroláveis, edifícios abandonados ocupados por multidões sem casa. Por sobre tudo, espalhe um ar irrespirável, denso de monóxido de carbono, arsênico e sei lá quais outros venenos que li outro dia no jornal que o ar de São Paulo tem. Nem luz nas lâmpadas, nem água nas torneiras. E filas — muito maiores que essas de agora — para conseguir leite, carne, pão, arroz, feijão. Imagine em cada figura cruzada em cada esquina a possibilidade de um assassino. E em cada olhar mais demorado a sombra da morte, não do encontro ou da solidariedade.
Ah, heavy Sampa... Vacilo um pouco em fazer aquela linha clamar-aos-poderes, pedir a ação da prefeitura e dos políticos. Pela minha cabeça passa, intuitiva e espontaneamente, que tudo só pode ficar pior, à medida que o século e a miséria avançarem. E, se vocês elegerem Maluf para governador, juro: mudo de cidade. Acabo de vez este casamento, porque acredito ainda em certas coisas bem limpinhas que quero preservar em mim. E isso eu não vou permitir, querida Sampa: que nenhuma cidade, pessoa ou instituição acabe com essas coisas muito clarinhas e muito limpinhas (talvez por isso meio bobas, mas que se há de fazer? São elas que me mantêm vivo) resistindo aqui dentro de mim.
Antes de ficar feio, violento e sujo feito você anda, peço o desquite. Litigioso, aos berros. Vou pra não voltar: falar mal de você na mesa mais esquecida daquele canto mais escuro e cheio de moscas, no bar mais vagabundo do mais brega dos subúrbios de Asunción, Paraguai.
O Estado de S. Paulo, 20/8/1986 - In Pequenas Epifanias
Nunca na minha vida casei, mas — imagino — minha relação com São Paulo é igual a um casamento.Atualmente, em crise. Como conheço bem esse laço, sei que apesar das porradas e desacatos, das queixas e frustrações, ainda não será desta vez que resultará em separação definitiva. No máximo, posso dormir no sofá ou num hotel no fim de semana, mas acabo voltando. Na segunda-feira, volto brava e masoquistamente, como se volta sempre para um caso de amor desesperado e desesperançado, cheio de fantasias de que amanhã ou depois, quem sabe, possa ter conserto. Este, amargamente, não sei se terá.
Porque está demais, querida Sampa. E sempre penso que pode ser este agosto, mês especialmente dado a essas feiúras, sempre penso que pode ser o tempo, tão instável ultimamente, sempre penso que pode ser qualquer coisa de fora, alheia à alma da cidade — para que seja mais fácil perdoar, esquecer, deixar pra lá. Não sei se é. As calçadas e as ruas estão esburacadas demais, o céu anda sujo demais, o trânsito engarrafado demais, os táxis tão hostis a pobres pedestres como eu... Cada vez é mais difícil se mexer pelas ruas da cidade — e mais penoso, mais atordoante e feio.
Feio é a palavra mais exata. A feiúra desabou sobre São Paulo feito as pragas desabavam dos céus, biblicamente. Uma feiúra maior, mais poderosa e horrorosa que a das gentes, que a das ruas. Uma feiúra que é talvez a soma de todas as pequenas e grandes feiúras aprisionadas na cidade, e que pairam então sobre ela, sobre nós, feito uma aura. Aura escura, cinza, marrom, cheia de fuligem, de pressa, miséria, desamor e solidão. Principalmente solidão, calamidade pública.
Fico fazendo medonhas fantasias futuristas. Lá pelo ano 2ooo, pegue Blade Runner, elimine Harrison Ford e empobreça mais — muito, muito mais —, encha de mendigos morando pelas ruas. Encha com gangs de pivetes armados até os dentes, assaltando e matando, imagine incêndios incontroláveis, edifícios abandonados ocupados por multidões sem casa. Por sobre tudo, espalhe um ar irrespirável, denso de monóxido de carbono, arsênico e sei lá quais outros venenos que li outro dia no jornal que o ar de São Paulo tem. Nem luz nas lâmpadas, nem água nas torneiras. E filas — muito maiores que essas de agora — para conseguir leite, carne, pão, arroz, feijão. Imagine em cada figura cruzada em cada esquina a possibilidade de um assassino. E em cada olhar mais demorado a sombra da morte, não do encontro ou da solidariedade.
Ah, heavy Sampa... Vacilo um pouco em fazer aquela linha clamar-aos-poderes, pedir a ação da prefeitura e dos políticos. Pela minha cabeça passa, intuitiva e espontaneamente, que tudo só pode ficar pior, à medida que o século e a miséria avançarem. E, se vocês elegerem Maluf para governador, juro: mudo de cidade. Acabo de vez este casamento, porque acredito ainda em certas coisas bem limpinhas que quero preservar em mim. E isso eu não vou permitir, querida Sampa: que nenhuma cidade, pessoa ou instituição acabe com essas coisas muito clarinhas e muito limpinhas (talvez por isso meio bobas, mas que se há de fazer? São elas que me mantêm vivo) resistindo aqui dentro de mim.
Antes de ficar feio, violento e sujo feito você anda, peço o desquite. Litigioso, aos berros. Vou pra não voltar: falar mal de você na mesa mais esquecida daquele canto mais escuro e cheio de moscas, no bar mais vagabundo do mais brega dos subúrbios de Asunción, Paraguai.
O Estado de S. Paulo, 20/8/1986 - In Pequenas Epifanias
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Profético. Caio Fernando Abreu é incrivelmente magnífico, tudo dele emana ditas verdades que ainda estão por vir, vieram ou virão. Extraordinário é você Caio, com certeza, nos nossos dias de silêncio aterrorizante seu divórcio seria até mais que litigioso com São Paulo, mas sim um mau estar que vai além da angústia. Um luto que nunca se resolve. Um sem saída, preso num labirinto de formas disformes e textura espinhosa. E sem ninguém para te falar um simples OI! Mas apenas tropeços e medo, muito medo!!!
2016-06-11keyun
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