Ver o ovo é impossível; o ovo é supervisível como há sons supersônicos. Ninguém é capaz de ver o ovo.
(Clarice Lispector; O Ovo e a Galinha)
Minha vida não daria um romance. Ela é muito pequena. Mas é meio sem sentido ficar pensando em jeitos de escrever se ninguém nunca vai ler. Talvez eles me impeçam até mesmo de contar o que se passou. Mas há dias está tudo escuro e a luz da vela em cima da minha mesa não vai acordar ninguém.
Bem, acho que todas as narrativas desse tipo começam com um nasci no dia tal em tal lugar, coisa profundamente idiota, porque se o sujeito está escrevendo é mais do que evidente que nasceu. Pois eu também nasci, determinado dia, determinado lugar. O quando eu não lembro, mas onde foi aqui mesmo.
Nunca saí daqui. Nem vou sair mais, eu sei. A cada dia tudo se toma um pouco mais difícil. Por isso é quase impossível que isto aqui se tome uma história interessante. As pessoas gostam de aventura, de viagens, trepações loucas. E eu nunca tive nem fiz essas coisas. Queria escrever qualquer coisa grande, ou muito triste ou muito escura, mas qualquer coisa de muito, e que alguém, se descobrisse, publicasse e procurasse castigá-los. Mas vai sair tudo parecido comigo: desinteressante, miúdo, turvo.
Bom, então nasci. Depois que nasci, cresci e tive uma infância. Houve um tempo em que eu não sabia de nada, nem as outras crianças. Os adultos sim, todos sabiam. Mas dissimulavam tão bem que nunca nenhum de nós teve qualquer espécie de dúvida. Então, a verdade dos adultos era a minha verdade. E depois, eu era criança. Desinteressantezinha, miudinha, turvinha, diminutiva. Minha mãe era dessas gordas que fazem tricô e crochê, depois colocam toalhinhas sobre os móveis e quando chega visita pedem desculpas porque a-casa-é-de-pobre. Meu pai era desses gordos que aos domingos lêem o jornal de pijama e chinelos, bebendo cerveja. Tudo múito chato, muito igual. Não me culpem por eu não fazer uma descrição minuciosa de como eles eram e o que faziam. Se eu me estendesse mais neles, só diria mentiras, porque eram apenas e exatamente isso. E de resto, não tiveram nenhuma importância em tudo que acontece agora. Só que podiam ter me avisado.
Eu brincava com as crianças, as crianças brincavam comigo. Como todo o mundo vezenquando a gente brigava, pisava caco de vidro, roubava laranja, fugia pra tomar banho no rio. Uma vez também uma menina segurou no meu pinto. Ela era loira, gorda, tinha um tranção até a cintura. Depois ela casou com um soldado da brigada, prendeu as tranças em volta da cabeça, mas continuou gorda. Dessas gordas que à tardinha se debruçam na janela sobre uma almofada de cetim rosa. Toda vez que eu vinha do emprego passava em frente à casa dela e olhava exatamente como quem pensa você uma vez segurou no meu pinto. Lógico, ela não me cumprimentava. Acho que não é muito comum as meninas que seguram nos pintos dos meninos cumprimentarem eles depois que crescem e casam.
Quando eu tinha uns treze anos arranjei uma na morada que namorei até os dezessete. Essa nunca segurou no meu pinto, e era diferente, dessas pra casar -pelo menos naquela época eu pensava assim. Só há pouco tempo, depois que vim para cá, é que me convenci de que são todas umas vacas. E os homens, uns cães. Todos eles sabendo e fingindo que não sabem. A mãe da minha namorada ficava a noite inteira sentada com a gente na sala, só levantava para trazer doce de leite, de abóbora ou de batata-doce. A menina vezenquando tocava piano, mal para burro, diga-se de passagem. Mas eu nem ouvia direito. É que quando ela sentava um pedaço da saia levantava e apareciam umas coxonas muito brancas e grossas. Eu olhava discreto, o máximo que fazia era derrubar alguma coisa no chão pra ver melhor. Eu era um moço de respeito.
Quando tinha dezoito anos, ela casou. Com um soldado da brigada. Foi então que pensei seriamente em entrar para a brigada, já que duas mulheres da minha vida tinham casado com soldados. Parecia que eu estava destinado a sempre perdê-las para eles. Só que eu achava horrível aquela roupa, os coturnos, o casquete -tudo. Mas se eu queria casar- e naquele tempo eu queria -, tinha que ser soldado. Até que descobri uma solução melhor. Perto da minha casa morava um soldado da brigada. A minha mãe era madrinha dele, a mãe dele era viúva. Quando crianças, nós brincávamos muito, mas era um guri esquisito como o diabo. Todo delicado, cheio de não-me-toques, loirinho,com uns olhos claros, uma cor que eu nunca mais consegui lembrar depois que ele se matou. Todos os sábados de manhã ele ia visitar mamãe, levava umas frutas ou doce qualquer que a mãe dele tinha feito e ficava conversando na sala, feito moça. Logo que minha namorada casou eu nem olhava pra ele, de tanto ódio. Depois comecei a armar uma vingança. Quando ele chegava eu ficava passando na sala sem camisa, às vezes até sem calças, só de cuecas. Ele ficava todo perturbado e desviava os olhos. Eu sentava perto, encostava a perna, piscava um olho pra ele na hora de apertar a mão. Um dia convidei-o pra fazer uma pescaria comigo. Levamos uma barraca, cobertores, pinga, duas dessas camas de armar. E de noite eu comi ele. Com gosto. Como se estivesse com o pau na bunda de todos os soldados da brigada do mundo. Ele nunca mais foi lá em casa, a minha mãe reclamava, parava ele na rua para perguntar por quê. Até que ele tomou formicida e morreu.
Aí nasceu o meu irmão. Não tem nada a ver uma coisa com a outra, mas não posso fazer nada se meu irmão nasceu mesmo quando ele morreu. Nasceu direitinho e tudo, mas quando tinha uns seis meses começou a definhar, definhar, e morreu de caganeira verde. Foi bom. Senão seria mais um filho da puta.
Ou soldado da brigada, o que dá no mesmo. Mas no dia em que ele morreu, eu não pensei assim. Subi em cima da montanha e fiquei olhando o mundo. Agora eu penso que se ele não tivesse morri do eu não teria subido na montanha, e se não tivesse subido na montanha não teria visto o que vi. Mas as coisas são porque têm que ser, não adianta nada a gente querer que sejam de outro jeito.
Então ele morreu, eu subi na montanha e vi. O mundo. Mas além do mundo, uma parede branca. Eu não conhecia geografia nem astronomia nem nada, nem sabia o que havia além do horizonte, podia mesmo até ser uma parede branca. Mesmo assim, a coisa me surpreendeu. Então voltei pra casa e esqueci.
Comecei a trabalhar na prefeitura, porque a minha mãe já estava ficando velha pra fazer toalhas de crochê e tricô, e o dinheiro que dava o armazém de meu pai era uma mixaria. Eu trabalhava o dia inteiro e tinha uma namorada. Essa era viúva e muito puta. As coisas que ela fez comigo eu acho que nunca ninguém fez com ninguém, até tenho vergonha de contar. Eu não ia casar com ela nem nada, mesmo assim a minha mãe ficava triste porque queria que eu casasse com a moça magrinha da casa em frente, que depois morreu tuberculosa. A tal viúva ficou esperando um filho meu, mas eu não queria ter um filho -de qualquer maneira, esse seria mesmo um filho da puta. Aí ela foi tirar o filho e morreu.
Um domingo que saí a caminhar, me lembrei da montanha. Subi até lá e de novo vi a parede. Parecia mais clara, mais perto. Voltei pra casa e disse mãe tem uma parede branca além do horizonte. Eu já tinha uns vinte e dois anos, mas ela chamou meu pai e mandou eu repetir o que tinha dito. Eu repeti e ele me deu uma bofetada na cara. A mãe começou a chorar e pediu pra eu nunca contar a ninguém que tinha visto a parede. Mas eu estava uma fera. Chamei meu pai de filho da puta, disse que ele só me batia na cara porque era um velho e era meu pai e sabia que eu não era filho da puta ao ponto de bater num velho que ainda por cima era meu pai. Arrumei minhas coisas e saí de casa.
Fui pra uma pensão. Eu dormia com a dona e pedia dinheiro para um velho fresco que gostava de me chupar. A dona da pensão tinha uns peitos caídos e uma pele cor de terra que era mais sujeira que qualquer outra coisa. Eu ia à montanha todos os domingos, e a parede lá estava, cada vez mais próxima.
Eu não queria contar a ninguém, iam pensar que eu era louco. Então comecei a ler uns livros pra ver se a
tal parede era uma coisa natural. Mas nos livros de geografia não havia paredes brancas. Falava de terras, mares. Os de astronomia de estrelas, cometas. De paredes, nada. Os outros livros que eu lia também não. O máximo de estranheza que contava era dum sujeito que se transformou em barata -ele devia ser soldado da brigada.
Um dia eu comecei a andar em direção à parede.Ela estava muito longe. Caminhei quase um dia inteiro, até que ficou noite e tive que pedir carona a um menino carroceiro. Quando cheguei na pensão procurei o velho fresco, que já foi puxando a carteira do bolso pra me dar mais dinheiro. Mas eu disse que não era nada daquilo, e contei da parede. Aí o velho fresco começou a gritar até que veio todo o mundo da pensão. Ele apontava pra mim com ar de pavor e berrava ele viu, ele viu! Ninguém perguntou o que eu tinha visto. Só mandaram pegar as minhas coisas e dar o fora antes que chamassem a polícia. Daí eu coloquei os troços na mala e fui saindo. Quando cheguei à praça, disposto a passar a noite num banco, olhei para o horizonte e vi a parede. Estava muito perto, era muito branca.
Era domingo, a praça cheia de gente passeando, os rapazes tomando cerveja no quiosque, as mocinhas caminhando de braços dados. Subi num banco, chamei todo o mundo para mostrar a parede. Ficou cheio de gente em volta de mim, um silêncio desses horríveis, havia uma porção de caras, eu olhava uma por uma buscando um sinal qualquer de reconhecimento, mas os olhos de todos estavam enormes, as bocas pareciam costuradas, as sobrancelhas unidas.
De repente uns me seguraram enquanto os outros iam chamar os três.
Os três vieram. De branco, da mesma cor da parede: uma mulher com um chifre no meio da testa, um homem com três olhos e outro com vários braços, como um polvo. O de vários braços me segurou pelas costas enquanto o de três olhos ia abrindo caminho e a mulher me empurrava com o chifre. As gentes falavam palavrões e me cuspiam enquanto eu ia saindo. Eu caminhava devagar, via a parede atrás da igreja, dos campos, olhei para cima e também lá estava a parede, escondendo as estrelas. Antes de eles me jogarem no caminhão, olhei para trás e vi minha mãe e meu pai muito velhinhos, de braços dados. Pedi pra eles me salvarem, mas eles sacudiram com ódio a cabeça, o meu pai me mostrou o punho fechado e minha mãe escarrou no meu rosto. Os três me jogaram dentro do caminhão, a mulher de chifre dirigia, os dois outros me seguravam. Então me trouxeram para cá.
Todos os dias a mulher de chifre me traz as refeições, ao mesmo tempo em que o de vários braços me segura, o de três olhos coloca uns fios na minha cabeça e eu sinto uma coisa estranha, um tremor em todo o corpo, depois caio num sono pesado e só acordo à tarde. Saio na janela espio. E vejo a parede.
Cada dia mais próxima.
Eu queria contar toda a minha vida para se alguém lesse visse que não sou louco, que sempre foi tudo normal comigo, que eu fiz e disse as coisas que todo o mundo faz e diz, e que a coisa mais estranha da minha vida foi só aquela menina que segurou no meu pinto e aquela outra que eu namorei terem casado com soldados da brigada. Que eu via a parede e que todos os outros também viam, tenho certeza, só que eles não queriam ver, não sei por que, e prendiam quem via. Ontem chamei o de três olh~s, que parece o mais simpático, mostrei a parede, perguntei se ele não via. Falei devagar, sem me exaltar nem nada. Aí ele ficou quieto e baixou a cabeça, acho que sentiu vergonha de fazer o que está fazendo, porque ele também vê. E ela está cada vez mais perto.
Só ontem cheguei à conclusão de que se trata de um enorme ovo. Que estamos todos dentro dele. Mas é um ovo que diminui cada vez mais, cada vez mais, nós vamos ser todos esmagados por ele. Não sei por que os homens não se armam de paus e pedras para furar a parede. Seria muito fácil, a casca de um ovo é tão frágil.
Ele já está meio azulado de tão próximo, não se vê mais as estrelas, nem a lua, nem o sol. A escuridão em que passamos o dia todo é meio azulada também. O silêncio é imenso, como se houvesse um grande vácuo aqui dentro. A cada dia o movimento do ovo fica mais rápido. Ontem, já havia ultrapassado o muro, estava a uns cem metros da minha janela. Amanhã vai estar do lado da janela, talvez já esteja, não ouço mais os passos da mulher de chifre caminhando pelos corredores com as chaves penduradas na cintura e -agora lembro -o de três olhos e o de muitos braços não me deram choques hoje. Acho que eles estão fora do ovo, e só eu dentro. Talvez cada um tenha o seu próprio ovo. E este é o meu.
Olho para o meu corpo. Será que ele cabe dentro de um ovo? Será que não vai doer?
Eu não sei. Tenho tanto medo. Estou esperando, cansei de escrever, a vela está quase apagando. Vou deitar. Estou ouvindo o rumor do ovo se aproximando cada vez mais. É um barulho leve, leve. Quase como um suspiro de gente cansada. Está muito perto. Tão perto que ninguém vai me ouvir se eu gritar.
(Clarice Lispector; O Ovo e a Galinha)
Minha vida não daria um romance. Ela é muito pequena. Mas é meio sem sentido ficar pensando em jeitos de escrever se ninguém nunca vai ler. Talvez eles me impeçam até mesmo de contar o que se passou. Mas há dias está tudo escuro e a luz da vela em cima da minha mesa não vai acordar ninguém.
Bem, acho que todas as narrativas desse tipo começam com um nasci no dia tal em tal lugar, coisa profundamente idiota, porque se o sujeito está escrevendo é mais do que evidente que nasceu. Pois eu também nasci, determinado dia, determinado lugar. O quando eu não lembro, mas onde foi aqui mesmo.
Nunca saí daqui. Nem vou sair mais, eu sei. A cada dia tudo se toma um pouco mais difícil. Por isso é quase impossível que isto aqui se tome uma história interessante. As pessoas gostam de aventura, de viagens, trepações loucas. E eu nunca tive nem fiz essas coisas. Queria escrever qualquer coisa grande, ou muito triste ou muito escura, mas qualquer coisa de muito, e que alguém, se descobrisse, publicasse e procurasse castigá-los. Mas vai sair tudo parecido comigo: desinteressante, miúdo, turvo.
Bom, então nasci. Depois que nasci, cresci e tive uma infância. Houve um tempo em que eu não sabia de nada, nem as outras crianças. Os adultos sim, todos sabiam. Mas dissimulavam tão bem que nunca nenhum de nós teve qualquer espécie de dúvida. Então, a verdade dos adultos era a minha verdade. E depois, eu era criança. Desinteressantezinha, miudinha, turvinha, diminutiva. Minha mãe era dessas gordas que fazem tricô e crochê, depois colocam toalhinhas sobre os móveis e quando chega visita pedem desculpas porque a-casa-é-de-pobre. Meu pai era desses gordos que aos domingos lêem o jornal de pijama e chinelos, bebendo cerveja. Tudo múito chato, muito igual. Não me culpem por eu não fazer uma descrição minuciosa de como eles eram e o que faziam. Se eu me estendesse mais neles, só diria mentiras, porque eram apenas e exatamente isso. E de resto, não tiveram nenhuma importância em tudo que acontece agora. Só que podiam ter me avisado.
Eu brincava com as crianças, as crianças brincavam comigo. Como todo o mundo vezenquando a gente brigava, pisava caco de vidro, roubava laranja, fugia pra tomar banho no rio. Uma vez também uma menina segurou no meu pinto. Ela era loira, gorda, tinha um tranção até a cintura. Depois ela casou com um soldado da brigada, prendeu as tranças em volta da cabeça, mas continuou gorda. Dessas gordas que à tardinha se debruçam na janela sobre uma almofada de cetim rosa. Toda vez que eu vinha do emprego passava em frente à casa dela e olhava exatamente como quem pensa você uma vez segurou no meu pinto. Lógico, ela não me cumprimentava. Acho que não é muito comum as meninas que seguram nos pintos dos meninos cumprimentarem eles depois que crescem e casam.
Quando eu tinha uns treze anos arranjei uma na morada que namorei até os dezessete. Essa nunca segurou no meu pinto, e era diferente, dessas pra casar -pelo menos naquela época eu pensava assim. Só há pouco tempo, depois que vim para cá, é que me convenci de que são todas umas vacas. E os homens, uns cães. Todos eles sabendo e fingindo que não sabem. A mãe da minha namorada ficava a noite inteira sentada com a gente na sala, só levantava para trazer doce de leite, de abóbora ou de batata-doce. A menina vezenquando tocava piano, mal para burro, diga-se de passagem. Mas eu nem ouvia direito. É que quando ela sentava um pedaço da saia levantava e apareciam umas coxonas muito brancas e grossas. Eu olhava discreto, o máximo que fazia era derrubar alguma coisa no chão pra ver melhor. Eu era um moço de respeito.
Quando tinha dezoito anos, ela casou. Com um soldado da brigada. Foi então que pensei seriamente em entrar para a brigada, já que duas mulheres da minha vida tinham casado com soldados. Parecia que eu estava destinado a sempre perdê-las para eles. Só que eu achava horrível aquela roupa, os coturnos, o casquete -tudo. Mas se eu queria casar- e naquele tempo eu queria -, tinha que ser soldado. Até que descobri uma solução melhor. Perto da minha casa morava um soldado da brigada. A minha mãe era madrinha dele, a mãe dele era viúva. Quando crianças, nós brincávamos muito, mas era um guri esquisito como o diabo. Todo delicado, cheio de não-me-toques, loirinho,com uns olhos claros, uma cor que eu nunca mais consegui lembrar depois que ele se matou. Todos os sábados de manhã ele ia visitar mamãe, levava umas frutas ou doce qualquer que a mãe dele tinha feito e ficava conversando na sala, feito moça. Logo que minha namorada casou eu nem olhava pra ele, de tanto ódio. Depois comecei a armar uma vingança. Quando ele chegava eu ficava passando na sala sem camisa, às vezes até sem calças, só de cuecas. Ele ficava todo perturbado e desviava os olhos. Eu sentava perto, encostava a perna, piscava um olho pra ele na hora de apertar a mão. Um dia convidei-o pra fazer uma pescaria comigo. Levamos uma barraca, cobertores, pinga, duas dessas camas de armar. E de noite eu comi ele. Com gosto. Como se estivesse com o pau na bunda de todos os soldados da brigada do mundo. Ele nunca mais foi lá em casa, a minha mãe reclamava, parava ele na rua para perguntar por quê. Até que ele tomou formicida e morreu.
Aí nasceu o meu irmão. Não tem nada a ver uma coisa com a outra, mas não posso fazer nada se meu irmão nasceu mesmo quando ele morreu. Nasceu direitinho e tudo, mas quando tinha uns seis meses começou a definhar, definhar, e morreu de caganeira verde. Foi bom. Senão seria mais um filho da puta.
Ou soldado da brigada, o que dá no mesmo. Mas no dia em que ele morreu, eu não pensei assim. Subi em cima da montanha e fiquei olhando o mundo. Agora eu penso que se ele não tivesse morri do eu não teria subido na montanha, e se não tivesse subido na montanha não teria visto o que vi. Mas as coisas são porque têm que ser, não adianta nada a gente querer que sejam de outro jeito.
Então ele morreu, eu subi na montanha e vi. O mundo. Mas além do mundo, uma parede branca. Eu não conhecia geografia nem astronomia nem nada, nem sabia o que havia além do horizonte, podia mesmo até ser uma parede branca. Mesmo assim, a coisa me surpreendeu. Então voltei pra casa e esqueci.
Comecei a trabalhar na prefeitura, porque a minha mãe já estava ficando velha pra fazer toalhas de crochê e tricô, e o dinheiro que dava o armazém de meu pai era uma mixaria. Eu trabalhava o dia inteiro e tinha uma namorada. Essa era viúva e muito puta. As coisas que ela fez comigo eu acho que nunca ninguém fez com ninguém, até tenho vergonha de contar. Eu não ia casar com ela nem nada, mesmo assim a minha mãe ficava triste porque queria que eu casasse com a moça magrinha da casa em frente, que depois morreu tuberculosa. A tal viúva ficou esperando um filho meu, mas eu não queria ter um filho -de qualquer maneira, esse seria mesmo um filho da puta. Aí ela foi tirar o filho e morreu.
Um domingo que saí a caminhar, me lembrei da montanha. Subi até lá e de novo vi a parede. Parecia mais clara, mais perto. Voltei pra casa e disse mãe tem uma parede branca além do horizonte. Eu já tinha uns vinte e dois anos, mas ela chamou meu pai e mandou eu repetir o que tinha dito. Eu repeti e ele me deu uma bofetada na cara. A mãe começou a chorar e pediu pra eu nunca contar a ninguém que tinha visto a parede. Mas eu estava uma fera. Chamei meu pai de filho da puta, disse que ele só me batia na cara porque era um velho e era meu pai e sabia que eu não era filho da puta ao ponto de bater num velho que ainda por cima era meu pai. Arrumei minhas coisas e saí de casa.
Fui pra uma pensão. Eu dormia com a dona e pedia dinheiro para um velho fresco que gostava de me chupar. A dona da pensão tinha uns peitos caídos e uma pele cor de terra que era mais sujeira que qualquer outra coisa. Eu ia à montanha todos os domingos, e a parede lá estava, cada vez mais próxima.
Eu não queria contar a ninguém, iam pensar que eu era louco. Então comecei a ler uns livros pra ver se a
tal parede era uma coisa natural. Mas nos livros de geografia não havia paredes brancas. Falava de terras, mares. Os de astronomia de estrelas, cometas. De paredes, nada. Os outros livros que eu lia também não. O máximo de estranheza que contava era dum sujeito que se transformou em barata -ele devia ser soldado da brigada.
Um dia eu comecei a andar em direção à parede.Ela estava muito longe. Caminhei quase um dia inteiro, até que ficou noite e tive que pedir carona a um menino carroceiro. Quando cheguei na pensão procurei o velho fresco, que já foi puxando a carteira do bolso pra me dar mais dinheiro. Mas eu disse que não era nada daquilo, e contei da parede. Aí o velho fresco começou a gritar até que veio todo o mundo da pensão. Ele apontava pra mim com ar de pavor e berrava ele viu, ele viu! Ninguém perguntou o que eu tinha visto. Só mandaram pegar as minhas coisas e dar o fora antes que chamassem a polícia. Daí eu coloquei os troços na mala e fui saindo. Quando cheguei à praça, disposto a passar a noite num banco, olhei para o horizonte e vi a parede. Estava muito perto, era muito branca.
Era domingo, a praça cheia de gente passeando, os rapazes tomando cerveja no quiosque, as mocinhas caminhando de braços dados. Subi num banco, chamei todo o mundo para mostrar a parede. Ficou cheio de gente em volta de mim, um silêncio desses horríveis, havia uma porção de caras, eu olhava uma por uma buscando um sinal qualquer de reconhecimento, mas os olhos de todos estavam enormes, as bocas pareciam costuradas, as sobrancelhas unidas.
De repente uns me seguraram enquanto os outros iam chamar os três.
Os três vieram. De branco, da mesma cor da parede: uma mulher com um chifre no meio da testa, um homem com três olhos e outro com vários braços, como um polvo. O de vários braços me segurou pelas costas enquanto o de três olhos ia abrindo caminho e a mulher me empurrava com o chifre. As gentes falavam palavrões e me cuspiam enquanto eu ia saindo. Eu caminhava devagar, via a parede atrás da igreja, dos campos, olhei para cima e também lá estava a parede, escondendo as estrelas. Antes de eles me jogarem no caminhão, olhei para trás e vi minha mãe e meu pai muito velhinhos, de braços dados. Pedi pra eles me salvarem, mas eles sacudiram com ódio a cabeça, o meu pai me mostrou o punho fechado e minha mãe escarrou no meu rosto. Os três me jogaram dentro do caminhão, a mulher de chifre dirigia, os dois outros me seguravam. Então me trouxeram para cá.
Todos os dias a mulher de chifre me traz as refeições, ao mesmo tempo em que o de vários braços me segura, o de três olhos coloca uns fios na minha cabeça e eu sinto uma coisa estranha, um tremor em todo o corpo, depois caio num sono pesado e só acordo à tarde. Saio na janela espio. E vejo a parede.
Cada dia mais próxima.
Eu queria contar toda a minha vida para se alguém lesse visse que não sou louco, que sempre foi tudo normal comigo, que eu fiz e disse as coisas que todo o mundo faz e diz, e que a coisa mais estranha da minha vida foi só aquela menina que segurou no meu pinto e aquela outra que eu namorei terem casado com soldados da brigada. Que eu via a parede e que todos os outros também viam, tenho certeza, só que eles não queriam ver, não sei por que, e prendiam quem via. Ontem chamei o de três olh~s, que parece o mais simpático, mostrei a parede, perguntei se ele não via. Falei devagar, sem me exaltar nem nada. Aí ele ficou quieto e baixou a cabeça, acho que sentiu vergonha de fazer o que está fazendo, porque ele também vê. E ela está cada vez mais perto.
Só ontem cheguei à conclusão de que se trata de um enorme ovo. Que estamos todos dentro dele. Mas é um ovo que diminui cada vez mais, cada vez mais, nós vamos ser todos esmagados por ele. Não sei por que os homens não se armam de paus e pedras para furar a parede. Seria muito fácil, a casca de um ovo é tão frágil.
Ele já está meio azulado de tão próximo, não se vê mais as estrelas, nem a lua, nem o sol. A escuridão em que passamos o dia todo é meio azulada também. O silêncio é imenso, como se houvesse um grande vácuo aqui dentro. A cada dia o movimento do ovo fica mais rápido. Ontem, já havia ultrapassado o muro, estava a uns cem metros da minha janela. Amanhã vai estar do lado da janela, talvez já esteja, não ouço mais os passos da mulher de chifre caminhando pelos corredores com as chaves penduradas na cintura e -agora lembro -o de três olhos e o de muitos braços não me deram choques hoje. Acho que eles estão fora do ovo, e só eu dentro. Talvez cada um tenha o seu próprio ovo. E este é o meu.
Olho para o meu corpo. Será que ele cabe dentro de um ovo? Será que não vai doer?
Eu não sei. Tenho tanto medo. Estou esperando, cansei de escrever, a vela está quase apagando. Vou deitar. Estou ouvindo o rumor do ovo se aproximando cada vez mais. É um barulho leve, leve. Quase como um suspiro de gente cansada. Está muito perto. Tão perto que ninguém vai me ouvir se eu gritar.
Marcadores: O Inventario do Irremediavel
Surpreendente alegoria; maravilhosamente redigido, o conto tem citações a kafka, bergman, chaplin. As angustias do arrabalde num processo de militarização estão no centro da narrativa. Dispensável o epígrafe de clarice lispector. (parece que caio precisa mostrar que tem leitura). Finalmente, me agradaria mais o título "A parede branca", reservando a surpresa para o fim do relato.
Hoje vi a interpretação desse texto pelo Silverio e amei. O cara é fera!
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Eu sei que isso parece estranho, mas eu não entendo o sentido do texto, você poderia me explicar?
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