Oracy:
Tive uma grande emoção, há pouco, ao abrir o pacote com o seu livro. Você não sabe, mas a sua figura foi uma das mais importantes durante a infância e uma parte da adolescência que passei aí em Santiago. Com o seu livro nas mãos, me voltou imediatamente na memória a visão que eu tinha da casa de vocês da janela de meu quarto. Uma casinha de madeira quase escondida atrás de muitas plantas, com um coqueiro de onde surgia a lua, quando estava cheia.
No meio da tensão e da corrida que é sempre esta cidade, foi qualquer coisa como um sopro de ar fresco, um gole dágua, qualquer coisa assim. Não é saudade, porque para mim a vida é dinâmica e nunca lamento o que se perdeu - mas é sem dúvida uma sensação muito clara de que a vida escorre talvez rápida demais e, a cada momento, tudo se perde. Nunca nos falamos, praticamente, nunca nos olhamos. Ficou só aquela vibração de silêncio, muito forte.
Numa cidadezinha perdida, dois malditos que se reconhecem nem que seja necessário sequer falar sobre isso. Uma cumplicidade muda, e tão secreta que, penso, talvez você nunca tenha percebido. Na minha memória - já tão congestionada - e no meu coração - tão cheio de marcas e poços - você ocupa um dos lugares mais bonitos. O mesmo que ocupa aquele branco do Quarto RC, no fim da rua. Ou os circos que acampavam na frente da casa de Dona Ernesta. Ou o campinho na frente de tua casa, onde eu deitava olhando as nuvens ou jogava futebol (pessimamente).
Neste momento, estou todo arrepiado e com muita vontade de chorar. É como se ouvisse outra vez, escondido em meu quarto, com o cheiro forte de um jasmineiro ali embaixo, os discos de música erudita que você ouvia muito alto. Até hoje penso que seria Beethoven ou quem sabe Wagner. Era algo muito vibrante. Foi a primeira vez que ouvi música erudita. Foi a primeira vez que eu soube que existiam poetas. Tudo isso me toma agora de novo e é tão mágico que quero agradecer a você a lembrança - deus, tão remota e ao mesmo tempo tão dilaceradamente viva.
Sobre teu livro: vou lê-lo com muito carinho, hoje à noite. E te prometo que, em nosso número de fevereiro, sairá uma ficha registrando a publicação e, se possível, também uma nota nessa secção que chama-se "De Orelha". Vou tentar encaminhá-lo a alguém para que faça uma apreciação. Temos pouco espaço, e menos ainda para poesia. Faço o possível, mas é uma luta diária que, freqüentemente, perco.
Não sabia que José Santiago Naud era também nosso conterrâneo.
Vou tentar localizá-lo para você.
Outra coisa. Mande seu livro para:
-Marília Pacheco Fiorillo - revista Veja
-Caio Túlio Costa - jornal Folha de São Paulo
-Geraldo Galvão Ferraz - revista Istoé
-Mario da Silva Brito - revista Istoé
Agora, sendo franco: dificilmente eles darão ao seu trabalho a atenção merecida. A grande imprensa e a grande cidade são muito viciadas. Há uma politicagem terrível. Só se escreve praticamente sobre os livros de grandes editoras, que são também anunciantes.
Tudo muito amargo e triste. Mas falarei de você e do seu trabalho para as pessoas. Se quiser enviar os livros aos meus cuidados, comprometo-me a encaminhá-los.
Quanto a mim, vivo sozinho num pequeno sobrado, numa vila, em um bairro calmo. Trabalho aqui o dia inteiro, à noite leio, escrevo, ouço música (principalmente Erik Satie, Chopin e hoje comprei A Pastoral de Beethoven). Vivi dois anos no exterior(Suécia e Inglaterra) e este ano talvez viaje de novo. Mais um livro meu deve sair em abril, chama-se Morangos Mofados. Te envio um. Vivo bastante só, e viajo muito. Estou um bom astrólogo, estudo já há oito anos(tenho Sol em Virgo, ascendente Libra, Lua em Capricórnio), e há dez anos curto o Tarot, também o I-Ching e todo o esoterismo, incluindo candomblé(sou Oxalá de frente, com Oxum e Ogum) - umbanda não gosto, nem kardecismo, acho baixo-astral. Lembro uma vez que você leu o Tarot para mim e Romanita Martins, agora Romanita Desconzi, a artista plástica - e previu muito sucesso.
Romanita, aliás, adora você, e sempre que nos encontramos acabamos falando no seu nome.
Gostaria que você me falasse da sua vida aí, dos seus sonhos, da sua - imagino - grande solidão. Estou enviando alguns exemplares aqui do "meu jornal" e espero que esta carta, que me está saindo longa demais, sirva como reinício da nossa amizade, tão profunda e tão antiga. Vai meu endereço particular e o convite, verdadeiro, para uma visita, quando você quiser.
Receba todo o meu carinho e as minhas melhores vibrações.
Seu amigo
Caio Fernando Abreu
carta extraída do livro "O que importa em Oracy", organizado por Fátima Friedriczewski,
Tive uma grande emoção, há pouco, ao abrir o pacote com o seu livro. Você não sabe, mas a sua figura foi uma das mais importantes durante a infância e uma parte da adolescência que passei aí em Santiago. Com o seu livro nas mãos, me voltou imediatamente na memória a visão que eu tinha da casa de vocês da janela de meu quarto. Uma casinha de madeira quase escondida atrás de muitas plantas, com um coqueiro de onde surgia a lua, quando estava cheia.
No meio da tensão e da corrida que é sempre esta cidade, foi qualquer coisa como um sopro de ar fresco, um gole dágua, qualquer coisa assim. Não é saudade, porque para mim a vida é dinâmica e nunca lamento o que se perdeu - mas é sem dúvida uma sensação muito clara de que a vida escorre talvez rápida demais e, a cada momento, tudo se perde. Nunca nos falamos, praticamente, nunca nos olhamos. Ficou só aquela vibração de silêncio, muito forte.
Numa cidadezinha perdida, dois malditos que se reconhecem nem que seja necessário sequer falar sobre isso. Uma cumplicidade muda, e tão secreta que, penso, talvez você nunca tenha percebido. Na minha memória - já tão congestionada - e no meu coração - tão cheio de marcas e poços - você ocupa um dos lugares mais bonitos. O mesmo que ocupa aquele branco do Quarto RC, no fim da rua. Ou os circos que acampavam na frente da casa de Dona Ernesta. Ou o campinho na frente de tua casa, onde eu deitava olhando as nuvens ou jogava futebol (pessimamente).
Neste momento, estou todo arrepiado e com muita vontade de chorar. É como se ouvisse outra vez, escondido em meu quarto, com o cheiro forte de um jasmineiro ali embaixo, os discos de música erudita que você ouvia muito alto. Até hoje penso que seria Beethoven ou quem sabe Wagner. Era algo muito vibrante. Foi a primeira vez que ouvi música erudita. Foi a primeira vez que eu soube que existiam poetas. Tudo isso me toma agora de novo e é tão mágico que quero agradecer a você a lembrança - deus, tão remota e ao mesmo tempo tão dilaceradamente viva.
Sobre teu livro: vou lê-lo com muito carinho, hoje à noite. E te prometo que, em nosso número de fevereiro, sairá uma ficha registrando a publicação e, se possível, também uma nota nessa secção que chama-se "De Orelha". Vou tentar encaminhá-lo a alguém para que faça uma apreciação. Temos pouco espaço, e menos ainda para poesia. Faço o possível, mas é uma luta diária que, freqüentemente, perco.
Não sabia que José Santiago Naud era também nosso conterrâneo.
Vou tentar localizá-lo para você.
Outra coisa. Mande seu livro para:
-Marília Pacheco Fiorillo - revista Veja
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-Geraldo Galvão Ferraz - revista Istoé
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Tudo muito amargo e triste. Mas falarei de você e do seu trabalho para as pessoas. Se quiser enviar os livros aos meus cuidados, comprometo-me a encaminhá-los.
Quanto a mim, vivo sozinho num pequeno sobrado, numa vila, em um bairro calmo. Trabalho aqui o dia inteiro, à noite leio, escrevo, ouço música (principalmente Erik Satie, Chopin e hoje comprei A Pastoral de Beethoven). Vivi dois anos no exterior(Suécia e Inglaterra) e este ano talvez viaje de novo. Mais um livro meu deve sair em abril, chama-se Morangos Mofados. Te envio um. Vivo bastante só, e viajo muito. Estou um bom astrólogo, estudo já há oito anos(tenho Sol em Virgo, ascendente Libra, Lua em Capricórnio), e há dez anos curto o Tarot, também o I-Ching e todo o esoterismo, incluindo candomblé(sou Oxalá de frente, com Oxum e Ogum) - umbanda não gosto, nem kardecismo, acho baixo-astral. Lembro uma vez que você leu o Tarot para mim e Romanita Martins, agora Romanita Desconzi, a artista plástica - e previu muito sucesso.
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