Naquele verão, quando a Mãe avisou que o primo Alex vinha passar o fim de semana conosco na casa da praia alugada, eu não gostei nem um pouco. Não por causa dele, que eu mal lembrava a cara direito, podia até ser qualquer outro primo, tio, avô. Mais por minha causa mesmo, que tinha começado a crescer para todos os lados, de um jeito assim meio louco. Pernas e braços demais, pêlos nos lugares errados, uma voz que desafinava igual de pato, eu queria me esconder de todos. Só tardezinha saía de casa, na hora que as empregadas domésticas - as dosas, o Pai dizia - estavam voltando da praia. Então caminhava quilômetros na beira do mar, me rolava na areia, vez enquando chorava e repetia: pequeno monstro, pequeno monstro, ninguém te quer. Não suportava ninguém por perto. Uma Mãe insistindo o tempo inteiro pra tu ires à praia na mesma hora que todo mundo normal vai e um Pai que te olha como se tu fosses a criatura mais nojenta do mundo e só pensa em te botar no quartel pra aprender o que é bom - isso já é dose suficiente para um verão. Como se não bastasse a minha desgraça, agora ia ter que dividir meu quarto com o tal de primo Alex. E não queria que ninguém ouvisse minha voz de pato grasnando, visse meus braços compridos demais, minhas pernas de avestruz, meus pêlos todos errados.
Fiz cara feia, a Mãe nem ligou. Falou que ele vinha e pronto, que tinha estudado muito o ano todo, passado no vestibular não sei de que e precisava descansar e tal e tudo e que ela devia aquela obrigação à tia Dulcinha coitada tão só e que além do mais o Alex era um bom rapaz tão esforçado o pobre. Isso eu odiava mais que tudo: aqueles bons rapazes tão esforçados e de óculos sempre saindo com sacolas de lona na hora do almoço para comprar cervejas e coca-colas e cigarros pra todo mundo, ajudando a lavar pratos e jogando aquelas chatíssimas canastras sobre o cobertor verde na ponta da mesa. Empurrei a compota de pêssego argentino, a calda virou na toalha, armei a tromba. Esse era meu jeito de dizer: não careço nem ver a cara dele para ter certeza que é um coió.
Quase dormindo, mais tarde, naquela mesma noite que a Mãe avisou que o primo Alex vinha, eu tentava lembrar a cara dele e não conseguia. Na verdade, não conseguia lembrar a cara de ninguém desde uns dois anos atrás, desde que eu tinha começado a ficar meio monstro e os parentes se cutucavam quando eu passava, davam risadinhas, falavam coisas baixinho, olhando disfarçado pra mim. Eu tinha horros deles, que achavam que sabiam tudo sobre mim. Sabiam nada, sabiam bosta do meu ódio enorme por um por um de cada um deles, aquelas barrigonas, aqueles peitos suados, pés cheios de calos. Eu nunca ia ser igual a eles - pequeno monstro, seria sempre diferente de todos. Era assim mesmo que ia me comportar com o primo Alex, decidi: pequeno monstro cada vez mais monstro, até ele não agüentar mais um minuto e dar o fora pra sempre. Fiquei olhando com força pro colchão sem lençol da cama ao lado onde ele ia dormir, até encher o colchão com todo o meu ódio, pra ele se sentir mal e ir embora no mesmo dia.
No dia que era o dia que ele vinha - e eu sabia porque a Mãe não falava outra coisa, arrumou lençóis limpos na cama ao lado, mandou eu empilhar os gibis, guardar no guarda-roupa a roupa da guarda da cadeira, saí de casa um pouco mais cedo e fiquei caminhando séculos na praia. Eu gostava de ir até aquele farol no caminho da Cidreira, onde tinha umas dunas e era bom ficar deitado na areia, olhando o mar sem fim. Vezenquando passava um navio, eu perguntava pra onde vai? pra onde vai? Bem besta mesmo, não pensava o lugar, só perguntava assim: pra onde vai, sem pensar o nome nem nada. Depois pensava também se eu saísse agora reto daqui e entrasse no mar e que nem Jesus Cristo fosse capaz de pisar sobre as águas e fosse andando sempre em frente sem parar - ia dar onde? Achava que na África, na Índia, sei lá. Em algum lugar, ia dar. Longe dali, de Tramandaí. Aí começou a sair do mar uma lua cheia bem redonda, e eu primeiro fiquei tentando ver nela São Jorge e o dragão, depois lembrei que era besteira, coisa de criança, e pensei crateras, desertos, quase via, Mar da Serenidade. Ou era Fertilidade? Fui olhando as coisas, me atrolhando por ali, até que de repente tinha anoitecido total, e eu tinha que voltar pra merda daquela casa com aquele Pai e aquela Mãe. Ainda por cima, fui lembrando no caminho, cada vez mais puto, e por causa disso caminhava mais devagar ainda e ficava cada vez mais noite, agora com aquele tal de primo Alex lá, enfiado no meu quarto. Passaram uns bagaceiras com violão e uma garrafa de cinzano, abraçados, cantando uma música de parque. Desviei deles, fui enfiando os pés na água morna do mar, de cabeça baixa pra não mexerem comigo. Vezenquando olhava pra trás e só ouvia aquelas vozes bem de bagaceiras mesmo, cada vez mais longe, cantando a noite tá tão escura/ a lua fez feriado/ estou sofrendo a tortura/ de não sentir-te ao meu lado. Bestas, pensei, porque a lua não tinha feito feriado coisa nenhuma, feriado era lua nova, não aquela luona enorme, redonda, amarela, bem ali em cima do mar e da cabeça da gente. Quando eu já tinha caminhado um pouco em direção ao norte, e os bagaceiras tinham sumido, olhando por cima do ombro direito pensei quem sabe agora, saindo reto aqui eu dou justo ali, no sulzinho da África, cabo das Tormentas. Ou era o da Boa Esperança? Aí de repente despencou uma baita estrela cadente, quase do tamanho da lua, tão grande que cheguei a parar pra ouvir o tchuááááááááááááááá da estrela caindo dentro do mar. Não aconteceu nada, então falei bem alto, imitando aquela vozinha de taquara rachada da dona Irineide, professora de Geografia: bó-li-dos, isso que o populacho chama de estrelas cadentes na verdade são bó-li-dos. Me senti muito culto e tudo, mas meio sem graça, daí lembrei que podia fazer um pedido, ou três, não sei bem, a gente podia. Então peguei e fiz. Que já que o primo Alex tinha mesmo que estar lá naquela merda de casa - e era impossível pedir que não viesse, porque já tinha vindo - que pelo menos ele fosse legal e não me enchesse o saco.
Bem devagarinho, fui me distraindo com essas coisas pelo caminho. Daí me atrasei tanto que, quando cheguei em casa, estava armado um começo de alvoroço. O Pai já estava de chinelo e pijama, me chamou de desgranido e disse que ia me proibir de ir à praia a essa hora de louco e eu respondi que se me proibisse de ir nessa hora eu ia ficar no quarto trancado e não ia em hora nenhuma nunca mais, e a Mãe falou baixo, mas eu escutei, é a idade não liga, não implica com o guri, criatura, e me deu uma janta meio fria com milho duro e eu cheguei a abrir a boca pra falar que não era cavalo quando ela disse que o primo Alex já tinha chegado e estava dormindo, podre da viagem. Nem precisava dizer nada: sentado na ponta da mesa, eu já tinha visto aquela campeira xadrez pendurada numa guarda de cadeira. Mesmo que não pudesse ver nada, farejava um cheiro no ar. Nem bom nem mau, cheiro de gente estranha recém-chegada de viagem. Polvadeira, bodum, sei lá. Quase não consegui comer, de tanto ódio. O Pai foi dormir azedo, falando que no quartel eu ia ver. A Mãe ficou mexendo no rádio, mas só dava descarga no meio dumas rádios castelhanas, êle-êrre-uno-êle-êrre-dôs. Nada de Elvis, que eu gostava e ela fingia que não, só Gardel, que ela gostava e eu tinha certeza que não. Falei que ia dormir também, a Mãe botou a mão no meu ombro e muito séria pediu pra mim prometer que ia ser educado com o primo Alex coitado que o pai dele tinha morrido e a tia Dulcinha passava muito trabalho e coisa e tal. Até prometi, não custava nada. Mas fiquei torcendo os dedos, rezando prela não repetir que ele era um bom rapaz tão esforçado o pobre, senão meu ódio voltava. Ela acabou falando, bem na hora que o Gardel cantava sabía que nel mundo no cabía toda la humilde alegría de mi pobre corazón, e eu fui dormir com muito ódio. Dela, do Pai, do primo Alex, da tia Dulcinha, dos bagaceiras da praia, do Gardel, de tudo.
Tirei a areia dos pés no bidê, lavei a cara e fiquei parado na frente do espelho. Pequeno monstro, falei. Mais de uma vez, três, doze, vinte, eu repetia sempre, me olhando no espelho antes de dormir: pequeno, pequeno monstro, ninguém, ninguém te quer. Mijei, escovei os dentes, gargarejei. Me deu vontade de vomitar, sempre dava. Mas não vomitei, nunca vomitava. Tive vontade de me encolher ali mesmo, embaixo da pia, feito cusco escorraçado. Meu quarto agora não era mais só meu, não podia ficar lendo até tarde nem nada, luz acesa até altas: a droga do primo Alex estava lá, e eu tinha prometido ser bem educado com ele, coitado.
Aquele quarto que agora não era mais meu, mas meu e do tal de primo Alex, ficava na parte de trás da casa de tábuas, numa espécie de puxado, ao lado de um banheiro que antes dele chegar também era só meu, mas agora era meu e dele, que nojo. Apaguei a luz, parei na porta do banheiro e fiquei remanchando um pouco por ali, parado no corredor escuro, antes de entrar. Eu tinha que estar preparado para enfrentar aquele tapume de óculos, que certamente - eu conhecia bem essa gente - tinha deixado seus óculos sebentos na minha mesinha-de-cabeceira, e aqueles vulcabrás nojentos com umas meias duras no garrão saindo pra fora e um fedor de chulé no ar, escarrapachado na cama, roncando e peidando feito um porco. Que ódio, que ódio eu sentia parado naquele biricuete escuro entre o banheiro e o quarto que não eram mais meus.
Abri a porta devagarinho. A janela-guilhotina estava levantada, a luz apagada. Não tinha nenhum fedor no ar. A luz da lua entrando pela janela era tão clara que eu fui me guiando pelo escuro até a minha cama, sem precisar estender a mão nem nada. Sentei, levei a mão até a mesinha-de-cabeceira e apalpei: não tinha nenhum óculos em cima dela. Só meu livro Tarzan, o Invencível da coleção Terramarear. Pelo menos isso, pensei: a trolha não usa óculos. Fiquei de cueca, camiseta, me deitei. Não tinha nenhum barulho de ronco, nenhum cheiro de peido no ar, só aquele perfume meio enjoativo do jasmineiro ali no pátio ao lado. Os meus olhos foram se acostumando mais no escuro, e eu comecei a olhar para a cama onde o primo Alex estava deitado, do outro lado do quarto.
A luz da lua batia direto nele. Ele estava deitado por cima do lençol, completamente pelado. Meus olhos se acostumavam cada vez mais, e eu podia ver o primo Alex virado sobre o lado direito, as duas mãos juntas fechadas no meio das pernas meio dobradas. Ele parecia muito grande, tinha que encolher um pouco as pernas, senão os pés batiam lá na guarda do fim da cama-patente. Ele tinha muitos pêlos no corpo, a luz da lua batendo assim neles fazia brilhar as pontas dos pêlos. Ele tinha a cara virada de lado, afundada no travesseiro, eu não podia ver. Via aqueles pêlos brilhando - uns pêlos nos lugares certos, não errados, que nem os meus - descendo para baixo do pescoço, pelo peito, pela barriga, escondidos e mais cerrados naquele lugar onde ele enfiava as mãos, depois espalhados pelas pernas, até os pés. Os pés encolhidos do primo Alex eram muito brancos, o pai dele tinha morrido, ele tinha estudado o ano inteiro e passado no vestibular não sei de quê, lembrei. E não fazia barulho nenhum quando dormia, coitado.
Fiquei deitado na minha cama, olhando para ele. Depois de um tempo, comecei a ouvir a respiração dele e fui prestando atenção na minha própria respiração, até conseguir que ela ficasse igual à dele. Eu respirava, ele respirava. Eu cruzei as mãos no peito e encostei a cabeça na guarda da cama para poder olhar melhor. Ele tinha cruzado as mãos no meio das pernas decerto para dormir melhor, o pobre, podre da viagem. Fiquei olhando pra ele, respirando devagar, no mesmo ritmo. Bem devagar, para não acordá-lo. Não sei por quê, mas de repente todo o meu ódio passou. Ali deitado, olhando pro primo Alex dormindo inteiramente pelado, embaixo daquela lua enorme, o cheiro enjoativo dos jasmins entrando pela janela aberta, me dava uma coisa assim que eu não entendia direito se era tontura, sono, nojo ou quem sabe aquele ódio se transformando devagarzinho em outra coisa que eu ainda não sabia o que era.
(em Os Dragões não conhecem o Paraíso - Caio 3D - O Essencial da Década de 1980)
Fiz cara feia, a Mãe nem ligou. Falou que ele vinha e pronto, que tinha estudado muito o ano todo, passado no vestibular não sei de que e precisava descansar e tal e tudo e que ela devia aquela obrigação à tia Dulcinha coitada tão só e que além do mais o Alex era um bom rapaz tão esforçado o pobre. Isso eu odiava mais que tudo: aqueles bons rapazes tão esforçados e de óculos sempre saindo com sacolas de lona na hora do almoço para comprar cervejas e coca-colas e cigarros pra todo mundo, ajudando a lavar pratos e jogando aquelas chatíssimas canastras sobre o cobertor verde na ponta da mesa. Empurrei a compota de pêssego argentino, a calda virou na toalha, armei a tromba. Esse era meu jeito de dizer: não careço nem ver a cara dele para ter certeza que é um coió.
Quase dormindo, mais tarde, naquela mesma noite que a Mãe avisou que o primo Alex vinha, eu tentava lembrar a cara dele e não conseguia. Na verdade, não conseguia lembrar a cara de ninguém desde uns dois anos atrás, desde que eu tinha começado a ficar meio monstro e os parentes se cutucavam quando eu passava, davam risadinhas, falavam coisas baixinho, olhando disfarçado pra mim. Eu tinha horros deles, que achavam que sabiam tudo sobre mim. Sabiam nada, sabiam bosta do meu ódio enorme por um por um de cada um deles, aquelas barrigonas, aqueles peitos suados, pés cheios de calos. Eu nunca ia ser igual a eles - pequeno monstro, seria sempre diferente de todos. Era assim mesmo que ia me comportar com o primo Alex, decidi: pequeno monstro cada vez mais monstro, até ele não agüentar mais um minuto e dar o fora pra sempre. Fiquei olhando com força pro colchão sem lençol da cama ao lado onde ele ia dormir, até encher o colchão com todo o meu ódio, pra ele se sentir mal e ir embora no mesmo dia.
No dia que era o dia que ele vinha - e eu sabia porque a Mãe não falava outra coisa, arrumou lençóis limpos na cama ao lado, mandou eu empilhar os gibis, guardar no guarda-roupa a roupa da guarda da cadeira, saí de casa um pouco mais cedo e fiquei caminhando séculos na praia. Eu gostava de ir até aquele farol no caminho da Cidreira, onde tinha umas dunas e era bom ficar deitado na areia, olhando o mar sem fim. Vezenquando passava um navio, eu perguntava pra onde vai? pra onde vai? Bem besta mesmo, não pensava o lugar, só perguntava assim: pra onde vai, sem pensar o nome nem nada. Depois pensava também se eu saísse agora reto daqui e entrasse no mar e que nem Jesus Cristo fosse capaz de pisar sobre as águas e fosse andando sempre em frente sem parar - ia dar onde? Achava que na África, na Índia, sei lá. Em algum lugar, ia dar. Longe dali, de Tramandaí. Aí começou a sair do mar uma lua cheia bem redonda, e eu primeiro fiquei tentando ver nela São Jorge e o dragão, depois lembrei que era besteira, coisa de criança, e pensei crateras, desertos, quase via, Mar da Serenidade. Ou era Fertilidade? Fui olhando as coisas, me atrolhando por ali, até que de repente tinha anoitecido total, e eu tinha que voltar pra merda daquela casa com aquele Pai e aquela Mãe. Ainda por cima, fui lembrando no caminho, cada vez mais puto, e por causa disso caminhava mais devagar ainda e ficava cada vez mais noite, agora com aquele tal de primo Alex lá, enfiado no meu quarto. Passaram uns bagaceiras com violão e uma garrafa de cinzano, abraçados, cantando uma música de parque. Desviei deles, fui enfiando os pés na água morna do mar, de cabeça baixa pra não mexerem comigo. Vezenquando olhava pra trás e só ouvia aquelas vozes bem de bagaceiras mesmo, cada vez mais longe, cantando a noite tá tão escura/ a lua fez feriado/ estou sofrendo a tortura/ de não sentir-te ao meu lado. Bestas, pensei, porque a lua não tinha feito feriado coisa nenhuma, feriado era lua nova, não aquela luona enorme, redonda, amarela, bem ali em cima do mar e da cabeça da gente. Quando eu já tinha caminhado um pouco em direção ao norte, e os bagaceiras tinham sumido, olhando por cima do ombro direito pensei quem sabe agora, saindo reto aqui eu dou justo ali, no sulzinho da África, cabo das Tormentas. Ou era o da Boa Esperança? Aí de repente despencou uma baita estrela cadente, quase do tamanho da lua, tão grande que cheguei a parar pra ouvir o tchuááááááááááááááá da estrela caindo dentro do mar. Não aconteceu nada, então falei bem alto, imitando aquela vozinha de taquara rachada da dona Irineide, professora de Geografia: bó-li-dos, isso que o populacho chama de estrelas cadentes na verdade são bó-li-dos. Me senti muito culto e tudo, mas meio sem graça, daí lembrei que podia fazer um pedido, ou três, não sei bem, a gente podia. Então peguei e fiz. Que já que o primo Alex tinha mesmo que estar lá naquela merda de casa - e era impossível pedir que não viesse, porque já tinha vindo - que pelo menos ele fosse legal e não me enchesse o saco.
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A luz da lua batia direto nele. Ele estava deitado por cima do lençol, completamente pelado. Meus olhos se acostumavam cada vez mais, e eu podia ver o primo Alex virado sobre o lado direito, as duas mãos juntas fechadas no meio das pernas meio dobradas. Ele parecia muito grande, tinha que encolher um pouco as pernas, senão os pés batiam lá na guarda do fim da cama-patente. Ele tinha muitos pêlos no corpo, a luz da lua batendo assim neles fazia brilhar as pontas dos pêlos. Ele tinha a cara virada de lado, afundada no travesseiro, eu não podia ver. Via aqueles pêlos brilhando - uns pêlos nos lugares certos, não errados, que nem os meus - descendo para baixo do pescoço, pelo peito, pela barriga, escondidos e mais cerrados naquele lugar onde ele enfiava as mãos, depois espalhados pelas pernas, até os pés. Os pés encolhidos do primo Alex eram muito brancos, o pai dele tinha morrido, ele tinha estudado o ano inteiro e passado no vestibular não sei de quê, lembrei. E não fazia barulho nenhum quando dormia, coitado.
Fiquei deitado na minha cama, olhando para ele. Depois de um tempo, comecei a ouvir a respiração dele e fui prestando atenção na minha própria respiração, até conseguir que ela ficasse igual à dele. Eu respirava, ele respirava. Eu cruzei as mãos no peito e encostei a cabeça na guarda da cama para poder olhar melhor. Ele tinha cruzado as mãos no meio das pernas decerto para dormir melhor, o pobre, podre da viagem. Fiquei olhando pra ele, respirando devagar, no mesmo ritmo. Bem devagar, para não acordá-lo. Não sei por quê, mas de repente todo o meu ódio passou. Ali deitado, olhando pro primo Alex dormindo inteiramente pelado, embaixo daquela lua enorme, o cheiro enjoativo dos jasmins entrando pela janela aberta, me dava uma coisa assim que eu não entendia direito se era tontura, sono, nojo ou quem sabe aquele ódio se transformando devagarzinho em outra coisa que eu ainda não sabia o que era.
(em Os Dragões não conhecem o Paraíso - Caio 3D - O Essencial da Década de 1980)
Adoro o conto. Aguardo o resto.
ResponderExcluirMuito bom o conto. É seu ou de Fernando Abreu?
ResponderExcluiresse fundo preto com a letra branca dá dor de cabeça em ler. o fundo branco era tão melhor!
ResponderExcluirvenho sempre aqui, acho foda a iniciativa, mas tenho uma sugestão: - por que você não põe de qual livro e de que ano é o texto?
ResponderExcluirseria bem melhor pra quem lê encaixar em cada época certa e ver o desenvolvimento dele e tal.
valeu!
parabéns aí pelo blog.
ah, e concordo com o anônimo aí em cima também!
ih, desculpa aí, acabei de ver que tem sim de onde vem os texto... =/
ResponderExcluiresse conto é seu então?
muito legal, parabéns de novo.
Ah, eu gosto do blog, dos contos e tudo e tal.
ResponderExcluirTo satisfeita.
Parabéns!
onde eu poderia encontrar essa musica que esta nesse conto? a noite esta tão escura a lua fez feriado estou sofrendo a tortura de sentir-teao meu lado
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