20.9.06

De várias cores, retalhos

Escrito em 1975, este conto faz parte de uma alegre fase pop, totalmente inédita (exceto por A História de Sally CanDance, de Pedras de Calcutá). Acontece que na época, além da censura oficial, havia uma censura de anti-censura, tão castradora quanto, as famosas "patrulhas ideológicas" - o resultado é que não havia espaço algum para uma história como esta. De todas as selecionadas para este livro, foi talvez a que menos me deu trabalho. Juvenil e talvez um tanto tola, mas pronta.
*nota do autor

de várias cores, retalhos
nas cores laranja rosa azul turquesa
uma calça lee desbotada
(Antonio Bivar)

Logo de manhã bem cedo, a mãe parou espantada na porta do quarto do filho. Um rolinho chegou a desprender-se do cabelo, deslizar ombro abaixo e escorregar pela escada, pinguepongueando. Chamou o pai, que veio sonolento, coçando a barriga, o ar de quem tinha pesadelos negros. Ficaram os dois olhando a porta do quarto do filho. A porta do quarto do filho estava fechada por dentro. No lado de fora, para onde o pai e a mãe olhavam espantados, certamente o próprio filho, pois não havia ninguém mais na casa capaz de tais absurdos, grafitara em letras grandes, tortas, coloridas:
VOCÊS NÃO TAO COM NADA.
O tao estava escrito assim mesmo, sem til, e o pai, professor de português, ficou escandalizado. "Além de desaforado, burro", comentou.
Mas a mãe lembrou que o filho vivia às voltas com um livro de letras chinesas na capa chamado justamente Tao, e lembrou ao pai que podia ser uma referência ao livro, não ao verbo estar. Um livro estranho - ela ficou pensando enquanto o pai não respondia -, parecia coisa meio religiosa, umbanda talvez, aqueles exotismos do filho, mania de não comer carne, panos nas paredes, sininhos, baralhos com figuras esquisitas, posters de discos voadores e Raul Seixas pelo quarto, aquela mistura de bazar persa e acampamento cigano mais uma pitada de terreiro.
O pai e mãe bateram na porta delicadamente, depois menos delicadamente, depois num um pouco delicadamente. O pai tentou abrir por fora, mas não conseguiu. Empurrou com o ombro, mas parecia que tinha uma coisa pesada prendendo por dentro. A mãe teve certeza que o filho empurrara a estante contra a porta. E os dois sempre se sentiam tão cansados pela mnhã, e tinham tantos pesadelos à noite, tanto barulho dos carros lá fora, tantas dívidas, tentos perigos no futuro incerto, enfim: eles não tinham energia para se quer derrubar aquela porta.
Então a mãe foi chamar o outro filho, que jogava basquete e tinha ombros largos, músculos fortes e uma cara rosada de estudante universitário dos anos 50, só que moreno. O outro filho veio sem muito saco, empurrou a porta devagar com um daqueles ombros enormes, depois coçou a cabeça e sugeriu que dessem a volta na casa para tentar abrir a janela. Tinha jogo á noite, não podia correr o risco de uma distensão, ainda mais por causa daquele babaca.
O pai, a mãe e o outro filho deram a volta na casa e tentaram a tal janela. Mas a janela também estava trancada parecia ter ferros, correntes, cadeados, grilhões. A mãe ficou indecisa entre desmaiar, ter ataque de choro ou fazer café bem forte. O pai só balançava a cabeça e coçava a barriga, repetindo meu-deus-o-que-foi-que-esse-rapaz-aprontou? O outro filho bocejava, fazendo alguns exercícios para desenvolver as coxas. Até que de repente, tocou a campainha, o telefone, o cachorro começou a latir, chegou o jornal, a diarista, tudo ao mesmo tempo - e não se sabe bem como, em menos de quinze minutos a casa estava cheia de vizinhos, parentes e curiosos subindo, descendo escadas, fechando, abrindo gavetas, contando anedotas, fazendo chás e cafés. Como se fosse uma festa. Ou um velório.
A mãe soluçava no ombro de uma vizinha, lembrando um por um de todos os atos do dia anterior, e gemia que-foi-que-eu-fiz-de-errado-para-merecer-isso-sempre-fui-a-melhor-das-mães. Alguém mais prático achou que não podiam ficar nisso o dia inteiro, ainda mais agora que havia chegado a televisão, fotógrafos e uns vinte repórteres pedindo cafezinho. Outro insinuou que o filho podia estar morto, suicidado, enforcado, pulsos cortados - mas não havia sangue no corredor -, uma dose excessiva de barbitúricos, esses jovens, nunca se sabe do que são capazes, acalentamos uma víbora em nosso seio, ânimo, querida, esquizofrênico, paranóico, nem falar falava, nunca - nunca se sabe.
E já eram tantos, e que a suposta estante sustentando a porta por dentro não seria mais forte que a força de todos eles juntos - reuniram-se e começaram a fazer força. Não foi difícil. A porta logo abriu-se, cinematográfica, enquanto os mais dramáticos desmaiavam, flashes estouravam e as luzes quentíssimas da tevê acenderam-se, revelando o interior vazio. O que dizer, vazio de gente, pois tudo estava nos lugares, surpreendentemente limpo, a cama - milagre! - feita, plantas - as descaradas, ele até conversava com elas -, livros, roupas nos armários. Só faltava a flauta doce, os poster do Raul Seixas e aquele tal livro do Tao. Ah, e o filho, naturalmente.
Depois de alguns uhs! Ou ahs! Em catatonia coletiva, encontraram um bilhete na cabeceira. Dizia assim: "Quanto mais conheço minha família, mais entendo Franz Kafka". O pai e a mãe não entenderam direito, quem era mesmo esse tal Franz? Mas um jornalista do segundo caderno lembrou que o misteriosos rapaz podia ter-se transformado num inseto, uma barata, por exemplo, esses jovens sempre tão imprevisíveis, são capazes de tudo só para chocar os outros. Jogaram todas as almofadas para cima, tiraram todos os discos das capas, os livros das estantes, as roupas do guarda-roupa - mas nenhum inseto digno de nota foi encontrado, também porque a casa foi detetizada não fazia nem dez dias, lembrou o irmão.
Só depois que todos se foram, pois não havia nada a fazer além de registrar queixa de desaparecimento, e a casa ficou em silêncio, e era quase meio-dia, a mãe veio abrir a janela pensando e debruçar-se pensativa para que os vizinhos a vissem assim, "uma mulher acabada", diriam - e então viu as penas. No peitoril, do lado de dentro, uma porção de penas, dessas mesmo de ave, não de espanador. De uma ave que ela não conhecia. Penas grandes, de muitas cores e formas, desenhos coloridos como nunca vira, nem em desenho nem em bicho vivo. Algumas estavam manchadas de sangue. Era como se um grande pássaro tivesse debatido horas entre as paredes daquele quarto, até fugir. A mãe só não entendia como, porque a janela ficara fechada até que ela a abrisse, agora, cinco minutos atrás.
Ela suspirou, a mão no peito. Então um ventinho entrou pela janela aberta, arrepiou algumas penas caídas e fez tilintar os sete sininhos dourados suspensos por um fio. O filho dizia sempre que tinham sido enviado do Tibet por alguém muito especial. E que eram mágicos.
(Do Livro Ovelhas Negras)

9 comentários:

  1. Anônimo11:23

    eu amo esse conto, é concerteza o mais especial da minha vida, e como me faz lembrar quem sou...que bom que colocou no blog...
    beijo

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