2.11.06

Os limites do Menino Deus

Sei que na verdade não, mas na minha cabeça o Menino Deus é uma ilha. Não sou muito bom em pontos cardeais, e agora não é noite para tentar ver o Cruzeiro do Sul nem há uma agulha à mão para ser posta boiando na água (ainda que houvesse, é para o sul ou para o norte que aponta a ponta, afinal?), portanto é correndo o risco de cometer erros e arbitrariedades mis que tento cartografar: o Menino Deus limita-se apenas por duas águas, as do riacho Ipiranga ao norte e as do Guaíba a oeste. Ao sul, a fronteira confunde-se com o Morro Santa Tereza; à leste, com a Azenha.
Nada disso é definitivo, eu mesmo coloco dúvidas. Por exemplo: aquelas ruas logo depois da ponte da Ipiranga, onde ficam o Teatro Renascença e o prédio de Zero Hora, são mais Menino Deus ou Cidade Baixa? E a avenida Erico Verissimo (que é inventada, duvido que alguém lembre direito o que havia antes dela) limita ou não a fronteira com a Azenha? E nas subidas do morro, onde exatamente acaba o Menino Deus e começa Santa Tereza? Seria a José de Alencar o marco divisório? Há um ponto ainda mais delicado: a quem pertence o Parque Marinha do Brasil? Porque a Praia de Belas, como a avenida Erico Veríssimo, também é tão inventada que, feito a Holanda, é mais aterro do que terra propriamente dita. Antigamente, disso lembro bem, o Guaíba terminava (ou começava) mesmo no Menino Deus. Além do mais, não consigo levar a Praia de Belas muito a sério - sei que o que vou dizer é polêmico e pode provocar acusações de colonialismo, mas tenho que dizer: a Praia de Belas está para o Menino Deus assim como Santa Catarina para o Rio Grande do Sul... Reticências.
De qualquer forma, imagino essa ilha - e por imaginá-la, sendo eu o dono dessa invenção, posso demarcá-la como quiser e inclusive me apropriar de certos territórios mais além do imaginário. Caso contrário onde colocaria, por exemplo, aquela paineira enorme no alto de um morro numa rua que não digo o nome?

Como um gigantesco tronco humano de pernas abertas enterradas na terra abaixo dos joelhos e braços abertos em galhos estendidos para o alto, o Oxóssi mais soberbo que já vi, essa paineira poderia fazer parte da bandeira do Menino Deus.
Que se não é uma ilha, certamente é independente. Há mercados super e inhos, há farmácias alo e homeopáticas, há feiras (uma ótima, só de produtos naturais, aos sábados, no Parque de Exposições, onde não se corre o terrível risco de encontrar-todo-mundo, como no Brique da Redenção), há sobretudo ruas cheias de árvores onde você pode se perder em túneis vermelhos, se for tempo de hibiscos, ou roxos, se for tempo de ipês e assim por diante. Agora é tempo de uma árvore de cachos amarelíssimos, uma espécie assim de alegoria à mais dourada das Oxuns.
Tropicalismo à parte, parece a Suíça. Sei, você vai dizer que isso também já é exagerado e argumentar que tem mendigos. Tem, claro. Mas os mendigos do Menino Deus são tão, mas tão suíços que têm até horário para bater nas portas. Aos sábados, bem na hora do almoço, sabemos sempre aqui em casa que é o Juca. Depois do jantar, que é-aquele-ou-aquela-cheirando-a-cola. Em outros dias, numa hora sempre inadequada, que é aquele-meio-enfrentativo-com-mania-de-apertar-a-mão. A hora dele é errar a hora, compreende? Mendigos à parte, já observei que no Menino Deus tanto passarinhos quanto borboletas não têm medo dos humanos. Isso quer dizer muita coisa.
Mas agora me dou conta que, mal comecei a dizer o que queria, terminou o espaço. O Menino Deus é, sim, uma ilha. Pode não ser cercada de água por todos os lados, mas tem até náufragos. Só que, felizmente para vocês e para mim, isso já seria outra história.

(Publicado em Zero Hora, 21/01/1995)

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