13.10.06

Vai Passar

Vai passar, tu sabes que vai passar. Talvez não amanhã, mas dentro de uma semana, um mês ou dois, quem sabe? O verão está ai, haverá sol quase todos os dias, e sempre resta essa coisa chamada "impulso vital". Pois esse impulso às vezes cruel, porque não permite que nenhuma dor insista por muito tempo, te empurrará quem sabe para o sol, para o mar, para uma nova estrada qualquer e, de repente, no meio de uma frase ou de um movimento te supreenderás pensando algo como "estou contente outra vez". Ou simplesmente "continuo", porque já não temos mais idade para, dramaticamente, usarmos palavras grandiloqüentes como "sempre" ou "nunca". Ninguém sabe como, mas aos poucos fomos aprendendo sobre a continuidade da vida, das pessoas e das coisas. Já não tentamos o suicidio nem cometemos gestos tresloucados. Alguns, sim - nós, não. Contidamente, continuamos. E substituimos expressões fatais como "não resistirei" por outras mais mansas, como "sei que vai passar". Esse o nosso jeito de continuar, o mais eficiente e também o mais cômodo, porque não implica em decisões, apenas em paciência.
Claro que no começo não terás sono ou dormirás demais. Fumarás muito, também, e talvez até mesmo te permitas tomar alguns desses comprimidos para disfarçar a dor. Claro que no começo, pouco depois de acordar, olhando à tua volta a paisagem de todo dia, sentirás atravessada não sabes se na garganta ou no peito ou na mente - e não importa - essa coisa que chamarás com cuidado, de "uma ausência". E haverá momentos em que esse osso duro se transformará numa espécie de coroa de arame farpado sobre tua cabeça, em garras, ratoeira e tenazes no teu coração. Atravessarás o dia fazendo coisas como tirar a poeira de livros antigos e velhos discos, como se não houvesse nada mais importante a fazer. E caminharás devagar pela casa, molhando as plantas e abrindo janelas para que sopre esse vento que deve levar embora memórias e cansaços.
Contarás nos dedos os dias que faltam para que termine o ano, não são muitos, pensarás com alívio. E morbidamente talvez enumeres todas as vezes que a loucura, a morte, a fome, a doença, a violência e o desespero roçaram teus ombros e os de teus amigos. Serão tantas que desistirás de contar. Então fingirás - aplicadamente, fingirás acreditar que no próximo ano tudo será diferente, que as coisas sempre se renovam. Embora saibas que há perdas realmente irreparáveis e que um braço amputado jamais se reconstituirá sozinho. Achando graça, pensarás com inveja na largatixa, regenerando sua própria cauda cortada. Mas no espelho cru, os teus olhos já não acham graça.
Tão longe ficou o tempo, esse, e pensarás, no tempo, naquele, e sentirás uma vontade absurda de tomar atitudes como voltar para a casa de teus avós ou teus pais ou tomar um trem para um lugar desconhecido ou telefonar para um número qualquer (e contar, contar, contar) ou escrever uma carta tão desesperada que alguém se compadeça de ti e corra a te socorrer com chás e bolos, ajeitando as cobertas à tua volta e limpando o suor frio de tua testa.
Já não é tempo de desesperos. Refreias quase seguro as vontades impossíveis. Depois repetes, muitas vezes, como quem masca, ruminas uma frase escrita faz algum tempo. Qualquer coisa assim:
- ... mastiga a ameixa frouxa. Mastiga , mastiga, mastiga: inventa o gosto insípido na boca seca ...



A personagem está sentada numa escrivaninha. A escrivaninha é muito velha, tem madeira lascada, riscada, manchada de muitas tintas. Falta a gaveta de cima. Pelo vão pode-se ver o que há no interior da segunda gaveta: uma garrafa de Pepsi-Cola vazia e um pedaço de sanduíche de queijo ou/e mortadela. Sobre o tampo, um maço de Hollywood pela metade e muito amassado, uma caixa de fósforos e um pires de cafezinho como cinzeiro. A personagem Lê um livro – de onde não consigo ler o título. A personagem usa tênis brancos (foram brancos), calças de brim azul, desbotado e sujo, um suéter amarelo de lã, esgarçado nos cotovelos. A personagem não olha em volta. Em volta, muitos moças & rapazes com pastas, falando alto (pode-se ouvir, nitidamente, a palavra “dialética”), supõe-se que sejam estudantes. Nas paredes vários cartazes. Num deles, pode-se ler claramente “Cultivar as Almas – ciclo de palestras filosóficas”. Em outro “Você na prévia”. E também: “Pela prática da Liberdade”. Por todos esse detalhes, se supõe que o cenário onde está sentada a personagem seja o diretório do centro acadêmico de alguma faculdade (mas de onde estou não consigo ver claramente). Há uma porta grande de vidro, semi aberta. Lá fora, às vezes chove, às vezes faz sol. Secas e molhadas, as pessoas que entram não param nem falam com a personagem. A personagem está vendendo alguma coisa. De onde estou não consigo ter certeza do que se trata. Mas parecem entradas, dessas para o teatro, cinema, música ou coisa assim. Ninguém pára. Todos falam entre si (pode-se ouvir, nitidamente, a expressão “contradição do sistema”), mas ninguém com a personagem. A personagem pára de ler e olha em volta para ver se está sendo observada. Lentamente. Depois introduz rápida o braço no vão da primeira gaveta (disfarçando com o livro) e, no fundo da segunda, apanha o resto do sanduíche (queijo? Mortadela?). Não vê que eu vejo. Então morde.

34 comentários:

  1. Anônimo17:13

    li o texto e, se o caio tivesse me conhecido, tenho certeza que teria escrito esse texto pra mim.

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  2. Anônimo13:47

    Faço das palavras do Ir... as minhas...rs
    Texto lido, compreendido e sentido.

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  3. Anônimo10:42

    é e será sempre, exatamente assim... quando se está maduro, a dor, assim sentida, nos fortalece e prepara para próxima...

    guinha

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  4. exatamente, é a maturidade, o cansaço dos "sempres" ou "nuncas"

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  5. Este trecho foi retirado de qual livro???

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  6. Anônimo01:27

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    semelokertes marchimundui

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  7. Maria estiano14:36

    As vezes a minha solidão me assusta... Não, o que me assusta é saber que gosto dela e que me sinto bem com a solidão, e me isolo...

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  8. Anônimo23:11

    Um dia vai passar, essa dor que a gente acha que vai conseguir evitar numa próxima situação de risco.. a gente espera estar mais forte para a próxima experiência...isso é viver...dar uma segunda chance a nós mesmos..o difícil e saber quem merece nossa segunda chance. Infelizmente, aprendi que a gente não pode acreditar no que as pessoas dizem olhando nos nossos olhos... =( É triste saber..que o ser humano é tão volúvel e egoísta.. #desabafo

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  9. Por favor, gostaria muito de saber de qual livro foi extraído o texto. Poderia informar?
    Obrigado e parabéns!

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  10. Adriana22:19

    Lindo texto, era o que eu precisava ler no momento, adooooro o Caio Fernando de Abreu.

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  11. Anônimo22:42

    Verdades que aprendemos com o tempo... na escola da VIDA!!!

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  12. Anônimo00:05

    "E substituimos expressões fatais como "não resistirei" por outras mais mansas, como "sei que vai passar"." perfeito a frase, perfeito o exto todo... Estou passando por isso agora.. :(

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  13. Anônimo14:29

    Perfeito!!! vai passar eu sei que vai passar.

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  14. FATO COMPROVADO PELAS ESTATÍSTICAS DE QUEM VIVE A VIDA...

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  15. Perfeito texto... e pode ter certeza que tudo nessa vida passa. coisas boas estão por vim. :)

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  16. Anônimo02:47

    Com certeza é isso mesmo,na adolescencia ficamos loucos,pensamos até em se matar,mas com o tempo a dor se torna mais calma,mais contida,e sempre pensamos "vai passar". Lindo texto.

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  17. Anônimo09:08

    Nunca tinha sentido isso... Agora sei como é.

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  18. Anônimo12:37

    Hoje me sinto sozinha e angustiada e parece que não tenho com quem dividir esse peso que se instalou no meu coração.
    Me sinto covarde como nunca me senti.
    Se muitos, certamente mais limitados que eu, podem, por que não poderei?
    Vai passar.
    Preciso de coragem.
    Talvez não perceba, mas já tenha a oportunidade que tanto imploro e estou deixando passar.
    Terei força.
    Terei garra.
    Terei coragem, como sempre tive.
    Vai passar.

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  19. Anônimo22:47

    Esse texto foi feito para meus amigos após uma perde terrível de uma amiga.

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  20. Muita gente perguntou aqui em que livro encontramos esse texto (fiz o mesmo por muito tempo), eu encontrei em um livro que se chama Caio 3D - o essencial da década de 80, na parte Metâmeros, que começa assim:

    "Desde que li em algum livro de biologia que "metá-mero é cada um dos
    anéis do corpo de um verme, e que cada um desses metâmeros pode formar
    um verme novo", fiquei fascinado pela idéia de textos que seriam assim como
    embriões de si mesmos. Se desenvolvidos, poderiam resultar em contos ou até mesmo novelas ou romances. Das dezenas que escrevi, estes dois me parecem os melhores."

    O primeiro ao qual ele se refere chama-se "A perda" e o segundo, com o trecho postado aqui chama-se "Sobre o Vulcão".

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