De repente, estou só. Dentro do parque, dentro do bairro, dentro da cidade, dentro do estado, dentro do país, dentro do continente, dentro do hemisfério, do planeta, do sistema solar, da galáxia - dentro do universo, eu estou só. De repente. Com a mesma intensidade estou em mim. Dentro de mim e ao mesmo tempo de outras coisas, numa seqüência infinita que poderia me fazer sentir grão de areia. Mas estar dentro de mim é muito vasto. Minhas paredes se dissolvem. Não as vejo mais, e por um instante meu pensamento se expande, rompendo limites num percurso desenfreado. Nesse rápido espraiar, meu ser anexa a si as coisas externas. O parque, as árvores., o sol, as gentes deixam de ter existência privada e, dentro de mim, estão sob meu domínio. Como membros de meu corpo, ou pensamentos já feitos ou palavras já formuladas -eles se aninham em mim, fazendo parte do meu ser. Me torno em parque, em árvore, sol, em gentes. O processo é tão breve que sequer tenho tempo de regozijar-me com ele. Porque subitamente tudo volta.
E sou apenas um homem no parque - reduzido somente a minha condição de homem no parque. Espio para fora de mim e vejo as coisas que não são mais minhas. As árvores debaixo das quais estou, esta folha que há pouco deslizou pelo meu chapéu, escorregou por ombro, atingindo a mão onde a esmago, esta gente para quem sou um homem no parque. Na minha mão o contato da folha ferida é áspero. Mas não fere. Frente a meus olhos: hirta, seca, amarelada, é uma folha do inverno. As ramificações se expandem em mil caminhos até as bordas, na tentativa já inútil de levar a seiva aos pontos mais recuados, e ela é uma coisa morta. O pequeno talo vibra entre meus dedos como um ser vivo e agonizante num último espasmo. Olho as pontas reviradas e, num gesto, torno a esmagá-la. Já não é folha, já não é nada -somente um punhado de poeira que escorrega incômoda manga adentro do casaco. No entanto, não sou um assassino: sou um homem no parque! quase grito para que as outras pessoas escutem e olhem para mim e vejam como sou inteiramente normal trivial banal e até vulgar dentro deste terno escuro, antiquado -preciso que tomem consciência do meu ser e preciso eu mesmo tomar consciência do que sou e do que significo nesta brecha de tempo. Por isso baixo os olhos e, subindo-os desde o bico dos sapatos, vistorio todo o conjunto que forma o meu ser em exposição. Calças, casaco, chapéu eu sou um homem no parque! Novamente quase grito porque a realidade de repente oscila, ameaçando quebrar-se em fatias que ferem. Apoiado em minha segurança, que se revela precária, eu luto.
E eis que a luta finda. Eu cedo. Novamente as coisas se dissolvem e torno a escorregar para dentro de mim. Mas estar em mim já não é vasto. Minha extensão reduziu-se a este círculo acinzentado que é meu pensamento. Minha extensão é tão mínima que sufoco dentro dela. Tudo se resume a esta extensão. Não há mais nada fora de mim. Impossível a fuga. Meus membros se encolhem como um tecido ordinário, recém-levado, estendido ao sol. Tudo se comprime em torno de mim. Este círculo acinzentado apertando cada vez mais, repleto de arestas, de pontas aguçadas. Neste círculo estou em rotação. Meu ser vai girando, girando num lento corrupio, num movimento que é quase dança, quase ciranda. As arestas ferem leve, com jeito de carícia, as pontas apenas afagam enquanto o pensamento se esquiva, na esperança de sair ileso. Então tudo cessa.
E volta o parque com suas gentes passando, com aquela série de coisas que constituem o ser de um parque. Acendo um cigarro, minha mão treme, devolvida à segurança que em relação às coisas de fora novamente se revela eficiente. Nas minhas calças, o pó da folha é a lembrança do crime sem júri nem juiz, nem poluição. A meus pés, o trabalho das formigas é intenso neste outono quase inverno, repleto de folhas caídas. A longa fila se encaminha lenta, desviando-se de meus sapatos, folhas equilibradas sobre as cabeças, ultrapassando os pés do homem a meu lado, as pernas vagamente tortas daquela mulher mais adiante, as meias azuis daquela adolescente. Até o formigueiro, onde as despensas devem estar abarrotadas. Mas as cigarras já não cantam.
Tudo volta. Procuro retomar a meu último pensamento: tinha relação com infância e livro, eu sei. E busco. Por entre essa infinidade de formas, de signos desfeitos com que são construídos os pensamentos por entre esse amontoado de lembranças feitas de imagem incompletas como retratos rasgados; por entre essas idéias a que faltam braços, pernas, cabeças por entre os retalhos dessa caótica colcha de que é tecido o cérebro de um homem no parque, eu busco. Sem encontrar. A segurança das coisas fáceis e simples desliza entre meus dedos recusando fixar-se. E há o cigarro: essa tonalidade azulada é apenas a fumaça subindo em lentas espirais, cada vez mais densa, tomando conta de mim, eu sei, deve ser, porque as coisas não sendo o que são outra vez me jogarão num mundo de procuras e espantos.
E de novo estou em mim. Ainda preso nas engrenagens do círculo. Que desta vez não ferem. Dentro da minha pequena extensão me são permitido o movimento e o investigar. Movimento e investigar vãos, porque é tudo tão ínfimo que nem há mistérios pelos cantos. Não há perspectiva na espera de serem pressentidas. Não há sequer vértices nesta superfície despida de arestas: só a leve chama, em aceno trêmulo por entre o vazio. Mas eu não quero. Seria preciso abdicar de todas as minhas verdades essas estrutura das lentamente, dia após dia, quase minuto a minuto, suavizando os contornos da realidade quando esta se torna áspera. Seria preciso abdicar de meu ser cotidiano, construído em longo labor. Seria preciso abdicar de minha segurança, e eu a acumulei em paciência em tédio, mas a fiz forte, e se agora periclita é porque todos nós temos o nosso momento de queda. E este é o meu.
No vácuo de mim eu me despenco. Porque seria preciso também abdicar de mim mesmo para novamente reconstruir-me. Tornar a escolher os gestos, as palavras, em cada momento decidir qual dos meus seus assumir. Já esfacelei meu ser, já escolhi as porções que me são convenientes, esquecendo deliberado as outras. E são elas -serão elas? -que agora se movimentam revoltadas, pedindo passagem em gritos mudos, na ânsia de transcender limites, violentar fronteiras, arrebentando para a manhã de sol. O tremular da chama é um aceno, convite para chegar à verdade última e íntima de cada coisa.
Não quero. Não posso restar nu, despojado de mim mesmo. Não posso recomeçar porque tudo soaria falso e inútil. As minhas verdades me bastam, mesmo sendo mentiras. Não é mais tempo de reconstruir.
Em luta, meu ser se parte em dois. Um que foge, outro que aceita. O que aceita diz: não. Eu não quero pensar no que virá: quero pensar no que é. Agora. No que está sendo. Pensar no que ainda não veio é fugir, buscar apoio em coisas externas a mim, de cuja consistência não posso duvidar porque não a conheço. Pensar no que está sendo, ou antes, não, não pensar, mas enfrentar e penetrar no que está sendo é coragem. Pensar é ainda fuga: aprender subjetivamente a realidade de maneira a não assustar. Entrar nela significa viver .
Sôfrego, torno a anexar a mim esse monólogo rebelde, essa aceitação ingênua de quem não sabe que viver é, constantemente, construir, não derrubar. De quem não sabe que esse prolongado construir implica em erros, e saber viver implica em não valorizar esses erros, ou suavizá-los, distorcê-los ou mesmo eliminá-los para que o restante da construção não seja abalado. Basta uma pausa, um pensamento mais prolongado para que tudo caia por terra. Recomeçar é doloroso. Faz-se necessário investigar novas verdades, adequar novos valores e conceitos. Não cabe reconstruir duas vezes a mesma vida numa única existência. Por isso me esquivo, deslizo por entre as chamas do pequeno fogo, porque elas queimam. queimar também destrói.
Perplexidade, recusa e medo feitos em palavra fazem tudo recuar. O círculo abandona meus membros, a chama se apaga. A luta vai-se tomando lassidão. Revolta sufocada são rumores que abafo lentamente, com a delicadeza monstruosa de quem estrangula uma criança dormindo.
Eis que começo a voltar. Não de uma galáxia distante, de outro planeta, sequer de uma cidade ou um parque. De mim, volto. Em tomo as árvores principiam a ganhar consistência, negativo aos poucos revelado, água escorrendo da capa de obscuridade. São verdes, as árvores. Seus troncos nascem da terra, se alongam em braços recobertos pelas folhas que o outono amarelou. Troncos rugosos, feito de pequenos pedaços ásperos, de cor indefinida. Mas elas são verdes. Todos as vêem verdes, mesmo agora, com as folhas amareladas, com a cor-sem-cor de seus caules. O céu azul. Mesmo sendo cinzento ou incolor o ar que o faz. É preciso dar cor e forma às coisas porque desnudas elas apavoram.
Respiro. Fecho os olhos. O ar penetra as narinas abrindo caminhos pelo corpo num automatismo que não terá fim enquanto eu viver .
Estou de volta. Minhas mãos sobre os joelhos, os joelhos cobertos pelo pano preto das calças, o pano afunilando até os pés metidos em meias listradas de azul e branco, dentro do marrom dos sapatos. Tudo me diz que estou de volta. Aceito. Suspenso no meu pulso, o tempo tiquetaqueia no ritmo do relógio. Onze horas. Preciso ir andando. Há mulher há filhos há trabalho há a prestação da televisão que passará um bangue-bangue legal e pensando como qualquer homem neste ou noutro hoje à noite e eu gosto de bangue-bangue como um menino gosta de sorvete metido no meu pijama de bolinhas nas minhas chinelas às quais se amoldam meus pés como dentro de uma fôrma e a minha poltrona funda e o cachimbo e o jornal do lado. Tudo tão simples. Já vi mil vezes cenas iguais em filmes e livros e revistas. Tanto e tanto que duvido delas. Mas dúvida faz escorregar. E no fundo, depois do longo deslizar, no fundo é Úmido e frio, apesar da chama. Faz-se necessário testar, apalpar as massas que recusam definições. Faz-se necessário avançar. Mas tudo impede o avanço. E dói.
Não.
E eis então que caminho para rua, chamo um táxi, entro nele. Eis aí que olho pela janela, vejo o parque, o banco, as pipocas que não comprei. Eis assim que encosto a cabeça no banco, apanho um cigarro e trago longamente. Eis depois que solto a fumaça de um jeito que não sei se é sopro ou suspiro. Eis.
(Caio Fernando Abreu, Itinerário in "Inventário do Ir-remediável")
E sou apenas um homem no parque - reduzido somente a minha condição de homem no parque. Espio para fora de mim e vejo as coisas que não são mais minhas. As árvores debaixo das quais estou, esta folha que há pouco deslizou pelo meu chapéu, escorregou por ombro, atingindo a mão onde a esmago, esta gente para quem sou um homem no parque. Na minha mão o contato da folha ferida é áspero. Mas não fere. Frente a meus olhos: hirta, seca, amarelada, é uma folha do inverno. As ramificações se expandem em mil caminhos até as bordas, na tentativa já inútil de levar a seiva aos pontos mais recuados, e ela é uma coisa morta. O pequeno talo vibra entre meus dedos como um ser vivo e agonizante num último espasmo. Olho as pontas reviradas e, num gesto, torno a esmagá-la. Já não é folha, já não é nada -somente um punhado de poeira que escorrega incômoda manga adentro do casaco. No entanto, não sou um assassino: sou um homem no parque! quase grito para que as outras pessoas escutem e olhem para mim e vejam como sou inteiramente normal trivial banal e até vulgar dentro deste terno escuro, antiquado -preciso que tomem consciência do meu ser e preciso eu mesmo tomar consciência do que sou e do que significo nesta brecha de tempo. Por isso baixo os olhos e, subindo-os desde o bico dos sapatos, vistorio todo o conjunto que forma o meu ser em exposição. Calças, casaco, chapéu eu sou um homem no parque! Novamente quase grito porque a realidade de repente oscila, ameaçando quebrar-se em fatias que ferem. Apoiado em minha segurança, que se revela precária, eu luto.
E eis que a luta finda. Eu cedo. Novamente as coisas se dissolvem e torno a escorregar para dentro de mim. Mas estar em mim já não é vasto. Minha extensão reduziu-se a este círculo acinzentado que é meu pensamento. Minha extensão é tão mínima que sufoco dentro dela. Tudo se resume a esta extensão. Não há mais nada fora de mim. Impossível a fuga. Meus membros se encolhem como um tecido ordinário, recém-levado, estendido ao sol. Tudo se comprime em torno de mim. Este círculo acinzentado apertando cada vez mais, repleto de arestas, de pontas aguçadas. Neste círculo estou em rotação. Meu ser vai girando, girando num lento corrupio, num movimento que é quase dança, quase ciranda. As arestas ferem leve, com jeito de carícia, as pontas apenas afagam enquanto o pensamento se esquiva, na esperança de sair ileso. Então tudo cessa.
E volta o parque com suas gentes passando, com aquela série de coisas que constituem o ser de um parque. Acendo um cigarro, minha mão treme, devolvida à segurança que em relação às coisas de fora novamente se revela eficiente. Nas minhas calças, o pó da folha é a lembrança do crime sem júri nem juiz, nem poluição. A meus pés, o trabalho das formigas é intenso neste outono quase inverno, repleto de folhas caídas. A longa fila se encaminha lenta, desviando-se de meus sapatos, folhas equilibradas sobre as cabeças, ultrapassando os pés do homem a meu lado, as pernas vagamente tortas daquela mulher mais adiante, as meias azuis daquela adolescente. Até o formigueiro, onde as despensas devem estar abarrotadas. Mas as cigarras já não cantam.
Tudo volta. Procuro retomar a meu último pensamento: tinha relação com infância e livro, eu sei. E busco. Por entre essa infinidade de formas, de signos desfeitos com que são construídos os pensamentos por entre esse amontoado de lembranças feitas de imagem incompletas como retratos rasgados; por entre essas idéias a que faltam braços, pernas, cabeças por entre os retalhos dessa caótica colcha de que é tecido o cérebro de um homem no parque, eu busco. Sem encontrar. A segurança das coisas fáceis e simples desliza entre meus dedos recusando fixar-se. E há o cigarro: essa tonalidade azulada é apenas a fumaça subindo em lentas espirais, cada vez mais densa, tomando conta de mim, eu sei, deve ser, porque as coisas não sendo o que são outra vez me jogarão num mundo de procuras e espantos.
E de novo estou em mim. Ainda preso nas engrenagens do círculo. Que desta vez não ferem. Dentro da minha pequena extensão me são permitido o movimento e o investigar. Movimento e investigar vãos, porque é tudo tão ínfimo que nem há mistérios pelos cantos. Não há perspectiva na espera de serem pressentidas. Não há sequer vértices nesta superfície despida de arestas: só a leve chama, em aceno trêmulo por entre o vazio. Mas eu não quero. Seria preciso abdicar de todas as minhas verdades essas estrutura das lentamente, dia após dia, quase minuto a minuto, suavizando os contornos da realidade quando esta se torna áspera. Seria preciso abdicar de meu ser cotidiano, construído em longo labor. Seria preciso abdicar de minha segurança, e eu a acumulei em paciência em tédio, mas a fiz forte, e se agora periclita é porque todos nós temos o nosso momento de queda. E este é o meu.
No vácuo de mim eu me despenco. Porque seria preciso também abdicar de mim mesmo para novamente reconstruir-me. Tornar a escolher os gestos, as palavras, em cada momento decidir qual dos meus seus assumir. Já esfacelei meu ser, já escolhi as porções que me são convenientes, esquecendo deliberado as outras. E são elas -serão elas? -que agora se movimentam revoltadas, pedindo passagem em gritos mudos, na ânsia de transcender limites, violentar fronteiras, arrebentando para a manhã de sol. O tremular da chama é um aceno, convite para chegar à verdade última e íntima de cada coisa.
Não quero. Não posso restar nu, despojado de mim mesmo. Não posso recomeçar porque tudo soaria falso e inútil. As minhas verdades me bastam, mesmo sendo mentiras. Não é mais tempo de reconstruir.
Em luta, meu ser se parte em dois. Um que foge, outro que aceita. O que aceita diz: não. Eu não quero pensar no que virá: quero pensar no que é. Agora. No que está sendo. Pensar no que ainda não veio é fugir, buscar apoio em coisas externas a mim, de cuja consistência não posso duvidar porque não a conheço. Pensar no que está sendo, ou antes, não, não pensar, mas enfrentar e penetrar no que está sendo é coragem. Pensar é ainda fuga: aprender subjetivamente a realidade de maneira a não assustar. Entrar nela significa viver .
Sôfrego, torno a anexar a mim esse monólogo rebelde, essa aceitação ingênua de quem não sabe que viver é, constantemente, construir, não derrubar. De quem não sabe que esse prolongado construir implica em erros, e saber viver implica em não valorizar esses erros, ou suavizá-los, distorcê-los ou mesmo eliminá-los para que o restante da construção não seja abalado. Basta uma pausa, um pensamento mais prolongado para que tudo caia por terra. Recomeçar é doloroso. Faz-se necessário investigar novas verdades, adequar novos valores e conceitos. Não cabe reconstruir duas vezes a mesma vida numa única existência. Por isso me esquivo, deslizo por entre as chamas do pequeno fogo, porque elas queimam. queimar também destrói.
Perplexidade, recusa e medo feitos em palavra fazem tudo recuar. O círculo abandona meus membros, a chama se apaga. A luta vai-se tomando lassidão. Revolta sufocada são rumores que abafo lentamente, com a delicadeza monstruosa de quem estrangula uma criança dormindo.
Eis que começo a voltar. Não de uma galáxia distante, de outro planeta, sequer de uma cidade ou um parque. De mim, volto. Em tomo as árvores principiam a ganhar consistência, negativo aos poucos revelado, água escorrendo da capa de obscuridade. São verdes, as árvores. Seus troncos nascem da terra, se alongam em braços recobertos pelas folhas que o outono amarelou. Troncos rugosos, feito de pequenos pedaços ásperos, de cor indefinida. Mas elas são verdes. Todos as vêem verdes, mesmo agora, com as folhas amareladas, com a cor-sem-cor de seus caules. O céu azul. Mesmo sendo cinzento ou incolor o ar que o faz. É preciso dar cor e forma às coisas porque desnudas elas apavoram.
Respiro. Fecho os olhos. O ar penetra as narinas abrindo caminhos pelo corpo num automatismo que não terá fim enquanto eu viver .
Estou de volta. Minhas mãos sobre os joelhos, os joelhos cobertos pelo pano preto das calças, o pano afunilando até os pés metidos em meias listradas de azul e branco, dentro do marrom dos sapatos. Tudo me diz que estou de volta. Aceito. Suspenso no meu pulso, o tempo tiquetaqueia no ritmo do relógio. Onze horas. Preciso ir andando. Há mulher há filhos há trabalho há a prestação da televisão que passará um bangue-bangue legal e pensando como qualquer homem neste ou noutro hoje à noite e eu gosto de bangue-bangue como um menino gosta de sorvete metido no meu pijama de bolinhas nas minhas chinelas às quais se amoldam meus pés como dentro de uma fôrma e a minha poltrona funda e o cachimbo e o jornal do lado. Tudo tão simples. Já vi mil vezes cenas iguais em filmes e livros e revistas. Tanto e tanto que duvido delas. Mas dúvida faz escorregar. E no fundo, depois do longo deslizar, no fundo é Úmido e frio, apesar da chama. Faz-se necessário testar, apalpar as massas que recusam definições. Faz-se necessário avançar. Mas tudo impede o avanço. E dói.
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